Com Deus e com os irmãos

Nestes dias, tem sido recorrente dizer que a encíclica Fratelli Tutti é um grande texto e que o papa Francisco se apresenta como o único líder mundial à altura dos acontecimentos que estamos a viver. Não ponho em causa a verdade que se desvela nestas afirmações, mas espero que elas não constituam uma via aberta para domesticar e arrumar esta encíclica na prateleira dos livros poeirentos e enegrecidos pelo tempo.

Há um pequeno texto nesta encíclica que merece que o leiamos de olhos bem abertos e com toda a atenção que nos for possível. Diz assim sobre o levita e o sacerdote da parábola do bom samaritano: «nas pessoas que passam ao largo, há um detalhe que não podemos ignorar: eram pessoas religiosas. Mais ainda, dedicavam-se a dar culto a Deus: um sacerdote e um levita. Isto é uma forte chamada de atenção: indica que o facto de crer em Deus e O adorar não é garantia de viver como agrada a Deus. Uma pessoa de fé pode não ser fiel a tudo o que essa mesma fé exige dela e, no entanto, sentir-se perto de Deus e julgar-se com mais dignidade do que os outros».

Talvez nunca tenhamos pensado nisto ou simplesmente pensássemos que tal fractura espiritual não fosse de todo possível. A verdade é que esta é uma situação mais frequente do que o que à primeira vista possamos pensar. Como nos custa aceitar que o termómetro da nossa relação com Deus é precisamente a relação com os irmãos! Como nos custa admitir que a indiferença ao sofrimento dos irmãos acarreta inevitavelmente um desinteresse para com Aquele que é o Pai de todos eles! Como é fácil na nossa experiência de fé resvalar para atitudes espiritualistas e, pior ainda, claramente hipócritas. De facto, se as minhas relações com as outras pessoas são geralmente frias, porque havia de ser diferente a minha relação com Deus? Se me relaciono com agressividade e ressentimento com os outros, porque razão a minha relação com Deus seria um oásis de paz e de doçura? Se na maneira de relacionar-me com o outro sempre impera algum interesse ou utilidade, porque razão a relação com Deus há-de ser pura e excessiva gratuidade?

O papa Francisco continua o seu texto e diz: «mas há maneiras de viver a fé que facilitam a abertura do coração aos irmãos, e esta será a garantia duma autêntica abertura a Deus. São João Crisóstomo expressou, com muita clareza, este desafio que se apresenta aos cristãos: “Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora O abandonas ao frio e à nudez”. O paradoxo é que, às vezes, quantos dizem que não acreditam podem viver melhor a vontade de Deus do que os crentes» (FT 74). Esta frase final deveria partir-nos o coração, mas como mudar é sempre muito difícil, talvez tudo se limite a continuar na mesma. O que é pena…

José Domingos Ferreira, scj

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