Enzo Franchini
• O MARTÍRIO, SACRIFÍCIO ESPIRITUAL
• A REPARAÇÃO, MARTÍRIO DO CORAÇÃO
Dar a vida pelos amigos, mas também pelos inimigos do nome cristão: foi o preceito que levou os mártires a oferecerem-se sacerdotalmente – como vítimas insignes – para que o mundo tivesse vida.
A tradição, a este respeito, é tão forte que não se hesitará, a certo momento, em colocar o confessor sobrevivente à execução capital entre os presbíteros (como melhor explicará o texto). Aquele que, como Jesus, é vítima, por isso mesmo é sacerdote.
É à luz desta grande tradição que ocorre explicar a oblatividade reparadora. Não só os mártires, mas todos os que sofrem perseguição do Inimigo têm o poder de intercessão pela salvação.
Se a Igreja tivesse esquecido a sua função sacerdotal que a torna continuadora do sacrifício de Cristo, teria sido infiel à sua própria indefectibilidade. O termo “reparação” pode ser recente, ligado a formas de devoção que, entre outras coisas, introduzem na grande espiritualidade algumas acentuações originais, e mesmo por isso, não comuns ao conjunto do sentir cristão. Mas o serviço reparador é uma constante no ministério da Igreja.
São sobretudo os mártires os modelos de referência para o exercício desta função sacerdotal: e é aos mártires que nos deveremos referir com empenho particular nesta breve síntese, longe de ser completa.
Mas antes parece necessário lembrar – ao menos com alguns acenos – o serviço reparador que compete a todo o povo de Deus. É a Comissão Teológica Internacional (no seu documento preparatório ao Sínodo sobre a Penitência) que refere a célebre afirmação de S. Agostinho:
“A caridade da Igreja que está derramada nos nossos corações por meio do Espírito Santo perdoa os pecados de todos os que lhe estão unidos”.
Para Agostinho é indubitável que a intercessão eclesial tem um verdadeiro poder, uma sacerdotalidade efectiva, assim como ela tem verdadeira eficácia sacrificial: Deus não perdoa os pecados sem a cooperação, não só do conjunto eclesial, mas também de cada crente:
“Ouso dizer que as chaves (o poder de absolver) recebemo-las todos nós. Nós ligamos e desligamos. E também vós ligais e desligais”.
É esta a convicção que leva o texto sinodal Reconciliatio et poenitentia (42) a recomendar a todos os crentes de “implorar incessantemente a reconciliação para todo o corpo de Cristo e para o mundo”. O que permite a João Paulo II (Salvifici doloris, 19) afirmar:
“Cada um é chamado a… tornar-se participante no sofrimento redentor de Cristo”.
A convicção da Igreja primitiva sobre este assunto era categórica. Entre tantas, é forte esta afirmação de Justino que retoma a convicção de que só pela oração dos cristãos o mundo é salvo, na tribulação escatológica que o aflige:
“Se Deus não cumpriu ainda ou não cumpre o juízo é porque sabe que cada dia há quem, instruído no nome de Cristo, abandona o caminho do erro e recebe os seus dons”.
No contexto deste trecho fala-se muito conscientemente de uma espécie de ministério cumprido a favor do mundo da parte destes consagrados a Deus.
“Quem de vós – confirma Orígenes (nas homilias sobre Josué) – pedras vivas, está apto e pronto para a oração e para oferecer súplicas a Deus, dia e noite, pertence àqueles com os quais Jesus edifica o altar… pedras inteiras, intactas, não talhadas pelo cinzel… que puderam rezar unânimes, com uma única voz e um só espírito… dignos de formar juntos o único altar sobre o qual Jesus oferece ao Pai o seu sacrifício”.
Era doutrina comum, se já S. Clemente Romano via como totalmente “normal” esta solidariedade dos santos com os pecadores:
“Andáveis aflitos pelas faltas do próximo, como se os defeitos dos outros fossem vossos”.
E S. Leão Magno:
“Perdoados os pecados, termina a severidade da vingança e fica suspensa toda a punição… O homem deve fazer como Deus”.
S. Gregório de Nazianzo avança a audaz explicação deste poder sacerdotal cristão, que consiste em tornar-se “uma força vital para o resto dos homens”. As explicações satisfatórias pelas quais o crente estaria encarregado de pagar pelos outros, independentemente dos outros, são aproximações que arriscam de deformar o mistério, mesmo se repetidíssimas na tradição cristã. É muito mais persuasivo ver o princípio da unidade solidária que permite aos crentes tornarem-se alma de quem não tem alma, para que seja o próprio pecador a encontrar dentro de si a capacidade para o regresso. Estamos num ponto delicado, que mereceria ser repensado profundamente, na base dos grandes documentos. Bastam algumas passagens para dar a entender a intencionalidade profunda daquelas afirmações de solidariedade com os pecadores de que, particularmente, os mártires se tornarão expressão.
“Concede-me, antes de mais, ó Senhor – é a lindíssima oração de S. Ambrósio, no seu De poenitentia – ser capaz de compartilhar com participação íntima a dor dos pecadores. Esta de facto é a virtude mais alta… Cada vez que se trata do pecado de alguém que caiu, concede-me experimentar compaixão e não repreendê-lo arrogantemente, mas de gemer e de chorar de tal modo que, enquanto choro sobre outro, eu chore sobre mim mesmo”.
Esta atitude alimentou profundamente toda a espiritualidade oriental. Dos documentos orientais não bastaria citar só algumas passagens, mas seria necessário descrever aquele comportamento de compaixão solidária que é certamente, como exemplo, uma das almas da Filocalia. Comovente, entre muitas, a expressão de Simeão o Novo Teólogo:
“O sacerdote considera os pecados dos outros como seus próprios pecados”.
A citar esta passagem é Evdokimov que se esforça por demonstrar como é daqui que a
ortodoxia inteira deduz o seu comportamento para com os afastados. “Será salvo aquele que salva os outros”, refere o mesmo autor, citando Soloviev. E ainda (desta vez citando Orígenes):
“Um só santo, com as suas orações, é mais forte na sua luta do que uma multidão de pecadores”.
A função dos santos, portanto, é exactamente aquela de levar à salvação as multidões pecadoras. Também G. Dossetti conclui com simplicidade: “A oração pelos inimigos é a primeira coisa a que se deve dedicar um monge cristão, é aquela que lhe obtém os frutos do Espírito, segundo Silvano de Monte Athos”.
1. O MARTÍRIO, SACRIFÍCIO ESPIRITUAL
Mas é sobretudo na oblação dos mártires que a Igreja continua a encontrar o sentido da oblação da vida, como no gesto que cumpre a plenitude da imitação de Cristo.
Talvez o teólogo que mais sublinhou o martírio como oferta de amor pela salvação dos inimigos foi D. Barsotti. Também inspirando-nos na sua interpretação, tratar-se-á de ver como o martírio se deve entender sobretudo como um dar a vida pelos pecadores: porque eles sãos os inimigos por quem rezar.
“O inimigo é por definição aquele que põe obstáculos, atraiçoa, causa dano aos outros. Nós devemos amar a sua alma… e amar o seu corpo” (Basílio).
O martírio não é só a cruz, é a cruz dada aos outros pelos outros. É o cumprimento daquela original ideia cristã – sem paralelo nas outras religiões – que se exprime no modelo daquele Jesus que se fez salvação dos homens, para tornar-nos por nossa vez salvadores. Não é uma observação entre as muitas: é o próprio estatuto da Igreja, é a missão que justifica a sua presença entre os homens.
“Rezai sem cessar também por todos os outros homens. Também para eles há esperança de conversão e de união a Deus… À sua ira, a vossa mansidão; à sua presunção, a vossa humildade; às suas blasfémias, as vossas orações; ao seu erro, a vossa firmeza na fé; à sua ferocidade, a vossa doçura que evita pagar o mal com o mal. Pela nossa bondade mostremo-nos seus irmãos…”.
Assim escreve Inácio aos Efésios, mostrando a razão da sua própria atitude martirial. Ele escreve a Policarpo:
“Como atleta perfeito leva o peso das enfermidades de todos… Se amas só os bons discípulos, não tens mérito algum… Eu ofereço em expiação por ti a minha vida e as minhas cadeias”.
Aos cristãos de Tralle:
“A minha vida é oferecida em sacrifício por vós, não só agora, mas também quando tiver alcançado a Deus”.
Ainda aos Efésios:
“Ofereço a minha vida em sacrifício por vós”.
O martírio como amor aos inimigos é também o tema em Policarpo. “cordeiro insigne… escolhido de um grande rebanho para a oferta, holocausto agradável” como vem definido nas actas do seu martírio:
“É conforme uma verdadeira e sólida caridade não procurar só a própria salvação, mas a salvação de todos os irmãos… Rezai por todos os crentes, rezai também pelos reis e autoridades e príncipes, por aqueles que vos perseguem e vos odeiam… e pelos inimigos da cruz”.
S. Frutuoso, caminhando para o martírio, manifesta a mais ampla consciência do valor da sua oblação:
“Devo levar no coração toda a Igreja Católica, para que se estenda do oriente ao ocidente”.
Para S. Blandina e os mártires de Lião, o martírio é a continuação da luta de Cristo com o mal e é também a assunção dos sofrimentos dos outros para restituí-los a Deus como oferta.
Na Lettera a Diogneto encontramos reafirmada a convicção de que é pela intercessão dos santos que o mundo é salvo: “é por eles que o mundo subsiste”. Daqui uma “regra” para quem deve reproduzir nas suas acções a oblatividade de Jesus:
“Amando a Cristo, tornar-me-ei imitador da sua bondade. Não te admires de que um homem possa tornar-se imitador de Deus: pode sê-lo, porque o próprio Deus o quer… Quem toma sobre si a carga do próximo… este é o imitador de Deus”.
De novo Orígenes, muito fértil neste aspecto da doutrina:
“Nosso Senhor assume os pecados dos cristãos junto com os seus filhos, os apóstolos e os mártires… Os mártires, que foram imolados… estão junto ao altar. Quem está no altar exercita as funções sacerdotais. Elas consistem na oração de intercessão pelos pecados do povo”.
Para Clemente de Alexandria – sintetiza Evdokimov – o baptizado leva também os estigmas das preocupações sacerdotais de Cristo, também ele desce aos infernos para arrastar, na sua subida, todos os escravos da morte. Move-o
“a compaixão pelos pecados dos seus irmãos; reza pela confissão e conversão dos seus próximos: deseja tornar participantes dos seus bens os seus amigos”.
Mas, sempre para Clemente, é sobretudo o mártir que cumpre em si esta missão:
“Chamaremos ao martírio perfeição (teleiotes) não porque seja o termo da vida do homem (telos) mas porque testemunha a perfeição da caridade”.
É ele que refere l’agraphon: “Se o próximo do eleito pecou, então pecou também o eleito”.
Cipriano:
“Agora a paz é necessária não para os fracos, mas para os fortes; a comunhão deve ser concedida não aos moribundos, mas aos vivos, de modo que aqueles que excitam e exortam ao combate não fiquem por nossa culpa privados das armas e desprotegidos, mas sejam por nosso meio protegidos pelo corpo e sangue de Cristo… De outro modo, como torná-los capazes de beber na taça do martírio se não os admitirmos primeiro a beber na Igreja na taça do Senhor?”.
Eis porque, para Cipriano, os mártires são advogados, paráclitos para o mundo inteiro.
E S. Agostinho:
“Também nós, irmãos, se verdadeiramente amamos, imitamos. Não poderemos de facto trocar um fruto mais excelente do nosso amor do que aquele que consiste na imitaç&a
tilde;o de Cristo… Os santos mártires seguiram-no até ao derramamento do sangue, até a assemelharem-se a Ele na paixão”.
“Tudo o que sofres da parte daqueles que estão entre os membros de Cristo é aquilo que faltava aos sofrimentos de Cristo. Portanto, vem acrescentado porque faltava”.
Talvez, sem nos apercebermos, dos testemunhos tenhamos passado à doutrina. É preciso voltar ao exemplo dos mártires, aqueles que têm o direito de ensinar com outra voz diferente da dos doutores; mesmo se os doutores da Igreja, muitas vezes, leram a doutrina exactamente a partir do exemplo dos mártires.
É ligado a S. Ambrósio – mesmo se de modo mais complexo de quanto seja aqui possível recordar – aquele S. Vigílio que, recordando a paixão dos mártires do Vale de Non, os descreveu como os não-violentos, oferecidos pela salvação dos seus próprios inimigos:
“Da parte dos santos foi aplicada a única forma perfeita de combate: tudo suportar, se provocados ceder, sofrer com paciência, travar o furor público com a própria mansidão, vencer sucumbindo”.
Tanto mais meritório é este testemunho quanto quem o escreve ter-se-ia tornado ele mesmo, dali a pouco, mártir.
A tradição oriental é talvez ainda mais explícita, a este respeito, como já se acenou. Extraordinário aquilo que essa tradição conta do mártir Panteleimon que, antes da decapitação, reza pelo perdão dos pecados próprios e depois pelos dos carnífices. É então que uma voz do Céu declara: O teu nome não é Pantaleão, mas Panteleimon, aquele que tem piedade de todos. É um protótipo, é um emblema: se também certas actas dos mártires parecem desenrolar-se como um desafio orgulhoso entre carnífice e vítima, mais frequentemente a vítima recorda-se de Jesus Cristo, imita-o na morte perdoando, como Estêvão.
“Vós tendes-me ódio de morte – diz S. Josafá protector da Ucrânia – mas eu transporto-vos no coração e ficaria contente por morrer por vós”: é um dos testemunhos mais indicativos, colocado como está entre a Igreja latina e a oriental, testemunho das duas tradições.
Já tinha ensinado Cabasilas que o amor é o verdadeiro sacrifício, “aquele de que os mártires cristãos, de uma vez por todas, levaram os estigmas impressos na sua carne”. E é mesmo “sacrifício de amor unitivo”, segundo o grande místico, esta oferta que vale não tanto pela intensidade dos sofrimentos, como se a cruz tivesse valor exactamente porque é tormento: vale pela densidade do amor. “Damos a vida por aqueles que devem ser edificados pelo nosso martírio”.
É isto mesmo que não permitirá ligar mais tão intimamente a oferta da vida pelos outros ao facto de suportar fisicamente a pena capital. É sempre necessário, para o cristão, dar a própria vida para tornar completa a salvação: mas não é preciso, para isso, um acontecimento processual.
2. A REPARAÇÃO, MARTÍRIO DO CORAÇÃO
“Como muitas são as perseguições, assim são muitos os géneros de martírio… Só Deus sabe quantos sofrem todos os dias o martírio em silêncio!”
É esta uma doutrina muito querida ao santo bispo de Milão:
“Tomemos bem conta de que não são perseguidores somente aqueles que se vêem, mas também aqueles que não se vêem; e são muito mais numerosos… não somente de fora, mas também de dentro das almas de cada um. Desta perseguição foi dito: todos os que querem viver piedosamente em Cristo serão perseguidos (2Tim. 3, 12). Todos, disse, sem excepção. De facto quem pode ser dispensado, quando o próprio Senhor suportou os tormentos da perseguição?”
Coisas muito parecidas escreve S. Agostinho, enquanto começava a firmar-se a convicção de que nem só os mártires merecem entrar no álbum dos santos.
Também para S. Leão Magno
“a ninguém é negada a vitória da cruz”. ”Também vós, se o quiserdes, sofrendo perseguição por Cristo, exactamente como os mártires, sereis mártires todos os dias… Como? Se também vós lutardes contra os demónios perniciosos, se vos levantardes contra o pecado e contra a vossa vontade. Se lutardes, também vós sereis mártires”.
Este morrer todos os dias tem o poder de intercessão como o do martírio de sangue e constitui uma verdadeira “confissão”, pelo que é confessor – em certo sentido equivalente ao mártir, até no título com que vem designado cristãmente – aquele que se opõe ao poder do mundo. Recorde-se que os lapsi podiam ir ter com os confessores nos seus cárceres para se fazerem dar o libellum que os readmitia imediatamente na comunhão eclesiástica, negada doutro modo. Não se poderia dar uma prova mais evidente do crédito que, junto da primitiva Igreja, tinha a intercessão de quem rezava em nome do próprio ser participante da paixão de Cristo. E aqueles que, tendo testemunhado em tribunal a sua fé, escapavam depois à morte, obtinham por direito um lugar entre os presbíteros durante a acção eucarística, mesmo se não encarregados de pronunciar a fórmula consacratória: outro modo para indicar, mesmo plasticamente, o respeito eclesial por esta sacerdotalidade martirial que, agora sabemos, compete a todos.
Referimos inteiramente a passagem sobre que tanto se discutiu e ainda se continua a discutir:
“Se um confessor foi preso pelo nome do Senhor, não lhe serão impostas as mãos para o diaconado ou o presbiterado, porque ele possui a honra do presbiterado por causa da sua confissão. Mas se vier a ser constituído bispo então se deverão impor as mãos”.
Não faltaram aqueles que – como Evdokimov – pensaram interpretar o texto no sentido literal de um presbiterado conseguido por direito com a confissão martirial.
Não é preciso mais para saber que valor insubstituível tem aquela reparação que – enquanto oferta da vida pela redenção do mundo – é portanto constitutiva do ser cristão.
A reparação, ao menos como foi ensinada em Paray-le-Monial, tem condições próprias, a respeito da oferta sacrificial da vida, comum a todos os crentes. De facto, como se terá ocasião de dize
r a seu tempo, ela comporta uma particular sensibilidade à dor de Cristo, ao ponto de ser antes de tudo solidariedade com Jesus e com a sua tristeza mortal diante do pecado. Mas, por de baixo destas conotações específicas, fica a substância de sempre: importa dar a vida pela salvação do mundo, no único modo que isso pode ser realizado, isto é, como participação na paixão do Senhor. As conotações específicas não devem fazer perder de vista o que permanece de qualquer modo a substância oblativa.
De resto, é difícil não ler no sentido mais “nosso” – e ao mesmo tempo dentro da grande tradição cristã de sempre – aquilo que reza S. Catarina:
“Ó doce Jesus, juntamente manifestas sede e pedes que te seja dado de beber… aquele que ama pede para ser amado! A alma dá de beber ao seu Criador quando lhe dá amor por amor. Mas não lho pode dar mediante um serviço a fazer-lhe a Ele, mas mediante o próximo”.
E parece a descrição de alguém que tenha recebido, como seu, o Coração de Cristo aquela esplêndida intercessão que se conta de S. Paissio:
“Paissio rezava por um seu discípulo que tinha renegado a Cristo. O Senhor apareceu-lhe e disse: E não tens em conta que me renegou? Mas o santo continuava a ter piedade e a rezar mais intensamente por aquele discípulo. Então o Senhor disse-lhe: Paissio, tu tornaste-te semelhante a mim com o teu amor”.
O instinto cristão conhece bem que a co-redenção com que nós completamos quanto falta aos sofrimentos de Cristo não é questão de quantidade, não é como um preço a pagar para a equiparação das faltas com que se subtraiu honra ao nosso Deus. É só questão de amor. Até um protestante como Bonhoeffer – claramente inclinado, exactamente porque é protestante, para uma espécie de substituição vicária na pena a suportar no lugar do pecador – resgata amplamente o possível equívoco, ele que acabará mártir, consciente que “cada vida humana é por essência uma vida vicariamente responsável”. El sabe que a questão, em definitivo, é só questão de amor, questão de coração:
“Substituição e, portanto, responsabilidade são possíveis somente mediante o dom total da própria vida ao próximo. Somente quem não pensa em si vive responsavelmente, ou seja vive… A responsabilidade, entendida como vida e acção vicária, é essencialmente uma relação de pessoa a pessoa… O justo sofre por causa do mundo, o injusto não… Em certo sentido, ele transporta o sensorium Dei [nós diríamos: o coração de Deus] no mundo: por isso sofre do mesmo modo que Deus sofre por causa do mundo… A resposta do justo ao sofrimento que o mundo lhe traz é bênção. Esta foi a resposta de Deus ao mundo… Deus não paga com a mesma medida, e assim deve fazer também o justo. Não condenar, não repreender, mas abençoar… O mundo vive da bênção de Deus e do justo”.
Em Resistência e rendição repete:
“O homem é chamado a partilhar o sofrimento de Deus sofrendo em relação ao mundo sem Deus… Esta é a metànoia: não pensar antes de mais nas suas próprias tribulações, nos próprios problemas, nos próprios pecados, nas próprias angústias, mas deixar-se arrastar com Jesus Cristo pelo seu caminho no acontecimento messiânico constituído pelo facto de que Is 53 se cumpre agora!”.
Como se vê, os temas da participação na dor de Deus, e até da consolação a Deus, são aqui repetidos de maneira não muito diferente de quanto pertence à nossa vocação.
Mas não é esta possível simultaneidade que aqui convém apreender. Antes ainda – em fidelidade a um carisma que é objectivo e comprometedor, até tornar-se ministério, até dar razão das estruturas operativas da nossa vida – é preciso repetir a importância do dom da vida pelos irmãos.
“O exército espiritual dos crentes, que leva por diante o combate através do jejum e da oração; o duelo silencioso de um homem solitário que luta contra o mal e contra a morte; a coragem de um eremita que atrai sobre si os espíritos maus para libertar os seus irmãos; os cristãos que entoam no coração deste mundo o cântico da fornalha ardente; o mais humilde gesto de penitência e o exorcismo balbuciante de uma oração: eis o que conta antes de mais na gigantesca tensão entre o mundo decaído e o mundo que vem, eis o grande trabalho” (O. Clémont).
[ P. António Tomás Correia, scj – tradução ]
1 Comissão Teológica Internacional, A reconciliação e a penitência, in “Il Regno” (1984), 3, p. 74.
2 L’ora di lettura commentata dai padri, IV, EDB, Bologna 1976, p. 618.
3 Justino, Dialogo com Trifone 39, PG 6, 560.
4 Orígenes, Omelie su Giosuè figlio di Nun 9, 1-2, SC 71, 244-246; o texto é referido em CONFERÊNCIA EPISCOPAL ITALIANA, Liturgia delle ore, IV, p. 1497-1498.
5 Clemente Romano, Prima Lettera ai Corinzi 2, in I padri apostolici, Città nuova, Roma 1966, p. 48.
6 Leão Magno, Discorsi 92, 1.2.3, PL 54, 454-455; o texto é referido em CONFERÊNCIA EPISCOPAL ITALIANA, Liturgia delle ore, IV, p. 527-528.
7 Gregório de Nazianzo, Discorsi 39, 20, PG 36, 359; o texto é referido em CONFERÊNCIA EPISCOPAL ITALIANA, Liturgia delle ore, I, p. 615.
8 Cf. P. Evdokimov, Cristo nel pensiero russo, Cittá nuova, Roma 1972, p. 122.
9 G. Dossetti, Testimonianza di un monaco, in “Il Regno” (1986), 19, p. 590.
10 Cf. D. Barsotti, La dottrina dell’amore nei Padri della chiesa fino a Ireneo, Vita e pensiero, Milano 1963.
11 Inácio de Antioquia, Lettera agli Efesini, X, PG 5, 653.
12 Inácio de Antioquia, Lettera a Policarpo, II, PG 5, 720-721.
13 Inácio de Antioquia, Lettera ai Tallesi, XIII, PG 5, 685.
14 Policarpo, Lettera ai Filipesi, XII, PG 5, 1015-1016.
15 Atti dei martiri,Paoline, Roma 1985, p. 475.
16 L’ora di lettura, VII, p. 326-328.
17 Orígenes, Omelie sui Nm 10,2, SC 29, pp. 193-194.
18 Clemente de Alexandria, Stromati, VII, 12, 80,1, PG 9, 512.
19 Clemente de Alexandria, Stromati, VII, 13, 82,1,
PG 9, 513.
20 Cipriano,