Conhecer o Padre Dehon pela leitura

 
Depois de muitos anos de trabalho no “Centro Studi Dehoniani”, em Dezembro passado, o Pe. Rafael Gonçalves da Costa regressou a Portugal. Numa breve entrevista à revista“Dein Reich Komme” (Província da Alemanha), o Pe. Rafael fala-nos do modo de ler o Padre Dehon. Evoca a paixão de Dehon nos discursos, a precisão nas obras sociais, sublinha que nos manuscritos de Dehon raramente encontramos correcções, o que denota que ele estava muito concentrado naquilo que escrevia. O Pe. Rafael responde, por fim, à pergunta sobre qual é a obra de Dehon que melhor nos introduz na sua espiritualidade e no seu pensamento. Para o Pe. Rafael, é sem qualquer dúvida as “Couronnes d’amour”.
 
Eis, então, a entrevista:
 
 
Alguns fundadores deixam poucos escritos autênticos. Já do Padre Dehon temos um enorme património de publicações. Há décadas que o Pe. Rafael Gonçalves da Costa SCJ se tem vindo a ocupar deste património.
Há, com certeza, várias maneiras de se aproximar da pessoa de Leão Dehon. Por exemplo, mediante os seus escritos, como é o caso do Pe. Rafael Costa SCJ que trabalhou muito tempo no “Centro Studi Dehoniani”, em Roma. Ele dá conta de um Padre Dehon que surpreende: pela precisão, paixão e originalidade… e pelo humor.
 
 
O Padre Dehon escreveu mesmo muito. Ainda antes de nos determos sobre os conteúdos, como é que classifica o estilo dele?
 
Eu penso que o Padre Leão Dehon tinha a grande capacidade de envolver o público de forma muito precisa. Quando se dirigia aos jovens, falava de maneira bastante entusiasta. Então, ele era “jovem” e conservou esta característica até ao fim da sua vida. Também se pode dizer que o Padre Dehon conhecia muito bem o seu público – uma condição fundamental para o seu sucesso editorial e retórico. Além disso, há que ter em conta se se trata de escritos sociais ou espirituais.
 
 
Em que sentido?
 
Os escritos sociais mostram uma atenção ainda maior a uma argumentação clara e dão grande valor a análises claras e a uma construção lógica. Já os escritos espirituais pretendem dirigir-se ao coração do leitor e mexer com ele. Não se trata apenas do conteúdo em si, mas também de aproximar esse conteúdo do leitor. No verdadeiro sentido da palavra “aproximar”. O Padre Dehon entusiasmava-se com a mensagem que queria anunciar, era entusiástico. E era precisamente isso que ele pretendia partilhar com o seu público.
 
 
Então não é muito difícil ler os escritos do Padre Dehon?
 
Há sempre alguns condicionamentos. Se alguém pretende ler os escritos na língua original, tem que se debater com um francês que não é totalmente semelhante ao francês moderno que nós conhecemos. Mas, no geral, pode dizer-se que o Padre Dehon era, de facto, um intelectual, mas os seus escritos não são de um nível elevado. Bem pelo contrário, de forma absolutamente admirável, ele conseguia abordar os temas que tocavam logo os corações dos seus ouvintes. E o que chama a atenção, logo à partida, é que ele escrevia com uma precisão absoluta. Tac, tac, tac. (a cada “tac” bate com a mão na mesa) Esta precisão de escrita é impressionante. Por exemplo, nas suas cartas encontram-se poucas correções; e erros, menos ainda. Veja bem quanto ele escreveu e há pouquíssimos erros. Eu, naquilo que escrevo, dou bem mais erros. (ri)
 
 
Então ele tinha uma boa capacidade de concentração?
 
Absolutamente. Em alguns dias, ele escreveu mais de dez cartas à mão. E, apesar disso, continua a ser tudo preciso e exato. Isto mostra quanto ele se interessava pelas coisas e como pensava não apenas na mensagem, mas também no leitor.
 
 
Qual foi o primeiro livro do Padre Dehon que leu?
 
Meu Deus! Já lá vai muito tempo! (ri e fica pensativo). Tenho que admitir muito sinceramente que não lhe sei dizer com certeza absoluta. Mas talvez tenha sido o Directoire Spirituel (Diretório Espiritual)…
 
 
… no qual o Padre Dehon escreve bastante acerca de alguns pontos fundamentais da Vida Religiosa. Como foi a sua primeira impressão?
 
Eu estava no noviciado. Tinha uns 18 anos. Mas ainda sei que a obra me entusiasmou. Com certeza que hoje, nalguns casos, se utilizaria outros conceitos. Mas as frases tocaram-me mesmo muito.
 
 
Que livro aconselharia para começar a aproximar-se da pessoa de Dehon?
 
Ora, o Diretório é, sem dúvida, uma das obras centrais do Padre Leão Dehon. Durante a leitura, experimenta-se formalmente como ele se centra totalmente em si mesmo. No entanto, é naturalmente uma obra que se concentra muito na vida de uma comunidade religiosa e que, além do mais, foi escrita num tempo e numa fase concretas. Por isso, eu aconselharia as Couronnes d’Amour au Sacré-Coeur (Coroas de Amor ao Sagrado Coração de Jesus). Nestas três meditações, o Padre Dehon escreve com muita paixão e revela os fundamentos da sua fé. Por isso, para começar – pelo menos, do meu humilde ponto de vista – com a sua linguagem quase literária, as Couronnes adequam-se a uma aproximação à espiritualidade e ao pensamento do Padre Dehon.
 
 
E que se pode dizer das outras obras? Qual é que aconselharia, se alguém antes nunca tivesse lido nada do Padre Dehon?
 
As conferências. (responde logo) As conferências são extremamente adequadas. Normalmente, eram proferidas no final do ano letivo, para os alunos do “Colégio de São João”. A nível retórico, estas conferências ou discursos são brilhantes e muito simples. Dá para perceber que, para o Padre Dehon, a formação e educação dos jovens era realmente um desejo que trazia no coração. Isto reflete-se também na sua atividade editorial.
 
 
Estas conferências são sobre o quê?
 
Sobre o modo como se pode seguir Cristo, sobre o modo como alguém, enquanto jovem, pode manter uma vida cristã, ou seja, sem se separar do mundo, mas vivendo no mundo. O Padre Dehon mostra como é possível experimentar a vida na sua totalidade. Para ele não se trata de ditar com que frequência se deve rezar ou então o que é que se pode fazer ou não fazer. Não! O Padre Dehon mostra uma figura de Cristo, que vale a pena seguir e empenhar-se.
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No quadro da Questão Social, o empenho social revestia-se de grande significado para o Padre Dehon. Qual é a sua obra mais importante este âmbito?
 
Eu gostaria de evitar o superlativo, para não cometer nenhuma injustiça a nenhum dos escritos. Além do mais, isso depende também um pouco do interesse do leitor. Admitindo esse princípio, eu referiria aqui o Manuel Social Chrétien (Manual Social Cristão), publicado em 1894.
 
 
De que trata esta obra?
 
Obras. Houve cinco edições desta obra. O Padre Leão Dehon tematiza aquilo de que falou antes, a Questão Social. Logo no início, trata-se da Questão Social, ou seja, dos problemas que resultaram da Revolução Industrial do séc. XIX. Logo no início está: «A Questão Social»; depois segue-se a pergunta: «A Questão Social tem solução?». Neste passo, vêm ao de cima duas coisas: em primeiro lugar, o Padre Dehon faz análises claras e sucintas e resume a situação atual; em segundo lugar, ele não se fica pela análise, mas faz propostas concretas. Ora, um autor cristão que se dirige ao seu leitor, enquanto cristão, deste modo e com estas questões, que o desafia a comprometer-se: era revolucionário naquele tempo. E eu acho que nós, hoje, também deveríamos estudar ainda mais estas coisas, para encontrar respostas para as questões do nosso tempo. O Manuel Social Chrétiendeveria ser ainda mais tematizado, porque nós temos alguma coisa a dizer no contexto social.
 
 
A que ponto está o esforço de ordenar e de traduzir estes escritos?
 
Um tema importante e complicado. Penso que já conseguimos fazer bastante, mas ainda temos alguma coisa pela frente. E quanto às traduções, estamos diante do grande desafio de transpor para uma outra língua o estilo brilhante do Padre Dehon. Somos filhos de um padre francês e deveríamos tentar fazer com que o seu legado fosse acessível às pessoas na própria língua. Neste sentido, este rico património editorial constitui também uma obrigação.
 
 
Costuma dizer-se que cada tradução já é, em si, uma interpretação.
 
Sim! Costuma dizer-se isso. Mas, mesmo a nível puramente quantitativo, já é uma grande empresa. Estamos a falar de mais de 4.000 escritos, cartas ou postais. E, depois, também é verdade que a transmissão deveria ser planeada com muito tato.
 
 
Falemos sobre as cartas que o Padre Dehon deixou. Há cartas que originalmente eram consideradas privadas. E outras que foram pensadas já desde o início para serem publicadas.
 
Não sei se o Padre Dehon pensou as coisas desse modo. É evidente que há correspondência oficial, com autoridades eclesiais ou com pessoas pertencentes à Congregação. Mas também há algumas cartas que mostram um estilo próprio do Padre Dehon: humorado, com jogos de palavras e piadas.
 
 
Piadas?
 
Exatamente! Claro que não é numa carta à Santa Sé. Mas quando escrevia a jovens ou a amigos, aí era muito espontâneo e cordial.
 
 
Antes falou de piadas. Neste contexto, tem alguma carta preferida?
 
Sim! Sim! (ri) Por exemplo, o Padre Thédore Stanilaus Falleur SCJ era um dos amigos mais chegados do Padre Dehon. Ele escrevia-lhe pequenos postais com alguma frequência. Por isso, ele dirigia-se ao Padre Falleur com grande empatia. Lembro-me especialmente de um postal com um urso e um leão. E o Padre Dehon escreve: «Caro amigo, um és tu e o outro sou eu».
 
 
Depois de tantos anos de estudo, quais seriam as três obras que levaria consigo para uma ilha deserta?
 
Tenho muita consideração pelo Padre Dehon; mas a Bíblia tinha que lá estar. (ri) Se depois, mesmo assim, ainda pudesse levar três, então seriam talvez estes: os discursos, de que falei antes, devido à sua forma calorosa, à sua originalidade; depois, efetivamente as Couronnees d’Amour au Sacré-Coeur; e por fim a Carta de Natal de 1883.
 
 
Carta de Natal de 1883?
 
Sim. É uma das cartas que mais profundamente me marcou na minha compreensão do Padre Dehon. Foi escrita nesta situação: o Santo Ofício (hoje, Congregação para a Doutrina da Fé [N.d.R.]) tinha voltado a erigir a Congregação antes fundada. E então o Padre Dehon escreve sobre isto: que tinha sido ele a arruinar o projeto, para o qual tinha sido chamado por Deus. Ou seja, que tinha sido um erro seu, que estava disponível e que tanto lhe fazia o que lhe viesse a acontecer. Só pede apoio para os seus confrades. Vemos aqui um Dehon profundamente abalado, mas que, ao mesmo tempo, confia totalmente em Deus e se coloca totalmente à disposição de Deus. E o que me toca incrivelmente: ele não pensa em si, mas nos outros.
 
 
 
Entrevista: Simon Biallowons
Tradução: Ricardo Freire, scj
Original: Dein Reich Komme 40 (März/2016) 8-10.

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