Events in Outubro 2021

  • S. Teresa do Menino Jesus, Virgem

    S. Teresa do Menino Jesus, Virgem


    1 de Outubro, 2021

    Santa Teresa do Menino Jesus nasceu em Alençon, França, em 1873. É a filha mais nova dos Beatos Luís Martin e Célia Guérin, casal cristão exemplar. Aos 15 anos, Teresa entrou no Carmelo de Lisieux. A vida de clausura e de contemplação, a vivência da infância espiritual, não a impediram de ser missionária. Pelo contrário, viveu de modo extraordinário o ideal de Santa Teresa de Ávila: "Vim para salvar almas e sobretudo a fim de rogar pelos sacerdotes". A entrega de amor fê-la vítima de amor. Faleceu aos 24 anos de idade, em 1897. Pio XI canonizou-a em 1925, proclamando-a Padroeira das Missões.

    Lectio

    Primeira leitura: Isaías 66, 10-14

    Alegrai-vos com Jerusalém, rejubilai com ela, vós todos que a amais; regozijai-vos com ela, vós todos os que estáveis de luto por ela. 11Como criança amamentando-se ao peito materno, ficareis saciados com o seu seio reconfortante, e saboreareis as delícias do seu peito abundante. 12Porque, assim diz o Senhor: «Vou fazer com que a paz corra para Jerusalém como um rio, e a riqueza das nações, como uma torrente transbordante. Os seus filhinhos serão levados ao colo, e acariciados sobre os seus regaços. 13Como a mãe consola o seu filho, assim Eu vos consolarei; em Jerusalém sereis consolados. 14Ao verdes isto, os vossos corações pulsarão de alegria, e os vossos ossos retomarão vigor,como a erva fresca. A mão do Senhor há-de manifestar-se aos seus servos, e a sua ira aos seus inimigos.

    Jerusalém foi consolada por Deus, fonte de toda a consolação. Agora é chamada a oferecer essa mesma consolação, como mãe generosa, aos filhos das suas entranhas. O profeta especifica essas consolações, que não são promessas vãs ou retórica vazia, mas paz e segurança a todos os níveis. Acabaram-se os tempos das tensões e das guerras, acabaram-se as ameaças dos inimigos. A cidade santa está em paz, dom de Deus, e pode oferecê-la aos seus habitantes. Aliás a Nova Jerusalém identifica-se com Javé, que, pela sua presença e pelo seu espírito, atrairá todos os povos para lhes oferecer a paz e a consolação definitivas.

    Evangelho: Mateus 18, 1-5

    Naquela hora, os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-lhe: «Quem é o maior no Reino do Céu?» 2Ele chamou um menino, colocou-o no meio deles 3e disse: «Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu. 4Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu. 5Quem receber um menino como este, em meu nome, é a mim que recebe.

    Ao dizer estas palavras, Jesus parece pensar na humildade das crianças, que não têm pretensões, que têm consciência de ser crianças e aceitam a sua pequenez, a sua impotência e a necessidade que têm dos pais para sobreviver. Na relação com Deus, estas palavras têm ainda mais sentido: que é o homem diante d´Ele?
    A humildade é necessária particularmente aos dirigentes da comunidade cristã pelo que eles são - bem pouca coisa - e pelo que são os outros, - filhos de Deus.

    Meditatio
    Os pensamentos de Deus são bem diferentes dos nossos, tal como os seus caminhos são distantes dos nossos. Os nossos pensamentos vêm do orgulho; os pensamentos de Deus vêm da humildade. Os nossos caminhos são esforço para nos tornarmos grandes; os caminhos de Deus conduzem à pequenez. Como quem quer ir para o Norte deve caminhar em direção oposta ao Sul, assim, para avançar nos caminhos de Deus devemos tomar a direção oposta ao nosso orgulho.
    Teresa tinha grandes ambições: queria ser simultaneamente contemplativa e ativa, apóstola, doutora, missionária e mártir. Aliás, parecia-lhe pouco um só martírio e desejava-os todos. Acabou por descobrir que, no coração da Igreja, é o amor que tudo anima e move. Então, escreve: "Compreendi que o Amor encerra todas as Vocações e que o Amor é tudo!... E, num transporte de alegria delirante, exclamei: encontrei finalmente a minha vocação; a minha vocação é o Amor! No Coração da Igreja Minha Mãe, eu serei o Amor, assim serei tudo, assim o meu sonho será realizado." E, enquanto, no seu tempo, muitas pessoas fervorosas se ofereciam a Deus como vítimas da sua justiça, Teresa preferiu entregar-se ao seu Amor Misericordioso. Descobrira esse amor ao meditar na parábola do filho pródigo ou, melhor dizendo, do pai misericordioso. Dizia a santa de Lisieux: "Deus infinitamente Misericordioso, que se dignou perdoar com tanta bondade os pecados do filho pródigo, não será também justo comigo, que estou sempre a seu lado?" Para Teresa, Deus manifesta-se justo exatamente na sua misericórdia e no seu perdão a quem deles necessita. A Justiça de Deus é Amor e Misericórdia. Foi aceitando a sua pequenez e pobreza, e acolhendo e caminhando no amor misericordioso de Deus que ela chegou à Santidade.
    Como escreveu o P. Dehon: "A união íntima a Cristo na sua oblação e imolação de amor é-nos confirmada pela sua predileção pela oferta como vítima "ao Amor misericordioso" de Santa Teresa de Lisieux. "Nascemos do espírito de Santa Margarida Maria, aproximando-nos do da Ir. Teresa". Seguidamente o Pe. Dehon transcreve a fórmula com que a santa se ofereceu como vítima ao Amor misericordioso. Depois, conclui: "Com a Ir. Teresa, abandonamo-nos completamente à vontade divina" (Diário XLV, 53.55-56: Abril de 1925).
    A descoberta do Deus Misericordioso foi o ponto mais importante do Caminho Espiritual de Teresa do Menino Jesus. Essa perceção levou-a a dar-se conta da sua missão na Terra: anunciar que Deus não é Castigador, mas Misericordioso. Esta confiança na Misericórdia de Deus, tomou, transformou e entreteceu toda a sua vida e tornou-se o grande motor do que fez e disse até ao fim dos seus dias. Como vemos há uma forte semelhança e quase identidade entre a experiência espiritual e a missão do P. Dehon e de Santa Teresa.

    Oratio

    Ó Cristo Senhor, Tu nos escolheste e chamaste ao teu serviço pelo grande Amor que tens a Deus Pai e aos teus irmãos. Foste tu quem nos escolheu e não nós a Ti. Faz, pois, com que possamos, hoje, segundo o desígnio da tua chamada, dar frutos de salvação ao mundo, pelo qual nos oferecemos, como pessoas e como comunidade. Aviva em nós o espírito do Pe. Dehon, o qual, por teu amor, não se cansava de trabalhar para que toda a humanidade fosse, um dia, recapitulada em Ti. Torna-nos um testemunho vivo do teu amor na Igreja. Ámen.

    Contemplatio

    O Pai de misericórdia que nos ama ternamente chama-nos. Chama-nos seus filhinhos. Descreveu-se com complacência na parábola do filho pródigo. Eu sou este filho pródigo, que viveu, se não na luxúria, pelo menos na vaidade e na inutilidade. Volto para o meu Pai, hesitante, tímido, temeroso, mas ele está lá, que me acolhe com amor. O seu coração bate fortemente no seu peito. Deseja-me com ardor, observa, procura. E se regresso, atira-se ao meu pescoço e aperta-me contra si, coração contra coração. E chama os seus servos, os seus anjos, para me darem tudo o que perdi. Nada falta: o manto de outrora, o anel de nobreza, os sapatos, e o vitelo gordo para a festa. O Coração de Jesus está emocionado; os seus olhos choram de ternura, mas sorriem de alegria: «Alegremo-nos, diz o bom Mestre, este filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado». (Leão Dehon, OSP 3, p. 653).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "No Coração da Igreja Minha Mãe, eu serei o Amor" (Santa Teresa do Menino Jesus).

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    S. Teresa do Menino Jesus, Virgem (01 Outubro)

  • Santos Anjos da Guarda

    Santos Anjos da Guarda


    2 de Outubro, 2021

    O Anjos, criaturas puramente espirituais e dotadas de inteligência e vontade, servem a Deus e são seus mensageiros. Eles "

    veem constantemente a face de meu Pai que está no Céu" (Mt 18, 10). São "poderosos mensageiros, que cumprem as suas ordens" (Sl 103, 20). São encarregados por Deus de proteger a humanidade. O povo de Deus sempre sentiu o dever de corresponder à sua silenciosa e benévola companhia, honrando-os. Em 1615, entrou no Calendário romano a celebração que hoje lhes dedicamos.

    Lectio

    Primeira leitura: Êxodo 23, 20-23a

    Eis que o que diz o Senhor: "Eu envio um anjo diante de ti, para te guardar no caminho e para te fazer entrar no lugar que Eu preparei. 21Mantém-te atento na sua presença e escuta a sua voz. Não lhe causes amargura, porque ele não suportará a vossa transgressão, porque está nele a minha autoridade. 22Mas se escutares a sua voz e se fizeres tudo o que Eu falar, Eu serei inimigo dos teus inimigos e serei adversário dos teus adversários, 23pois o meu anjo caminhará diante de ti.

    Estamos no epílogo do código da aliança, numa seção com caráter de pregação, possivelmente de origem eloísta. Logo no início aparece-nos a figura de um anjo, que irá à frente do povo na sua caminhada para a Terra Prometida, para o proteger e orientar. Chama-se o anjo de Deus ou anjo de Javé, idêntico ao próprio Deus. O povo deve, pois, obedecer-lhe. O enquadramento contextual do texto permite também afirmar que o anjo de Deus é, agora, a Lei, palavra de Deus encarnada na palavra humana. Mas poderão ser igualmente os acontecimentos futuros, todos eles mensageiros potenciais de Deus, testemunhas da sua palavra e da sua ação. Em última análise, como já dissemos, o anjo é o próprio Deus com o homem. Importa que o homem tome consciência dessa presença e se torne digno dela, deixando-se guiar docilmente.

    Evangelho: Mateus 18, 1-5.10

    Naquele tempo, os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-lhe: «Quem é o maior no Reino do Céu?» 2Ele chamou um menino, colocou-o no meio deles 3e disse: «Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu.4Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu. 5Quem receber um menino como este, em meu nome, é a mim que recebe.» 10«Livrai-vos de desprezar um só destes pequeninos, pois digo-vos que os seus anjos, no Céu, vêem constantemente a face de meu Pai que está no Céu.

    Na literatura judaica, a função dos anjos era tripla: adoração e louvor de Deus; agentes ou mensageiros divinos nos assuntos humanos; guardiães dos homens e das nações (Heb 12, 15). Segundo uma crença generalizada, eram poucos os anjos que tinham acesso direto a Deus. Tendo em conta estas premissas, o ensinamento tem por alvo a dignidade dos pequeninos que acreditam em Jesus: se os seus anjos têm essa dignidade, quanto maior será a dignidade dos crentes ao serviço dos quais eles estão!
    Como Deus nos protege com os seus anjos, assim também nós havemos de proteger os irmãos, sobretudo os mais frágeis e pequenos.

    Meditatio

    Esta memória dos anjos recorda-nos que, no caminho da vida, não estamos sós. Deus não nos abandona. Deus caminha connosco.
    Há, com efeito, uma criação visível, que podemos ver, pelo menos parcialmente, com os olhos da carne; e há uma criação invisível, mas real, que só os sentidos espirituais nos permitem perceber, por meio da fé, da oração, da iluminação interior que vem do Espírito Santo.
    Os anjos são, em primeiro lugar, um sinal luminoso da divina Providência, da bondade paterna de Deus, que nada, do que é necessário, deixa faltar aos seus filhos. Intermediários entre a terra e o céu, os anjos são criaturas invisíveis postas à nossa disposição para nos guiarem no caminho de regresso à casa do Pai. Vêm do Céu para nos reconduzirem ao Céu e nos fazer pregustar algo das realidades celestes. Por vezes, podemos experimentar a presença dos anjos de modo muito concreto e sensível, desde que a saibamos reconhecer. Trata-se de encontros "casuais", - que todavia se tornam fundamentais e determinantes na nossa vida - ou de auxílio súbito e inesperado, em situações de perigo. Pode ser também uma intuição repentina, que nos permite dar-nos conta de um erro, de um esquecimento. Como não sentir-nos guiados, protegidos, nesses momentos? Os anjos protegem-nos de tantos perigos de que nem nos damos conta. Sobretudo do perigo de nos tornarmos ímpios, de não escutarmos nem obedecermos à Palavra de Deus. Os anjos sugerem-nos pensamentos de retidão e de humildade. Sugerem-nos bons sentimentos.
    Havemos também de ser anjos Deus em relação aos outros, ajudando-os a ver e a orientar-se pelos caminhos de Deus.
    O P. Dehon rezava: "Anjos do Senhor, recomendai-me à misericórdia do Sagrado Coração." (OSP 4, p. 317).

    Oratio

    Pai santo, Deus eterno e providente, nós vos damos graças por Cristo, Nosso Senhor. Proclamamos a vossa imensa glória, que resplandece nos Anjos e nos Arcanjos, e, honrando estes mensageiros celestes, exaltamos a vossa infinita bondade, porque a veneração que eles merecem é sinal da vossa incomparável grandeza sobre todas as criaturas. Por isso, com a multidão dos Anjos, que celebram a vossa divina majestade, Vos louvamos e bendizemos. Ámen. (cf. Prefácio dos Anjos).

    Contemplatio

    Os Anjos louvam a Deus e servem-n'O. «Eles são milhares de milhares, diz Daniel, à volta do trono de Deus, ocupados em servi-l'O» (Dan 7, 10). «Anjos do céu, diz o salmo, bendizei o Senhor, vós que executais as suas ordens» (Sl 102). Deus envia-os junto das criaturas. O seu nome significa «mensageiros». «São os enviados de Deus, diz S. Paulo, vêm ajudar os homens a realizarem a sua salvação» (Heb 1, 14). Há os anjos das nações e os anjos de cada um de nós. Deus dizia ao seu povo por Moisés: «Enviarei o meu anjo diante de vós. Conduzir-vos-á, guardar-vos-á e dirigir-vos-á para a terra que vos prometi» (Ex 23). Deus acrescentava: «Honrai-o, escutai a sua voz quando vos fala por Moisés. Se lhe obedecerdes, sereis abençoados e triunfareis sobre os vossos inimigos. Se o desprezardes, sereis castigados» (Ibid.). «Deus ordenou aos seus anjos, diz o salmo, que vos guardassem em todos os vossos caminhos. Levar-vos-ão nas suas mãos para que eviteis as pedras do caminho» (Sl 90). Trata-se aqui dos anjos de cada um de nós. «Respeitai as crianças, diz Nosso Senhor, os seus anjos veem constantemente a face de meu Pai» (Mt 18, 10). Os anjos vigiam particularmente as crianças. (L. Dehon, OSP 4, p. 315).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Anjos do Senhor, bendizei o Senhor!" (Sl 103, 20).

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    Santos Anjos da Guarda (02 Outubro)

  • 27º Domingo do Tempo Comum - Ano B

    27º Domingo do Tempo Comum - Ano B


    3 de Outubro, 2021

    ANO B
    27º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 27º Domingo do Tempo Comum

    As leituras do 27º Domingo do Tempo Comum apresentam, como tema principal, o projecto ideal de Deus para o homem e para a mulher: formar uma comunidade de amor, estável e indissolúvel, que os ajude mutuamente a realizarem-se e a serem felizes. Esse amor, feito doação e entrega, será para o mundo um reflexo do amor de Deus.
    A primeira leitura diz-nos que Deus criou o homem e a mulher para se completarem, para se ajudarem, para se amarem. Unidos pelo amor, o homem e a mulher formarão "uma só carne". Ser "uma só carne" implica viverem em comunhão total um com o outro, dando-se um ao outro, partilhando a vida um com o outro, unidos por um amor que é mais forte do que qualquer outro vínculo.
    No Evangelho, Jesus, confrontado com a Lei judaica do divórcio, reafirma o projecto ideal de Deus para o homem e para a mulher: eles foram chamados a formar uma comunidade estável e indissolúvel de amor, de partilha e de doação. A separação não está prevista no projecto ideal de Deus, pois Deus não considera um amor que não seja total e duradouro. Só o amor eterno, expresso num compromisso indissolúvel, respeita o projecto primordial de Deus para o homem e para a mulher.
    A segunda leitura lembra-nos a "qualidade" do amor de Deus pelos homens... Deus amou de tal forma os homens que enviou ao mundo o seu Filho único "em proveito de todos". Jesus, o Filho, solidarizou-Se com os homens, partilhou a debilidade dos homens e, cumprindo o projecto do Pai, aceitou morrer na cruz para dizer aos homens que a vida verdadeira está no amor que se dá até às últimas consequências. Ligando o texto da Carta aos Hebreus com o tema principal da liturgia deste domingo, podemos dizer que o casal cristão deve testemunhar, com a sua doação sem limites e com a sua entrega total, o amor de Deus pela humanidade.
    LEITURA I - Gn 2,18-24

    Leitura do Livro do Génesis

    Disse o Senhor Deus:
    «Não é bom que o homem esteja só:
    vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele».
    Então o Senhor Deus, depois de ter formado da terra
    todos os animais do campo e todas as aves do céu,
    conduziu-os até junto do homem,
    para ver como ele os chamaria,
    a fim de que todos os seres vivos fossem conhecidos
    pelo nome que o homem lhes desse.
    O homem chamou pelos seus nomes
    todos os animais domésticos, todas as aves do céu
    e todos os animais do campo.
    Mas não encontrou uma auxiliar semelhante a ele.
    Então o Senhor Deus fez descer sobre o homem
    um sono profundo
    e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma costela,
    fazendo crescer a carne em seu lugar.
    Da costela do homem o Senhor Deus formou a mulher
    e apresentou-a ao homem.
    Ao vê-la, o homem exclamou:
    «Esta é realmente osso dos meus ossos e a minha carne.
    Chamar-se-á mulher, porque foi tirada do homem».
    Por isso, o homem deixará pai e mãe,
    para se unir à sua esposa,
    e os dois serão uma só carne.

    AMBIENTE

    O texto de Gn 2,4b-3,24 - conhecido como relato jahwista da criação - é, de acordo com a maioria dos comentadores, um texto do séc. X a.C., que deve ter aparecido em Judá na época do rei Salomão. Apresenta-se num estilo exuberante, colorido, pitoresco. Parece ser obra de um catequista popular, que ensina recorrendo a imagens sugestivas, coloridas e fortes. Não podemos, de forma nenhuma, ver neste texto uma reportagem jornalística de acontecimentos passados na aurora da humanidade. A finalidade do autor não é científica ou histórica, mas teológica: mais do que ensinar como o mundo e o homem apareceram, ele quer dizer-nos que na origem da vida e do homem está Jahwéh. Trata-se, portanto, de uma página de catequese e não de um tratado destinado a explicar cientificamente as origens do mundo e da vida.
    Para apresentar essa catequese aos homens do séc. X a.C., os teólogos jahwistas utilizaram elementos simbólicos e literários das cosmogonias mesopotâmicas (por exemplo, a formação do homem "do pó da terra" é um elemento que aparece sempre nos mitos de origem mesopotâmicos); no entanto, transformaram e adaptaram os símbolos retirados das narrações lendárias de outros povos, dando-lhes um novo enquadramento, uma nova interpretação e pondo-os ao serviço da catequese e da fé de Israel. Ou seja: a linguagem e a apresentação literária das narrações bíblicas da criação apresentam paralelos significativos com os mitos de origem dos povos da zona do Crescente Fértil; mas as conclusões teológicas - sobretudo o ensinamento sobre Deus e sobre o lugar que o homem ocupa no projecto de Deus - são muito diferentes.
    O texto que nos é hoje proposto como primeira leitura situa-nos no "jardim do Éden", um espaço ideal onde Deus colocou o homem que criou, um ambiente de felicidade material onde todas as exigências da vida humana estavam satisfeitas. É um lugar de água abundante e com muitas árvores (para quem sentia pesar sobre si a ameaça do deserto árido, o ideia de felicidade seria um lugar com muita água, um clima de frescura, um ambiente de árvores e de verdura abundante). O homem tinha, então, tudo para ser feliz? Ainda não. Na perspectiva do catequista jahwista, o homem não estava plenamente realizado, pois faltava-lhe alguém com quem compartilhar a vida e a felicidade. O homem não foi criado para viver sozinho, mas para viver em relação. É esse problema que Deus, com solicitude e amor, vai resolver...

    MENSAGEM

    Depois de criar o homem e de o colocar no "jardim" da felicidade, Deus constatou a solidão do homem e quis dar-lhe solução. Como?
    Num primeiro momento, Deus fez desfilar diante do homem "todos os animais do campo e todas as aves do céu", a fim de que o homem os chamasse "pelos seus nomes" (vers. 19). Segundo as ideias vigentes no Médio Oriente antigo, o facto de "dar um nome" era, antes de mais, um acto de domínio e de posse. Por outro lado, o facto de Deus ter trazido os animais para que o homem lhes desse um nome era, na perspectiva do catequista jahwista, o reconhecimento por parte de Deus da autonomia do homem e a associação do homem à obra criadora e ordenadora de Deus. A autoridade sobre os outros seres criados e a associação do homem à obra criadora de Deus responderá ao desejo de felicidade completa que o homem sente e resolverá o problema da sua solidão? Não. O homem não encontrou, nesse mundo animal que Deus lhe confiou, "uma auxiliar semelhante a ele" (vers. 20). Por muito rico e desafiador que fosse esse mundo novo que lhe foi apresentado, o homem não encontrou aí a ajuda e o complemento que esperava. Para que o homem se realize completamente, Deus vai intervir de novo.
    A nova acção de Deus começa com um "sono profundo" do homem. Depois, Deus, actuando como um hábil cirurgião, tirou parte do corpo do homem (o texto fala da "zela'", que se tem traduzido como "costela"; contudo, a palavra pode significar "lado" ou "costado") e com ela fez a mulher (vers. 21-22). Porquê o "sono profundo" do homem"? Porque, de acordo com a concepção do autor jahwista, criar era segredo de Deus e o homem não podia testemunhar esse momento solene e misterioso; restava-lhe admirar a criação de Deus e adorá-l'O pelas suas obras admiráveis... Depois de ter "construído" a mulher, Jahwéh acompanha-a à presença do homem. A mulher é aqui apresentada como uma noiva conduzida à presença do noivo e Deus como o "padrinho" desse noivado. O homem, desperto do "sono profundo", acolhe a mulher com um grito de alegria e reconhece-a como a companhia que lhe fazia falta, o seu complemento, o seu outro eu: "Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne" (vers. 23a). O homem (vers. 23b) dá à sua companheira o nome de "mulher" (em hebraico: 'ishah) porque foi tirada do homem (em hebraico: 'ish). A proximidade das duas palavras sugere a proximidade entre o homem e a mulher, a sua igualdade fundamental em dignidade, a sua complementaridade, o seu parentesco.
    O nosso texto termina com um comentário que não é de Deus, nem do homem, nem da mulher, mas do catequista jahwista: "por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne" (vers. 24). Este comentário pretende ser a resposta a uma questão bem concreta: de onde vem essa força poderosa que é o amor e que é mais forte do que o vínculo que nos liga aos próprios pais? Para o catequista jahwista, o amor vem de Deus, que fez o homem e a mulher de uma só carne; por isso, homem e mulher buscam essa unidade e estão destinados, fatalmente, a viver em comunhão um com o outro.

    ACTUALIZAÇÃO

    • "Não é bom que o homem esteja só". Estas palavras, postas pelo autor jahwista na boca de Deus, sugerem que a realização plena do homem acontece na relação e não na solidão. O homem que vive fechado em si próprio, que escolhe percorrer caminhos de egoísmo e de auto-suficiência, que recusa o diálogo e a comunhão com aqueles que caminham a seu lado, que tem o coração fechado ao amor e à partilha, é um homem profundamente infeliz, que nunca conhecerá a felicidade plena. Por vezes a preocupação com o dinheiro, com a realização profissional, com o estatuto social, com o êxito levam os homens a prescindir do amor, a renunciar à família, a não ter tempo para os amigos... E um dia, depois de terem acumulado muito dinheiro ou de terem chegado à presidência da empresa, constatam que estão sozinhos e que a sua vida é estéril e vazia. A Palavra de Deus que nos é hoje proposta deixa um aviso claro: a vocação do homem é o amor; a solidão, mesmo quando compensada pela abundância de bens materiais, é um caminho de infelicidade.

    • Por vezes, certos círculos religiosos mais fechados desvalorizam o amor humano, consideram o casamento como um estado inferior de realização da vocação cristã e vêem na sexualidade algo de pecaminoso. Não é esta a perspectiva que a Palavra de Deus nos apresenta... No nosso texto, o amor aparece como algo que está, desde sempre, inscrito no projecto de Deus e que é querido por Deus. Deus criou o homem e a mulher para se ajudarem mutuamente e para partilharem, no amor, as suas vidas. É no amor e não na solidão que o homem encontra a sua realização plena e o sentido para a sua existência.

    • Homem e mulher são, de acordo com o nosso texto, iguais em dignidade. Eles são "da mesma carne", em igualdade de ser, partícipes do mesmo destino; completam-se um ao outro e ajudam-se mutuamente a atingir a realização. São, portanto, iguais em dignidade. Esta realidade exige que homem e mulher se respeitem absolutamente um ao outro; e exclui, naturalmente, qualquer atitude que signifique dominação, escravidão, prepotência, uso egoísta do outro.
    SALMO RESPONSORIAL - Salmo 127 (128)

    Refrão: O Senhor nos abençoe em toda a nossa vida.

    Feliz de ti que temes o Senhor
    e andas nos seus caminhos.
    Comerás do trabalho das tuas mãos,
    serás feliz e tudo te correrá bem.

    Tua esposa será como videira fecunda
    no íntimo do teu lar;
    teus filhos como ramos de oliveira,
    ao redor da tua mesa.

    Assim será abençoado o homem que teme o Senhor.
    De Sião o Senhor te abençoe:
    vejas a prosperidade de Jerusalém todos os dias da tua vida;
    e possas ver os filhos dos teus filhos. Paz a Israel.
    LEITURA II - Heb 2,9-11

    Leitura da Epístola aos hebreus

    Irmãos:
    Jesus, que, por um pouco, foi inferior aos Anjos,
    vemo-l'O agora coroado de glória e de honra
    por causa da morte que sofreu,
    pois era necessário que, pela graça de Deus,
    experimentasse a morte em proveito de todos.
    Convinha, na verdade, que Deus,
    origem e fim de todas as coisas,
    querendo conduzir muitos filhos para a sua glória,
    levasse à glória perfeita, pelo sofrimento,
    o Autor da salvação.
    Pois Aquele que santifica e os que são santificados
    procedam todos de um só.
    Por isso não Se envergonha de lhes chamar irmãos.

    AMBIENTE

    A Carta aos Hebreus é um sermão de um autor cristão anónimo, provavelmente elaborado nos anos que antecederam a destruição do Templo de Jerusalém (ano 70). Destina-se a comunidades cristãs não identificadas (o título "aos hebreus" foi-lhe colado posteriormente e provém das múltiplas referências ao Antigo Testamento e ao ritual dos "sacrifícios" que a obra apresenta). Trata-se, em qualquer caso, de comunidades cristãs em situação difícil, expostas a perseguições e que vivem num ambiente hostil à fé... Os membros dessas comunidades perderam já o fervor inicial pelo Evangelho, deixaram-se contaminar pelo desânimo e começam a ceder à sedução de certas doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos... O objectivo do autor deste "discurso" é estimular a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a crescer na fé.
    A Carta aos Hebreus apresenta - recorrendo à linguagem da teologia judaica - o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência - através de quem os homens têm acesso livre a Deus e são inseridos na comunhão real e definitiva com Deus. O autor aproveita, na sequência, para reflectir nas implicações desse facto: postos em relação com o Pai por Cristo/sacerdote, os crentes são inseridos nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã e devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a sua experiência de fé, enfraquecida pela acomodação e pela perseguição.
    O texto que nos é proposto está incluído na primeira parte da Carta (cf. Heb 1,5-2,18). Aí, o autor recolhe e repete aquilo que a catequese primitiva afirmava sobre o mistério de Cristo: a sua incarnação, a sua paixão e morte, a sua glorificação pela ressurreição. Ao longo destes dois capítulos, o autor vai afirmando a superioridade de Jesus em relação a todas as criaturas, nomeadamente em relação aos anjos.

    MENSAGEM

    Jesus aceitou despojar-se das suas prerrogativas divinas e fazer-se "por um pouco, inferior aos anjos" a fim de que, pelo dom da sua vida até à morte, se cumprisse o projecto salvador do Pai para os homens (vers. 9).
    Depois desta afirmação de princípio, o autor da Carta aos Hebreus vai aprofundar a sua reflexão e explicar porque é que Jesus teve que passar pela humilhação da cruz (a explicação é bem mais longa do que a leitura que nos é proposta e vai do versículo 10 ao versículo 18).
    A questão da paixão e morte de Cristo era uma "conveniência" do projecto de salvação que Deus tinha para o homem ("convinha" - vers. 10). O que é que isso significa? O objectivo de Deus é que o homem cresça até chegar à vida plena. Ora, para fazer com que a humanidade atinja esse fim, Deus deu-lhe um guia - Jesus Cristo. Ele devia mostrar, com a sua vida e o seu exemplo, que se chega à plenitude da vida cumprindo integralmente a vontade do Pai e fazendo da existência um dom de amor aos irmãos. A cruz foi a expressão máxima e total dessa vida de entrega aos desígnios de Deus e de doação aos irmãos. Morrendo por amor, Jesus ensinou aos homens como é que eles devem viver, qual o caminho que eles devem percorrer, a fim de chegarem à plenitude da vida, à felicidade sem fim; morrendo por amor e ressuscitando logo a seguir para a vida plena, Jesus libertou os homens do medo paralisante da morte e mostrou-lhes que a morte não é o fim da linha para quem vive na entrega a Deus e na doação aos irmãos.
    Ao assumir a natureza humana, ao fazer-Se solidário com os homens, ao fazer-Se irmão dos homens, Cristo (Aquele que santifica) inseriu os homens (os que são santificados) na órbita de Deus e mostrou-lhes o caminho a seguir para integrar a família de Deus (vers. 11).

    ACTUALIZAÇÃO

    • A incarnação, paixão e morte de Jesus atestam, antes de mais, o incrível amor de Deus pelos homens. É o amor de alguém que enviou o próprio Filho para fazer da sua vida um dom, até à morte na cruz, a fim de mostrar aos homens o caminho da vida plena e definitiva. Trata-se de uma realidade que a Palavra de Deus nos recorda cada domingo; e trata-se de uma realidade que não deve cessar de nos espantar e de nos levar à gratidão e ao amor.

    • A atitude de aceitação incondicional do projecto do Pai assumida por Cristo contrasta com o egoísmo e a auto-suficiência de Adão face às propostas de Deus. A obediência de Cristo trouxe vida plena ao homem; a desobediência de Adão trouxe sofrimento e morte à humanidade. O exemplo de Cristo convida-nos a viver na escuta atenta e na obediência radical às propostas de Deus: esse caminho é gerador de vida verdadeira. Quando o homem prescinde de Deus e das suas propostas e decide que é ele quem define o caminho a seguir, fatalmente resvala para projectos de ambição, de orgulho, de injustiça, de morte; quando o homem escuta e acolhe os desafios de Deus, aprende a amar, a partilhar, a servir, a perdoar e torna-se uma fonte de bênção para todos aqueles que caminham ao seu lado.

    • Jesus fez-Se homem, enfrentou a condição de debilidade dos homens e morreu na cruz. No entanto, a sua glorificação mostrou que a morte não é o final do caminho para quem faz da vida uma escuta atenta dos planos de Deus e uma doação de amor aos irmãos. Dessa forma, Ele libertou os homens do medo da morte. Agora, podemos enfrentar a injustiça, a opressão, as forças do mal que oprimem os homens, sem medo de morrer: sabemos que quem vive como Jesus não fica prisioneiro da morte, mas está destinado à vida verdadeira e eterna.
    ALELUIA - 1 Jo 4,12

    Aleluia. Aleluia.

    Se nos amamos uns aos outros, Deus permanece em nós
    e o seu amor em nós é perfeito.
    EVANGELHO - Mc 10,2-16

    Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

    Naquele tempo,
    Aproximaram-se de Jesus uns fariseus para O porem à prova
    e perguntaram-Lhe:
    «Pode um homem repudiar a sua mulher?»
    Jesus disse-lhes:
    «Que vos ordenou Moisés?»
    Eles responderam:
    «Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio,
    para se repudiar a mulher».
    Jesus disse-lhes:
    «Foi por causa da dureza do vosso coração
    que ele vos deixou essa lei.
    Mas, no princípio da criação, 'Deus fê-los homem e mulher.
    Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa,
    e os dois serão uma só carne'.
    Deste modo, já não são dois, mas uma só carne.
    Portanto, não separe o homem o que Deus uniu».
    Em casa, os discípulos interrogaram-n'O de novo
    sobre este assunto.
    Jesus disse-lhes então:
    «Quem repudiar a sua mulher e casar com outra,
    comete adultério contra a primeira.
    E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro,
    comete adultério».

    Apresentaram a Jesus umas crianças
    para que Ele lhes tocasse,
    mas os discípulos afastavam-nas.
    Jesus, ao ver isto, indignou-Se e disse-lhes:
    «Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis:
    dos que são como elas é o reino de Deus.
    Em verdade vos digo:
    Quem não acolher o reino de Deus como uma criança,
    não entrará nele».
    E, abraçando-as, começou a abençoá-las,
    impondo a mão sobre elas.

    AMBIENTE

    Despedindo-se definitivamente da Galileia, Jesus continua o seu caminho para Jerusalém, ao encontro do seu destino final. O episódio de hoje situa-nos "na região da Judeia, para além do Jordão" (vers. 1) - isto é, no território transjordânico da Pereia, território governado por Herodes Antipas, o mesmo que havia assassinado João Baptista quando este o criticou por haver abandonado a sua esposa legítima. Aí, Jesus volta a confrontar-Se com as multidões e a dirigir-lhes os seus ensinamentos. Os discípulos, contudo, continuam a rodear Jesus e a beneficiar de uma instrução especial.
    Entram de novo em cena os fariseus, não para escutar as suas propostas, mas para O experimentar e para Lhe apanhar uma declaração comprometedora. São esses fanáticos da Lei que vão proporcionar a Jesus a oportunidade de Se pronunciar sobre uma questão delicada e comprometedora: o matrimónio e o divórcio.
    Tratava-se, na realidade, de uma questão "quente" e não totalmente consensual nas discussões dos "mestres" de Israel. A Lei de Israel permitia o divórcio ("quando um homem tomar uma mulher e a desposar, se depois ela deixar de lhe agradar, por ter descoberto nela algo de inconveniente, escrever-lhe-á um documento de divórcio, entregar-lho-á em mão e despedi-la-á de sua casa" - Dt 24,1); mas não era totalmente clara acerca das razões que poderiam fundamentar a rejeição da mulher pelo marido. Na época de Jesus, as duas grandes escolas teológicas do tempo divergiam na interpretação da Lei do divórcio. A escola de Hillel ensinava que qualquer motivo, mesmo o mais fútil (porque a esposa cozinhava mal ou porque o marido gostava mais de outra), servia para o homem despedir a mulher; a escola de Shammai, mais rigorosa, defendia que só uma razão muito grave (o adultério ou a má conduta da mulher) dava ao marido o direito de repudiar a sua esposa. A mulher, por sua vez, era autorizada a obter o divórcio em tribunal somente no caso de o marido estar afectado pela lepra ou exercer um ofício repugnante.
    É nesta discussão de contornos pouco claros que os fariseus procuram envolver Jesus. Uma resposta negativa por parte de Jesus seria, certamente, interpretada como uma condenação do matrimónio de Herodes Antipas com Herodíades, a sua cunhada. A pergunta dos fariseus insere-se, provavelmente, na tentativa de encontrar razões para eliminar Jesus.

    MENSAGEM

    Diante da questão posta pelos fariseus ("pode um homem repudiar a sua mulher?" - vers. 2), Jesus começa por recordar-lhes o estado da questão na perspectiva da Lei ("que vos ordenou Moisés?" - vers. 3). Tal não significa, contudo, que Jesus Se identifique com o posicionamento da Lei a propósito da questão do divórcio.
    Efectivamente, a Lei permite o divórcio ("Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio para se repudiar a mulher" - vers. 4); contudo, essa condescendência da Lei não resulta do projecto de Deus para o homem e para a mulher, mas é o resultado da "dureza do coração" dos homens. As prescrições de Moisés não definem o quadro ideal do amor do homem e da mulher, mas apenas regulam o compromisso matrimonial, tendo em conta a mediocridade humana.
    Em contraste com a permissividade da Lei, Jesus vai apresentar o projecto primordial de Deus para o amor do homem e da mulher. Citando livremente Gn 1,27 e Gn 2,24, Jesus explica que, no projecto original de Deus, o homem e a mulher foram criados um para o outro, para se completarem, para se ajudarem, para se amarem. Unidos pelo amor, o homem e a mulher formarão "uma só carne". Ser "uma só carne" implica viverem em comunhão total um com o outro, dando-se um ao outro, partilhando a vida um com o outro, unidos por um amor que é mais forte do que qualquer outro vínculo. A separação será sempre o fracasso do amor; não está prevista no projecto ideal de Deus, pois Deus não considera um amor que não seja total e duradouro. Só o amor eterno, expresso num compromisso indissolúvel, respeita o projecto primordial de Deus para o homem e para a mulher.
    A perspectiva de Jesus acerca da questão é a seguinte: nessa nova realidade que Deus quer propor ao homem (o Reino de Deus), chegou o momento de abandonar a facilidade, a mesquinhez, as meias-tintas e de apontar para um patamar mais alto. Ora, no que diz respeito ao matrimónio, o patamar mais alto é o projecto inicial de Deus para o homem e para a mulher, que previa um compromisso de amor estável, duradouro, indissolúvel.
    Para os discípulos (que anteriormente, em diversas situações, tiveram dificuldade em passar da lógica do mundo para a lógica de Deus), contudo, o discurso de Jesus é difícil de entender; por isso, quando chegam a casa, pedem a Jesus explicações suplementares (vers. 10). Jesus reitera que a relação entre o homem e a mulher se deve enquadrar no projecto inicial de Deus e não nas facilidades concedidas pela Lei de Moisés. A perspectiva de Deus é que marido e mulher, unidos pelo amor, formem uma comunidade de vida estável e indissolúvel. O divórcio não entra nesse projecto. Marido e esposa, em igualdade de circunstâncias, são responsáveis pela edificação da comunidade familiar e por evitar o fracasso do amor (vers. 11-12).
    O texto que nos é proposto termina com uma cena em que Jesus acolhe as crianças, defende-as e abençoa-as (vers. 13-16). As crianças são, aqui, uma espécie de contraponto ao orgulho e arrogância com que os fariseus se apresentam a Jesus, bem como à dificuldade que os discípulos revelaram, nas cenas precedentes, para acolher a lógica do Reino... As crianças são simples, transparentes, sem calculismos; não têm prestígio ou privilégios a defender; entregam-se confiadamente nos braços do pai e dele esperam tudo, com amor. Por isso, as crianças são o modelo do discípulo. O Reino de Deus é daqueles que, como as crianças, vivem com sinceridade e verdade, sem se preocuparem com a defesa dos seus interesses egoístas ou dos seus privilégios, acolhendo as propostas de Deus com simplicidade e amor. Quem não é "criança", isto é, quem percorre caminhos tortuosos e calculistas, quem não renuncia ao orgulho e auto-suficiência, quem despreza a lógica de Deus e só conta com a lógica do mundo (também na questão do casamento e do divórcio), quem conduz a própria vida ao sabor de interesses e valores efémeros, quem não aceita questionar os próprios raciocínios e preconceitos, não pode integrar a comunidade do Reino.

    ACTUALIZAÇÃO

    • O Evangelho deste domingo apresenta-nos o projecto ideal de Deus para o homem e para a mulher que se amam: eles são convidados a viverem em comunhão total um com o outro, dando-se um ao outro, partilhando a vida um com o outro, unidos por um amor que é mais forte do que qualquer outro vínculo. O fracasso dessa relação não está previsto nesse projecto ideal de Deus. O amor de um homem e de uma mulher que se comprometem diante de Deus e da sociedade deve ser um amor eterno e indestrutível, que é reflexo desse amor que Deus tem pelos homens. Este projecto de Deus não é uma realidade inatingível e impossível: há muitos casais que, dia a dia, no meio das dificuldades, lutam pelo seu amor e dão testemunho de um amor eterno e que nada consegue abalar.

    • As telenovelas, os valores da moda, a opinião pública, têm-se esforçado por apresentar o fracasso do amor como uma realidade normal, banal, que pode acontecer a qualquer instante e que resolve facilmente as dificuldades que duas pessoas têm em partilhar o seu projecto de amor. Para os casais cristãos, o fracasso do amor não é uma normalidade, mas uma situação extrema, uma realidade excepcional. Para os casais cristãos, o divórcio não deve ser um remédio simples e sempre à mão para resolver as pequenas dificuldades que a vida todos os dias apresenta. À partida, o compromisso de amor não deve ser uma realidade efémera, sujeito a projectos egoístas e a planos superficiais, que terminam quando surgem dificuldades ou quando um dos dois é confrontado com outras propostas. Para o casal que quer viver na dinâmica do Reino, a separação não deve ser uma proposta sempre em cima da mesa. Marido e esposa têm que esforçar-se por realizar a sua vocação de amor, apesar das dificuldades, das crises, das divergências e dos problemas que, dia a dia, a vida lhes vai colocando. A Igreja é chamada a ser no mundo, mesmo contra a corrente, testemunha do projecto ideal de Deus.

    • Apesar de tudo, a vida dos homens e das mulheres é marcada pela debilidade própria da condição humana. Nem sempre as pessoas, apesar do seu esforço e da sua boa vontade, conseguem ser fiéis aos ideais que Deus propõe. A vida de todos nós está cheia de fracassos, de infidelidades, de falhas. Nessas circunstâncias, a comunidade cristã deve usar de muita compreensão para aqueles que falharam (muitas vezes sem culpa) na vivência do seu projecto de amor. Em nenhuma circunstância as pessoas divorciadas devem ser marginalizadas ou afastadas da vida da comunidade cristã. A comunidade deve, em todos os instantes, acolher, integrar, compreender, ajudar aqueles a quem as circunstâncias da vida impediram de viver o tal projecto ideal de Deus. Não se trata de renunciar ao "ideal" que Deus propõe; trata-se de testemunhar a bondade e a misericórdia de Deus para com todos aqueles a quem a partilha de um projecto comum fez sofrer e que, por diversas razões, não puderam realizar esse ideal que um dia, diante de Deus e da comunidade, se comprometeram a viver.

    • As crianças que Jesus nos apresenta no Evangelho deste domingo como modelos do discípulo convidam-nos à simplicidade, à humildade, à sinceridade, ao acolhimento humilde dos dons de Deus. De acordo com as palavras de Jesus, não pode integrar o Reino quem se coloca numa atitude de orgulho, de auto-suficiência, de autoritarismo, de superioridade sobre os irmãos. A dinâmica do Reino exige pessoas dispostas a acolher e a escutar as propostas de Deus e dispostas a servir os irmãos com humildade e simplicidade.
    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 27º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas de "Signes d'aujourd'hui")

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
    Ao longo dos dias da semana anterior ao 27º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo... Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa... Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.
    Quando Jesus pressente que Lhe querem estender uma armadilha, Ele refere-se à vontade de seu Pai. Ora, Deus tem um projecto que submete ao homem, e este, porque foi criado livre, realiza este projecto ou recusa-o. O mais belo projecto de Deus é o homem, a sua criatura. Como Ele o criou à sua imagem, fê-lo como ser de relação. É por isso que Ele cria a humanidade, homem e mulher, e a sua comunhão significa algo de Deus que em si mesmo é comunhão. O que conta numa obra artística não são primeiramente as interpretações ou os comentários que são feitos, mas a intenção do autor. Face ao amor do homem e da mulher, não comecemos por olhar como é vivida hoje a relação, mas contemplemos o sonho de Deus e tenhamos sobre os casais o olhar de Deus, que vê que aquilo que Ele fez é bom ou que oferece a sua misericórdia àqueles que não puderam ou não quiseram interpretar o seu projecto.

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.
    "Não separe o homem o que Deus uniu..." Jesus coloca o dedo na ferida... O divórcio é sempre um fracasso, um sofrimento. Mas entrou nos costumes como uma realidade normal, um "direito"! Jesus está contra a corrente... Palavra incompreensível para muitos homens e mulheres, qualquer que seja a sua idade! Na sua resposta aos fariseus, Jesus recorre a um critério a que geralmente se presta pouca atenção. Vai ao "princípio da criação", à vontade primeira, à vontade criadora de Deus. Ora, esta vontade é que os seres humanos se tornem "imagens de Deus", na medida em que aceitem entrar uns e outros nas relações de amor recíproco, porque Ele, Deus, é eterno movimento de amor no seu Ser mais profundo. O casal humano, antes mesmo da questão da procriação, é chamado por Deus a tornar-se o primeiro lugar de incarnação deste movimento de amor. O amor humano, sob todas as suas formas, não nasceu dos acasos da evolução biológica. É dom de Deus. Quando os homens recusam este dom, impedem Deus de imprimir neles a sua imagem. Na realidade, vão contra a vontade criadora, introduzem uma desordem na criação tal como Deus a quis. Porque Ele escuta plenamente o seu Pai e acolhe sem quaisquer reticências nem recusas a vontade de amor do seu Pai, Jesus, e apenas Ele, pode colocar-nos na luz de Deus Criador e da sua vontade criadora. Mas isso supõe que aceitemos escutar Jesus, tomar Jesus na nossa vida. Só poderemos compreender a exigência de unidade e de fidelidade no amor humano se aceitarmos tornar-nos, dia após dia, discípulos, mais ainda, amigos de Jesus. Para resolver os nossos problemas afectivos, temos razão em recorrer à psicologia, à psicoterapia do casal. Mas isso não basta. A verdadeira falta é uma falta de profundidade espiritual. Não servirá de nada a Igreja repetir sem cessar a sua oposição ao divórcio se, primeiro, não fizer imensos esforços para ajudar a redescobrir um verdadeiro acompanhamento com Jesus, revelador do amor do Pai.

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE...
    Que o Senhor te abençoe... Como seria belo, em cada manhã desta semana, dizer-se bom dia, em família, com as simples palavras do salmista: "Que o Senhor te abençoe..." Fórmula de bênção, em que se deseja apenas o bem. Ultrapassemos qualquer falso pudor, para oferecermos àqueles que amamos a bênção do Senhor.

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA
    ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA NAS COMUNIDADES DEHONIANAS
    Grupo Dinamizador:
    P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 - 1800-129 LISBOA - Portugal
    Tel. 218540900 - Fax: 218540909
    portugal@dehonianos.org - www.dehonianos.org

  • S. Francisco de Assis

    S. Francisco de Assis


    4 de Outubro, 2021

    S. Francisco de Assis nasceu em 1181, ou 1182. Filho de um rico comerciante, Francisco sonhava tornar-se cavaleiro. Desviado desse ideal, procurou com persistência vontade de Deus. O encontro com os leprosos, e a oração diante do Crucifixo na igreja de S. Damião, levaram-no a abandonar a família e a iniciar uma vida evangélica penitencial. Bem depressa o Senhor lhe deu irmãos dispostos a viverem o evangelho sine glossa, em fraternidade. O papa Honório III aprovou a Regra e a vida dos frades menores, em 1222. No ano seguinte, Francisco recebeu os estigmas do Crucificado, selo da sua conformidade com o único Senhor e Mestre. Faleceu em 1226, sendo canonizado em 1228. Grande amigo da Natureza, S. Francisco é padroeiro dos ecologistas. É também um dos padroeiros da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus, Dehonianos.

    Lectio

    Primeira leitura: Gálatas 6, 14-18

    Irmãos: Longe de mim gloriar-me, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo. 15Pois nem a circuncisão vale alguma coisa nem a incircuncisão, mas sim uma nova criação. 16Paz e misericórdia para todos quantos seguirem esta regra, bem como para o Israel de Deus. 17De agora em diante ninguém mais me venha perturbar; pois eu levo no meu corpo as marcas de Jesus. 18A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo esteja com o vosso Espírito, irmãos!Ámen.

    Ao terminar a sua Carta aos Gálatas, Paulo declara ter agido retamente ao desmascarar a hipocrisia dos que defendiam a necessidade da circuncisão e da observância de lei hebraica para os cristãos (v. 12). Em seguida, afirma que não procura a glória do mundo, mas se sente honrado por estar em comunhão com Jesus Crucificado, cujo amor redentor afastara dele toda a ambição, orgulho e egoísmo. O seu único motivo de orgulho é a cruz do Senhor, que iniciou uma nova economia fundamentada, não na Lei, mas no Espírito. Acolhendo e pondo em prática o amor misericordioso de Deus, o cristão pode usufruir da plenitude dos bens messiânicos. Consciente de tal dom, Paulo não quer ouvir falar de outras doutrinas. A sua pertença exclusiva ao Senhor é manifestada pelos sofrimentos que, a seu exemplo, suporta para Lhe ser fiel (v. 17).

    Evangelho: Mateus 11, 25-30

    Naquele tempo, Jesus exclamou: «Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos. 26Sim, ó Pai, porque isso foi do teu agrado. 27Tudo me foi entregue por meu Pai; e ninguém conhece o Filho senão o Pai, como ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar.» 28«Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei-de aliviar-vos.29Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso espírito. 30Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.

    A relação entre Jesus e o Pai é única, como declara o nosso texto. Jesus é o Filho do Pai, de Quem recebeu tudo, por Quem é conhecido, e a Quem conhece como mais ninguém. Jesus revela-nos esse conhecimento, que é dom recíproco de amor. Na sua oração de bênção, Jesus reconhece que só os pequenos, os que não presumem de si mesmos, estão em condições de conhecer o amor do Pai e viver em comunhão com Ele. Que se fecha na sua "sabedoria" autoexclui-se dessa vida e comunhão. Francisco de Assis foi um desses pequenos e humildes que encontraram respiro e vida nova nas palavras e gestos de Jesus.

    Meditatio

    Francisco de Assis foi um daqueles pequenos, que receberam de coração aberto e disponível a revelação de Jesus, como Filho muito amado do Pai. O Evangelho, sine glossa, tornou-se a única regra da sua vida, regra que também propôs àqueles que se lhe quiseram juntar como irmãos. Para Francisco, tudo se resumia à relação com Jesus, no amor. Os estigmas, que recebeu já perto do fim da sua vida, são sinal da intensíssima relação com Jesus, que o levou a identificar-se com Ele também fisicamente. Numa época em que os homens da Igreja procuravam riquezas e grandezas, Francisco quis permanecer pobre e pequeno diante de Deus e dos homens. Por causa disso, nem aceitou ser ordenado sacerdote, permanecendo simplesmente irmão entre os irmãos, como o mais pequeno de todos, por amor do Senhor.
    Para ele realizaram-se plenamente as palavras de Jesus: "o meu jugo é suave e o meu fardo é leve" (v. 30). Quanta alegria enchia o coração de Francisco, pobre de tudo e rico de tudo, que no amor do Senhor sentia como suaves os maiores sofrimentos. "Carregai as cargas uns dos outros e assim cumprireis plenamente a lei de Cristo." (Gl 6, 2). As cargas dos outros: é esse o jugo do Senhor. S. Francisco compreendeu-o desde o princípio da sua conversão. No fim da vida, contava: "Estando eu em pecado, parecia-me coisa excessivamente amarga ver os leprosos, mas o próprio Senhor me conduziu para meio deles e eu exercia misericórdia para com eles". Este é o jugo, que consiste em carregar as cargas dos outros, mesmo que isso nos parece muito duro. E continuava Francisco: "Carregando-as, o que me parecia amargo, converteu-se para mim em doçura na alma e no corpo". Pouco mais adiante, encontramos a segunda frase de Paulo: "Cada um terá de carregar o próprio fardo" (Gl 6, 5). Aqui, trata-se de não julgar os outros, de ter muita compreensão por todos, de não impor aos outros os nossos pontos de vista e os nossos modos de fazer, de vermos os nossos próprios defeitos e de não aproveitar os defeitos dos outros para lhes impor pesos que não estão de acordo com o pensamento do Senhor. "Ninguém se deve julgar o primeiro entre os irmãos", recomendou. "Quem jejua, não julgue os que comem". A caridade não critica os outros, não os julga, mas ajuda-os.
    Carreguemos, também nós, o jugo do Senhor, os fardos dos outros, e não os sobrecarreguemos com críticas e juízos sem misericórdia. Assim conheceremos melhor o Filho de Deus, que morreu por nós, e nele o Pai que está nos céus, com a mesma alegria de S. Francisco.

    Oratio

    Fazei, ó meu Deus, exclamava, que a doce violência do vosso amor me desapegue de todas as coisas sensíveis e me consuma inteiramente, a fim de que eu possa morrer por vosso amor infinito. Eu vo-lo peço por vós mesmo, ó Filho de Deus, que morrestes por amor de mim. Meu Deus e meu tudo! Quem sois vós, e quem sou eu, senão um verme de terra? Desejo amar-vos, Senhor adorável. Consagrei-vos a minha alma e o meu corpo com tudo o que sou. Levar-me-ei a fazer com ardor o que mais contribuir para vos glorificar. Sim, meu Deus, este é o único objeto dos meus desejos. (Oração de S. Francisco, citada por Leão Dehon, in OSP 4, p. 322)

    Contemplatio

    O Coração de Francisco foi, como o de Jesus, um porto de refúgio no qual todos os pobres corações humanos, agitados pela tempestade, podiam encontrar um asilo. O coração de Francisco foi um coração de apóstolo, um coração de fogo. Semelhante a um carro inflamado, percorria o mundo, ardendo por arrastar atrás de si todos os homens para os conduzir ao céu. O seu coração inflamado de amor gerou três ordens que deram e que dão tantos santos ao céu. Depois do capítulo geral da sua ordem em 1219, enviou religiosos para a Grécia, para África, para a França, para a Inglaterra, para aí estender o reino de Deus. Tinha reservado para si a missão da Síria e /323 do Egipto onde esperava encontrar o martírio! O coração de Francisco não estava simplesmente aberto às misérias morais, mas também às misérias físicas. Oh! Como amava os pobres e a pobreza! Como era terno para com os doentes e os aflitos! S. Francisco diz-nos a todos como S. Paulo: «Sede meus imitadores». A seu exemplo, entremos no Coração de Jesus pelo amor e pela imitação. (Leão Dehon, OSP 4, p. 322s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Carregai as cargas uns dos outros
    e assim cumprireis plenamente a lei de Cristo." (Gal 6, 2).

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    S. Francisco de Assis (04 Outubro)

  • Nossa Senhora do Rosário

    Nossa Senhora do Rosário


    7 de Outubro, 2021

    O Rosário, que apareceu entre os séculos XV e XVI, foi divulgado pelos Dominicanos, tornando-se uma das mais populares devoções marianas. Nossa Senhora recomendou-o insistentemente em Fátima.

    A memória de Nossa Senhora do Rosário, inicialmente celebrada por algumas famílias religiosas, entrou na liturgia de toda a Igreja por disposição do Papa S. Pio V, dominicano, em 1572. Com essa festa, então abertamente chamada "comemoração da Bem-aventurada Virgem Maria da Vitória", o Papa queria agradecer a Nossa Senhora a sua intervenção na vitória da frota cristã contra a dos turcos, em Lepanto, a 7 de Outubro de 1571. Atualmente celebra-se simplesmente a memória de Nossa Senhora do Rosário.

    Lectio

    Primeira leitura: Atos, 1, 12-14

    Os Apóstolos desceram, do monte chamado das Oliveiras, situado perto de Jerusalém, à distância de uma caminhada de sábado, e foram para Jerusalém. 13Quando chegaram à cidade, subiram para a sala de cima, no lugar onde se encontravam habitualmente.Estavam lá: Pedro, João, Tiago, André, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zelota, e Judas, filho de Tiago.14E todos unidos pelo mesmo sentimento, entregavam-se assiduamente à oração, com algumas mulheres, entre as quais Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos de Jesus.

    Depois de ter convivido durante quarenta dias com os discípulos, Jesus elevou-se ao céu. Então os Onze, que tinham andado dispersos, com outros discípulos e familiares de Jesus, entre os quais a sua mãe, reuniram-se provavelmente em casa de um deles, enquanto esperavam o Pentecostes, em que haviam de receber o Espírito Santo prometido. Neste texto, Lucas antecipa algumas notas sobre o modo de vida da primitiva comunidade eclesial de Jerusalém, que irá desenvolver depois. Uma característica evidente é a oração partilhada pelos irmãos e irmãs de modo assíduo e concorde. Depois do Pentecostes, em que Maria também participará (At 2, 1), a comunidade eclesial irá desenvolver a sua identidade e a diaconia. A oração, que precede o Pentecostes, é como que uma preparação; a assiduidade à oração e a concórdia entre os irmãos são garantia de crescimento e de futuro para a comunidade.

    Evangelho: Lucas 1, 26-38

    Naquele tempo, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré,27a uma virgem desposada com um homem chamado José, da casa de David; e o nome da virgem era Maria. 28Ao entrar em casa dela, o anjo disse-lhe: «Salve, ó cheia de graça, o Senhor está contigo.» 29Ao ouvir estas palavras, ela perturbou-se e inquiria de si própria o que significava tal saudação. 30Disse-lhe o anjo: «Maria, não temas, pois achaste graça diante de Deus. 31Hás-de conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus.32Será grande e vai chamar-se Filho do Altíssimo. O Senhor Deus vai dar-lhe o trono de seu pai David, 33reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o seu reinado não terá fim.» 34Maria disse ao anjo: «Como será isso, se eu não conheço homem?» 35O anjo respondeu-lhe: «O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra. Por isso, aquele que vai nascer é Santo e será chamado Filho de Deus. 36Também a tua parente Isabel concebeu um filho na sua velhice e já está no sexto mês, ela, a quem chamavam estéril,37porque nada é impossível a Deus.» 38Maria disse, então: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra.» E o anjo retirou-se de junto dela.

    A devoção do Rosário encontrou na anunciação a Maria o primeiro quadro para contemplação. O colóquio entre Deus e a jovem Maria, mediado pelo anjo Gabriel, - "força de Deus" -, decorre num clima de serena e alegre disponibilidade obediente da humilde «serva do Senhor». A disponibilidade de Maria decorre da reflexão ou meditação sobre a palavra proferida pelo enviado de Deus. Maria tenta uma exegese da mensagem, verdadeiramente surpreendente, pois se trata de um grandioso projeto de Deus, que a envolve. A contemplação de Maria sobre o primeiro mistério do seu envolvimento evangélico e messiânico é iluminada pela disponibilidade do Senhor, pronto a dar explicações. Maria acolhe-as e medita-as no seu coração. Deus não impõe uma tarefa absurda, mas "esforça-se" por convencer aquele que chama a participar nela.

    Meditatio

    S. Lucas oferece à meditação do devoto de Maria, na memória de Nossa Senhora do Rosário, uma sequência histórica de acontecimentos que têm o seu princípio na perícopa do evangelho que escutamos hoje e passa imediatamente para a dos Atos dos Apóstolos que também escutámos na primeira leitura. São duas paragens na peregrinação devocional do Rosário: uma com que começam os "mistérios gozosos" e outra que encontramos do terceiro dos mistérios gloriosos. Essa disposição dos quadros a contemplar dá-nos uma metodologia para a nossa meditação que nos ensina e ajuda a passar do individual ao comunitário, da contemplação à ação.
    De fato, a Anunciação é, para a Virgem Maria, uma experiência muito pessoal de Deus, uma paragem na contemplação da palavra de Deus, junto ao próprio Deus. É um evento gozado na solidão. Essa solidão ou experiência individual não significa isolamento: de fato, Aquela que recebeu o anúncio, partilha a vida da comunidade, a espera da manifestação poderosa e gloriosa do Espírito Santo. Põe em comum a sua experiência de Deus.
    A Anunciação constitui para Maria uma subida aos cumes da contemplação dos mistérios de Deus, uma aproximação, guiada pela luz da palavra divina, ao projeto que Deus quer realizar com a sua disponibilidade. Essa contemplação sustenta a obediência consciente. A Virgem da Anunciação não permanece imóvel no seu genuflexório, com o livro entre as mãos, como a imaginaram muitos pintores. Atua em si mesma de acordo com a Palavra recebida, meditada, contemplada e rezada; atua na comunidade, nascida do amor de Jesus e da fé em Cristo ressuscitado; e tudo com assiduidade e em concórdia com os outros discípulos.
    A atitude de Maria marca a primitiva comunidade e orienta-a para o uso dos meios que façam dela, o mais possível, comunidade do Senhor: a assiduidade ao "ensino dos Apóstolos", a "união fraterna", a "fração do pão", a oração e a partilha dos bens (cf. At 2, 42.44).
    Os primeiros monges pretendiam viver este mesmo espírito que animou, primeiro a Maria e, depois, a comunidade de Jerusalém. Daí a importância que davam à escuta da Palavra, à oração, à Eucaristia, à partilha de bens, à união fraterna. O mesmo espírito deve animar as nossas atuais comunidades. Daí a necessidade de usar os mesmos meios.

    Oratio

    Ó Maria, Mãe de Deus, Rainha e Mãe dos homens, eu vos ofereço as homenagens da minha veneração e do meu amor filial. Quero viver como vosso filho dedicado, consolando-vos e obedecendo-vos em tudo. Pela vossa poderosa intercessão, fazei que todos os meus pensamentos e ações sejam conformes à vossa vontade e à do vosso divino Filho. (Leão Dehon, OSP 4, p. 338).

    Contemplatio

    As orações dos santos são poderosas junto de Deus; e todavia não são mais do que as orações de servos. Mas as de Maria são orações de Mãe. Santo Antonino dizia: «a oração de Maria tem sobre o coração de Jesus a força de uma ordem». Também considera impossível que a divina Mãe peça ao Filho uma graça e que o Filho lhe recuse. «É impossível - dizia - que a Mãe não seja ouvida». É por isso que S. Bernardo nos exorta a pedir, por intercessão de Maria, todas as graças que desejamos alcançar de Deus. «Procuremos a graça - escreve - mas procuremo-la por Maria, porque ela é mãe; ela é sempre ouvida, e não pode obter uma recusa». Deste modo, vemos a imensa família dos cristãos recorrer a Maria como mãe amada e dedicada. Quem poderá contar os santuários, os altares, as imagens, as bandeiras, os escapulários, as imagens de Maria? A todo o momento, de todos os lugares da terra, se eleva um apelo filial: «Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores». E eu mesmo grito: «Augusta Mãe de Deus, rogai a Jesus por mim. Vede as misérias da minha alma, e tende piedade de mim. Sim, rogai e não cesseis jamais de rogar por mim, enquanto não me virdes no céu, seguro da minha salvação eterna. Ó Maria, sois a minha esperança, não me abandoneis». (Leão Dehon, OSP 4, p. 337).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores».
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    Nossa Senhora do Rosário (07 Outubro)

  • 28º Domingo do Tempo Comum - Ano B

    28º Domingo do Tempo Comum - Ano B


    10 de Outubro, 2021

    ANO B
    28º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 28º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia do 28º Domingo do Tempo Comum convida-nos a reflectir sobre as escolhas que fazemos; recorda-nos que nem sempre o que reluz é ouro e que é preciso, por vezes, renunciar a certos valores perecíveis, a fim de adquirir os valores da vida verdadeira e eterna.
    Na primeira leitura, um "sábio" de Israel apresenta-nos um "hino à sabedoria". O texto convida-nos a adquirir a verdadeira "sabedoria" (que é um dom de Deus) e a prescindir dos valores efémeros que não realizam o homem. O verdadeiro "sábio" é aquele que escolheu escutar as propostas de Deus, aceitar os seus desafios, seguir os caminhos que Ele indica.
    O Evangelho apresenta-nos um homem que quer conhecer o caminho para alcançar a vida eterna. Jesus convida-o renunciar às suas riquezas e a escolher "caminho do Reino" - caminho de partilha, de solidariedade, de doação, de amor. É nesse caminho - garante Jesus aos seus discípulos - que o homem se realiza plenamente e que encontra a vida eterna.
    A segunda leitura convida-nos a escutar e a acolher a Palavra de Deus proposta por Jesus. Ela é viva, eficaz, actuante. Uma vez acolhida no coração do homem, transforma-o, renova-o, ajuda-o a discernir o bem e o mal e a fazer as opções correctas, indica-lhe o caminho certo para chegar à vida plena e definitiva.

    LEITURA I - Sab 7,7-11

    Leitura do Livro da Sabedoria

    Orei e foi-me dada a prudência;
    implorei e veio a mim o espírito de sabedoria.
    Preferi-a aos ceptros e aos tronos
    e, em sua comparação, considerei a riqueza como nada.
    Não a equiparei à pedra mais preciosa,
    pois todo o ouro, à vista dela, não passa de um pouco de areia
    e, comparada com ela, a prata é considerada como lodo.
    Amei-a mais do que a saúde e a beleza
    e decidi tê-la como luz,
    porque o seu brilho jamais se extingue.
    Com ela me vieram todos os bens
    e, pelas suas mãos, riquezas inumeráveis.

    AMBIENTE

    O "Livro da Sabedoria" é o mais recente de todos os livros do Antigo Testamento (aparece durante o séc. I a.C.). O seu autor - um judeu de língua grega, provavelmente nascido e educado na Diáspora (Alexandria?) - exprimindo-se em termos e concepções do mundo helénico, faz o elogio da "sabedoria" israelita, traça o quadro da sorte que espera o "justo" e o "ímpio" no mais-além e descreve (com exemplos tirados da história do Êxodo) as sortes diversas que tiveram os pagãos (idólatras) e os hebreus (fiéis a Jahwéh).
    Estamos em Alexandria (Egipto), num meio fortemente helenizado. As outras culturas - nomeadamente a judaica - são desvalorizadas e hostilizadas. A enorme colónia judaica residente na cidade conhece mesmo, sobretudo nos reinados de Ptolomeu Alexandre (106-88 a.C.) e de Ptolomeu Dionísio (80-52 a.C.), uma dura perseguição. Os sábios helénicos procuram demonstrar, por um lado, a superioridade da cultura grega e, por outro, a incongruência do judaísmo e da sua proposta de vida... Os judeus são encorajados a deixar a sua fé, a "modernizar-se" e a abrir-se aos brilhantes valores da cultura helénica.
    É neste ambiente que o sábio autor do Livro da Sabedoria decide defender os valores da fé e da cultura do seu Povo. O seu objectivo é duplo: dirigindo-se aos seus compatriotas judeus (mergulhados no paganismo, na idolatria, na imoralidade), convida-os a redescobrirem a fé dos pais e os valores judaicos; dirigindo-se aos pagãos, convida-os a constatar o absurdo da idolatria e a aderir a Jahwéh, o verdadeiro e único Deus... Para uns e para outros, o autor pretende deixar este ensinamento fundamental: só Jahwéh garante a verdadeira "sabedoria" e a verdadeira felicidade.
    O texto que nos é proposto integra a segunda parte do livro (cf. Sab 6,1-9,18). Aí, o autor apresenta o "elogio da sabedoria". Este "elogio da sabedoria" pode dividir-se em três pontos... No primeiro (cf. Sab 6,1-21), há uma exortação aos reis no sentido de adquirirem a "sabedoria"; no segundo (cf. Sab 6,22-8,21), há uma descrição da natureza e das propriedades da "sabedoria", aqui apresentada como o valor mais importante entre todos os valores que o homem pode adquirir; no terceiro (cf. Sab 9,1-18), aparece uma longa oração do autor, implorando de Jahwéh a "sabedoria".
    O que é esta "sabedoria" de que aqui se fala? É, fundamentalmente, a capacidade de fazer as escolhas correctas, de tomar as decisões certas, de escolher os valores verdadeiros que conduzem o homem ao êxito, à realização, à felicidade. Na perspectiva dos "sábios" de Israel, esta "sabedoria" vem de Deus e é um dom que Deus oferece a todos os homens que tiverem o coração disponível para o acolher. É preciso, portanto, ter os ouvidos atentos para escutar e o coração disponível para acolher a "sabedoria" que Deus quer oferecer a todos os homens.
    O autor deste "elogio da sabedoria" apresenta-se a si próprio como o rei Salomão (embora o nome do rei nunca seja referido explicitamente). Na realidade, o "Livro da Sabedoria" não vem de Salomão (já vimos que é um texto escrito no séc. I a.C., por um judeu da Diáspora, possivelmente de Alexandria); mas Salomão, o protótipo do rei sábio era, para os israelitas, a pessoa indicada para apresentar a "sabedoria" e para a recomendar a todos os homens. Usando uma ficção literária, o autor coloca, pois, na boca de Salomão este discurso sapiencial.

    MENSAGEM

    Salomão pediu a Deus a "sabedoria" e ela foi-lhe concedida (vers. 7). Há aqui uma alusão discreta ao episódio narrado em 1 Re 3,5-15, que conta como Salomão, ainda um jovem rei inexperiente, se dirigiu a um santuário em Guibeon e pediu a Deus "um coração cheio de entendimento para governar o povo, para discernir entre o bem e o mal" (1 Re 3,9); e Deus, correspondendo a este pedido, deu-lhe "um coração sábio e perspicaz" (1 Re 3,12).
    Para o rei, a "sabedoria" tornou-se o valor mais apreciado, superior ao poder, à riqueza, à saúde, à beleza, a todos os bens terrenos (vers. 8-10a). Ela é a "luz" que indica caminhos e que permite discernir as opções correctas a tomar. Ao contrário dos bens terrenos, ela não se extingue nem perde o brilho (vers. 10b): é um valor duradouro, que vem de Deus e que conduz o homem ao encontro da vida verdadeira, da felicidade perene.
    Contudo, a "sabedoria" não afastou este rei dos outros bens... Pelo contrário, a opção pela "sabedoria" fê-lo encontrar "todos os bens" e "riquezas inumeráveis" (vers. 11), pois a "sabedoria" está na base de todos eles. É ela que lhe permite gozar os bens terrenos com maturidade e equilíbrio, sem obsessão e sem cobiça, colocando-os no seu devido lugar e não deixando que sejam eles a conduzir a sua vida e a ditar as suas opções.

    ACTUALIZAÇÃO

    • A "sabedoria" é um dom de Deus que o homem deve acolher com humildade e disponibilidade. Ela não chega a quem se situa diante de Deus numa atitude de orgulho e de auto-suficiência; ela não atinge quem se fecha em si próprio e constrói uma vida à margem de Deus; ela não encontra lugar no coração e na vida de quem ignora Deus, os seus desafios, as suas propostas. O "sábio" é aquele que, reconhecendo a sua finitude e debilidade, se coloca nas mãos de Deus, escuta as suas propostas, aceita os seus desafios, segue os caminhos que Ele indica. Talvez um dos grandes dramas do homem do século XXI seja o prescindir de Deus e de passar com total indiferença ao lado das propostas de Deus. Dessa forma, construímos com frequência esquemas de egoísmo, de violência, de exploração, de ódio, que desfeiam o mundo e magoam aqueles que caminham ao nosso lado. Em que é que eu aposto: na minha "sabedoria" (que tantas vezes me conduz por caminhos de injustiça, de divisão, de sofrimento, de infelicidade) ou na "sabedoria" de Deus (que sempre me conduz ao encontro da vida plena e da felicidade sem fim)?

    • Todos nós temos determinados valores que dirigem e condicionam as nossas opções, as nossas atitudes, os nossos comportamentos. A uns damos mais importância; a outros damos menos significado... O nosso texto convida-nos a ter cuidado com a forma como hierarquizamos os valores sobre os quais construímos a nossa vida... Há valores efémeros e passageiros (o dinheiro, o poder, o êxito, a moda, o reconhecimento social...) que não podem ser absolutizados. Eles não são maus, por si próprios; não podemos é deixar que eles tomem conta da nossa vida, condicionem todas as nossas opções, nos escravizem de tal modo que nos levem a esquecer outros valores mais importantes e mais duradouros. Os valores efémeros não servem para encher completamente a nossa vida de significado e não nos garantem a vida verdadeira. Têm o seu lugar na nossa existência; mas não podem crescer de tal forma que açambarquem todo o espaço livre no nosso coração e na nossa vida.

    • O "sábio" autor do nosso texto garante-nos que escolher a "sabedoria" não significa prescindir de outros valores mais materiais e efémeros. Por vezes, existe a ideia de que acolher as propostas de Deus e seguir os seus caminhos significa renunciar a tudo aquilo que nos pode tornar felizes e realizados... Não é verdade. Há valores, mesmo efémeros, que são perfeitamente compatíveis com a nossa opção pelos valores de Deus e do Reino. Não se trata de nos fecharmos ao mundo, de renunciarmos definitivamente às coisas belas que o mundo nos pode oferecer e que nos dão segurança e estabilidade; trata-se de darmos prioridade àquilo que é realmente importante e que nos assegura, não momentos efémeros, mas momentos eternos de felicidade e de vida plena.

    SALMO RESPONSORIAL - Salmo 89 (90)

    Refrão 1: Saciai-nos, Senhor, com a vossa bondade
    e exultaremos de alegria.

    Refrão 2: Enchei-nos da vossa misericórdia:
    será ela a nossa alegria.

    Ensinai-nos a contar os nossos dias,
    para chegarmos à sabedoria do coração.
    Voltai, Senhor! Até quando?
    tende piedade dos vossos servos.

    Saciai-nos, desde a manhã, com a vossa bondade,
    para nos alegrarmos e exultarmos todos os dias.
    Compensai em alegria os dias de aflição,
    os anos em que sentimos a desgraça.

    Manifestai a vossa obra aos vossos servos
    e aos seus filhos a vossa majestade.
    Desça sobre nós a graça do Senhor.
    confirmai em nosso favor a obra das nossas mãos.

    LEITURA II - Heb 4,12-13

    Leitura da Epístola aos Hebreus

    A palavra de Deus é viva e eficaz,
    mais cortante que uma espada de dois gumes:
    ela penetra até ao ponto de divisão da alma e do espírito,
    das articulações e medulas,
    e é capaz de discernir os pensamentos e intenções do coração.
    Não há criatura que possa fugir à sua presença:
    tudo está patente e descoberto a seus olhos.
    É a ela que devemos prestar contas.

    AMBIENTE

    Já vimos, no passado domingo, que a Carta aos Hebreus é um sermão destinado a comunidades cristãs instaladas na monotonia e na mediocridade, que se deixaram contaminar pelo desânimo e começaram a ceder à sedução de certas doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos... O objectivo do autor deste "discurso" é estimular a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a viver uma fé mais coerente e empenhada.
    Nesse sentido, o autor apresenta o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência, cuja missão é pôr os crentes em relação com o Pai e inseri-los nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã. Uma vez comprometidos com Cristo, os crentes devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a sua experiência de fé, enfraquecida pela acomodação, pela monotonia e pelo arrefecimento do entusiasmo inicial.
    O texto que nos é proposto está incluído na segunda parte da Carta aos Hebreus (cf. Heb 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta Jesus como o sacerdote fiel e misericordioso que o Pai enviou ao mundo para mudar os corações dos homens e para os aproximar de Deus. Aos crentes pede-se que "acreditem" em Jesus - isto é, que escutem atentamente as propostas que Cristo veio fazer, que as acolham no coração e que as transformem em gestos concretos de vida.
    O texto que nos é proposto é uma espécie de hino a essa Palavra de Deus que Jesus Cristo veio trazer aos homens. O objectivo do autor, com esta reflexão, é levar os crentes a escutar atentamente a Palavra proposta por Jesus.

    MENSAGEM

    A Palavra de Deus transmitida aos homens por Jesus não é um conjunto de frases ocas, vagas, estéreis, que se derramam sobre os homens mas que "entram por um ouvido e saem por outro", e que não têm impacto na vida daqueles que as escutam; mas é uma Palavra viva, actuante, transformadora e eficaz, que uma vez escutada, entra no coração do homem como uma espada afiada e transforma os seus sentimentos, os seus pensamentos, os seus valores, as suas opções, as suas atitudes.
    Ao entrar nos corações, a Palavra de Deus torna-se também o juiz das acções do homem. Aí, no centro onde se formam os sentimentos, onde nascem os pensamentos, onde se definem os valores, onde são feitas as opções (de acordo com a antropologia judaica, é no coração que tudo isto acontece), a Palavra de Deus confronta-se com os desejos secretos do homem, com as suas verdadeiras intenções, com os valores a que o homem dá prioridade, com a sinceridade das posições que o homem assume na sua relação com Deus, com o mundo e com os outros homens... E a Palavra de Deus aprecia, discerne, pesa e pronuncia o seu julgamento sobre o homem.
    A Palavra de Deus, mesmo que pareça frágil e débil, é uma força decisiva que enche a história e que traz ao homem a vida e a salvação.

    ACTUALIZAÇÃO

    • O autor do nosso texto pretende levar os seus interlocutores a escutar e a valorizar a Palavra de Deus que chega aos homens através de Jesus, pois só essa Palavra é salvadora e libertadora; só ela indica ao homem o caminho certo para chegar à vida plena e definitiva. Qual o lugar e o papel que a Palavra de Deus assume na minha vida? Sou capaz de encontrar tempo para escutar a Palavra de Deus, disponibilidade para a discutir e partilhar, vontade de confrontar a minha vida com as suas exigências?

    • A Palavra de Deus é viva, actuante, eficaz e renovadora - diz o nosso texto. Ela deveria ter um impacto positivo e transformador nas nossas vidas, nas nossas famílias, nas nossas comunidades, na sociedade à nossa volta... No entanto, a Palavra de Deus é proclamada diariamente nas nossas liturgias e continuamos a escolher valores errados, a erguer barreiras de separação entre pessoas, a marcar a nossa relação comunitária pela inveja, pelo ciúme, pela discórdia, a perpetuar mecanismos de injustiça, de violência, de exploração, de ódio... Será que a Palavra de Deus, depois de dois mil anos, perdeu a sua eficácia e a sua força transformadora? Não. O que acontece é que escutamos, acolhemos e apreendemos outras "palavras" e passamos com indiferença ao lado da Palavra de Deus. É preciso voltarmos a "escutar" a Palavra de Deus - isto é, a ouvi-la com os nossos ouvidos, a acolhê-la no nosso coração, a deixarmos que ela nos transforme e se expresse em gestos concretos de vida nova. Sem o nosso "sim", a Palavra de Deus não encontra lugar no nosso coração e na nossa vida.

    • A Palavra de Deus ajuda-nos a discernir o bem e o mal e a fazer as opções correctas. Ela ecoa no nosso coração, confronta-nos com as nossas infidelidades, critica os nossos falsos valores, denuncia os nossos esquemas de egoísmo e de comodismo, mostra-nos o sem sentido das nossas opções erradas, grita-nos que é preciso corrigir a nossa rota, desperta a nossa consciência, indica-nos o caminho para Deus. Para que esta Palavra seja eficaz é preciso, contudo, que não nos fechemos nessa atitude de auto-suficiência que nos torna surdos àquilo que põe em causa os nossos esquemas pessoais; mas é preciso que, com humildade e simplicidade, aceitemos questionar-nos, transformarmo-nos, convertermo-nos.

    • A nossa vivência de fé desenrola-se, muitas vezes, à volta de fórmulas de oração repetitivas, de práticas devocionais, de ritos fixos e imutáveis, de tradições cheias de pó, de grandes manifestações que, no entanto, têm pouca profundidade... E a Palavra de Deus é relegada, na experiência de fé de tantos crentes, para um papel muito secundário. É preciso que a Palavra de Deus esteja no centro da nossa experiência de fé e da nossa caminhada existencial. É ela que nos questiona, que nos transforma, que nos indica caminhos, que nos permite discernir a vontade de Deus a nosso respeito.

    ALELUIA - Mt 5,3

    Aleluia. Aleluia.

    Bem-aventurados os pobres em espírito,
    porque deles é o reino dos Céus.

    EVANGELHO - Mc 10,17-30

    Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

    Naquele tempo,
    ia Jesus pôr-Se a caminho,
    quando um homem se aproximou correndo,
    ajoelhou diante d'Ele e Lhe perguntou:
    «Bom Mestre, que hei-de fazer para alcançar a vida eterna?»
    Jesus respondeu:
    «Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão Deus.
    Tu sabes os mandamentos:
    'Não mates; não cometas adultério;
    não roubes; não levantes falso testemunho;
    não cometas fraudes; honra pai e mãe'».
    O homem disse a Jesus:
    «Mestre, tudo isso tenho eu cumprido desde a juventude».
    Jesus olhou para ele com simpatia e respondeu:
    «Falta-te uma coisa: vai vender o que tens,
    dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no Céu.
    Depois, vem e segue-Me».
    Ouvindo estas palavras, anuviou-se-lhe o semblante
    e retirou-se pesaroso,
    porque era muito rico.
    Então Jesus, olhando à volta, disse aos discípulos:
    «Como será difícil para os que têm riquezas
    entrar no reino de Deus!»
    Os discípulos ficaram admirados com estas palavras.
    Mas Jesus afirmou-lhes de novo:
    «Meus filhos, como é difícil entrar no reino de Deus!
    É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha
    do que um rico entrar no reino de Deus».
    Eles admiraram-se ainda mais e diziam uns aos outros:
    «Quem pode então salvar-se?»
    Fitando neles os olhos, Jesus respondeu:
    «Aos homens é impossível, mas não a Deus,
    porque a Deus tudo é possível».
    Pedro começou a dizer-Lhe:
    «Vê como nós deixámos tudo para Te seguir».
    Jesus respondeu:
    «Em verdade vos digo:
    Todo aquele que tenha deixado casa,
    irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras,
    por minha causa e por causa do Evangelho,
    receberá cem vezes mais, já neste mundo,
    em casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras,
    juntamente com perseguições,
    e, no mundo futuro, a vida eterna».

    AMBIENTE

    Depois de deixar "a casa" (cf. Mc 10,10), Jesus continua o seu caminho através da Judeia e da Transjordânia, em direcção a Jericó (cf. Mc 10,46), percorrendo um percurso geográfico que constitui a penúltima etapa da sua viagem para Jerusalém. Contudo, o caminho que Jesus faz com os discípulos é também um caminho espiritual, durante o qual Jesus vai completando a sua catequese aos discípulos sobre as exigências do Reino e as condições para integrar a comunidade messiânica. Desta vez, a questão posta por um homem rico acerca das condições para alcançar a vida eterna dá a Jesus a oportunidade para avisar os discípulos acerca da incompatibilidade entre o Reino e o apego às riquezas.
    Na perspectiva dos teólogos de Israel, as riquezas são uma bênção de Deus (cf. Dt 28,3-8); mas a catequese tradicional também está consciente de que colocar a confiança e a esperança nos bens materiais envenena o coração do homem, torna-o orgulhoso e auto-suficiente e afasta-o de Deus e das suas propostas (cf. Sal 49,7-8; 62,11). Jesus vai retomar a catequese tradicional, mas desta vez na perspectiva do Reino.

    MENSAGEM

    A primeira parte do nosso texto (vers. 17-27) é uma catequese sobre as exigências do Reino e do seguimento de Jesus.
    Um homem ajoelha-se diante de Jesus e pergunta-Lhe o que tem de fazer para "alcançar a vida eterna" (vers. 17). Não se trata, desta vez, de alguém que vem questionar Jesus para O experimentar: a postura do homem, a sua atitude de respeito, denunciam-no como alguém sincero e bem-intencionado, realmente preocupado com essa questão vital que é a vida eterna.
    No Antigo Testamento, a ideia de vida eterna aparece, pela primeira vez, em Dn 12,2 e é retomada noutros textos tardios... Para alguns teólogos da época do judaísmo helenístico, os justos que se mantiverem fiéis a Deus e à Lei não serão condenados ao sheol (onde os espíritos dos mortos levam uma existência obscura, no reino das sombras), mas ressuscitarão para uma vida nova, de alegria e de felicidade sem fim, com Deus (cf. 2 Mac 7,9.14.36). A vida eterna de que falam os teólogos desta época parece já incluir a ideia de imortalidade (cf. Sab 3,4; 15,3). É provavelmente isto que inquieta o tal homem que se encontra com Jesus: o que é necessário fazer para ter acesso a essa vida imortal que Deus reserva aos justos?
    A primeira resposta de Jesus não traz nada de novo e remete o homem para os mandamentos da Torah: "não mates; não cometas adultério; não roubes; não levantes falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe" (vers. 19). De acordo com a catequese feita pelos mestres de Israel, quem vivesse de acordo com os mandamentos da Lei, receberia de Deus a vida eterna. O viver de acordo com as propostas de Deus é, também na perspectiva de Jesus, um primeiro patamar para chegar à vida eterna.
    O homem explica, porém, que desde sempre a sua vida foi vivida em consonância com os mandamentos da Lei (vers. 20). É uma afirmação segura e serena, que o próprio Jesus não contesta. O homem não é um hipócrita, mas um crente religiosamente empenhado e sincero. Não há aqui, por parte deste homem, qualquer sinal de orgulho e de auto-suficiência; mas a sua atitude e as questões que ele põe mostram a sua inquietação, a sua procura, a sua busca da definição do verdadeiro caminho para a vida eterna. Jesus reconhece a sinceridade, a honestidade, a verdade da busca deste homem; por isso, olha para ele "com simpatia" (vers. 21) e resolve convidá-lo a subir a um outro patamar nesse caminho para a vida eterna: convida-o a integrar a comunidade do Reino.
    Ora, esse novo patamar tem um outro grau de exigência... Jesus aponta três requisitos fundamentais que devem ser assumidos por quem quiser integrar a comunidade do Reino: não centrar a própria vida nos bens passageiros deste mundo, assumir a partilha e a solidariedade para com os irmãos mais pobres, seguir o próprio Jesus no seu caminho de amor e de entrega (vers. 21). Apesar de toda a sua boa vontade, o homem não está preparado para a exigência deste caminho e afasta-se triste. Marcos explica que ele estava demasiado preso às suas riquezas e não estava disposto a renunciar a elas (vers. 22). O homem de que se fala nesta cena é um piedoso observante da Lei; mas não tem coragem para renunciar às suas seguranças humanas, aos seus esquemas feitos, aos bens terrenos que lhe escravizam o coração. A sua incapacidade para assumir a lógica do dom, da partilha, do amor, da entrega, tornam-no inapto para o Reino. O Reino é incompatível com o egoísmo, com o fechamento em si próprio, com a lógica do "ter", com a obsessão pelos bens deste mundo.
    A história do homem rico que não está disposto a integrar a comunidade do Reino, pois não está preparado para viver no amor, na partilha, na entrega da própria vida aos irmãos, serve a Jesus para oferecer aos discípulos mais uma catequese sobre o Reino e as suas exigências. O "caminho do Reino" é um caminho de despojamento de si próprio, que tem de ser percorrido no dom da vida, na partilha com os irmãos, na entrega por amor. Ora, quem não é capaz de renunciar aos bens passageiros deste mundo - ao dinheiro, ao sucesso, ao prestígio, às honras, aos privilégios, a tudo isso que prende o homem e o impede de dar-se aos irmãos - não pode integrar a comunidade do Reino. Não se trata apenas de uma dificuldade, mas de uma verdadeira impossibilidade ("é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus" - vers. 25): os bens do mundo impõem ao homem uma lógica de egoísmo, de fechamento, de escravidão que são incompatíveis com a adesão plena ao Reino e aos seus valores. O discípulo que quer integrar a comunidade do Reino deve estar sempre numa atitude radical de partilha, de solidariedade, de doação.
    Marcos propõe-nos, depois, a reacção alarmada, ansiosa, desorientada, dos discípulos face a esta exigência de radicalidade: "quem pode, então, salvar-se?" (vers. 26). Em resposta, Jesus pronuncia palavras de conforto, apresentando o poder de Deus como incomparavelmente maior do que a debilidade humana ("aos homens é impossível, mas não a Deus; porque a Deus tudo é possível" - vers. 27). A acção de Deus - gratuita e misericordiosa - pode mudar o coração do homem e fazê-lo acolher as exigências do Reino. É preciso, no entanto, que o homem esteja disponível para escutar Deus e para se deixar desafiar por Ele.
    Na segunda parte do nosso texto (vers. 28-30) os discípulos, pela voz de Pedro, recordam a Jesus que deixaram tudo para o seguir. A renúncia dos discípulos não é, contudo, uma renúncia que se justifica por si mesma e que tem valor em si mesma... Os discípulos de Jesus não escolhem a pobreza porque a pobreza, em si, é uma coisa boa; nem deixam as pessoas que amam pelo gosto de deixá-las... Quando os discípulos de Jesus renunciam a determinados valores (muitas vezes valores legítimos e importantes), é em vista de um bem maior - o seguimento de Jesus e o anúncio do Evangelho. Jesus confirma a validade desta opção e assegura aos discípulos que o caminho escolhido por eles não é um caminho de perda, de solidão, de morte, mas é um caminho de ganho, de comunhão, de vida.
    Esta opção dos discípulos será sempre incompreendida e recusada pelo mundo. Por isso, os discípulos conhecerão também a perseguição e o sofrimento. As tribulações não são um drama imprevisto e sem sentido: os discípulos devem estar preparados para as enfrentar, pois sabem que terão sempre de viver com a oposição do mundo, enquanto se mantiverem fiéis a Jesus e ao Evangelho.
    Aconteça o que acontecer, os discípulos devem estar conscientes de que a opção pelo Reino e pelos seus valores lhes garantirá uma vida cheia e feliz nesta terra e, no mundo futuro, a vida eterna.

    ACTUALIZAÇÃO

    • O que é preciso fazer para alcançar a vida eterna? Trata-se de uma questão que inquieta todos os crentes e que certamente já pusemos a nós próprios, com estas ou com outras palavras semelhantes. Jesus responde: é preciso, antes de mais, viver de acordo com as propostas de Deus (mandamentos); e é preciso também assumir os valores do Reino e seguir Jesus no caminho do amor a Deus e da entrega aos irmãos. Isto não significa, contudo, que a vida eterna seja algo que o homem conquista, com o seu esforço, ou que resulte dos méritos que o homem adquire ao percorrer um caminho religiosamente correcto. A vida eterna é sempre um dom gratuito de Deus, fruto da sua bondade, da sua misericórdia, do seu amor pelo homem; no entanto, é um dom que o homem aceita, acolhe e com o qual se compromete. Quando o homem vive de acordo com os mandamentos de Deus e segue Jesus, não está a conquistar a vida eterna; está, sim, a responder positivamente à oferta de vida que Deus lhe faz e a reconhecer que o caminho que Deus lhe indica é um caminho de vida e de felicidade.

    • Quando falamos em vida eterna, não estamos a falar apenas na vida que nos espera no céu; mas estamos a falar de uma vida plena de qualidade, de uma vida que leva o homem à sua plena realização, de uma vida de paz e de felicidade. Deus oferece-nos essa vida já neste mundo e convida-nos a acolhê-la e a escolhê-la em cada dia da nossa caminhada nesta terra; no entanto, sabemos que só atingiremos a plenitude da vida quando nos libertarmos da nossa finitude, da nossa debilidade, das limitações que a nossa humanidade nos impõem. A vida eterna é uma realidade que deve marcar cada passo da nossa existência terrena e que atingirá a plenitude na outra vida, no céu.

    • Na perspectiva de Jesus, a vida eterna passa pela adesão a esse Reino que Ele veio anunciar. Jesus, com a sua vida, com as suas propostas, com os seus valores, veio propor aos homens o caminho da vida eterna. Quem quiser "alcançar a vida eterna" tem de olhar para Jesus, aprender com Ele, segui-l'O, fazer da própria vida - como Jesus fez da sua vida - uma escuta atenta das propostas de Deus e um dom de amor aos irmãos. Toda a nossa caminhada, todos os nossos esforços, toda a nossa busca visam alcançar a vida eterna. Muitas vezes, a lógica do mundo sugere que a vida eterna está na acumulação de dinheiro, na concretização dos nossos sonhos de "ter" mais coisas, na conquista de poder, no reconhecimento social, nos privilégios que conquistamos, nos cinco minutos de exposição mediática que a televisão proporciona... Nós, crentes, sabemos, contudo, que os bens deste mundo, embora nos proporcionem bem estar e segurança, não nos oferecem a vida eterna; essa vida eterna que buscamos ansiosamente está nesse caminho de amor, de serviço, de dom da vida que Cristo nos ensinou a percorrer.

    • A história do homem rico, que buscava a vida eterna mas não estava disposto a prescindir da sua riqueza, alerta-nos para a impossibilidade de conjugar a vida eterna com o amor aos bens deste mundo. A riqueza escraviza o coração do homem, absorve todas as suas energias, desenvolve o egoísmo e a cobiça, leva o homem à injustiça, à exploração, à desonestidade, ao abuso dos irmãos... É, portanto, incompatível com o "caminho do Reino", que é um caminho que deve ser percorrido no amor, na solidariedade, no serviço, na partilha, na verdade, no dom da vida aos irmãos. Podemos levar vidas religiosamente correctas, frequentar a Igreja, dar o nosso contributo na comunidade, ocupar lugares significativos na estrutura paroquial; mas, se o nosso coração vive obcecado com os bens deste mundo e fechado ao amor, à partilha, à solidariedade, não podemos fazer parte da comunidade do Reino.

    • Jesus confirma, no final do texto que nos é proposto, a validade desse caminho de renúncia e de desprendimento que os discípulos aceitaram percorrer. Mais: Jesus garante que não se trata de um caminho de fracasso e de perda, mas de um caminho que realiza plenamente os sonhos e as necessidades dos homens que O escolheram. Seguir o "caminho do Reino" não é, portanto, aceitar viver infeliz e sacrificado nesta terra, com a esperança de uma recompensa no mundo que há-de vir; mas é, livre e conscientemente, escolher um caminho de vida plena, de realização, de alegria, de felicidade. O cristão não é um pobre coitado condenado a passar ao lado da vida e da felicidade; mas é uma pessoa que renunciou a certas propostas falíveis e parciais de felicidade, pois sabe que a vida plena está em viver de acordo com os valores eternos propostos por Jesus.

    • Jesus avisa aos discípulos que o "caminho do Reino" é um caminho contra a corrente, que gerará inevitavelmente o ódio do mundo e que se traduzirá em perseguições e incompreensões. É uma realidade que conhecemos bem... Quantas vezes as nossas opções cristãs são criticadas, incompreendidas, apresentadas como realidades incompreensíveis e ultrapassadas por aqueles que representam a ideologia dominante, que fazem a opinião pública, que definem o socialmente correcto... Precisamos, todavia, de estar conscientes de que a perseguição e a incompreensão são realidades inevitáveis, que não podem desviar-nos das opções que fizemos. Para nós, seguidores de Jesus, o que é realmente importante é a certeza de que o "caminho do Reino" é um caminho de vida eterna.

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 28º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas de "Signes d'aujourd'hui")

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
    Ao longo dos dias da semana anterior ao 28º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo... Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa... Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.
    Um homem corre, põe-se de joelhos, questiona. Jesus lança sobre ele um olhar de amizade. E é porque o ama que Jesus é exigente, pedindo-lhe para renunciar a tudo para O seguir. Golpe de teatro: o homem vira-se, o seu rosto está triste. Se este relato ficasse por aí, seria desencorajante, como pensam os apóstolos, testemunhas da cena. Mas uma palavra de esperança pode levar a imaginar que este homem poderá reencontrar o seu sorriso e a sua espontaneidade: "Aos homens é impossível, mas não a Deus, porque a Deus tudo é possível". As exigências que Jesus propõe só podem ser realizadas à força de impulsos do homem, mas com Deus tudo é possível. Se o homem tivesse respondido: "Sozinho, nunca chegarei, Senhor, mas com a tua ajuda, creio que é possível!" Se assim fosse, teríamos nesse dia mais um discípulo, um discípulo feliz!

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.
    Os apóstolos tinham com que ficar desconcertados... e nós com eles! É verdadeiramente necessário abandonar tudo, nada possuir, ser "pobre como Job", ou como Francisco de Assis, para ser discípulo de Cristo? Mas isso é irrealista e impossível! Olhemos um pouco mais de perto! Na primeira parte do diálogo, o jovem comete o mesmo erro dos fariseus. Fica-se pelo "fazer". Para eles, a Lei era a norma suprema e a sua observação escrupulosa, o único meio para obter de Deus a salvação. Religião severa e exigente, sem dúvida, que tinha a sua grandeza. Ora, Jesus convida o homem rico a passar para outro registo. De repente, não se trata de vida eterna a ganhar, mas de seguir Jesus. Como se a vida eterna fosse estar com Jesus! Eis a grande transformação que Jesus vem provocar. Não se trata primeiro de fazer esforços para obedecer a mandamentos, trata-se primeiro de entrar numa relação de amor com Jesus. Mais profundamente ainda, trata-se primeiro de descobrir que Jesus, Ele em primeiro lugar, nos ama. Eis porque a referência de Marcos é fundamental: "Jesus olhou para ele com simpatia (amor)". É este olhar que transforma tudo. Jesus quer fazer compreender ao homem rico que lhe falta o essencial: deixar-se amar em primeiro lugar, descobrir que todos os seus bens materiais nunca poderão preencher esta necessidade vital para todo o homem de ser amado. Senão, é impossível aprender a amar. As riquezas são mesmo um obstáculo ao amor, porque este, para ser verdadeiro, diz ao outro: "Preciso de ti. Sem ti, serei pobre em humanidade". As riquezas do homem impediram-no de ler tudo isto no olhar de Jesus. O homem partiu. Mas Jesus não lhe retirou o seu amor, acompanhou-o sempre com o seu olhar de amor, como o pai do filho pródigo.

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE...
    Qual é o meu tesouro? No princípio desta Semana Missionária, em que queremos anunciar o Evangelho, tomemos a resolução de perguntar em cada dia da semana: qual é o meu tesouro? O que me faz viver? E sejamos verdadeiros na nossa resposta...

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA
    ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA NAS COMUNIDADES DEHONIANAS
    Grupo Dinamizador:
    P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 - 1800-129 LISBOA - Portugal
    Tel. 218540900 - Fax: 218540909
    portugal@dehonianos.org - www.dehonianos.org

     

    https://youtu.be/NeFr_AaNoTw

  • S. Teresa de Jesus, Virgem e Doutora da Igreja

    S. Teresa de Jesus, Virgem e Doutora da Igreja


    15 de Outubro, 2021

    Santa Teresa de Jesus nasceu em Ávila, Espanha, no ano de 1515. Entrou no Carmelo da Incarnação em 1535. Depois de um longo período de tibieza, começou a sua "conversão", com uma intensa vida mística em contato com Cristo, que a levou ao forte desejo de servir a Igreja do seu tempo, dilacerada pela Reforma protestante. Em 1562, fundou o Carmelo de S. José, em Ávila, onde deu início à reforma da Ordem. Seguiram-se diversas fundações de conventos reformados em Castela e na Andaluzia. A reforma estendeu-se também aos conventos carmelitas masculinos, graças à colaboração de S. João da Cruz, seu diretor espiritual, a partir de 1567. No leito de morte declarou-se feliz por morrer "filha da Igreja". Faleceu a 4 de Outubro de 1582. Foi canonizada por Gregório XV, em 1623, e declarada Doutora da Igreja por Paulo VI, em 1970.

    Lectio

    Primeira leitura: Romanos 8, 22-27

    Irmãos: Nós sabemos como toda a criação geme e sofre as dores de parto até ao presente.23Não só ela. Também nós, que possuímos as primícias do Espírito, nós próprios gememos no nosso íntimo, aguardando a adopção filial, a libertação do nosso corpo. 24De facto, foi na esperança que fomos salvos. Ora uma esperança naquilo que se vê não é esperança. Quem é que vai esperar aquilo que já está a ver? 25Mas, se é o que não vemos que esperamos, então é com paciência que o temos de aguardar. 26É assim que também o Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza, pois não sabemos o que havemos de pedir, para rezarmos como deve ser; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis. 27E aquele que examina os corações conhece as intenções do Espírito, porque é de acordo com Deus que o Espírito intercede pelos santos.

    O capítulo 8 da carta aos Romanos foi chamado o capítulo dos contemplativos. Por isso, é muito adequado para iluminar a figura de Teresa de Jesus. Este texto permite-nos verificar a ligação entre a mensagem teresiana e a experiência da oração interior no Espírito Santo. O Espírito Santo é, efetivamente, como que o motor da esperança de toda a criação no coração dos filhos de Deus. De fato, é na vida cristã que se experimenta a salvação alcançada e a esperança da redenção final no corpo e no cosmos. Do Espírito Santo, intérprete dos nossos desejos e necessidades, brota a oração e a intercessão mais profunda. A oração é um dom da amizade divina, que supõe a presença dos Espírito Santo, que nos impele a rezar e a interceder pela salvação de todos e, sobretudo, solicita a empreender um caminho de perfeição e a passar o limiar das diversas moradas do castelo interior, até à fonte viva da vida divina.

    Evangelho: da féria ou do Comum

    Meditatio

    Teresa de Jesus deixou-nos um precioso testemunho da sua caminhada de fé no livro da sua Vida, onde revela uma infância religiosamente precoce, uma juventude vivida na crise, uma recuperação vocacional aos vinte anos, seguida ainda por uma experiência de vida religiosa com altos e baixos, até à "conversão" definitiva, quando já se aproximava dos quarenta anos. É a lenta caminhada de uma história de salvação que, desde os limites do pecado, se desenvolve numa conversão sincera e total, com uma determinada determinação, com uma opção total e definitiva pelo Senhor, que dá azo a uma experiência mística em que Deus opera maravilhas. A vida de Teresa testemunha o processo de transformação da sua pessoa, o desejo de salvação, a efetiva mudança de vida, a graça do Espírito Santo que a penetra e conduz a uma intensa experiência de fé cristã. Nela notamos a graça mística como iluminação interior e como experiência de salvação e de transformação, a presença de Deus, a força da Palavra e dos Sacramentos, a revelação de Cristo Ressuscitado, na sua santa humanidade, a efusão do Espírito Santo e dos seus dons. A experiência da inabitação trinitária, da comunhão total com Cristo esposo, orientada para o serviço da Igreja, meta ideal da santidade cristã, coroou a sua caminhada. Foi um itinerário em que a oração interior, divina amizade com Deus, foi a chave de compreensão. Tudo desembocou na mística do serviço, numa forte unidade de vida vivida e ensinada pela santa, num grande amor pela Igreja, demonstrado concretamente na promoção da santidade da vida e no serviço da vida contemplativa para renovação da Igreja.

    Oratio

    Santa esposa do Salvador, ensinai-nos a contemplar convosco o Lado ferido do Salvador, que nos deixa ver o seu Coração e que nos revela o seu amor. Convosco, encontrarei nessa chaga sagrada um ninho e um refúgio, e uma porta para entrar na arca no tempo das tentações e sobretudo na hora da minha morte. Ámen. (Leão Dehon, OSP 4, p. 359).

    Contemplatio

    Santa Teresa tem o seu lugar entre as almas que, antes das revelações do séc. XVII, fixaram os seus olhares no Coração de Jesus. Ela escrevia ao bispo de Osma, que lhe pedia um método de oração: «Colocareis diante dos vossos olhos, os do corpo e os da alma, a imagem de Jesus crucificado que haveis de considerar atentamente e em pormenor, com todo o recolhimento e amor de que fordes capaz... A chaga do seu lado, pela qual vos deixará ver o seu Coração a descoberto, revelar-vos-á o indizível amor que nos marcou, quando quis que esta chaga sagrada fosse o nosso ninho e o nosso asilo, e que nos servisse de porta para entrarmos na arca no tempo das tentações». Ela tinha recebido esta orientação dos Padres da Igreja e dos santos dos séculos XII e XIII. Uma das suas práticas mais caras era a de se transportar em espírito, à noite, ao tomar o seu repouso, ao jardim da agonia. Meditava sobre as angústias do Salvador, compadecia, unia-se a ele. Não era isto a Hora santa?E o seu coração trespassado pelo dardo inflamado do Serafim, que lhe causava um tão suave martírio, não a fazia pensar sem cessar na chaga de amor do seu Jesus crucificado? (Leão Dehon, OSP 4, p. 358s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "A oração e a vida não consistem em muito sofrer,
    mas em muito amar" (S. Teresa de Jesus).

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    S. Teresa de Jesus, Virgem e Doutora da Igreja (15 Outubro)

  • S. Margarida Maria Alacoque, Virgem

    S. Margarida Maria Alacoque, Virgem


    16 de Outubro, 2021

    Santa Margaria Maria Alacoque nasceu em Autún, França, no ano de 1647. Entrou no mosteiro da Visitação, em Paray-le-Monial, quando tinha 27 anos de idade. Na capela desse mosteiro teve revelações do Sagrado Coração de Jesus, recebendo a missão de divulgar a devoção ao mesmo Sagrado Coração, com o apoio e a ajuda de S. Cláudio de La Colombière. Faleceu em 1690, sendo canonizada por Bento XV, em 1920. S. Margarida Maria é um dos padroeiros da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus, Dehonianos.

    Lectio

    Primeira leitura: Efésios 3, 14-19

    Irmãos: Eu eu dobro os joelhos diante do Pai, 15do qual recebe o nome toda a família, nos céus e na terra: 16que Ele vos conceda, de acordo com a riqueza da sua glória, que sejais cheios de força, pelo seu Espírito, para que se robusteça em vós o homem interior; 17que Cristo, pela fé, habite nos vossos corações; que estejais enraizados e alicerçados no amor, 18para terdes a capacidade de apreender, com todos os santos, qual a largura, o comprimento, a altura e a profundidade... 19a capacidade de conhecer o amor de Cristo, que ultrapassa todo o conhecimento, para que sejais repletos, até receberdes toda a plenitude de Deus.

    Paulo, prisioneiro de Cristo, reafirmara a transcendência e a gratuidade do seu ministério: "A mim, o menor de todos os santos, foi dada a graça de anunciar aos gentios a insondável riqueza de Cristo" (v. 8). Essa gratuidade é visível, não só na sua tardia integração na Igreja, mas sobretudo no fato de este "mistério estar escondido desde séculos em Deus, o criador de todas as coisas" (Ef 3, 9). É algo de transcendente, cuja realidade não se pode verificar apenas através de uma simples investigação racional ou científica, pois se trata de amor por parte de Cristo, um amor gratuito, um amor "ultrapassa todo o conhecimento" (v. 19). A meta de tudo isto é que os cristãos fiquem "repletos, até receberdes toda a plenitude de Deus" (v. 19). Margarida Maria fez experiência desse amor de Cristo, ao contemplar o seu Coração trespassado. E tornou-se apóstola desse amor.

    Evangelho: da féria ou do Comum

    Meditatio

    Santa Margarida Maria escreve no caderno de um dos seus retiros: «Em tudo o que fizer, entrarei no Sagrado Coração de Jesus para aí colher as suas intenções, me unir a ele e pedir a sua ajuda. Depois de cada ação, oferecê-la-ei a este divino Coração para reparar tudo o que aí encontrar de defeituoso, sobretudo nas minhas orações. Quando cometer faltas, depois de as ter punido em mim pela penitência, oferecerei ao Pai Eterno uma das virtudes deste divino Coração para pagar o ultraje que lhe tiver feito. À noite, colocarei neste Coração adorável tudo o que tiver feito durante o dia, a fim de que purifique o que houver de impuro e de imperfeito nas minhas ações, para as tornar dignas de lhe serem apropriadas e de as introduzir no seu divino Coração, deixando-lhe o cuidado de dispor de tudo segundo o seu desejo, não me reservando senão o de o amar e de o contentar». Eis o programa de uma união completa e de toda a jornada. As ações são oferecidas ao Coração de Jesus como tantos atos de amor e de reparação. São-lhe ainda apresentadas depois da sua realização para que as purifique.
    Num outro retiro, escrevia esta resolução: «Esforçar-me-ei, Senhor, por vos submeter tudo o que está em mim, e de fazer o que julgar mais perfeito, mais glorioso para o vosso Sagrado Coração ao qual prometo nada poupar de tudo o que estiver no meu poder, e de nada recusar fazer ou sofrer para o dar a conhecer, amar e glorificar».
    Aliás, sobre o desejo expresso pelo próprio Nosso Senhor, ela já tinha feito, em favor do Sagrado Coração, um testamento ou doação total, sem reserva, e isto por escrito, assinado com o seu sangue, de tudo o que ela pudesse fazer ou sofrer, doação à qual Nosso Senhor respondeu com o dom do seu próprio Coração, expresso por estas palavras: «Constituo-te herdeira do meu Coração e de todos os seus tesouros, para o tempo e para a eternidade, permitindo-te usar deles segundo os teus desejos». Que doação admirável! Como Nosso Senhor responde generosamente ao que se faz por Ele! É bem o que Ele prometeu em S. João (14, 23): «Se alguém me ama, meu Pai amá-lo-á e eu também o amarei e me manifestarei a ele».
    As palavras de Nosso Senhor a Margarida Maria mostram-nos também como a intercessão desta fiel discípula do Sagrado Coração é poderosa para o tempo e para a eternidade...
    Margarida Maria morreu prematuramente vítima do Sagrado Coração. Era necessário, de facto, que ela deixasse a terra para que se pudesse falar das suas revelações. Nada anunciava a proximidade da sua morte. No entanto, no começo do ano de 1690, ela dizia: «Morrerei seguramente este ano para não impedir os grandes frutos que o meu divino Salvador pretende tirar do livro da devoção ao Sagrado Coração de Jesus». O Padre Croiset estava, de facto, ocupado a compor este livro, do qual não tinha falado a ninguém.
    Três meses antes da sua morte, que ela previa, pediu para fazer um retiro de 40 dias para se preparar. Neste retiro, diante do que ela chamava a imensidão da sua malícia, lançou-se no Sagrado Coração. «Sou insolvente, Senhor, diz nas suas notas, vós o sabeis, colocai-me na prisão, consinto nisso desde que seja no vosso Sagrado Coração; e quando lá estiver, conservai-me lá bem cativa, ligada com as cadeias do vosso amor até que vos tenha pagado tudo o que vos devo; e como nunca o poderei, assim desejaria nunca mais sair desta prisão».
    Caiu doente, como o tinha previsto. Repetia que a sua morte era necessária para a glória do Sagrado Coração, e declarava, para admiração de todos, que estava à porta do túmulo. O Coração de Jesus era como sempre o objeto dos seus pensamentos. Aos cuidados que lhe são propostos, prefere, diz, abismar-se no Coração de Jesus. Depois de três dias de uma doença que ninguém conseguia explicar, deu a sua alma a Deus morrendo de amor, segundo a expressão do médico do mosteiro. (Leão Dehon, OSP 4, p. 367s.).

    Oratio

    Viver e morrer no Coração de Jesus, é todo o meu desejo. Não está aí o paraíso de toda a beleza, de toda a virtude, de toda a bondade? Contemplar os sentimentos do Coração de Jesus, admirá-los e unir-se a eles, essa é a ocupação dos eleitos. Quero que seja a minha desde agora. (Leão Dehon, OSP 4, p. 368).

    Contemplatio

    A devoção ao Sagrado Coração arrasta consigo a devoção ao Santíssimo Sacramento. Pode dizer-se que Margarida Maria vivia do Santíssimo Sacramento. Desde a sua mais tenra infância, uma atração extraordinária a levava para o altar. Quando não estava em casa de seus pais, era seguro poderem encontrá-la diante do Sacrário, que ela olhava com amor, mantendo-se lá sem dizer nada, contente de pensar que Nosso Senhor estava lá. Longe de diminuir com os anos, esta atracão crescia cada vez mais. Ela dizia: «Teria aí passado dias e noites sem beber nem comer, e sem saber o que fazer, senão consumir-me como um círio ardente na sua presença, para lhe dar amor por amor. Teria julgado ser a mais feliz do mundo, se tivesse podido passar as noites, sozinha, diante dele». Depois da sua entrada em religião, Margarida Maria deu livre curso ao seu amor pelo hóspede do Sacrário. Encontravam-na sempre ocupada com este divino objeto, com uma paixão tal, que temiam que esta aplicação lhe prejudicasse a saúde. Ela organizava o seu tempo tanto quanto podia, a fim de ter mais momentos livres para ficar na capela, onde a viam numa adoração profunda, com as mãos juntas, sem fazer nenhum movimento. (Leão Dehon, OSP 4, pp. 364).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Quero viver e morrer no Coração de Jesus" (Leão Dehon).

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    S. Margarida Maria Alacoque, Virgem (16 Outubro)

    Tempo Comum - Anos Ímpares - XXVIII Semana - Sábado

    Tempo Comum - Anos Ímpares - XXVIII Semana - Sábado


    16 de Outubro, 2021

    Lectio

    Primeira leitura: Romanos 4, 13.16-18

    Irmãos: não foi em virtude da Lei, mas da justiça obtida pela fé que a Abraão, ou à sua descendência, foi feita a promessa de que havia de receber o mundo em herança. 16Por isso, é da fé que depende a herança. Só assim é que esta é gratuita, de tal modo que a promessa se mantém válida para todos os descendentes: não apenas para aqueles que o são em virtude da Lei, mas também para os que o são em virtude da fé de Abraão, pai de todos nós, 17conforme o que está escrito: Fiz de ti o pai de muitos povos. Pai diante daquele em quem acreditou, o Deus que dá vida aos mortos e chama à existência o que não existe. 18Foi com uma esperança, para além do que se podia esperar, que ele acreditou e assim se tornou pai de muitos povos, conforme o que tinha sido dito: Assim será a tua descendência.

    Depois de ter aludido a Abraão, nosso pai na fé, Paulo desenvolve a ideia sublinhando a diferença entre a lei e a justiça que vem da fé. A promessa de Deus feita a Abraão não depende da lei: «não foi em virtude da Lei, mas da justiça obtida pela fé que a Abraão, ou à sua descendência, foi feita a promessa de que havia de receber o mundo em herança. Por isso, é da fé que depende a herança» (vv. 13.16). Assim fica claro que a promessa de Deus é livre e gratuita, preveniente e incondicionada. Por outro lado, a fé é o único caminho que leva à justiça. Por isso, são filhos de Abraão, não os que vivem de acordo com as exigências da lei, mas os que acolhem o dom da fé. São genuínos herdeiros de Abraão os que aprenderam dele a fé, e não apenas a obediência à lei.
    A fé de Abraão, uma vez que está ligada à promessa divina, pode também ser chamada esperança: «Foi com uma esperança, para além do que se podia esperar, que ele acreditou» (v. 18). Com essa atitude, Abraão acolheu plenamente na perspectiva de Deus, «que dá vida aos mortos e chama à existência o que não existe» (v. 17b). Pela fé, todos podemos tornar-nos destinatários de eventos tão extraordinários, que só a Deus podem ser atribuídos.

    Evangelho: Lucas 12, 8-12

    Naquele tempo disse Jesus aos seus discípulos: 8Todo aquele que se declarar por mim diante dos homens, também o Filho do Homem se declarará por ele diante dos anjos de Deus. 9Aquele, porém, que me tiver negado diante dos homens, será negado diante dos anjos de Deus. 10E a todo aquele que disser uma palavra contra o Filho do Homem, há-de perdoar-se; mas, a quem tiver blasfemado contra o Espírito Santo, jamais se perdoará. 11Quando vos levarem às sinagogas, aos magistrados e às autoridades, não vos preocupeis com o que haveis de dizer em vossa defesa, 12pois o Espírito Santo vos ensinará, no momento próprio, o que deveis dizer.»

    Lucas provavelmente reúne neste texto um conjunto de palavras de Jesus para encorajar os cristãos que enfrentam as perseguições e os desafios do mundo. Também lhes oferece critérios de comportamento. É preciso enfrentar o presente com uma perspectiva escatológica, porque o «hoje» determina a eternidade. Uma vez que «não há outro nome (além do de Jesus) dado aos homens ... para que sejam salvos» (cf. Act 4, 12), a salvação oferecida por Deus depende do reconhecimento público de Jesus.
    Isto parece estar em contradição com o que se diz no versículo seguinte (v. 10). Há que distinguir. Alguns autores pensam que Lucas compreenda a dificuldade que alguns sentem em reconhecer no Jesus terreno o Salvador. Por isso, acha admissível que se «fale contra o Filho do homem»; mas não há perdão para quem blasfemar «contra o Espírito Santo», isto é, quando a liberdade humana recusa aderir à verdade que lhe é interiormente revelada pela graça de Deus. Neste caso, não dar testemunho diante dos homens, torna-se infidelidade e motivo de condenação. Pelo contrário, quando a acção do Espírito é acolhida pelo crente, este pode estar certo do apoio do Espírito no momento em que for chamado a dar testemunho diante dos homens.

    Meditatio

    Paulo continua a insistir na afirmação de que a acção e a generosidade de Deus precedem as nossas obras. Tudo começa com uma promessa de Deus. É o que verificamos na história de Abraão: antes que ele faça qualquer coisa, há uma promessa divina: «Não foi em virtude da Lei, mas da justiça obtida pela fé que a Abraão, ou à sua descendência, foi feita a promessa», escreve Paulo (v. 13). A lei só veio a ser dada quatrocentos e trinta anos depois de Abraão, como afirma o Apóstolo na carta aos Gálatas (3, 17). A primeira condição, portanto, não é observar a lei, mas acolher a promessa com plena fé. Desse modo, deixamos a Deus total liberdade e pomos a nossa vida à sua disposição. Abrir-nos a Deus é uma atitude simples, mas importante.
    No evangelho, Jesus afirma que é preciso confessar a fé, também diante dos homens, para ser recebidos por Deus no céu: «Todo aquele que se declarar por mim diante dos homens, também o Filho do Homem se declarará por ele diante dos anjos de Deus» (v. 8). Mais do que preocupar-nos em adquirir méritos diante de Deus, com as nossas boas obras, havemos de testemunhar decidida e corajosamente a nossa fé em Jesus e em Deus por Jesus Cristo. Mas não devemos precipitar-nos a julgar aqueles que não mostram a sua fé. É o que também lemos no evangelho: «Todo aquele que disser uma palavra contra o Filho do Homem, há-de perdoar-se; mas, a quem tiver blasfemado contra o Espírito Santo, jamais se perdoará» (v. 10). São dois aspectos da fé. Há uma manifestação exterior, mas a fé é fundada sobre uma manifestação interior do Espírito Santo. Pode suceder que uma pessoa encontre dificuldade em professar publicamente a sua fé, em aceitar as manifestações exteriores da fé no Filho do homem, isto é, a fé cristã. Mas não se pode dizer que tal atitude é imperdoável. Imperdoável é resistir ao Espírito Santo, isto é, não aceitar dentro de nós o testemunho de Deus, que nos impele para o seu Filho. A docilidade a Deus prepara e desenvolve em nós a fé. Quanto há esta íntima relação com o Espírito Santo, chega-se à fé. «Quem é dócil a Deus aproxima-se da Luz», (cf. Jo 3, 21). Numa vida fundada na fé, desenvolve-se o fruto do Espírito, e a fé pode chegar ao testemunho heróico, que admiramos nos mártires. Esse testemunho não é obra humana, mas fruto do Espírito, dom de Deus a quem lhe abre o coração de par em par, e se deixa guiar docilmente pelo Espírito Santo.

    Oratio

    Senhor, faz com que aumente em mim a estima pela fé e a docilidade ao Espírito Santo. Faz-me acreditar firmemente que é a tua mão que me conduz, e que nenhum mal me poderá atingir, porque me amas de verdade. Mas faz-me também compreender e aceitar que, ter fé, é também ter dúvidas e incertezas, é fraqueza e medo, é morte que dá vida. Faz-me compreender e aceitar que a fé é um permanente processo de aprender e reaprender o que é amar a Deus, amar o próximo, amar a mim mesmo. Que a minha fé leve calor a quem tem a alma gelada, leve pão a quem tem fome, ofereça um horizonte de esperança a quem vive desesperado. Amen.

    Contemplatio

    O bom Mestre propõe em seguida aos seus discípulos motivos de encorajamento para sofrerem corajosamente as provações e mesmo o martírio, se tal acontecer. Estes encorajamentos constituem ainda hoje a força dos nossos missionários, que vão tão de boamente enfrentar todos os perigos, com o secreto desejo de derramarem o seu sangue pelo Salvador. O primeiro encorajamento que nos dá o bom Mestre é o seu próprio exemplo: «O discípulo, diz, não está acima do Mestre; se me perseguiram, também vos há-de perseguir». Depois do exemplo de Nosso Senhor, diz S. Bernardo, já não há perseguições nem sofrimentos que possam assustar um cristão; é uma honra que Deus lhe faz torná-lo participante do cálice do seu divino Filho. Nosso Senhor acrescenta que não devemos temer, porque a verdade sairá sempre vitoriosa da mentira e da calúnia; e, aliás, se os nossos inimigos podem atingir o nosso corpo, são impotentes contra a nossa alma e não podem separá-la de Deus. E depois a Providência divina vela sobre os seus servos e em particular sobre os apóstolos do Evangelho. Nosso Senhor confessará e glorificará diante de seu Pai os que o tiverem confessado sobre a terra. O último encorajamento e o mais tocante é a alta dignidade dos apóstolos, que são os representantes de Nosso Senhor e outros ele mesmo. Ele vingá-los-á dos seus inimigos como recompensará os que os recebem, os que lhes testemunham respeito e dedicação. (Leão Dehon, OSP 4, p. 268s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje esta palavra:
    «O Espírito Santo vos ensinará o que deveis dizer» (Lc 12, 11).

  • 29º Domingo do Tempo Comum - Ano B

    29º Domingo do Tempo Comum - Ano B


    17 de Outubro, 2021

    ANO B
    29º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    Tema do 29º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia do 29º Domingo do Tempo Comum lembra-nos, mais uma vez, que a lógica de Deus é diferente da lógica do mundo. Convida-nos a prescindir dos nossos projectos pessoais de poder e de grandeza e a fazer da nossa vida um serviço aos irmãos. É no amor e na entrega de quem serve humildemente os irmãos que Deus oferece aos homens a vida eterna e verdadeira.
    A primeira leitura apresenta-nos a figura de um "Servo de Deus", insignificante e desprezado pelos homens, mas através do qual se revela a vida e a salvação de Deus. Lembra-nos que uma vida vivida na simplicidade, na humildade, no sacrifício, na entrega e no dom de si mesmo não é, aos olhos de Deus, uma vida maldita, perdida, fracassada; mas é uma vida fecunda e plenamente realizada, que trará libertação e esperança ao mundo e aos homens.
    No Evangelho, Jesus convida os discípulos a não se deixarem manipular por sonhos pessoais de ambição, de grandeza, de poder e de domínio, mas a fazerem da sua vida um dom de amor e de serviço. Chamados a seguir o Filho do Homem "que não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida", os discípulos devem dar testemunho de uma nova ordem e propor, com o seu exemplo, um mundo livre do poder que escraviza.
    Na segunda leitura, o autor da Carta aos Hebreus fala-nos de um Deus que ama o homem com um amor sem limites e que, por isso, está disposto a assumir a fragilidade dos homens, a descer ao seu nível, a partilhar a sua condição. Ele não Se esconde atrás do seu poder e da sua omnipotência, mas aceita descer ao encontro homens para lhes oferecer o seu amor.

    LEITURA I - Is 53,10-11

    Leitura do Livro de Isaías

    Aprouve ao Senhor esmagar o seu Servo pelo sofrimento.
    Mas, se oferecer a sua vida como vítima de expiação,
    terá uma descendência duradoira, viverá longos dias,
    e a obra do Senhor prosperará em suas mãos.
    Terminados os sofrimentos,
    verá a luz e ficará saciado.
    Pela sua sabedoria, o Justo, meu Servo, justificará a muitos
    e tomará sobre si as suas iniquidades.

    AMBIENTE

    O nosso texto pertence ao "Livro da Consolação" do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). "Deutero-Isaías" é um nome convencional com que os biblistas designam um profeta anónimo da escola de Isaías, que cumpriu a sua missão profética na Babilónia, entre os exilados judeus. Estamos na fase final do Exílio, entre 550 e 539 a.C..
    A missão do Deutero-Isaías é consolar os exilados judeus. Nesse sentido, ele começa por anunciar a iminência da libertação e por comparar a saída da Babilónia ao antigo êxodo, quando Deus libertou o seu Povo da escravidão do Egipto (cf. Is 40-48); depois, anuncia a reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).
    No meio desta proposta "consoladora" aparecem, contudo, quatro textos (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que fogem um tanto a esta temática. São cânticos que falam de uma personagem misteriosa e enigmática, que os biblistas designam como o "Servo de Jahwéh": ele é um predilecto de Jahwéh, a quem Deus chamou, a quem confiou uma missão profética e a quem enviou aos homens de todo o mundo; a sua missão cumpre-se no sofrimento e numa entrega incondicional à Palavra; o sofrimento do profeta tem, contudo, um valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão para o pecado do Povo; Deus aprecia o sacrifício deste "Servo" e recompensá-lo-á, fazendo-o triunfar diante dos seus detractores e adversários.
    Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma do profeta que sofre por causa da Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho da Palavra no ambiente hostil do Exílio? É um profeta desconhecido? É uma figura colectiva, que representa o Povo exilado, humilhado, esmagado, mas que continua a dar testemunho de Deus no meio das outras nações? É uma figura representativa, que une a recordação de personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras míticas, de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não sabemos; no entanto, a figura apresentada nesses poemas vai receber uma outra iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida, do seu destino.
    O texto que nos é proposto é parte do quarto cântico do "servo de Jahwéh". Nele, porém, o "Servo" não fala; quem proclama este "cântico" parece ser um coro, que percebeu, no aparente sem sentido da vida do "Servo", um profundo significado à luz da lógica de Deus.

    MENSAGEM

    A primeira parte do nosso texto (vers. 2-3) apresenta-nos o "Servo de Jahwéh". Não se diz quem é ele, quais são os seus pais, qual é a sua terra. É uma figura anónima, sem história, obscura, ignorada, insignificante à luz dos critérios humanos. Recorrendo à imagem vegetal, o profeta compara-o a uma raiz crescida no deserto, marcada pela aridez do ambiente circundante, sem beleza e sem características que atraiam o olhar ou a atenção dos homens (vers. 2). Mais: é uma figura desprezada e abandonada pelos homens, que vêem o seu sofrimento como um castigo de Deus e que tapam o rosto diante dele para não se contaminarem (vers. 3). Numa época em que o sofrimento é sempre visto como castigo pelo pecado, o notório sofrimento desse "Servo" devia aparecer, aos olhos dos seus concidadãos, como o castigo de Deus para faltas particularmente graves...
    À luz dos critérios de avaliação usados pelos homens, o "Servo" é um fracassado, um vencido, um ser trágico, abandonado por Deus e desprezado pelos homens. Seguramente, ele nunca será contado entre os grandes, os vencedores, aqueles que têm um papel preponderante na construção do mundo e da história.
    À luz da lógica de Deus, porém, a existência do "Servo" não é uma existência insignificante, perdida, sem sentido... O sofrimento que o atingiu ao longo de toda a existência não é num castigo de Deus por causa dos seus pecados pessoais, mas um sacrifício de reparação que justificará os pecados de muitos. A palavra "reparação" aqui utilizada pelo Deutero-Isaías é um termo cúltico por excelência. Refere-se a um ritual sacrificial através do qual o crente vétero-testamentário oferecia um animal em sacrifício e, por essa oferta, alcançava de Deus o perdão para os seus pecados. Ao dizer que o sofrimento do "Servo" é um sacrifício de reparação, o profeta está a dizer que esse sofrimento não é, nem um castigo, nem uma inutilidade; mas é um sofrimento que servirá para eliminar o pecado e para gerar vida nova para toda a comunidade do Povo de Deus (os muitos de que fala o texto). Ao abençoar o seu "Servo", ao dar-lhe "uma posteridade duradoura", uma "vida longa" (vers. 10) e a possibilidade de "ver a luz" (vers. 11), Deus garante a verdade e a autenticidade da vida do "Servo".
    Dito por outras palavras: o autor deste texto está convencido de que uma vida vivida na simplicidade, na humildade, no sacrifício, na entrega e no dom de si mesmo não é, aos olhos de Deus, uma vida maldita, perdida, fracassada; mas é uma vida fecunda e plenamente realizada, que trará libertação, verdade, esperança e amor ao mundo e aos homens.
    Os primeiros cristãos, impressionados pela beleza e pela profundidade deste texto, utilizaram-no frequentemente para procurar compreender a figura de Jesus, que "morreu pela salvação do povo". Em Jesus, esta enigmática figura do "Servo de Jahwéh" alcançou o seu pleno significado.

    ACTUALIZAÇÃO

    • O nosso texto mostra, uma vez mais, como os valores de Deus e os valores dos homens são diferentes. Na lógica dos homens, os vencedores são aqueles que tomam o mundo de assalto com o seu poder, com o seu dinheiro, com a sua ânsia de triunfo e de domínio, com a sua capacidade de impor as suas ideias ou a sua visão do mundo; são aqueles impressionam pela forma como vestem, pela sua beleza, pela sua inteligência, pelas suas brilhantes qualidades humanas... Na lógica de Deus, os vencedores são aqueles que, embora vivendo no esquecimento, na humildade, na simplicidade, sabem fazer da própria vida um dom de amor aos irmãos; são aqueles que, com as suas atitudes de serviço e de entrega, trazem ao mundo uma mais valia de vida, de libertação e de esperança. Qual destes dois modelos faz mais sentido para mim? Quando, no dia a dia, tenho de estabelecer as minhas prioridades e de fazer as minhas escolhas, deixo-me conduzir pela lógica de Deus ou pela lógica dos homens? Quem são as pessoas que eu admiro, que eu tenho como modelos, que me impressionam?

    • Onde está Deus? Onde podemos encontrar o seu rosto, as suas propostas, os seus apelos e desafios? Apresentando-nos a figura desse "Servo" insignificante e desprezado pelos homens, mas através do qual se revela a vida e a salvação de Deus, o nosso texto lembra-nos que Deus, seguindo a sua lógica muito própria vem, tantas vezes, ao nosso encontro na pobreza, na pequenez, na simplicidade, na fragilidade, na debilidade... Conscientes desta realidade, poderemos perceber a presença de Deus a nosso lado nos pequenos gestos que todos os dias testemunhamos e que nos dão esperança, nas coisas simples e banais que nos enchem o coração de paz, nas pessoas humildes que o mundo despreza e marginaliza, mas que são capazes de gestos impressionantes de serviço, de partilha, de doação, de entrega... Não nos deixemos enganar: Deus não está naquilo que é brilhante, sedutor, majestoso, espampanante; Deus está na simplicidade do amor que se faz dom, serviço, entrega humilde aos irmãos.

    • Qual o sentido do sofrimento? Porque é que há tantas pessoas boas, honestas, justas, generosas, que atravessam a vida mergulhadas na dor e no sofrimento? Trata-se de uma pergunta que fazemos frequentemente e que o autor do quarto cântico do "Servo" também punha a si próprio. A resposta que ele encontra é a seguinte: o sofrimento do justo não se perde; através dele, os pecados da comunidade são expiados e Deus dará vida e salvação ao seu Povo. Trata-se, sem dúvida, de uma resposta incompleta, parcial, não totalmente satisfatória; mas encontra-se já nesta resposta a convicção de que, nos misteriosos caminhos de Deus, o sofrimento pode ser uma dinâmica geradora de vida nova. Jesus Cristo demonstrará, com a sua paixão, morte e ressurreição, a verdade desta afirmação.

    SALMO RESPONSORIAL - Salmo 32 (33)

    Refrão: Desça sobre nós a vossa misericórdia,
    porque em Vós esperamos, Senhor.

    A palavra do Senhor é recta,
    da fidelidade nascem as suas obras.
    Ele ama a justiça e a rectidão:
    a terra está cheia da bondade do senhor.

    Os olhos do Senhor estão voltados para os que O temem,
    para os que esperam na sua bondade,
    para libertar da morte as suas almas
    e os alimentar no tempo da fome.

    A nossa alma espera o Senhor:
    Ele é o nosso amparo e protector.
    Venha sobre nós a vossa bondade,
    porque em Vós esperamos, Senhor.

    LEITURA II - Heb 4,14-16

    Leitura da Epístola aos Hebreus

    Irmãos:
    Tendo nós um sumo sacerdote que penetrou os Céus,
    Jesus, Filho de Deus,
    permaneçamos firmes na profissão da nossa fé.
    Na verdade, nós não temos um sumo sacerdote
    incapaz de se compadecer das nossas fraquezas.
    Pelo contrário, Ele mesmo foi provado em tudo,
    à nossa semelhança, excepto no pecado.
    Vamos, portanto, cheios de confiança ao trono da graça,
    a fim de alcançarmos misericórdia
    e obtermos a graça de um auxílio oportuno.

    AMBIENTE

    Já vimos, nos domingos precedentes, que a Carta aos Hebreus se destina a comunidades cristãs em situação difícil, expostas a tribulações várias e que, por isso mesmo, estão fragilizadas, cansadas e desalentadas. Os crentes que compõem essas comunidades necessitam urgentemente de redescobrir o seu entusiasmo inicial, de revitalizar o seu compromisso com Cristo e de apostar numa fé mais coerente e mais empenhada.
    Nesse sentido, o autor da "carta" apresenta-lhes o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência, cuja missão é pôr os crentes em relação com o Pai e inseri-los nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã. Uma vez comprometidos com Cristo, os crentes devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a sua experiência de fé, enfraquecida pela hostilidade do ambiente, pela acomodação, pela monotonia e pelo arrefecimento do entusiasmo inicial.
    O texto que nos é proposto está incluído na segunda parte da Carta aos Hebreus (cf. Heb 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta Jesus como o sacerdote fiel e misericordioso que o Pai enviou ao mundo para mudar os corações dos homens e para os aproximar de Deus. Aos crentes pede-se que "acreditem" em Jesus - isto é, que escutem atentamente as propostas que Cristo veio fazer, que as acolham no coração e que as transformem em gestos concretos de vida.

    MENSAGEM

    Jesus é, para todos os crentes, o grande sumo-sacerdote que "atravessou os céus" para alcançar misericórdia para todos os crentes (vers. 14). A expressão "atravessou os céus" refere-se, naturalmente, à realidade da incarnação: Jesus, o Filho de Deus, veio ao encontro dos homens como sumo-sacerdote, a fim de eliminar o pecado que impedia a comunhão entre os homens e Deus e levar os homens ao encontro de Deus. Aqui evoca-se o esforço de Deus, através do seu Filho, no sentido de refazer uma comunidade de vida com os homens e de os reconduzir ao encontro da vida eterna e verdadeira.
    Diante dessa acção incrível de Deus, fruto do seu amor pelo homem, os crentes devem responder com a fé - isto é, com a aceitação incondicional da proposta de Jesus ("conservemos firme a fé que professamos"). Aderir à proposta de Jesus é reentrar na comunhão com Deus, assumir-se como família de Deus, receber de Deus vida em abundância.
    Apesar de ser Filho de Deus, Jesus, o sumo-sacerdote, não é, no entanto, um ser celestial estranho, incapaz de perceber os crentes na sua dramática luta de todos os dias, na sua fragilidade face à perseguição, na sua dificuldade em vencer o confronto com o egoísmo, a acomodação, a preguiça, a monotonia... Ele próprio foi submetido à mesma prova, conheceu a mordedura das mesmas tentações, experimentou as mesmas dificuldades. No entanto, Ele soube sempre manter-Se fiel a Deus e aos seus projectos, mostrando-nos que também nós podemos viver na fidelidade a Deus e às suas propostas (vers. 15).
    Nós, os seguidores de Jesus, não estamos numa situação desesperada, apesar das nossas falhas e incoerências. Podemos e devemos aceitar a proposta de Jesus e dirigir-nos a Deus, na certeza de que seremos acolhidos por Ele como filhos muito amados. Graças a Jesus, o sumo-sacerdote que veio ao nosso encontro, que experimentou e entendeu a nossa fragilidade, que restabeleceu a comunhão entre nós e Deus, que nos leva ao encontro de Deus e que nos garante a sua misericórdia, estamos agora numa nova situação de graça e de liberdade. Podemos, com tranquilidade e confiança, sem qualquer medo, aproximar-nos desse "trono da graça" de onde brota a vida eterna e verdadeira. Esta certeza deve ajudar-nos e dar-nos esperança nos momentos mais dramáticos da nossa caminhada pela história (vers. 16).

    ACTUALIZAÇÃO

    • Em total consonância com as outras leituras deste domingo, o autor da Carta aos Hebreus fala-nos de um Deus que ama o homem com um amor sem limites e que, por isso, está disposto a assumir a fragilidade dos homens, a descer ao seu nível, a partilhar a sua condição. Ele não se esconde atrás do seu poder, da sua autoridade, da sua importância, da sua omnipotência; Ele não tem medo de perder a sua dignidade ou as suas prerrogativas divinas quando assume a pobreza, a fragilidade, a debilidade dos homens... Na lógica de Deus, o que é mais importante não é aquele que protege a sua autoridade e a sua importância através de barreiras intransponíveis, mas é aquele que é capaz de descer ao encontro dos últimos, dos desclassificados, dos marginalizados, dos sofredores, para lhes oferecer o seu amor. É esta a lógica de Deus - lógica que somos chamados a compreender, a assumir e a testemunhar.

    • Os seguidores de Cristo são, naturalmente, convidados, a assumir o seu exemplo... Assim como Cristo, por amor, vestiu a nossa fragilidade e veio ao nosso encontro, também nós devemos - despindo-nos do nosso egoísmo, da nossa acomodação, da nossa preguiça, da nossa indiferença - ir ao encontro dos nossos irmãos, vestir as suas dores e fragilidades, fazer-nos solidários com eles, partilhar os seus dramas, lágrimas, sofrimentos, alegrias e esperanças. Não podemos, do alto da nossa situação cómoda, limpa, arrumada, decidir que não temos nada a ver com o sofrimento do mundo ou com a carência que aflige a vida de um nosso irmão. Somos sempre responsáveis pelos irmãos que connosco partilham os caminhos deste mundo, mesmo quando não os conhecemos pessoalmente ou mesmo que deles estejamos separados por fronteiras geográficas, históricas, étnicas ou outras.

    • Ao assegurar-nos que nada temos a temer pois Deus ama-nos, quer integrar-nos na sua família e oferecer-nos vida em abundância, o nosso texto convida-nos a encarar a vida e os seus caminhos com serenidade e confiança. Os cristãos são pessoas serenas e com o coração em paz. Estão conscientes de que as suas fragilidades e debilidades não os afastam, nunca, de Deus e do seu amor.

    ALELUIA - Mc 10,45

    Aleluia. Aleluia.

    O Filho do homem veio para servir
    e dar a vida pela redenção de todos.

    EVANGELHO - Mc 10,35-45

    Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

    Naquele tempo,
    Tiago e João, filhos de Zebedeu,
    aproximaram-se de Jesus e disseram-Lhe:
    «Mestre, nós queremos que nos faças o que Te vamos pedir».
    Jesus respondeu-lhes:
    «Que quereis que vos faça?»
    Eles responderam:
    «Concede-nos que, na tua glória,
    nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda».
    Disse-lhes Jesus:
    «Não sabeis o que pedis.
    Podeis beber o cálice que Eu vou beber
    e receber o baptismo com que Eu vou ser baptizado?»
    Eles responderam-Lhe: «Podemos».
    Então Jesus disse-lhes:
    «Bebereis o cálice que Eu vou beber
    e sereis baptizados com o baptismo
    com que Eu vou ser baptizado.
    Mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda
    não Me pertence a Mim concedê-lo;
    é para aqueles a quem está reservado».
    Os outros dez, ouvindo isto,
    começaram a indignar-se contra Tiago e João.
    Jesus chamou-os e disse-lhes:
    «Sabeis que os que são considerados como chefes das nações
    exercem domínio sobre elas
    e os grandes fazem sentir sobre elas o seu poder.
    Não deve ser assim entre vós:
    Quem entre vós quiser tornar-se grande,
    será vosso servo,
    e quem quiser entre vós ser o primeiro,
    será escravo de todos;
    porque o Filho do homem não veio para ser servido,
    mas para servir
    e dar a vida pela redenção de todos».

    AMBIENTE

    Continuamos a percorrer, com Jesus e com os discípulos, o caminho para Jerusalém. Marcos observa que, nesta fase, Jesus vai à frente e os discípulos seguem-n'O "cheios de temor" (cf. Mc 10,32). Haverá aqui alguma má vontade dos discípulos, por causa das últimas polémicas e das exigências radicais de Jesus? Este "temor" resultará do facto de Jesus se aproximar do seu destino final, em Jerusalém, destino que o grupo não aprova? Seja como for, Jesus continua a sua catequese e, mais uma vez (é a terceira, no curto espaço de poucos dias), lembra aos discípulos que, em Jerusalém, vai ser entregue nas mãos dos líderes judaicos e vai cumprir o seu destino de cruz (cf. Mc 10,33-34). Desta vez, não há qualquer reacção dos discípulos.
    Já observámos, no passado domingo, que o caminho percorrido por Jesus e pelos discípulos é, além de um caminho geográfico, também um caminho espiritual. Durante esse caminho, Jesus vai completando a sua catequese aos discípulos sobre as exigências do Reino e as condições para integrar a comunidade messiânica. A resposta dos discípulos às propostas que Jesus lhes vai fazendo nunca é demasiado entusiasta.
    O texto que nos é proposto desta vez demonstra que os discípulos continuam sem perceber - ou sem querer perceber - a lógica do Reino. Eles ainda continuam a raciocinar em termos de poder, de autoridade, de grandeza e vêem na proposta do Reino apenas uma oportunidade de realizar os seus sonhos humanos.

    MENSAGEM

    Na primeira parte do nosso texto (vers. 35-40), apresenta-se a pretensão de Tiago e de João, os filhos de Zebedeu, no sentido de se sentarem, no Reino que vai ser instaurado, "um à direita e outro à esquerda" de Jesus. A questão nem sequer é apresentada como um pedido respeitoso; mas parece mais uma reivindicação de quem se sente com direito inquestionável a um privilégio. Certamente Tiago e João imaginam o Reino que Jesus veio propor de acordo com Dn 7,13-14 e querem assegurar nesse Reino poderoso e glorioso, desde logo, lugares de honra ao lado de Jesus. O facto mostra como Tiago e João, mesmo depois de toda a catequese que receberam durante o caminho para Jerusalém, ainda não entenderam nada da lógica do Reino e ainda continuam a reflectir e a sentir de acordo com a lógica do mundo. Para eles, o que é importante é a realização dos seus sonhos pessoais de autoridade, de poder e de grandeza.
    Uma vez mais Jesus vê-se obrigado a esclarecer as coisas. Em primeiro lugar, Jesus avisa os discípulos de que, para se sentarem à mesa do Reino, devem estar dispostos a "beber o cálice" que Ele vai beber e a "receber o baptismo" que Ele vai receber. O "cálice" indica, no contexto bíblico, o destino de uma pessoa; ora, "beber o mesmo cálice" de Jesus significa partilhar esse destino de entrega e de dom da vida que Jesus vai cumprir. O "receber o mesmo baptismo" evoca a participação e imersão na paixão e morte de Jesus (cf. Rom 6,3-4; Col 2,12). Para fazer parte da comunidade do Reino é preciso, portanto, que os discípulos estejam dispostos a percorrer, com Jesus, o caminho do sofrimento, da entrega, do dom da vida até à morte. Apesar de Tiago e João manifestarem, com toda a sinceridade, a sua disponibilidade para percorrer o caminho do dom da vida, Jesus não lhes garante uma resposta positiva à sua pretensão... Jesus evita associar o cumprimento da missão e a recompensa, pois o discípulo não pode seguir determinado caminho ou embarcar em determinado projecto por cálculo ou por interesse; de acordo com a lógica do Reino, o discípulo é chamado a seguir Jesus com total gratuidade, sem esperar nada em troca, acolhendo sempre como graças não merecidas os dons de Deus.
    Na segunda parte do nosso texto (vers. 41-45), temos a reacção dos discípulos à pretensão dos dois irmãos e uma catequese de Jesus sobre o serviço.
    A reacção indignada dos outros discípulos ao pedido de Tiago e de João indica que todos eles tinham as mesmas pretensões. O pedido de Tiago e de João a Jesus aparece-lhes, portanto, como uma "jogada de antecipação" que ameaça as secretas ambições que todos eles guardavam no coração.
    Jesus aproveita a circunstância para reiterar o seu ensinamento e para reafirmar a lógica do Reino. Começa por recordar-lhes o modelo dos "governantes das nações" e dos grandes do mundo (vers. 42): eles afirmam a sua autoridade absoluta, dominam os povos pela força e submetem-nos, exigem honras, privilégios e títulos, promovem-se à custa da comunidade, exercem o poder de uma forma arbitrária... Ora, este esquema não pode servir de modelo para a comunidade do Reino. A comunidade do Reino assenta sobre a lei do amor e do serviço. Os seus membros devem sentir-se "servos" dos irmãos, apostados em servir com humildade e simplicidade, sem qualquer pretensão de mandar ou de dominar. Mesmo aqueles que são designados para presidir à comunidade devem exercer a sua autoridade num verdadeiro espírito de serviço, sentindo-se servos de todos. Excluindo do seu universo qualquer ambição de poder e de domínio, os membros da comunidade do Reino darão testemunho de um mundo novo, regido por novos valores; e ensinarão os homens que com eles se cruzarem nos caminhos da vida a serem verdadeiramente livres e felizes.
    Como modelo desta nova atitude, Jesus propõe-Se a Si próprio: Ele apresenta-Se como "o Filho do Homem que não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por todos" (vers. 45). De facto, toda a vida de Jesus pode ser entendida em chave de amor e serviço. Desde o primeiro instante da incarnação, até ao último momento da sua caminhada nesta terra, Ele pôs-se ao serviço do projecto do Pai e fez da sua vida um dom de amor aos homens. Ele nunca Se deixou seduzir por projectos pessoais de ambição, de poder, de domínio; mas apenas quis entregar toda a sua vida ao serviço dos homens, a fim de que os homens pudessem encontrar a vida plena e verdadeira.
    O fruto da entrega de Jesus é o "resgate" ("lytron") da humanidade. A palavra aqui usada indica o "preço" pago para resgatar um escravo ou um prisioneiro. Atendendo ao contexto, devemos pensar que o resgate diz respeito à situação de escravidão e de opressão a que a humanidade está submetida. Ao dar a sua vida (até à última gota de sangue) para propor um mundo livre da ambição, do egoísmo, do poder que escraviza, Jesus pagou o "preço" da nossa libertação. Com Ele e por Ele nasce, portanto, uma comunidade de "servos", que são testemunhas no mundo de uma ordem nova - a ordem do Reino.

    ACTUALIZAÇÃO

    • No centro deste episódio está Jesus e o modelo que Ele propõe, com o exemplo da sua vida. A frase "o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por todos" (Mc 10,45) resume admiravelmente a existência humana de Jesus... Desde o primeiro instante, Ele recusou as tentações da ambição, do poder, da grandeza, dos aplausos das multidões; desde o primeiro instante, Ele fez da sua vida um serviço aos pobres, aos desclassificados, aos pecadores, aos marginalizados, aos últimos. O ponto culminante dessa vida de doação e de serviço foi a morte na cruz - expressão máxima e total do seu amor aos homens. É preciso que tenhamos a consciência de que este valor do serviço não é um elemento acidental ou acessório, mas um elemento essencial na vida e na proposta de Jesus... Ele veio ao mundo para servir e colocou o serviço simples e humilde no centro da sua vida e do seu projecto. Trata-se de algo que não pode ser ignorado e que tem de estar no centro da experiência cristã. Nós, seguidores de Jesus, devemos estar plenamente conscientes desta realidade.

    • O episódio que nos é hoje proposto como Evangelho mostra, contudo, a dificuldade que os discípulos têm em entender e acolher a proposta de Jesus. Para Tiago, para João e para os outros discípulos, o que parece contar é a satisfação dos próprios sonhos pessoais de grandeza, de ambição, de poder, de domínio. Não os preocupa fazer da vida um serviço simples e humilde a Deus e aos irmãos; preocupa-os ocupar os primeiros lugares, os lugares de honra... Jesus, de forma simples e directa, avisa-os de que a comunidade do Reino não pode funcionar segundo os modelos do mundo. Aqui não há meio-termo: quem não for capaz de renunciar aos esquemas de egoísmo, de ambição, de domínio, para fazer da própria vida um serviço e um dom de amor, não pode ser discípulo desse Jesus que veio para servir e para dar a vida.

    • Ao apresentar as coisas desta forma, o nosso texto convida-nos a repensar a nossa forma de nos situarmos, quer na família, quer na escola, quer no trabalho, quer na sociedade. A instrução de Jesus aos discípulos que o Evangelho deste domingo nos apresenta é uma denúncia dos jogos de poder, das tentativas de domínio sobre aqueles que vivem e caminham a nosso lado, dos sonhos de grandeza, das manobras patéticas para conquistar honras e privilégios, da ânsia de protagonismo, da busca desenfreada de títulos, da caça às posições de prestígio... O cristão tem, absolutamente, de dar testemunho de uma ordem nova no seu espaço familiar, colocando-se numa atitude de serviço e não numa atitude de imposição e de exigência; o cristão tem de dar testemunho de uma nova ordem no seu espaço laboral, evitando qualquer atitude de injustiça ou de prepotência sobre aqueles que dirige e coordena; o cristão tem sempre de encarar a autoridade que lhe é confiada como um serviço, cumprido na busca atenta e coerente do bem comum...

    • Na comunidade cristã encontramos também, com muita frequência, a tentação de nos organizarmos de acordo com princípios de poder, de autoridade, de predomínio, à boa maneira do mundo. Sabemos, pela história, que sempre que a Igreja tentou esses caminhos, afastou-se da sua missão, deu um testemunho pouco credível e tornou-se escândalo para tantos homens e mulheres bem intencionados... Por outro lado, testemunhamos todos os dias, nas nossas comunidades cristãs, como os comportamentos prepotentes criam divisões, rancores, invejas, afastamentos... Que não restem dúvidas: a autoridade que não é amor e serviço é incompatível com a dinâmica do Reino. Nós, os seguidores de Jesus, não podemos, de forma alguma, pactuar com a lógica do mundo; e uma Igreja que se organiza e estrutura tendo em conta os esquemas do mundo não é a Igreja de Jesus.

    • Na nossa sociedade, os primeiros são os que têm dinheiro, os que têm poder, os que frequentam as festas badaladas nas revistas da sociedade, os que vestem segundo as exigências da moda, os que têm sucesso profissional, os que sabem colar-se aos valores politicamente correctos... E na comunidade cristã? Quem são os primeiros? As palavras de Jesus não deixam qualquer dúvida: "quem quiser ser o primeiro, será o último de todos e o servo de todos". Na comunidade cristã, a única grandeza é a grandeza de quem, com humildade e simplicidade, faz da própria vida um serviço aos irmãos. Na comunidade cristã não há donos, nem grupos privilegiados, nem pessoas mais importantes do que as outras, nem distinções baseadas no dinheiro, na beleza, na cultura, na posição social... Na comunidade cristã há irmãos iguais, a quem a comunidade confia serviços diversos em vista do bem de todos. Aquilo que nos deve mover é a vontade de servir, de partilhar com os irmãos os dons que Deus nos concedeu.

    • A atitude de serviço que Jesus pede aos seus discípulos deve manifestar-se, de forma especial, no acolhimento dos pobres, dos débeis, dos humildes, dos marginalizados, dos sem direitos, daqueles que não nos trazem o reconhecimento público, daqueles que não podem retribuir-nos... Seremos capazes de acolher e de amar os que levam uma vida pouco exemplar, os marginalizados, os estrangeiros, os doentes incuráveis, os idosos, os difíceis, os que ninguém quer e ninguém ama?

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 29º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas de "Signes d'aujourd'hui")

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
    Ao longo dos dias da semana anterior ao 29º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo... Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa... Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.
    É normal que toda a pessoa procure ser reconhecida; a sua dignidade depende disso. Mas será necessário, para ser reconhecido, procurar passar à frente dos outros, sem qualquer escrúpulo? Que cada um tome o seu lugar, mas não reclame o primeiro. Jesus não vem dar conselhos, começa por oferecer o seu testemunho. Ele, que era de condição divina, tomou o lugar de escravo. Deus elevou-O e deu-Lhe um Nome que ultrapassa todo o nome. Jesus não prega o abaixamento pelo abaixamento. Quem escolhe o serviço é elevado por Deus ao lugar de "grande", Deus dá o primeiro lugar a quem escolheu o último. É Deus que altera as situações que o homem, na sua liberdade, escolhe para ser verdadeiro cidadão do Reino de Deus.

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.
    A tentação dos discípulos é recorrente: quem é o maior? Eles pedem a Jesus para se sentarem um à direita e outro à esquerda na sua glória! A glória de Jesus, para Tiago e João, só podia ser a glória temporal do Messias. Eles pedem-Lhe para lhes dar os melhores ministérios no futuro governo! Mas Jesus pensa noutra glória: o cálice da Paixão, depois de ter mergulhado no baptismo da sua morte. É evidente que os dois discípulos não podiam compreender isso. O trono de Jesus é a sua cruz. Na cruz raiará em supremo grau o amor do Pai por todos os homens. Na cruz, Jesus está rodeado por dois ladrões, um à direita e outro à esquerda. Eles simbolizam a humanidade, ao mesmo tempo mergulhada nas trevas e acolhedora da luz. É toda a humanidade que é chamada a entrar no Reino, a partilhar a glória do Rei: a parte da humanidade que reconhece Jesus e a parte que O rejeita. Deus quer que todos os homens se salvem. Jesus cumpriu perfeitamente a vontade do seu Pai: veio para servir e dar a vida pela humanidade! Cabe aos discípulos, a nós também seus discípulos, serem também servidores da salvação para todos os homens!

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE...
    Como servir? Este Dia Mundial das Missões recorda-nos a nossa vocação a sermos servidores do Evangelho... Concretamente, como fazer passar o Evangelho antes dos nossos próprios desejos? Fazer passar o respeito pelo outro antes da nossa própria vantagem? De que maneira vamos poder servir nesta semana? Ousaremos fazê-lo em nome de Cristo Servidor?
    Como rezar? Isso diz respeito também à qualidade da nossa oração... A maior parte das vezes, somos como os filhos de Zebedeu: prontos a pedir. Mas se nos esforçamos por amar e servir como Cristo nos pede, então, melhor que pedir, poderemos oferecer-Lhe aquilo que, graças a Ele, faremos pelos nossos irmãos.

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA
    ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA NAS COMUNIDADES DEHONIANAS
    Grupo Dinamizador:
    P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 - 1800-129 LISBOA - Portugal
    Tel. 218540900 - F8758ax: 218540909
    portugal@dehonianos.org - www.dehonianos.org

    S. Inácio de Antioquia

    S. Inácio de Antioquia


    17 de Outubro, 2021

    S. Inácio sucedeu ao apóstolo S. Pedro no governo da comunidade cristã de Antioquia. Nos inícios do século II, foi conduzido a Roma para ser condenado às feras. Enquanto ia a caminho do martírio, S. Inácio escreveu sete cartas às diversas igrejas do seu tempo. São cartas escritas com sangue, verdadeiros pedaços de vida, com o grito ardente de um místico que anseia pelo martírio. Estas cartas, cuja autenticidade é admitida pela maioria dos estudiosos, com sólidos argumentos, conservam rasgos vivos e luminosos de uma das maiores personalidades dos primeiros séculos da Igreja.

    Lectio

    Primeira leitura: Filipenses 3, 17 - 4, 1

    Irmãos: Sede todos meus imitadores, irmãos, e olhai atentamente para aqueles que procedem conforme o modelo que tendes em nós. 18É que muitos - de quem várias vezes vos falei e agora até falo a chorar - são, no seu procedimento, inimigos da cruz de Cristo: 19o seu fim é a perdição, o seu Deus é o ventre, e gloriam-se da sua vergonha - esses que estão presos às coisas da terra. 20É que, para nós, a cidade a que pertencemos está nos céus, de onde certamente esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo. 21Ele transfigurará o nosso pobre corpo, conformando-o ao seu corpo glorioso, com aquela energia que o torna capaz de a si mesmo sujeitar todas as coisas. 1Portanto, meus caríssimos e saudosos irmãos, minha coroa e alegria, permanecei assim firmes no Senhor, caríssimos.

    Paulo convida os filipenses a imitá-lo, tal como ele imita a Cristo. Jesus, pela sua morte e ressurreição, transfigurou o nosso corpo para o conformar ao seu corpo glorioso (v. 21). A cruz encerra o germe da ressurreição. Quem participa na cruz de Cristo, participa também na sua ressurreição. S. Inácio imitou a Cristo na sua paixão e morte cruenta. Deu o seu testemunho do sangue. Todo o cristão é chamado a idêntico testemunho, se não de modo cruento, pelo menos carregando com alegria e generosidade a cruz de cada dia.

    Evangelho: João 12, 24-26

    Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: "Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto. 25Quem se ama a si mesmo, perde-se; quem se despreza a si mesmo, neste mundo, assegura para si a vida eterna. 26Se alguém me serve, que me siga, e onde Eu estiver, aí estará também o meu servo. Se alguém me servir, o Pai há-de honrá-lo.

    Se Jesus Cristo é o grão de trigo que, lançado à terra e morto, produziu muito fruto, o texto que hoje escutamos é uma síntese de todo o evangelho e da vida de Cristo. Inácio, imitador de Cristo, também é esse grão de trigo que, moído pelos dentes das feras, se tornou pão puro de Cristo, verdadeira eucaristia. Se os mártires precisam da Eucaristia, também a eucaristia não pode prescindir do testemunho dos mártires.

    Meditatio

    Para a meditação de hoje, nada melhor do que recorrermos a alguns pensamentos de S. Inácio de Antioquia. Na iminência do seu martírio, o santo bispo escreve aos Romanos: "É bonito partir deste mundo para Deus, a fim de ressuscitar para Ele". "Deixai que me torne alimento das feras, por meio das quais me é dado alcançar a Deus. Sou trigo de Deus, moído pelos dentes das feras, para me tornar pão puro de Cristo. Acariciai as feras, para que se tornem o meu sepulcro e nada deixem do meu corpo, para que uma vez morto, eu não seja peso para ninguém. Então serei, de verdade, discípulo de Jesus Cristo, quando o mundo deixar de ver o meu corpo. Suplicai a Cristo por mim, para que, por meio daqueles instrumentos, eu me torne hóstia para Deus" "Agora começo a ser discípulo de Cristo". "De nada me serviriam os confins da terra nem os reinos deste século. Para mim, é mais belo morrer por Jesus Cristo do que reinar sobre os confins da terra. Procuro-o, que morreu e ressuscitou por nós, quero-o, que ressuscitou por nós. Agora, o parto está iminente para mim. Tende compaixão de mim, irmãos. Não me impeçais de viver, não queirais o meu morrer. A quem quer ser de Deus, não o entregueis de graça ao mundo e não o enganeis com a matéria. Deixai-me acolher a luz pura. Junto dela, serei homem. Deixai-me ser imitador da Paixão do meu Deus". "Rezai para que eu seja cristão, não só de nome, mas também de fato". "Rezai para que possa alcançar a Deus".
    S. Inácio alcançou a Deus através do martírio no ano 107. A sua memória é celebrada neste dia desde o século IV.

    Oratio

    Rezemos com S. Inácio de Antioquia: "O meu Amor está crucificado e não há em mim fogo que se alimente da matéria. Mas há uma água viva que murmura dentro de mim e me diz interiormente: "Vem ao Pai". Não me satisfazem os alimentos corrutíveis nem os prazeres deste mundo. Quero o pão de Deus, que é a Carne de Jesus Cristo, nascido da linhagem de David, e por bebida quero o Sangue que é a caridade incorrutível". Ámen.

    Contemplatio

    A caridade tem tido os seus inumeráveis mártires, que têm fecundado a Igreja e enchido o céu. Todos aqueles que sacrificaram a sua vida nos trabalhos e nos perigos do apostolado sob todas as suas formas são mártires da caridade. Enfrentaram as fadigas, as doenças, as dificuldades do clima, a hostilidade dos infiéis para irem em socorro dos que sofrem ou que estão nas trevas da idolatria. Era o espírito da caridade que os conduzia. Dando-nos o seu mandamento novo, Nosso Senhor dá-nos, no Espírito Santo, a graça de o cumprirmos. Se correspondermos a este espírito de caridade, havemos de praticar entre nós a mansidão, a paciência, a benevolência. As obras de misericórdia ser-nos-ão caras e fáceis. Teremos gosto em tomar conta dos pequenos, dos pobres, dos ignorantes, daqueles que sofrem. Havemos de nos recordar da palavra do bom Mestre: «O que fazeis aos pequenos e aos deserdados, tenho-o como feito a mim». Se tivermos uma caridade ardente e abundante, levá-la-emos até ao sacrifício. Despojar-nos-emos, afadigar-nos-emos para socorrer o nosso próximo, e, se for preciso, daremos a nossa vida por ele como Nosso Senhor a deu por nós. (Leão Dehon, OSP 3, p. 419s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Faça-se tudo para honrar a Deus" (S. Inácio de Antioquia).

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    S. Inácio de Antioquia (17 Outubro)

  • S. Lucas, Evangelista

    S. Lucas, Evangelista


    18 de Outubro, 2021

    S. Lucas nasceu em Antioquia da Síria. Foi educado no paganismo e exerceu a profissão de médico (cf. Cl 4, 14). Convertido ao cristianismo, torou-se colaborador de S. Paulo, estabelecendo com ele uma grande amizade (Fm 24). Homem culto, S. Lucas, é o autor do terceiro evangelho e dos Atos dos Apóstolos, sendo também um dos responsáveis pela ação missionária nos primeiros tempos da Igreja.

    Lectio

    Primeira leitura: 2 Timóteo 4, 10-17b

    Caríssimos: Demas abandonou-me. Preferiu o mundo presente e foi para Tessalónica. Crescente foi para a Galácia, e Tito para a Dalmácia. 11Apenas Lucas está comigo.Traz contigo Marcos, pois me será de grande ajuda no ministério.  12Quanto a Tíquico, enviei-o a Éfeso.13Quando vieres, traz o manto que deixei em Tróade, em casa de Carpo, bem como os livros, especialmente os pergaminhos. 14Alexandre, o fundidor de cobre, causou-me muitos danos. O Senhor lhe retribuirá segundo as suas obras. 15Toma tu também cuidado com ele, pois muito se tem oposto ao nosso ensinamento. 16Na minha primeira defesa, ninguém esteve ao meu lado. Todos me abandonaram. Que não lhes seja levado em conta. 17O Senhor, porém, esteve comigo e deu-me forças, a fim de que, por meu intermédio, o anúncio fosse plenamente proclamado e todos os gentios o escutassem.

    Paulo manifesta o seu conforto por Lucas lhe permanecer fiel, enquanto outros, por cansaço ou por medo, o abandonaram. É sobretudo a presença do Senhor que anima o Apóstolo a pregar o Evangelho aos gentios, mantendo-se fiel à sua vocação inicial. Mas não pode deixar de lembrar os que o abandonaram, quando mais precisava de apoio, tendo de se defender sozinho em tribunal, e tendo de defender a Cristo e à fé que abraçara. O que provoca mais satisfação em Paulo é poder afirmar que foi por seu intermédio que o Evangelho foi anunciado, de modo especial aos gentios. A missão recebida em Damasco estava realizada.

    Evangelho: Lucas 10, 1-9

    Naquele tempo, o Senhor designou outros setenta e dois discípulos e enviou-os dois a dois, à sua frente, a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir. 2Disse-lhes:«A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Rogai, portanto, ao dono da messe que mande trabalhadores para a sua messe.3Ide! Envio-vos como cordeiros para o meio de lobos. 4Não leveis bolsa, nem alforge, nem sandálias; e não vos detenhais a saudar ninguém pelo caminho.5Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: 'A paz esteja nesta casa!'6E, se lá houver um homem de paz, sobre ele repousará a vossa paz; se não, voltará para vós. 7Ficai nessa casa, comendo e bebendo do que lá houver, pois o trabalhador merece o seu salário. Não andeis de casa em casa.8Em qualquer cidade em que entrardes e vos receberem, comei do que vos for servido, 9curai os doentes que nela houver e dizei-lhes: 'O Reino de Deus já está próximo de vós.'

    Só Lucas que nos fala deste episódio. Jesus, depois de ter enviado os Doze em missão (Lc 9, 1ss), envia também estes setenta e dois discípulos. A missão é uma das grandes preocupações do terceiro evangelista. Nos Atos dos Apóstolos, além das missões de Pedro e de Paulo, fala das missões de Estêvão, de Filipe e de outros apóstolos. A messe do Senhor precisa de muitos trabalhadores. Há que pedi-los e que enviá-los. A oração, não só prepara, mas é parte integrante da missão. A missão começa na oração; e rezar é estar em missão. Como o seu Mestre e Senhor, os discípulos devem ir em missão "como cordeiros para o meio de lobos" (v. 3). O anúncio essencial é: "O Reino de Deus já está próximo de vós." (v. 9). Trata-se de uma expressão densa de significado: os tempos completaram-se, isto é, estão cheios da presença de Deus que salva. A presença de Deus concretiza-se na pessoa de Jesus e nos seus ensinamentos.

    Meditatio

    S. Lucas escreveu o terceiro evangelho, com alguns elementos que nos permitem distingui-lo dos outros três evangelistas. S. Lucas é o evangelista de Maria: só ele nos fala da anunciação, da visitação, do nascimento de Jesus e da sua apresentação no templo. É o evangelista do Coração de Jesus: é o que melhor nos revela a sua misericórdia nas parábolas da dracma perdida e reencontrada, da ovelha perdida e achada, do filho pródigo. É o evangelista da caridade: só ele narra a parábola do bom samaritano, e fala do amor de Jesus aos pobres com acentuações mais ternas do que os outros evangelistas. Apresenta-nos Jesus comovido diante do sofrimento da viúva de Naim; Jesus que acolhe delicadamente a pecadora em casa de Simão, o fariseu, e lhe assegura o perdão de Deus; Jesus que acolhe Zaqueu com tanta bondade que muda o coração ganancioso do publicano em coração arrependido e generoso.
    Lucas é o evangelista da confiança, da paz, da alegria. É o evangelista do Espírito Santo. É ele que apresenta a comunidade cristã como tendo "um só coração e uma só alma". O evangelho de Lucas revela o seu zelo missionário. Só ele fala da missão dos setenta e dois discípulos e alguns pormenores dessa missão. Há, pois, muitos tesouros a explorar na obra lucana. Havemos de fazê-lo com gratidão, entregando-nos, também nós, generosamente ao Senhor, vivendo como discípulos e carregando com Ele a nossa cruz de cada dia.
    Lucas acompanhou Paulo em algumas das suas viagens missionárias e durante o cativeiro em Roma. Com a morte do Apóstolo eclipsa-se a história de Lucas. Um escrito do século III diz-nos que morreu virgem na Bitínia, com a idade de 74 anos, cheio de Espírito Santo. Uma tradição do século IV assegura-nos que derramou o sangue por Cristo. Lucas é um médico bondoso e serviçal, um literato, mas sobretudo um santo e mártir, que regou com o seu sangue as sementes do Evangelho por ele lançadas. É considerado padroeiro dos médicos, por causa das palavras de Paulo: "Saúda-vos Lucas, nosso querido médico" (Col 4, 14).

    Oratio

    Senhor, nosso Deus, que escolhestes São Lucas para revelar com a sua palavra e os seus escritos o mistério do vosso amor pelos pobres, fazei que sejam um só coração e uma só alma aqueles que se gloriam no vosso nome e todos os povos mereçam ver a vossa salvação. Ámen. (Coleta de Missa).

    Contemplatio

    S. Lucas é o Evangelista da santa Infância de Jesus. Como os amigos do Sagrado Coração lhe devem estar reconhecidos! Foi ele que nos deu a conhecer tantos pormenores deliciosos sobre o nascimento e a infância de Jesus. Devemos-lhe a saudação angélica, a Ave-maria, o Ecce Ancilla Domini, o Benedictus, o Nunc dimittis, tantos outros tesouros para os amigos do Coração de Jesus. Ele descreve-nos a visita dos pastores. Devemos-lhe também o cântico dos anjos «Gloria in excelsis Deo». Nenhum evangelista deu semelhantes tesouros à liturgia. Descreve a estadia de Jesus no Templo aos 12 anos, o comentário de Isaías por Jesus na sinagoga de Nazaré. Relata a bela parábola de Lázaro e do mau rico, a cura dos dez leprosos, dos quais só um é reconhecido, a cena deliciosa na qual Marta mostra demasiada solicitude e na qual Madalena escolheu a melhor parte, a única coisa necessária. A grande parábola do Filho pródigo é uma das suas mais belas páginas. Era preciso um homem de grande coração para compreender e relatar estas cenas tocantes e estes discursos do Salvador. Relata melhor que os outros a justificação de Madalena por Jesus em casa de Simão, o Fariseu, e a chamada de S. Pedro com a primeira pesca milagrosa. É a ele que devemos o conhecimento desta palavra caída do Sagrado Coração: vim acender o fogo (do amor) sobre a terra, e que desejo senão que se propague. Revelou-nos o santo Coração de Maria. Foi ele que nos disse por duas vezes que Maria conservava no seu coração os mistérios de Jesus e neles meditava (Lc 2, 19 e 51). (L. Dehon, OSP 4, p.369s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Rogai ao dono da messe
    que mande trabalhadores para a sua messe" (Lc 10, 2).

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    S. Lucas, Evangelista (18 Outubro)

  • 30° Domingo do Tempo Comum - Ano B

    30° Domingo do Tempo Comum - Ano B


    24 de Outubro, 2021

    Tempo Comum
    30° Domingo do Tempo Comum - Ano B

    TEMA

    A liturgia do 30° Domingo do Tempo Comum fala-nos da preocupação de Deus em que o homem alcance a vida verdadeira e aponta o caminho que é preciso seguir para atingir essa meta. De acordo com a Palavra de Deus que nos é proposta, o homem chega à vida plena, aderindo a Jesus e acolhendo a proposta de salvação que Ele nos veio apresentar.
    A primeira leitura afirma que, mesmo nos momentos mais dramáticos da caminhada histórica de Israel, quando o Povo parecia privado definitivamente de luz e de liberdade, Deus estava lá, preocupando-se em libertar o seu Povo e em conduzi-lo pela mão, com amor de pai, ao encontro da liberdade e da vida plena.
    A segunda leitura apresenta Jesus como o sumo-sacerdote que o Pai chamou e enviou ao mundo a fim de conduzir os homens à comunhão com Deus. Com esta apresentação, o autor deste texto sugere, antes de mais, o amor de Deus pelo seu Povo; e, em segundo lugar, pede aos crentes que "acreditem" em Jesus - isto é, que escutem atentamente as propostas que Ele veio fazer, que as acolham no coração e que as transformem em gestos concretos de vida.
    No Evangelho, o catequista Marcos propõe-nos o caminho de Deus para libertar o homem das trevas e para o fazer nascer para a luz. Como Bartimeu, o cego, os crentes são convidados a acolher a proposta que Jesus lhes veio trazer, a deixar decididamente a vida velha e a seguir Jesus no caminho do amor e do dom da vida. Dessa forma, garante-nos Marcos, poderemos passar da escravidão à liberdade, da morte à vida.

    LEITURA 1- Jer 31,7-9

    Eis o que diz o Senhor:
    «Soltai brados de alegria por causa de Jacob, enaltecei a primeira das nações.
    Fazei ouvir os vossos louvores e proclamai:
    'O Senhor salvou o seu povo, o resto de Israel'. Vou trazê-los das terras do Norte
    e reuni-los dos confins do mundo.
    Entre eles vêm o cego e o coxo,
    a mulher que vai ser mãe e a que já deu à luz. É uma grande multidão que regressa.
    Eles partiram com lágrimas nos olhos
    e Eu vou trazê-los no meio das consolações. Levá-Ios-ei às águas correntes,
    por caminho plano em que não tropecem. Porque Eu sou um Pai para Israel
    e Efraim é o meu primogénito».

    AMBIENTE

    Jeremias, o profeta nascido em Anatot por volta de 650 a.C., exerceu a sua missão profética desde 627/626 a.C., até depois da destruição de Jerusalém pelos Babilónios (586 a.C.). O cenário da actividade do profeta é, em geral, o reino de Judá (e, sobretudo, a cidade de Jerusalém).
    A primeira fase da pregação de Jeremias abrange parte do reinado de Josias. Este rei - preocupado em defender a identidade política e religiosa do Povo de Deus - leva a cabo uma impressionante reforma religiosa, destinada a banir do país os cultos aos deuses estrangeiros. A mensagem de Jeremias, neste período, traduz-se num constante apelo à conversão, à fidelidade a Jahwéh e à aliança.
    No entanto, em 609 a.C., Josias é morto, em combate contra os egípcios. Joaquim sucede-lhe no trono. A segunda fase da actividade profética de Jeremias abrange o tempo de reinado de Joaquim (609-597 a.C.).
    O reinado de Joaquim é um tempo de desgraça e de pecado para o Povo, e de incompreensão e sofrimento para Jeremias. Nesta fase, o profeta aparece a criticar as injustiças sociais (às vezes fomentadas pelo próprio rei) e a infidelidade religiosa (traduzida, sobretudo, na busca das alianças políticas: procurar a ajuda dos egípcios significava não confiar em Deus e, em contrapartida, colocar a esperança do Povo em exércitos estrangeiros). Jeremias está convencido de que Judá já ultrapassou todas as medidas e que está iminente uma invasão babilónica que castigará os pecados do Povo de Deus. É, sobretudo, isso que ele diz aos habitantes de Jerusalém ... As previsões funestas de Jeremias concretizam-se: em 597 a.C., Nabucodonosor invade Judá e deporta para a Babilónia uma parte da população de Jerusalém.
    No trono de Judá fica, então, Sedecias (597-586 a.C.). A terceira fase da missão profética de Jeremias desenrola-se, precisamente, durante este reinado.
    Após alguns anos de calma submissão à Babilónia, Sedecias volta a experimentar a velha política das alianças com o Egipto. Jeremias não está de acordo que se confie em exércitos estrangeiros mais do que em Jahwéh ... Mas, nem o rei, nem os notáveis prestam qualquer atenção à opinião do profeta.
    Em 587 a.C., Nabucodonosor põe cerco a Jerusalém; no entanto, um exército egípcio vem em socorro de Judá e os babilónios retiram-se. Nesse momento de euforia nacional, Jeremias aparece a anunciar o recomeço do cerco e a destruição de Jerusalém (cf. Jer 32,2-5). Acusado de traição, o profeta é encarcerado (cf. Jer 37,11- 16) e corre, inclusive, perigo de vida (cf. Jer 38,11-13). Enquanto Jeremias continua a pregar a rendição, Nabucodonosor apossa-se, de facto, de Jerusalém, destrói a cidade e deporta a sua população para a Babilónia (586 a.C.).
    É impossível dizer com segurança o contexto em que apareceu essa mensagem que o texto que nos é hoje proposto apresenta.
    Para alguns comentadores, trata-se de um oráculo que poderia situar-se na primeira fase da actividade profética de Jeremias (reinado de Josias) e dirigir-se-ia aos israelitas do Reino do Norte. Seria uma mensagem de esperança, destinada a animar esse povo que há cerca de cem anos tinha perdido a independência e estava sob o domínio assírio.
    Para outros, contudo, este texto será da época de Sedecias, algures entre a primeira e a segunda deportação do Povo para a Babilónia (597-586 a.C.). É a época em que Jeremias descobre perspectivas teológicas novas e começa a reflectir sobre um tempo novo que Deus irá oferecer ao seu Povo: após a catástrofe, será possível recomeçar tudo, pois Deus tem em mente fazer uma nova Aliança com Judá.

    MENSAGEM

    O texto que nos é proposto começa com um convite à alegria e ao louvor (vers. 7). Porquê? Porque Jahwéh vai reunir o seu Povo (disperso na Assíria? Na Babilónia?), vai conduzi-lo através do deserto e vai fazê-lo retornar à sua pátria. Reunir, conduzir e fazer retornar à pátria são os três verbos que, tradicionalmente, definem a acção de Deus em favor do seu Povo, durante o Êxodo.

    Depois da afirmação geral, o profeta apresenta alguns pormenores deste Novo Êxodo. Da comitiva farão parte "o cego e o coxo, a mulher grávida e a que deu à luz" (vers. 8b). O cego e o coxo são figuras tradicionais ligadas ao tema do Êxodo (cf. Is 35,5), onde relembram a situação de necessidade e de carência em que os exilados jazem e, ao mesmo tempo, evocam a acção extraordinária de Deus no sentido de libertar o seu Povo dessa carência e dessa necessidade. Na imagem da mulher grávida e na da mulher que deu à luz, o profeta representa a dor e o sofrimento, mas também a fecundidade, a alegria, a esperança num futuro novo e cheio de vida.
    No último versículo do nosso texto (vers. 9), Jahwéh apresenta-Se como um pai cheio de amor pelo seu filho/Povo. Esse amor irá traduzir-se no final do Exílio e no regresso dos exilados à sua terra "entre grande consolação", por "caminhos direitos" e fáceis. No final desse Êxodo triunfal, Jahwéh vai oferecer ao seu Povo vida abundante e fecunda ("conduzi-Ios-ei às torrentes de água").
    O texto dá conta da preocupação de Deus com a vida, a felicidade e a realização plena do seu Povo. Mesmo nos momentos mais dramáticos da caminhada histórica de Israel, quando o Povo parecia privado definitivamente de luz e de liberdade (o "cego" e o "coxo"), Deus estava lá, preocupando-se em libertar o seu Povo e em conduzi-lo pela mão, com amor de pai, ao encontro da liberdade e da vida plena.

    ACTUALIZAÇÃO

    • O que este texto nos diz, antes de mais, é que o Deus em quem acreditamos não é um Deus insensível e alheado das dores e dificuldades dos homens; mas é um Deus sensível e atento, que cuida dos seus filhos com cuidados de pai. Ao longo do percurso que vamos percorrendo pela história, também nós fazemos, como os antigos israelitas, a experiência da escravidão, da dependência, do medo, do desespero, da decepção ... A Palavra de Deus que hoje nos é servida garante-nos: não estamos sozinhos frente aos nossos dramas e sofrimentos; Deus vai ao nosso lado e, com amor de pai, cuida de nós, dá-nos a mão, conduz-nos ao encontro da vida eterna e verdadeira. A nós resta-nos reconhecer a sua presença (às vezes tão discreta que nem a notamos) e, com humildade e simplicidade, aceitar o seu amor.
    • Na perspectiva do profeta, a acção salvadora e libertadora de Deus estender-se-á a todos, inclusive aos "cegos" e aos "coxos". Os "coxos" e os "cegos representam, aqui, aqueles que estão numa situação de fragilidade, de debilidade, de dependência e que são incapazes, por si sós, de deixar essa condição. Também com esses - ou especialmente com esses - Deus quer caminhar. Na verdade, Deus não marginaliza ninguém, nem coloca ninguém à margem da sua proposta de salvação ... Os fracos, os débeis, os limitados, os marginalizados ocupam um lugar especial no coração de Deus e são objecto privilegiado do seu amor e da sua misericórdia. Na nossa sociedade, os pequenos, os pobres, os doentes, os velhos, os estrangeiros sem papéis são, frequentemente, marginalizados e ultrapassados pelo comboio da história. A sociedade edifica-se sem eles ou, pelo menos, sem ter em conta as suas necessidades e carências... Nós, os crentes, formados na escola de Deus, precisamos olhar para eles com o mesmo olhar de Deus, descobrir que também eles são filhos queridos e amados de Deus, denunciar as estruturas que os marginalizam, criar mecanismos de inclusão e de integração. É preciso ver em cada homem ou mulher - no "coxo", no "cego", no velho, no doente, no marginal - um irmão que Deus ama e a quem quer oferecer, por nosso intermédio, a vida plena, a salvação definitiva.
    • Em todo o capítulo 31 do profeta Jeremias (de onde é retirado o texto que nos é proposto), há um impressionante apelo à esperança, à confiança em Deus. Por vezes, somos tentados a olhar para a nossa vida e para a história do nosso mundo, com os óculos do pessimismo, do medo e do desespero ... O terrorismo, os crimes ambientais, as dificuldades económicas, as doenças incuráveis, a fome, a miséria, os valores efémeros, parecem pintar de negro o nosso futuro e o futuro do nosso planeta ... Contudo, a Palavra de Deus que hoje nos é proposta garante¬nos: não tenhais medo, pois Deus caminha convosco pela história e, como um pai cheio de bondade que ensina o filho a caminhar, há-de conduzir-vos pela mão ao encontro da vida verdadeira. Há, certamente, um futuro para nós, pois Deus ama¬nos e caminha connosco.

    SALMO RESPONSORIAL - Salmo 125 (126)

    Refrão 1: Grandes maravilhas fez por nós o Senhor, por isso exultamos de alegria.
    Refrão 1: O Senhor fez maravilhas em favor do seu povo.
    Quando o Senhor fez regressar os cativos de Sião, parecia-nos viver um sonho.
    Da nossa boca brotavam expressões de alegria e dos nossos lábios cânticos de júbilo.
    Diziam então os pagãos:
    «O Senhor fez por eles grandes coisas». Sim, grandes coisas fez por nós o Senhor, estamos exultantes de alegria.
    Fazei regressar, Senhor, os nossos cativos, como as torrentes do deserto.
    Os que semeiam em lágrimas
    recolhem com alegria.
    À ida vão a chorar, levando as sementes; à volta vêm a cantar,
    trazendo os molhos de espigas.

    LEITURA 11- Heb 5,1-6

    Todo o sumo sacerdote, escolhido de entre os homens, é constituído em favor dos homens,
    nas suas relações com Deus,
    para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados. Ele pode ser compreensivo
    para com os ignorantes e os transviados, porque também ele está revestido de fraqueza; e, por isso, deve oferecer sacrifícios
    pelos próprios pecados e pelos do seu povo. Ninguém atribui a si próprio esta honra,
    senão quem foi chamado por Deus, como Abraão. Assim também, não foi Cristo que tomou para Si a glória de Se tornar sumo sacerdote;
    deu-Lha Aquele que Lhe disse:
    «Tu és meu Filho, Eu hoje Te gerei»,

    e como disse ainda noutro lugar: «Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec».

    AMBIENTE

    Continuamos, neste 30° Domingo do Tempo Comum, a ler a Carta aos Hebreus - uma reflexão destinada a comunidades cristãs em situação difícil, expostas a perigos vários e que, por isso mesmo, estão numa situação de fragilidade, de cansaço e de desalento. O objectivo do autor da Carta é ajudar esses cristãos a redescobrir o seu entusiasmo inicial, a revitalizar o seu compromisso com Cristo e a empenhar-se numa fé mais coerente e mais comprometida.
    Nesse sentido, o autor desta reflexão convida os crentes a apreciar o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência, que o Pai enviou ao mundo com a missão de convidar todos os homens a integrar a comunidade do Povo sacerdotal. Uma vez comprometidos com Cristo, os crentes - membros desse Povo sacerdotal - devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Ao lembrar aos crentes o seu compromisso com Cristo e com a comunidade do Povo sacerdotal, o autor oferece aos cristãos a base para revitalizarem a sua experiência de fé, enfraquecida pela hostilidade do ambiente, pela acomodação, pela monotonia.
    O texto que nos é proposto está incluído na segunda parte da Carta aos Hebreus (cf. Heb 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta Jesus como o sacerdote fiel e misericordioso que o Pai enviou ao mundo para mudar os corações dos homens e para os aproximar de Deus. Aos crentes pede-se que "acreditem" em Jesus - isto é, que escutem atentamente as propostas que Cristo veio fazer, que as acolham no coração e que as transformem em gestos concretos de vida.

    MENSAGEM

    No universo religioso judaico, o sumo-sacerdote ocupava o lugar cimeiro na hierarquia do clero do Templo e, de alguma forma, presidia à instituição sacerdotal. Era ele o único a entrar, uma vez no ano, no lugar mais sagrado do Templo ("Debir" ou "Santo dos Santos"), no solene "Dia das Expiações" ("Yom Kippurim"), com o sangue de um animal imolado, para aspergir o "propiciatório" ("kapporet") e conseguir o perdão de Deus para os pecados do Povo. Dessa forma, o sumo-sacerdote tornava-se o intermediário por excelência da relação entre os homens e Deus.
    Para a mentalidade judaica, há três elementos fundamentais ligados à figura do sumo¬sacerdote. Em primeiro lugar, ele é um escolhido de Deus: o sumo-sacerdote não é alguém que, por sua iniciativa pessoal, se propõe para o cargo; mas é alguém a quem Deus chama e a quem confia esta missão (foi Deus que, por sua iniciativa, chamou Aarão e toda a sua descendência). Em segundo lugar, o sumo-sacerdote é um homem tomado de entre os homens: a sua humanidade não o torna inapto para uma missão tão sublime; pelo contrário, a fragilidade e debilidade que resultam da sua humanidade tornam-no apto para compreender os erros e os pecados dos outros homens por quem intercede. Em terceiro lugar, o sumo-sacerdote tem uma função mediadora: a sua missão é "oferecer dons e sacrifícios pelos pecados", apresentando diante de Deus o arrependimento dos homens e trazendo aos homens o perdão de Deus; dessa forma, ele refaz a relação dos homens com Deus.
    Na perspectiva do autor da Carta aos Hebreus, Jesus é o sumo-sacerdote por excelência. Em primeiro lugar, porque Ele foi chamado e destinado por Deus a esta missão (apesar de não ser da linhagem do sacerdote Aarão); o facto de ser Filho de Deus dá ao seu sacerdócio uma categoria, uma dignidade e uma qualidade suprema, uma vez que o coloca em contacto pessoal e íntimo com o Pai, dando dessa forma
    uma expressão mais completa a essa mediação que Ele é chamado a realizar entre Deus e os homens.
    Em segundo lugar, porque Ele foi homem, também. Ao assumir a nossa humanidade, Ele experimentou a nossa debilidade e fragilidade e tornou-Se capaz de entender as nossas fraquezas e os nossos pecados e de Se tornar o nosso mediador e intercessor junto do Pai.
    A sua proximidade e intimidade com o Pai, por um lado, e a sua humanidade, por outro tornam-n'O, finalmente, o perfeito mediador e intercessor, capaz de restabelecer definitivamente a comunhão entre Deus e os homens. De facto, Ele veio ao nosso encontro, mostrou-nos o amor do Pai, convidou-nos a eliminar o egoísmo e o pecado que nos afastavam da comunhão com Deus, chamou-nos a integrar a família de Deus e ensinou-nos o que fazer para sermos filhos de Deus.

    ACTUALIZAÇÃO

    • Ao apresentar Jesus como o sumo-sacerdote, chamado pelo Pai e enviado ao mundo para libertar os homens do egoísmo e do pecado e para os conduzir à comunhão com Deus, o autor da Carta aos Hebreus convida-nos (todos os textos que a liturgia deste domingo nos propõe apontam no mesmo sentido) a contemplar a grandeza do amor que Deus nos dedica. A contemplação da incarnação de Jesus e de tudo o que Ele realizou enquanto percorreu os caminhos e aldeias da Palestina fala-nos de um amor sem limites, expresso em gestos concretos e que culmina na entrega total, na cruz. A nós resta-nos olhar para Jesus, escutá-I'O, aceitar a sua proposta, banir da nossa vida o egoísmo e o pecado, segui-l'O nesse caminho do dom e da entrega que irá levar-nos a integrar a família de Deus e a possuir a vida verdadeira.
    • Para o autor do nosso texto, ao assumir a nossa humanidade, Jesus experimentou a nossa fragilidade, a nossa debilidade, a nossa dependência; tornou-Se, portanto, capaz de compreender os nossos erros e falhas e de olhar para as nossas insuficiências com bondade e misericórdia. Para a nossa vida concreta, há duas consequências que resultam daqui... A primeira leva-nos à confiança e à esperança: junto de Deus nosso Pai, temos um intercessor que entende as nossas dificuldades e que, apesar das nossas falhas, continua apostado em integrar-nos na família de Deus. A segunda leva-nos ao compromisso com os irmãos: a solidariedade de Cristo connosco convida-nos à solidariedade com os pequenos, com os últimos, com os pobres, com aqueles que o mundo rejeita e marginaliza; convida-nos a identificarmo-nos com os sofrimentos e angústias, com as alegrias e esperanças de cada homem ou mulher; convida-nos a fazer o que estiver ao nosso alcance para promover aqueles que são humilhados, explorados, incompreendidos, colocados à margem da vida ...
    • Os planos de Deus para salvar e libertar os homens concretizaram-se porque Cristo, o Filho, assumiu os projectos do Pai e viveu sempre na obediência incondicional às propostas de Deus. Hoje, os projectos de salvação e de libertação que Deus tem para os homens continuam a concretizar-se através daqueles que aderiram a Jesus e querem, como Ele, viver na estrita obediência aos planos de Deus. Sinto-me, como Jesus, testemunha da salvação de Deus diante dos meus irmãos? ° meu egoísmo e a minha acomodação alguma vez me desviaram do cumprimento dos projectos de Deus? Aqueles que eu encontro, a cada passo, nos caminhos do mundo, têm encontrado em mim uma proposta credível de vida e de libertação?

    ALELUIA - cf. 2 Tim 1,10

    Aleluia. Aleluia.
    Jesus Cristo, nosso Salvador, destruiu a morte e fez brilhar a vida por meio do Evangelho.

    EVANGELHO - Mc 10,46-52

    Naquele tempo,
    quando Jesus ia a sair de Jericó
    com os discípulos e uma grande multidão,
    estava um cego, chamado Bartimeu, filho de Timeu, a pedir esmola à beira do caminho.
    Ao ouvir dizer que era Jesus de Nazaré que passava, começou a gritar:
    «Jesus, Filho de David, tem piedade de mim». Muitos repreendiam-no para que se calasse. Mas ele gritava cada vez mais:
    «Filho de David, tem piedade de mim».
    Jesus parou e disse: «Chamai-O».
    Chamaram então o cego e disseram-lhe: «Coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar-te».
    O cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus. Jesus perguntou-lhe:
    «Que queres que Eu te faça?» O cego respondeu-Lhe: «Mestre, que eu veja».
    Jesus disse-lhe:
    «Vai: a tua fé te salvou». Logo ele recuperou a vista
    e seguiu Jesus pelo caminho.

    AMBIENTE

    O Evangelho deste domingo propõe-nos a última etapa desse caminho (geográfico, mas também espiritual) que Jesus iniciou com os discípulos na Galileia e que irá levá- 1'0 a Jerusalém, ao encontro da paixão, morte e ressurreição. É a última cena de um percurso que não tem sido fácil e no qual os discípulos, como cegos, se aferram às suas ideias e projectos próprios, recusando-se a entender e a aceitar que o caminho do Reino deva passar pela cruz e pelo dom da vida.
    O episódio que hoje nos é proposto situa-nos à saída da cidade de Jericó. Jericó, a "cidade das Palmeiras", é um oásis situado na margem do rio Jordão, a norte do Mar Morto, e que dista cerca de 30 quilómetros de Jerusalém. Na época de Jesus, era uma cidade relativamente importante, onde Herodes, o Grande, tinha edificado um luxuoso palácio de Inverno.
    Além de Jesus, Marcos coloca no centro da cena um mendigo cego com o nome de Bartimeu ("filho de Timeu"). Este nome, meio aramaico ("bar") e meio grego ("timaios"), é um nome perfeitamente inusual no ambiente hebraico-palestinense onde a história é situada (nunca aparece entre os cerca de 2.000 nomes próprios que ocorrem no Antigo Testamento); aos leitores romanos de Marcos, contudo, o nome devia evocar o "Timeo", um dos mais conhecidos "diálogos" de Platão. Alguns autores pensam que, mais do que um personagem histórico, o cego Bartimeu seria uma figura simbólica.

    Os "cegos" faziam parte do grupo dos excluídos da sociedade palestina de então. As deficiências físicas eram consideradas - pela teologia oficial - como resultado do pecado. Segundo a concepção da época, Deus castigava de acordo com a gravidade da culpa. A cegueira era considerada o resultado de um pecado especialmente grave: uma doença que impedisse o homem de estudar a Lei era considerada uma maldição de Deus por excelência. Pela sua condição de impureza notória, os cegos eram impedidos de servir de testemunhas no tribunal e de participar nas cerimónias religiosas no Templo.

    MENSAGEM

    É natural que Jesus tenha encontrado, quando saía de Jericó, um cego que mendigava junto da estrada... No entanto, parece claro que, à volta desse acontecimento fundamental, Marcos construiu uma catequese para os seus leitores. Quem é, na catequese de Marcos, este "cego" que Jesus encontra ao longo do caminho, quando se dirige para Jerusalém? Ele representa todos esses a quem a teologia oficial considerava pecadores, malditos, impuros, marginais, longe de Deus e da sua proposta de salvação.
    O cego da nossa história está sentado à beira do caminho, provavelmente a pedir esmola. O estar sentado significa acomodação, instalação, conformismo. Ele está privado da luz e da liberdade e está conformado com a sua triste situação, sabendo que, por si só, é incapaz de sair dela. O pedir esmola (o texto refere explicitamente a sua condição de mendigo - verso 46) indica a situação de escravidão e de dependência em que o homem se encontra.
    Contudo, a passagem de Jesus de Nazaré dá ao cego a consciência da sua situação de miséria, de dependência, de escravidão. Então, Bartimeu percebe o sem sentido da sua situação e sente a vontade de apostar numa outra experiência. A passagem de Jesus na vida de alguém é sempre um momento de tomada de consciência, de questionamento, de desafio, que leva a pôr em causa a vida velha e a sentir o imperativo de ir mais além ... No entanto, Bartimeu está consciente da sua debilidade e sente que, sem a ajuda de Jesus, continuará envolvido pelas trevas da dependência, da escravidão, da instalação ... Por isso, pede: "Jesus, filho de David, tem misericórdia de mim" (vers. 47). O título "filho de David" é um título messiânico. Portanto, Bartimeu vê em Jesus esse Messias libertador que, segundo a mentalidade judaica, havia de vir não só para salvar Israel dos opressores, mas também para dar vida em plenitude a cada membro do Povo de Deus.
    Antes de referir a intervenção de Jesus, Marcos dá conta da reacção dos que estão à volta de Jesus: repreendiam o cego e queriam fazê-lo calar (vers. 48). Quando alguém encontra Jesus e resolve deixar a vida antiga para aderir ao Reino que Jesus veio propor, encontra sempre resistências (que vêm, por vezes, dos familiares, dos amigos, dos colegas). Estes que repreendem e mandam calar o cego representam, portanto, todos aqueles que colocam obstáculos a quem quer deixar a sua situação de miséria e de escravidão para aderir à proposta libertadora que Cristo faz. No entanto, a oposição não só não desarma o cego, como o leva a gritar ainda mais forte: "filho de David, tem misericórdia de mim" ... A incompreensão ou a oposição dos homens nunca fazem desistir aquele que viu Jesus passar e que viu n'Ele uma proposta de vida e de liberdade.
    Jesus parou e mandou chamar o cego. A cena recorda-nos os relatos do chamamento dos discípulos (cf. Mc 1,16-20; 2,14; 3,13). Os mediadores que transmitem ao cego as palavras de Jesus dizem-lhe: "coragem, levanta-te que Ele chama-te" (vers. 49). Ou seja: deixa a tua situação de miséria, de escravidão e de dependência, porque Jesus chama-te. O chamamento é sempre, nestes casos, a tornar-se discípulo, a seguir Jesus no caminho do amor e do dom da vida.

    Em resposta, o cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus (vers. 50). A capa podia estar colocada debaixo do cego, como almofada, ou nos seus joelhos, para recolher as moedas que lhe atiravam; em qualquer caso, a capa é tudo o que um mendigo possui, a única coisa de que ele pode separar-se (outros deixaram o barco, as redes ou a banca onde recolhiam impostos). O deitar fora a capa significa, portanto, o deixar tudo o que se possui para ir ao encontro de Jesus. É um corte radical com o passado, com a vida velha, com a anterior situação, com tudo aquilo em que se apostou anteriormente, a fim de começar uma vida nova ao lado de Jesus.
    Jesus perguntou ao cego: "que queres que te faça?". É a mesma pergunta que, pouco antes, Jesus fizera a João e Tiago (cf. Mc 10,36). A identidade da pergunta acentua, contudo, a diferença da resposta ... Os dois irmãos queriam sentar-se ao lado de Jesus e ver concretizados os seus sonhos de grandeza e de poder; o cego Bartimeu, ao contrário, cansado de estar sentado numa vida de escravidão e de cegueira, quer encontrar a luz para seguir Jesus (vers. 51).
    Jesus responde a Bartimeu: "vai, a tua fé te salvou" (vers. 52). A fé não é a simples adesão a determinadas verdades abstractas, que o crente aceita acriticamente; mas, no contexto neo-testamentário, a fé é a adesão a Jesus e à sua proposta de salvação. Por isso, Marcos termina a sua história dizendo que o cego recuperou a vista e seguiu Jesus - isto é, fez-se discípulo de Jesus. Ao aderir a Jesus e à sua proposta de salvação, ao aceitar seguir Jesus no caminho do amor e do dom da vida (Jesus prepara-Se para entrar em Jerusalém, onde vai fazer dom da sua vida em favor dos homens), Bartimeu encontrou a salvação: deixou a vida da escuridão, da escravidão, da dependência em que estava e nasceu para essa vida verdadeira e eterna que, através de Jesus, Deus oferece aos homens.
    O cego Bartimeu que encontráramos a mendigar, sentado à beira do caminho, à saída de Jericó representava, inicialmente, os pecadores que viviam longe de Deus e à margem da salvação. Depois de encontrar Jesus, Bartimeu transforma-se e torna-se o protótipo do verdadeiro discípulo ... Destinatário privilegiado da proposta de salvação que Jesus traz, ele proclama sem hesitações a sua fé, invoca a ajuda e a misericórdia de Jesus, acolhe sem hesitações o chamamento que lhe é feito, liberta-se da vida velha e, com alegria, decisão e entusiasmo, aceita, sem condições, seguir Jesus no caminho do amor e do dom da vida. É com Bartimeu que os discípulos de Jesus são convidados a identificar-se.

    ACTUALIZAÇÃO

    • A situação inicial do cego Bartimeu (que jaz na escuridão, dependente, acomodado, conformado) evoca uma realidade que conhecemos bem ... Evoca a condição do homem escravo, prisioneiro do egoísmo, do orgulho, dos bens materiais, da preguiça, da vaidade, do êxito; evoca a condição daquele que está acomodado na sua situação de miséria, instalado nos seus preconceitos e projectos pessoais, conformado com uma vida de horizontes limitados; evoca a condição daquele que se sente refém dos seus vícios, hábitos e paixões e que sente a sua incapacidade em romper, por si só, as cadeias que o impedem de ser livre... Esta situação será uma situação insuperável, a que o homem está condenado de forma permanente?
    • A Palavra de Deus que nos é proposta garante-nos que a situação do homem cego, prisioneiro da escuridão, não é uma situação incontornável, obrigatória, sem remédio ... Jesus veio ao mundo, enviado pelo Pai, com uma proposta de libertação destinada a todos aqueles que procuram a luz e a vida verdadeira. Esse Jesus de Nazaré que Se cruzou com o cego à saída de Jericó continua a cruzar-Se hoje, de forma continuada, com cada homem e com cada mulher nos caminhos da vida e oferece-lhes, sem cessar, a proposta libertadora de Deus ... É preciso, no entanto, que não nos fechemos no nosso egoísmo e na nossa auto-suficiência, surdos e cegos aos apelos de Deus; é preciso que as nossas preocupações com os valores efémeros não nos distraiam do essencial; é preciso que aprendamos a reconhecer os desafios de Deus nesses acontecimentos banais com que, tantas vezes, Deus nos interpela e questiona ...
    • O que é que implica aceitar a proposta que Jesus faz? Fundamentalmente implica - como aconteceu com Bartimeu - tornar-se discípulo ... Ser discípulo de Jesus é aderir à sua pessoa, acolher os seus valores, viver na obediência aos projectos do Pai, fazer da vida um dom de amor aos irmãos; é solidarizar-se com os pequenos, com os pobres, com os perseguidos, com os marginalizados e lutar por um mundo onde todos sejam acolhidos como filhos de Deus, iguais em direitos e em dignidade; é lutar contra as estruturas que geram injustiça, opressão e morte; é ser testemunha, com palavras e com gestos, da verdade, da justiça, da paz, da reconciliação. Quem aceita seguir o caminho do discípulo escolhe viver na luz e está a contribuir para a construção de um mundo novo.
    • Quando reconhecemos o "chamamento" de Deus, qual deve ser a nossa resposta?
    Bartimeu, logo que ouviu dizer que Jesus o chamava, atirou fora a sua capa e correu ao encontro de Jesus. O gesto de Bartimeu representa, aqui, a renúncia imediata à vida antiga, ao egoísmo, ao comodismo, à escravidão, aos comportamentos incompatíveis com a adesão a Cristo e a esse caminho novo que Jesus o convida a percorrer. É isso, também, que é pedido a todos aqueles a quem Jesus chama à vida nova ...
    • Na história do encontro de Bartimeu com Cristo, aparecem outros personagens, com papéis vários. Uns constituem obstáculos à adesão de Bartimeu a Cristo; outros apresentam-se como intermediários entre Cristo e Bartimeu e transmitem ao cego as palavras de Jesus... Este facto serve para nos tornar conscientes do papel daqueles que nos rodeiam no nosso caminho da fé ... Ao longo da nossa caminhada, encontraremos sempre pessoas que nos ajudam a ir ao encontro de Cristo e pessoas que (muitas vezes com óptimas intenções) tentam impedir-nos de encontrar Cristo. Precisamos de aprender a discernir entre as várias opiniões que nos são propostas e a dar a devida importância a quem nos ajuda a descobrir o caminho para a verdadeira vida.
    • Quem encontra Cristo e aceita o desafio para viver como discípulo tem, a partir daí, um caminho fácil? De forma nenhuma. Tem de abandonar a vida cómoda e instalada em que vivia e enfrentar uma nova realidade, num desafio permanente, num questionamento constante; tem de aprender a enfrentar as críticas, as incompreensões, os confrontos com aqueles que não compreendem a sua opção; tem de percorrer, dia a dia, o difícil caminho do amor, do serviço, da entrega, do dom da vida ... É preciso, no entanto, que o discípulo esteja consciente de que o caminho de Jesus não é um caminho que leva à morte, mas é um caminho que leva à ressurreição, à vida verdadeira e eterna.
    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS
    PARA O 30° DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas de "Signes d'aujourd'hui"

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
    2.
    Ao longo dos dias da semana anterior ao 30° Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-Ia pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo ... Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa ... Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.

    Jesus encontrou obstáculos na sua vida pública: incompreensões dos chefes dos sacerdotes, ciladas colocadas pelos fariseus. Na saída de Jericó, a multidão faz obstáculo à atenção de Jesus, procura fazer calar um mendigo cego. Felizmente, Jesus escuta o grito deste homem e pede aos seus próximos para serem o trampolim entre Ele e o doente: "Chamai-o!. .. Eu quero ter necessidade de vós". Então temos estas três palavras, as palavras da Igreja que tem por missão levar os homens a Cristo: "confiança ... não tenhas medo, Ele vai certamente fazer-te bem. Levanta-te ... Ele respeita demasiado a tua liberdade, faz tu mesmo o caminho. Ele chama-te ... é Ele que toma a iniciativa e, se Ele te chama, é para te salvar". Jesus não pede ao homem para se calar. Pelo contrário, dá-lhe a palavra, e esta palavra torna-se para Jesus acto de fé, uma fé que salva. O homem é de tal modo salvo que não somente vê, mas segue Jesus no caminho, tal é a sua dupla cura.

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.

    A vista é a vida. A vista não tem preço. É o caminho do cego à procura de Jesus, da vista, da vida ... Filho de David, chama ele Jesus. Para os Judeus, só o Messias há tanto esperado podia ser assim chamado. Evocar David e a sua descendência era proclamar a fidelidade de Deus para com o seu povo. A multidão chamava a Jesus "Jesus de Nazaré". O cego chama Jesus "Filho de David". Reconhece em Jesus o Messias. O cego, na sua cegueira física, vê mais longe, mais profundamente, com o olhar interior da fé. Ele recuperou a luz exterior, mas é sobretudo a luz interior, a luz da fé, que vai iluminar o caminho da sua vida. Ele quer seguir e estar com aquele que disse: "Eu sou a Luz da Vida". E nós? Ficamo-nos muitas vezes pela superfície das coisas, num olhar superficial que nos faz passar ao lado da profundidade dos outros. Daí nascem os preconceitos, as tensões, as recusas. É o olhar da multidão sobre o cego: um mendigo sem interesse, que era necessário calar. Bartimeu recorda-nos que há um outro olhar, o olhar de Deus sobre nós, sobre os outros, sobre os acontecimentos. Cabe a nós perguntarmo-nos qual é o nosso verdadeiro olhar. "Senhor, faz que eu veja!".

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE ...

    "Que queres que te faça?", diz Jesus ao cego ... Não tenhamos medo, nós também, de dizer a Jesus: "que eu veja". A alegria de Cristo que nos ama é esta fé, esta confiança n'Ele. Não tenhamos medo de Lhe dizer a nossa fé e confiança, muitas vezes!

    Grupo Dinamizador
    Pe. Joaquim Garrido - Pe. Manuel Barbosa - Pe. Ornelas Carvalho
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10:: 1800-129 Lisboa - Portugal
    Tel: 218540900:: Fax: 218540909
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  • S. Simão e S. Judas, Apóstolos

    S. Simão e S. Judas, Apóstolos


    28 de Outubro, 2021

    Os apóstolos, que hoje celebramos, ocupam uma posição bastante discreta nos evangelhos. Simão é cognominado "zelote" por Lucas, talvez porque pertencia ao grupo antirromano dos zelotes. Mateus e Marcos qualificam-no como "cananeu" (10, 3; 3, 18). O apóstolo Judas, cognominado "Tadeu" por Mateus e Marcos (10, 3; 3, 18), é qualificado por Lucas como "filho de Tiago" (6, 16) e, portanto, primo do Senhor. É este Judas que, na última ceia, diz a Jesus: "Porque te hás-de manifestar a nós e não te manifestarás ao mundo?»" (Jo 14, 22). Uma das Cartas Católicas, na qual se previne os cristãos contra os falsos doutores que se haviam infiltrado nas comunidades, é-lhe atribuída. De acordo com uma tradição oriental, os dois apóstolos terão levado o Evangelho até ao Cáucaso, onde teriam sido martirizados. A sua festa, celebrada no Oriente desde o século VI, passou a ser celebrada em Roma no século IX.

    Lectio

    Primeira leitura: Efésios 2, 19-22

    Irmãos: Já não sois estrangeiros nem imigrantes, mas sois concidadãos dos santos e membros da casa de Deus, 20edificados sobre o alicerce dos Apóstolos e dos Profetas, tendo por pedra angular o próprio Cristo Jesus. 21É nele que toda a construção, bem ajustada, cresce para formar um templo santo, no Senhor. 22É nele que também vós sois integrados na construção, para formardes uma habitação de Deus, pelo Espírito.

    Na perspetiva de Paulo, o ministério de Cristo e o da Igreja estão intimamente ligados entre si. A unidade e a paz que há entre os cristãos, de origem pagã, ou deorigem hebraica, é dom de Deus Pai, por meio de Cristo Senhor, no Espírito Santo. A Igreja é como que um grande edifício, um templo santo, morada de Deus entre os homens. Os apóstolos, nossos pais na fé, com os profetas, são o fundamento desse edifício, onde nos sentimos "concidadãos dos santos e membros da casa de Deus" (v. 19). A "pedra angular" é Cristo (v. 20). Nesta perspetiva cristológica, a eclesiologia de Paulo torna-se particularmente clara. A presença, a função e o ministério dos apóstolos assume toda a sua importância. A Igreja é, pois, una, santa, católica e apostólica.

    Evangelho: Lucas 6, 12-19

    Naqueles dias, Jesus foi para o monte fazer oração e passou a noite a orar a Deus. 13Quando nasceu o dia, convocou os discípulos e escolheu doze dentre eles, aos quais deu o nome de Apóstolos: 14Simão, a quem chamou Pedro, e André, seu irmão; Tiago, João, Filipe e Bartolomeu; 15Mateus e Tomé; Tiago, filho de Alfeu, e Simão, chamado o Zelote; 16Judas, filho de Tiago, e Judas Iscariotes, que veio a ser o traidor. 17Descendo com eles, deteve-se num sítio plano, juntamente com numerosos discípulos e uma grande multidão de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e de Sídon, 18que acorrera para o ouvir e ser curada dos seus males. Os que eram atormentados por espíritos malignos ficavam curados; 19e toda a multidão procurava tocar-lhe, pois emanava dele uma força que a todos curava.

    Jesus dá particular atenção ao grupo dos Doze: escolhe-os (Lc 6, 12-19), institui-os como colégio (Mc 3, 13-19) e envia-os em missão (Mt 10, 1-15). Lucas anota que Jesus prepara a escolha dos Doze com uma noite de oração (6, 12). Antes de os escolher, Jesus chama os seus discípulos: o chamamento, a vocação, está sempre na origem de toda a instituição e ministério eclesial. Depois de os chamar, Jesus impõe-lhes o nome de apóstolos. A nota de Lucas pretende certamente exprimir a importância do colégio dos Doze na Igreja que Jesus está para fundar.

    Meditatio

    A festa dos santos apóstolos Simão e Judas oferecem-nos ensejo para refletirmos e tornarmos mais clara consciência da Igreja, que é simultaneamente corpo de Cristo e templo do Espírito Santo. São duas dimensões imprescindíveis. Não se pode receber o Espírito Santo sem pertencer ao corpo de Cristo. A razão é clara: o Espírito Santo é o Espírito de Cristo, que se recebe no corpo de Cristo. A Igreja, todavia, tem um aspeto visível. Por isso, Cristo escolheu os Doze e continua a escolher os seus sucessores, para formar a estrutura visível do seu corpo, quase em continuação da Incarnação. Pertencendo ao corpo de Cristo, podemos receber o seu Espírito e ser intimamente unidos a Ele num só corpo e num só Espírito.
    Um outro aspeto que esta festa nos permite colher é a relação entre a oração e a missão. Jesus demora-se em oração antes de decidir a escolha dos Doze. É preciso rezar para discernir o projeto de Deus. É preciso rezar em ordem às grandes decisões da vida pessoal e comunitária. Nesta perspetiva, a oração não é um momento separado do resto da vida, mas uma atitude prévia à nossa experiência de vida pessoal e eclesial. Rezar antes de iniciar a missão pessoal e/ou comunitária significa confiá-la Àquele que é o seu primeiro responsável, o dono da vinha, o pastor do rebanho, o Senhor do povo.
    "Reconhecemos que da oração assídua depende... a fecundidade do nosso apostolado." (Cst 76).

    Oratio

    Senhor Jesus, na festa de S. Simão e S. Judas, quero pedir-te a graça de, como os santos apóstolos, me tornar teu familiar e amigo. Então virás, com o Pai e com o Espírito Santo estabelecer em mim a tua morada. Que eu seja todo para ti, para o teu amor, para o apostolado, cooperação na tua obra redentora no coração do mundo. Ámen.

    Contemplatio

    Os dois apóstolos, que deviam ter-se conhecido na sua juventude em Caná, terminaram juntos o seu apostolado na Pérsia. Lá quiseram obrigá-los a oferecer sacrifícios ao Sol; preferiram dar a sua vida por Jesus Cristo. A sua morte foi ainda para ambos um ato de caridade, no seu objeto e nas suas circunstâncias. S. Simão estava num templo onde queriam obrigá-lo a sacrificar aos ídolos. Um anjo disse-lhe: «Far-te-ei sair do templo e farei ruir sobre eles todo o edifício». - «Não, respondeu Simão, deixai-os viver. Pode ser que alguns deles venham a converter-se». Enfim, um anjo disse a ambos: «Que escolheis? Ou a morte para vós ou o extermínio deste povo ímpio?» Os dois apóstolos exclamaram: «Misericórdia para este povo! Que o martírio seja a nossa herança». A sua morte foi uma semente de conversões. Unidos na sua vida, foram-no na morte, e são-no também no culto que lhes é prestado. A Igreja honra-os no mesmo dia. Os seus corpos reuniram-se a S. Pedro em Roma. Devo imitá-los no seu amor por Jesus, na sua fidelidade e no seu zelo pela salvação do próximo. (L. Dehon, OSP 4, p. 402s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Sois concidadãos dos santos
    e membros da casa de Deus" (Ef 2, 19).

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    S. Simão e S. Judas, Apóstolos (28 Outubro)

  • 31° Domingo do Tempo Comum - Ano B

    31° Domingo do Tempo Comum - Ano B


    31 de Outubro, 2021

    Ano B
    31° Domingo do Tempo Comum

    TEMA

    A liturgia do 31° Domingo do Tempo Comum diz-nos que o amor está no centro da experiência cristã. O caminho da fé que, dia a dia, somos convidados a percorrer, resume-se no amor Deus e no amor aos irmãos - duas vertentes que não se excluem, antes se complementam mutuamente.
    A primeira leitura apresenta-nos o início do "Shema' Israel" - a solene proclamação de fé que todo o israelita devia fazer diariamente. É uma afirmação da unicidade de Deus e um convite a amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças.
    O Evangelho diz-nos, de forma clara e inquestionável, que toda a experiência de fé do discípulo de Jesus se resume no amor - amor a Deus e amor aos irmãos. Os dois mandamentos não podem separar-se: "amar a Deus" é cumprir a sua vontade e estabelecer com os irmãos relações de amor, de solidariedade, de partilha, de serviço, até ao dom total da vida. Tudo o resto é explicação, desenvolvimento, aplicação à vida prática dessas duas coordenadas fundamentais da vida cristã.
    A segunda leitura apresenta-nos Jesus Cristo como o sumo-sacerdote que veio ao mundo para cumprir o projecto salvador do Pai e para oferecer a sua vida em doação de amor aos homens. Cristo, com a sua obediência ao Pai e com a sua entrega em favor dos homens, diz-nos qual a melhor forma de expressarmos o nosso amor a Deus.

    LEITURA 1- Df 6,2-6

    Moisés dirigiu-se ao povo, dizendo: «Temerás o Senhor, teu Deus, todos os dias da tua vida,
    cumprindo todas as suas leis e preceitos que hoje te ordeno,
    para que tenhas longa vida,
    tu, os teus filhos e os teus netos. Escuta, Israel, e cuida de pôr em prática
    o que te vai tornar feliz e multiplicar sem medida na terra onde corre leite e mel,
    segundo a promessa que te fez o Senhor, Deus de teus pais. Escuta, Israel:
    o Senhor nosso Deus é o único Deus.
    Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças.
    As palavras que hoje te prescrevo
    ficarão gravadas no teu coração».

    AMBIENTE

    O Livro do Deuteronómio é aquele "livro da Lei" ou "livro da Aliança" descoberto no Templo de Jerusalém no 18° ano do reinado de Josias (622 a.C.) (cf. 2 Re 22). Neste livro, os teólogos deuteronomistas - originários do Norte (Israel) mas, entretanto, refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do norte frente aos assírios - apresentam os dados fundamentais da sua teologia: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com ele uma Aliança eterna; e o Povo de Deus deve ser um único Povo, a propriedade pessoal de Jahwéh (portanto, não têm qualquer sentido as questões históricas que levaram o Povo de Deus à divisão política e religiosa, após a morte do rei Salomão).
    Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab. Pressentindo a proximidade da sua morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de "testamento espiritual": lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua aliança com Jahwéh.
    O texto que hoje nos é proposto integra o segundo discurso de Moisés (cf. Dt 4,44- 28,68). Tanto pelo lugar que ocupa no livro, como pela sua importância, este segundo discurso de Moisés constitui o centro do Livro do Deuteronómio. Em linhas gerais, este discurso apresenta-se em três peças principais: uma introdução (cf. Dt 4,44-11,32), um código legal (cf. Dt 12,1-25,19) e uma conclusão (cf. Dt 26,1-28,68).
    A primeira parte da introdução ao segundo discurso de Moisés (cf. Dt 4,44-9,5) oferece-nos uma apresentação do Decálogo (cf. Dt 5,1-33) - a Lei fundamental da Aliança estabelecida entre Deus e Israel, no Horeb - e, na sequência, um conjunto de exortações ao Povo para que viva na fidelidade aos mandamentos (cf. Dt 6,1-9,5). O nosso texto é um extracto dessa exortação.

    MENSAGEM

    O texto começa com uma exortação a "temer" o Senhor e a cumprir todas as suas leis e mandamentos (vers. 2-3). A expressão "temer o Senhor" - muito frequente no Antigo Testamento - traduz, por um lado, a reverência e o respeito e, por outro lado, a pronta obediência à vontade divina, a confiança inamovível no Deus que não falha, a humilde renúncia aos próprios critérios, a adesão incondicional à vontade de Deus, a aceitação plena das propostas e dos mandamentos de Deus. Na perspectiva do catequista deuteronomista autor deste texto, o crente ideal (o que "teme o Senhor"), é aquele que está disposto a renunciar à auto-suficiência e não aceita procurar a felicidade à margem das propostas de Deus; é aquele que, com total confiança, é capaz de se entregar nas mãos de Deus, de aceitar as suas indicações, de assumir os mandamentos do Senhor como caminho seguro e verdadeiro para chegar à vida em plenitude. Àquele que aceita viver no "temor do Senhor", o autor promete vida em abundância.
    Na segunda parte do nosso texto (vers. 4-6), temos o conhecido "Shema' Israel" (assim denominado por causa da primeiras palavras hebraicas de Dt 6,4: "Escuta Israel"). É um texto central do judaísmo, que desde finais do séc. I é rezado diariamente, de manhã e de tarde, por todos os judeus piedosos. No universo religioso judaico, o verbo "escutar", aqui usado, define uma acção em três tempos: "ouvir" com os ouvidos, "acolher" no coração, "transformar em acção concreta" aquilo que se ouviu e que se acolheu.
    O "Shema' Israel" começa com a afirmação solene da unicidade de Deus (vers. 4: "o Senhor é único"). O crente israelita deve ouvir e interiorizar esta realidade e actuar em consequência. Do seu horizonte fica, portanto, afastada qualquer possibilidade de adesão a outros deuses ou a outras propostas de salvação que não venham de Jahwéh.
    Depois, vem a exigência de amar este Deus único com um amor sem divisão, um amor que implique a totalidade do homem (vers. 5: "amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças"). Esse amor, interiorizado no coração e na alma do homem, deve depois traduzir-se na observância fiel dos mandamentos e preceitos da Aliança.

    ACTUALIZAÇÃO

    • A afirmação da unicidade de Deus convida-nos, antes de mais, a equacionar a questão dos "outros deuses" a quem, tantas vezes, entregamos a condução da nossa vidacPor vezes, esquecemos que Deus é a coordenada fundamental à volta da qual deve construir-se toda a nossa existência e deixamos que o nosso coração se fixe em realidades efémeras, nas quais pomos a nossa confiança, a nossa segurança e a nossa esperança (o dinheiro, o poder, o êxito, a realização profissional, a posição social, os títulos, as honrasü Essas realidades, contudo, mesmo que sejam agradáveis e úteis, não podem servir de pedra angular na construção da nossa vida. Se as erigirmos em realidade fundamental e construirmos toda a nossa existência em função delas, tornamo-nos escravos. O verdadeiro crente, sem prescindir das realidades efémeras, tem consciência de que só "o Senhor é o nosso Deus; o Senhor é único".
    • Dizer que Deus é único, é dizer que Ele é o único e verdadeiro caminho para a vida em plenitude. Contudo, no nosso orgulho, convencemo-nos, por vezes, que a nossa realização e a nossa felicidade estão na concretização dos nossos projectos pessoais, dos nossos desejos egoístas, das nossas inclinações e paixões, à margem de Deus e das suas propostas. A isso, chama-se auto-suficiência. Prescindir de Deus e das suas indicações leva-nos, invariavelmente, a trilhar caminhos de egoísmo, de injustiça, de exploração, de sofrimento, de morte. Precisamos de interiorizar esta realidade: por nós próprios, sem Deus, contando apenas com as nossas frágeis forças, não conseguiremos encontrar o caminho da realização, da felicidade, da vida em plenitude.
    • O nosso texto convida o crente a amar a Deus com um amor que implique a totalidade da vida do homem; ou, por outras palavras, convida o crente a viver no "temor do Senhor". Como é que deve expressar-se, em termos práticos, esse amor ao Senhor que nos vai no coração? É através de declarações solenes e ocas de boas intenções? É através de fórmulas fixas de oração que papagueamos de cor? É através de solenes ritos litúrgicos? O nosso amor ao Senhor deve, sobretudo, manifestar-se em gestos concretos que manifestem a nossa obediência incondicional aos seus planos, a nossa entrega total nas suas mãos, a nossa aceitação dos seus mandamentos e preceitos.

    SAMO RESPONSORIAL - Salmo 17

    Refrão:
    Eu Vos amo, Senhor:
    Vós sois a minha força.
    Eu Vos amo, Senhor, minha força,
    minha fortaleza, meu refúgio e meu libertador,
    meu Deus, auxílio em que ponho a minha confiança, meu protector, minha defesa e meu salvador.
    Invoquei o Senhor - louvado seja Ele - e fiquei salvo dos meus inimigos.
    Viva o Senhor, bendito seja o meu protector; exaltado seja Deus, meu Salvador.
    Senhor, eu Vos louvarei entre os povos e cantarei salmos ao vosso nome.
    O Senhor dá ao seu Rei grandes vitórias
    e usa de bondade para com o seu Ungido.

    LEITURA 11- Heb 7,23-28

    Os sacerdotes da antiga aliança sucederam-se em grande número,
    porque a morte os impedia de durar sempre. Mas Jesus, que permanece eternamente, possui um sacerdócio eterno.
    Por isso pode salvar para sempre
    aqueles que por seu intermédio se aproximam de Deus, porque vive perpetuamente para interceder por eles.
    Tal era, na verdade, o sumo sacerdote que nos convinha: santo, inocente, sem mancha,
    separado dos pecadores e elevado acima dos céus, que não tem necessidade, como os sumos sacerdotes, de oferecer cada dia sacrifícios,
    primeiro pelos seus próprios pecados,
    depois pelos pecados do povo,
    porque o fez de uma vez para sempre
    quando Se ofereceu a Si mesmo.
    A Lei constitui sumos sacerdotes
    homens revestidos de fraqueza,
    mas a palavra do juramento, posterior à Lei,
    estabeleceu o Filho sumo sacerdote perfeito para sempre.

    AMBIENTE

    Em Heb 6,20, o autor da Carta declara Jesus Cristo "sumo-sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec". Na sequência, vai dedicar todo o capítulo 7 da Carta (cf. Heb 7,1-28) a explicar a sua afirmação.
    Melquisedec é um personagem misterioso que aparece em Gn 14,18-20. Apresentado como rei e sacerdote de Salem (localidade desconhecida, que o Sal 76,3 identifica com Jerusalém), ele adora o Deus altíssimo, abençoa Abraão quando este regressa da guerra e oferece-lhe pão e vinho. Abraão, o antepassado dos sacerdotes levíticos, inclinar-se-á diante dele e pagar-Ihe-á o dízimo. O Salmo 110, por sua vez, apresenta um rei da casa de David como o continuador do prestigioso Melquisedec ("o Senhor jurou" ao rei "e não voltará atrás: tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec" - Sal 110,4). A partir daqui, a figura de Melquisedec adquirirá uma clara conotação rnesslànlca Após o Exílio na Babilónia, os judeus esperam ver surgir um salvador da descendência de David que reúna, como Melquisedec, o sacerdócio e a realeza. Os cristãos, inspirados por estas ideias, vão ler o mistério de Jesus a esta luzO
    O autor da Carta aos Hebreus vai nesta linha. Na sua perspectiva, Jesus exerce um sacerdócio perfeito e eterno, que não se vincula ao sacerdócio de Levi (que é um sacerdócio exercido por homens pecadores, mortais e que se sucedem de geração em geração), mas que realiza o sacerdócio real do Messias davídico, sucessor de Melquisedec.
    Na primeira parte do capítulo 7 da Carta, o autor resume a história de Melquisedec e afirma a superioridade do seu sacerdócio sobre o sacerdócio levítico (cf. Heb 7,11-10); na segunda, o autor demonstra que o sacerdócio novo de Cristo (na linha do sacerdócio de Melquisedec) é um sacerdócio perfeito e eterno, que veio substituir o sacerdócio levítico e abolir a antiga Lei (cf. Heb 7,11-28).

    MENSAGEM

    Uma das provas da superioridade do sacerdócio de Cristo é a sua duração eterna, que contrasta com a mudança contínua das gerações do sacerdócio levítico. Para o autor da Carta aos Hebreus, a multiplicidade e a alternância são sinónimos de imperfeição. Porque o sacerdócio de Cristo é eterno e a sua intercessão junto de Deus é contínua, ele assegura, de modo definitivo, a salvação do crente (vers. 23-25).
    O autor termina a sua reflexão com uma espécie de hino (vers. 26-28), que resume toda a exposição anterior e que exalta as características do sacerdócio de CristoaEle
    é o sumo-sacerdote "santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores e elevado acima dos céus" (vers. 26), porque pertence à esfera do Deus santo.
    Além disso, Ele não tem necessidade de oferecer todos os dias sacrifícios pelos pecados próprios e alheios, porque se ofereceu a Si próprio, de uma vez por todas, em sacrifício perfeito (vers. 27).
    Em jeito de conclusão, o autor destaca, uma vez mais, o contraste entre a ordem imperfeita - que é a ordem da Lei e do sacerdócio levítico - e a ordem perfeita, prometida por Deus e realizada pelo sumo-sacerdote JesusoA.li, havia homens cheios de fragilidades e de debilidades; aqui, está o sumo-sacerdote eterno, que é Filho de Deus, que está junto de Deus e que intercede permanentemente pelos homens.

    ACTUALIZAÇÃO

    • Na Carta aos Hebreus, Jesus Cristo é o sacerdote por excelência, que o Pai enviou ao mundo com a missão de convidar todos os homens a integrar a comunidade do Povo sacerdotal. Ora, Jesus Cristo cumpriu integralmente a missão que o Pai lhe confiou ODesde o primeiro instante da sua incarnação, Ele fez da sua vida uma escuta atenta do Pai e uma entrega total aos homens. Na obediência e na entrega de Cristo - que foi até ao dom total da vida, na cruz - ficou bem expresso o seu amor ao Pai. Cristo, com o exemplo da sua vida, diz-nos qual a melhor forma de expressarmos o nosso amor a DeusCÉ na escuta atenta dos seus projectos e dos seus desafios, no acolhimento da sua Palavra e das suas propostas, na obediência aos seus mandamentos, no cumprimento incondicional da sua vontade, no dom da vida aos irmãos por amor, no testemunho corajoso dos seus valores e projectos, que nós expressamos, de forma privilegiada, esse amor a Deus que nos enche o coração.
    • O autor da Carta aos Hebreus insiste, com frequência, que o verdadeiro sacrifício, o sacrifício que Deus aprecia, o sacrifício que gera dinamismos de vida e de salvação, é aquele que Cristo ofereceu ao Pai: a sua própria vida, posta ao serviço do projecto de Deus e feita amor e serviço para os homens. Nós, os crentes, sempre preocupados em agradar a Deus e em render-Lhe o culto que Ele merece, esquecemos, por vezes, o óbvio: mais do que ritos majestosos, manifestações públicas de fé, solenes celebrações, Deus aprecia o dom de nós mesmos. O culto que Ele nos pede, o sacrifício que Ele aprecia e que há-de gerar vida nova para nós e para os que caminham ao nosso lado, é a obediência aos seus projectos e o amor aos irmãos.
    • Cristo é, efectivamente, o sumo-sacerdote que está junto do Pai e que intercede continuamente por nós, como não se cansa de repetir o autor da Carta aos Hebreus. A consciência desse facto deve encher o nosso coração de paz, de esperança e de confiança: se Cristo intercede por nós, podemos encarar a vida de forma serena, com a consciência de que as nossas debilidades e fragilidades nunca nos afastarão, de forma definitiva, da comunhão com Deus e da vida eterna.

    ALELUIA - Jo 14,23

    Aleluia. Aleluia.
    Se alguém Me ama, guardará a minha palavra, diz o Senhor; meu Pai o amará e faremos nele a nossa morada.

    EVANGELHO - Mc 12,28-34

    Naquele tempo,
    aproximou-se de Jesus um escriba e perguntou-Lhe: «Qual é o primeiro de todos os mandamentos?» Jesus respondeu:
    «O primeiro é este:
    'Escuta, Israel:
    O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus
    com todo o teu coração, com toda a tua alma,
    com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças'. O segundo é este:
    'Amarás o teu próximo como a ti mesmo'.
    Não há nenhum mandamento maior que estes». Disse-Lhe o escriba:
    «Muito bem, Mestre! Tens razão quando dizes:
    Deus é único e não há outro além d'Ele. Amá-l'O com todo o coração,
    com toda a inteligência e com todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo,
    vale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios». Ao ver que o escriba dera uma resposta inteligente, Jesus disse-lhe:
    «Não estás longe do reino de Deus».
    E ninguém mais se atrevia a interrogá-I'O.

    AMBIENTE

    O Evangelho deste domingo situa-nos já em Jerusalém, no centro da cidade onde vão dar-se os últimos passos desse caminho que Jesus vem percorrendo, com os discípulos, desde a Galileia.
    O ambiente é tenso. Algum tempo antes, Jesus expulsara os vendilhões do Templo (cf. Mc 11,15-18), acusando os líderes judaicos de terem feito da "casa de Deus um covil de ladrões"; logo de seguida, contara a parábola dos vinhateiros homicidas (cf. Mc 12,1-12), acusando os dirigentes de se oporem, de forma continuada, à realização do plano salvador de DeuseDs líderes judaicos, convencidos de que Jesus era irrecuperável, tinham tomado decisões drásticas: Ele devia ser preso, julgado, condenado e eliminado. Fariseus, Herodianos (cf. Mc 12,13) e até saduceus (cf. Mc 12,18), procuram estender armadilhas a Jesus, a fim de O surpreender em afirmações pouco ortodoxas, que pudessem ser usadas em tribunal para conseguir uma condenação. As controvérsias sobre o tributo a César (cf. Mc 12,13-17) e sobre a ressurreição dos mortos (cf. Mc 12,18-27) devem ser situadas e compreendidas neste contexto.
    Neste ambiente, aparece um escriba a perguntar a Jesus qual era o maior mandamento da Lei. Ao contrário de Mateus (cf. Mt 22,34-40), Marcos não considera, contudo, que a questão seja posta a Jesus para o embaraçar ou pôr à prova. O escriba que coloca a questão parece ser um homem sincero e bem intencionado, genuinamente preocupado em estabelecer a hierarquia correcta dos mandamentos da Lei.
    De facto, a questão do maior mandamento da Lei não era uma questão pacífica e tornou-se, no tempo de Jesus, objecto de debates intermináveis entre os fariseus e os doutores da Lei. A preocupação em actualizar a Lei, de forma a que ela respondesse a todas as questões que a vida do dia a dia punha, tinha levado os doutores da Lei a deduzir um conjunto de 613 preceitos, dos quais 365 eram proibições e 248 acções a pôr em prática. Esta "multiplicação" dos preceitos legais lançava, evidentemente, a questão das prioridades: todos os preceitos têm a mesma importância, ou há algum que é mais importante do que os outros?
    É esta a questão que é posta a Jesus.

    MENSAGEM

    Citando o primeiro versículo do "Shema' Israel", a grande profissão de fé que todo o judeu recitava no início e no fim do dia (cf. Dt 6,4-5), Jesus declara solenemente que o primeiro mandamento é o amor a Deus - um amor que deve ser total, sem divisões, feito de adesão plena aos projectos, à vontade, aos mandamentos de Deus (vers. 30: "com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças"). Como se achasse que a resposta não era suficiente, Jesus completa-a, imediatamente, com a apresentação de um segundo mandamento: "amarás o teu próximo como a ti mesmo" (trata-se de uma citação de Lv 19,18). Ou seja: o maior mandamento é o mandamento do amor; e esse mandamento fundamental concretiza-se em duas dimensões que se completam mutuamente - a do amor a Deus e a do amor ao próximo.
    A originalidade deste sumário evangélico da Lei não está nas ideia de amor a Deus e ao próximo, que são bem conhecidas do Antigo Testamentouv originalidade deste ensinamento está, por um lado, no facto de Jesus os aproximar um do outro, pondo-os em perfeito paralelo e, por outro, no facto de Jesus simplificar e concentrar toda a revelação de Deus nestes dois mandamentos.
    A resposta de Jesus ao escriba não vai no sentido de estabelecer uma hierarquia rígida de mandamentos; mas superando o horizonte estreito da pergunta, situa-se ao nível das opções profundas que o homem deve fazer[]) importante, na perspectiva de Jesus, não é definir qual o mandamento mais importante, mas encontrar a raiz de todos os mandamentos. E, na perspectiva de Jesus, essa raiz gira à volta de duas coordenadas: o amor a Deus e o amor ao próximo.
    Portanto, o compromisso religioso (que é proposto aos crentes, quer do Antigo, quer do Novo Testamento) resume-se no amor a Deus e no amor ao próximo. Na perspectiva de Jesus, que é que isto quer dizer?
    De acordo com os relatos evangélicos, Jesus nunca se preocupou excessivamente com o cumprimento dos rituais litúrgicos que a religião judaica propunha, nem viveu obcecado com o oferecimento de dons materiais a Deus. A grande preocupação de Jesus foi, em contrapartida, discernir a vontade do Pai e cumpri-Ia com fidelidade e amor. "Amar a Deus" é pois, na perspectiva de Jesus, estar atento aos projectos do Pai e procurar concretizar, na vida do dia a dia, os seus planos. Ora, na vida de Jesus, o cumprimento da vontade do Pai passa por fazer da vida uma entrega de amor aos irmãos, se necessário até ao dom total de si mesmo.
    Assim, na perspectiva de Jesus, "amor a Deus" e "amor aos irmãos" estão intimamente associados. Não são dois mandamentos diversos, mas duas faces da mesma moeda. "Amar a Deus" é cumprir o seu projecto de amor, que se concretiza na solidariedade, na partilha, no serviço, no dom da vida aos irmãos.
    Como é que deve ser esse "amor aos irmãos"? Este texto só explica que é preciso "amar o próximo como a si mesmo". As palavras "como a si mesmo" não significam qualquer espécie de condicionalismo, mas que é preciso amar totalmente, de todo o coração. Noutros textos neo-testamentários, porém, Jesus explica aos seus discípulos que é preciso amar os inimigos e orar pelos perseguidores (cf. Mt 5,43-48). Trata-se, portanto, de um amor sem limites, sem medida e que não distingue entre bons e maus, amigos e inimigos. Aliás, Lucas, ao contar este mesmo episódio que o Evangelho de hoje nos apresenta, acrescenta-lhe a história do "bom samaritano", explicando que esse "amor aos irmãos" pedido por Jesus é incondicional e deve atingir todo o irmão que encontrarmos nos caminhos da vida, mesmo que ele seja um estrangeiro ou inimigo (cf. Lc 10,25-37).
    O escriba concorda plenamente com a resposta de Jesus. Para exprimir a sua aprovação, ele cita alguns passos da Bíblia Hebraica (cf. Dt 4,35 e Is 45,21; Dt 6,5; Lv 19,18; Os 6,6), que repetem, com palavras diversas, o que Jesus acabou de dizer. Diante do comentário inteligente do escriba, Jesus declara-lhe que não está "longe do Reino de Deus" (vers. 34). Este escriba é, sem dúvida, um homem justo, que observa a Lei, que estuda a Escritura e que procura lê-Ia e pô-Ia em prática; no entanto, para poder integrar a comunidade do Reino, falta-lhe acolher Jesus como o Messias libertador enviado por Deus com uma proposta de salvação e decidir-se a tornar-se seu discípulo (após a conversa com Jesus, este escriba continua no seu lugar; não há qualquer indicação de que ele se tivesse disposto a seguir Jesus).

    ACTUALIZAÇÃO

    • Mais de dois mil anos de cristianismo criaram uma pesada herança de mandamentos, de leis, de preceitos, de proibições, de exigências, de opiniões, de pecados e de virtudes, que arrastamos pesadamente pela história. Algures durante o caminho, deixámos que o inevitável pó dos séculos cobrisse o essencial e o acessório; depois, misturámos tudo, arrumámos tudo sem grande rigor de organização e de catalogação e perdemos a noção do que é verdadeiramente importante. Hoje, gastamos tempo e energias a discutir certas questões que têm a sua importância (como o casamento dos padres, o sacerdócio das mulheres, o uso dos meios anticonceptivos, o que é ou não litúrgico, os problemas do poder e da autoridade, os pormenores legais da organização ecleslalüe continuamos a ter dificuldade em discernir o essencial na proposta de Jesus. O Evangelho deste domingo põe as coisas de forma totalmente clara: o essencial é o amor a Deus e o amor aos irmãos. Nisto se resume toda a revelação de Deus e a sua proposta de vida plena e definitiva para os homens. Precisamos de rever tudo, de forma a que o lixo acumulado não nos impeça de compreender, de viver, de anunciar e de testemunhar o cerne da proposta de Jesus.
    • O que é "amar a Deus"? De acordo com o exemplo e o testemunho de Jesus, o amor a Deus passa, antes de mais, pela escuta da sua Palavra, pelo acolhimento das suas propostas e pela obediência total dos seus projectos para mim próprio, para a Igreja, para a minha comunidade e para o mundo. Esforço-me, verdadeiramente, por tentar escutar as propostas de Deus, mantendo um diálogo pessoal com Ele, procurando reflectir e interiorizar a sua Palavra, tentando interpretar os sinais com que Ele me interpela na vida de cada dia? Tenho o coração aberto às suas propostas, ou fecho-me no meu egoísmo, nos meus preconceitos e na minha auto-suficiência, procurando construir uma vida à margem de Deus ou contra Deus? Procuro ser, em nome de Deus e dos seus planos, uma testemunha profética que interpela o mundo, ou instalo-me no meu cantinho cómodo e renuncio ao compromisso com Deus e com o Reino?
    • O que é "amar os irmãos"? De acordo com o exemplo e o testemunho de Jesus, o amor aos irmãos passa por prestar atenção a cada homem ou mulher com quem me cruzo pelos caminhos da vida (seja ele branco ou negro, rico ou pobre, nacional ou estrangeiro, amigo ou inimigo), por sentir-me solidário com as alegrias e sofrimentos de cada pessoa, por partilhar as desilusões e esperanças do meu próximo, por fazer da minha vida um dom total a todos. O mundo em que vivemos precisa de redescobrir o amor, a solidariedade, o serviço, a partilha, o dom da vidaCNa realidade, a minha vida é posta ao serviço dos meus irmãos, sem distinção de raça, de cor, de estatuto social? Os pobres, os necessitados, os marginalizados, os que alguma vez me magoaram e ofenderam, encontram em mim um irmão que os ama, sem condições?
    • É fundamental que tenhamos consciência de que estas duas dimensões do amor - o amor a Deus e o amor aos irmãos - não se excluem nem estão em confronto uma com a outra. Amar a Deus é cumprir a sua vontade e os seus projectos; ora, a vontade de Deus é que façamos da nossa vida um dom de amor, de serviço, de entrega aos irmãos - a todos os irmãos com quem nos cruzamos nos caminhos da vida. Não se trata entre optar por rezar ou por trabalhar em favor dos outros, entre estar na igreja ou estar a ajudar os pobres; trata-se é de manter, dia a dia, um diálogo contínuo com Deus, a fim de percebermos os desafios que Deus tem para nós e de lhes respondermos convenientemente, no dom de nós próprios aos irmãos.
    • Como é que vivemos a nossa caminhada religiosa? Qual é, para nós, o elemento fundamental da nossa experiência de fé? Por vezes não estaremos a dar demasiada importância a elementos que não têm grande significado (as prescrições do culto e do calendário, os ritos exteriores, as regras do liturgicamente correcto, as doações de dinheiro para as festas do santo padroeiro, as leis canónicas, as questões disciplinaresü esquecendo o essencial, negligenciando o mandamento maior?

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS
    PARA O 31° DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas de "Signes d'aujourd'hui")

    1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
    Ao longo dos dias da semana anterior ao 31° Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-Ia pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemploaEscolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosaCAproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.
    Deus nunca se apresenta como concorrente do homem. Seria assim se disséssemos que é preciso amar Deus ou o próximo. Ora, o escriba que encontra Jesus diz "amar Deus de todo o coração ce amar o seu próximo como a si mesmo vale mais que todas as oferendas e sacrifícios". Para não se ficar longe do reino de Deus, basta, pois, amar Deus e o seu próximo. Foi o testemunho deixado por Jesus: o seu amor pelo Pai levava-o a retirar-se para o monte para rezar, a erguer os olhos para o céu antes de fazer milagres, mas ao mesmo tempo ia ao encontro dos doentes, dos excluídos, dos pecadores, das multidões perdidas como ovelhas sem pastor. E depois, na cruz, vira-se para seu Pai, mas também para o ladrão crucificado ao seu lado, para Maria e João, para os verdugos que não sabiam o que faziam, dizia Ele. E não esqueçamos a palavra de João, que esclarece muito bem o duplo mandamento: aquele que diz "amo a Deus" e não ama o seu próximo é um mentiroso.

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.
    À primeira vista, o vocabulário não pega! O amor não se impõe com golpes de leis! Porque dizer que o amor a Deus e ao próximo é o maior mandamento? Para os Judeus, a vontade de Deus exprime-se na Lei e tudo é visto a essa luz. A Lei é como que a incarnação da vontade de Deus. Então, Jesus respeita este escriba, que era um profissional da Lei, utilizando a mesma linguagem que ele. Mas começa por "escuta, Israeli'J É mais que um mandamento, é a afirmação fundamental da fé em Deus único. Mais ainda, este texto tornou-se a oração que os Judeus fiéis, ainda hoje, dizem três vezes por dia. É tão importante para os Judeus como o "Pai Nosso" para os cristãos. Deve ser, pois, meditada. Amar a Deus com todas as forças, com toda a mente, com toda a nossa forçarn.Jm amor verdadeiramente humano, o amor segundo
    a vontade de Deus. Jesus liga o amor a Deus e o amor ao próximo. O escriba compreendeu: este amor vale mais que todas as oferendas e sacrifícios, porque envolve todo o nosso ser. Ele é a vida.

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUED
    Amar com todo o coraçãoDQue valem os nossos "amo-te"? Aproveitemos a interpelação deste domingo para reflectir, nesta semana, na sinceridade das nossas palavras e dos nossos sentimentos. Dizer a alguém "amo-te", é verdadeiramente amá¬lo com todo o seu coração, com todas a sua força, sem falhas?

    Grupo Dinamizador
    Pe. Joaquim Garrido - Pe. Manuel Barbosa - Pe. Ornelas Carvalho
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