Entrevista ao Jornal da Madeira
O diácono António Jesus da Silva, 28 anos, será ordenado sacerdote no próximo dia 30 de julho na Sé do Funchal.
Ao Jornal da Madeira, este religioso dehoniano, natural da Serra de Água falou sobre o seu caminho vocacional e espiritualidade ligada ao Coração de Jesus.
No próximo dia 30 de julho será ordenado presbítero na Sé do Funchal. Como começou o seu caminho vocacional?
Diácono António – São muitos os rostos e as histórias que estiveram na origem e na afirmação da minha vocação, a começar pela minha família, berço de humanização e de fé, passando pela comunidade paroquial da Serra d’Água, com os seus vales, que testemunham e conservam a lição do trabalho árduo e a riqueza das tradições, sem esquecer as aventuras de um Colégio (Funchal) – sempre missionário – que me estruturou como ser e deu à minha juventude uma oportunidade privilegiada de discernimento. Precisamente, privilegiada, porque há distância de alguns anos, vejo, agora, o quanto foi providencial para mim e para tantos colegas ter tido a companhia de irmãos mais velhos que nos ajudaram a descobrir a beleza da questão “vocação?”.
A inquietação vocacional esteve presente, desde cedo, na minha infância, num tempo em que o desejo de “ser padre” ainda se confundia com muitos outros sonhos e expectativas. Porém, de modo claro e evidente, tal inquietação só tomou forma quando fui provocado a fazer a experiência de seminário juntamente com os padres que, há muito tempo, já estavam presentes na minha infância e no ambiente familiar.
“SÃO MUITOS OS ROSTOS E AS HISTÓRIAS QUE ESTIVERAM NA ORIGEM E NA AFIRMAÇÃO DA MINHA VOCAÇÃO”
Esta vocação para servir a Igreja nasce da certeza de que, no meu coração, arde o Amor de Deus, que se manifesta nesta vontade de me entregar ao serviço dos outros. É uma vocação que nasce da muita relação com Deus, feita também de inquietações e provocações que Deus me colocou ao longo da vida, mas de modo especial nos meus primeiros anos. Não deveríamos ter medo de ajudar outros a fazer a experiência desta pró/vocação: “Qual é a minha vocação? Onde e como posso amar e servir melhor?”. Ninguém avança numa decisão, sem primeiro colocar a sua vida em questão; ninguém fala de Amor, sem ter feito essa experiência de modo incarnado na sua própria história; ninguém define uma identidade senão apoiado na diversidade de rostos que dão sentido à construção de uma narrativa de vocação. E foi assim que fui crescendo, nas diversas etapas que constituem a progressividade da consagração. É assim que Deus me tem acompanhado e desafiado a ser mais d’Ele, em vista de uma vida mais unificada. Eis o grande dom que me foi concedido ao longo destes anos de caminhada junto dos Dehonianos, nas diversas comunidades religiosas por onde fui passando: a possibilidade de encontro pessoal com Cristo e de um questionamento sério sobre que missão dá sentido à minha existência.
Para si, o que significa ser missionário?
Diácono António – Ser missionário é ter no coração a simultaneidade da certeza de ser amado por Deus e o desejo de anunciar a todos essa mesma experiência transformadora. Para ser sincero, penso que não se trata de uma escolha, mas de uma consequência inevitável, decorrente da experiência de Amor em Deus. Ser missionário é dar testemunho daquilo que se experimenta com alegria e que se assume como convicção: Cristo está vivo e quer transformar a minha vida! Quando penso na minha vocação, como uma vocação missionária, penso nesta vontade divina de chegar a todos os corações, vontade essa com a qual me identifico e que se torna também minha. Eu próprio, sentindo-me, assim, amado por Deus e acompanhado pela amizade e oração dos meus irmãos, sinto que é impossível não querer ser, nem fazer outra coisa neste mundo senão ser anunciador, “partilhador”, testemunha de que vale a pena dar-se, vale a pena deixar-se encontrar, vale a pena valorizar o tesouro da vulnerabilidade que nos habita, vale a pena acreditar, vale a pena ir contra a corrente da indiferença e da conformação, vale a pena rezar, vale a pena amar e deixar-se amar. O missionário é, portanto, o anunciador do seu próprio encontro com Cristo. O missionário é uma testemunha fidedigna dos muitos milagres que Deus vai fazendo nas nossas vidas.
Porque considera que a pessoa de Jesus “é o paradigma da nova humanidade”?
Diácono António – Muito embora, hoje, vivamos num tempo de reconfiguração, penso que o ser humano não necessita de reescrever o seu ADN para ser mais humano, nem necessita de novas fórmulas. Verifico que aquilo que nos faz falta é tão simplesmente deixar-nos interrogar e reconhecer que há uma proposta de humanização sempre nova, inesgotável e transformadora, a partir de um encontro particular com a pessoa de Jesus.
Para mim, uma “nova proposta de humanismo” deveria passar por algo tão simples quanto é o reconhecimento da beleza da nossa própria humanidade à luz da humanidade de Cristo. Isto porque, pensar e reflectir sobre a pessoa de Jesus Cristo é um desafio à nossa capacidade de aceitar que, de facto, há Alguém sumamente bom, simplesmente bem, singularmente Amor. Olhar para Jesus Cristo é reconhecer que ali está a minha própria possibilidade de humanização, porque Ele é esse projecto de humanidade perfeita e alcançável. Olhando para os evangelhos, para os testemunhos daqueles que viveram de perto uma relação de intimidade com Jesus, verifico que foram e são pessoas profundamente humanizadas e capazes de humanizar. Isto, para mim, é uma prova evidente de que Ele é realmente o caminho para uma nova humanidade. Para os cristãos, seguir o mais humano dos Homens, é aceitar que Ele ilumine a realidade humana e a transforme num autêntico itinerário de humanização.
Na pagela de ordenação escolheu a imagem do Bom Pastor e a frase “Isto é o meu corpo entregue por vós”. Pode explicar-nos a razão destas escolhas?
Diácono António – O Bom Pastor é uma imagem muito própria e sugestiva de tudo o que pode constituir a missão do sacerdote na Igreja e no Mundo. Em primeiro lugar, esta imagem lembra-nos que no centro está um Bom Pastor e não os nossos pastoreios. Colocar Jesus no centro da minha vida é, portanto, uma forma de não me anunciar a mim mesmo; é uma forma de relembrar, a cada a dia, que Ele cuida sempre de mim, mesmo quando possa andar mais tresmalhado. Em segundo lugar, ser discípulo de Jesus é também ser pastor como Ele e, por isso, a imagem do Bom Pastor está presente na vida do sacerdote para que cada gesto e palavra seja reflexo da pessoa e da acção de Jesus.
A minha pagela apresenta uma figura particular de Cristo, o Bom Pastor. É uma imagem única e diferente das imagens mais comuns. É singular, pois o Bom Pastor é um pastor ferido, como se pode ver nas feridas das mãos e do lado. De certo modo, conjuga-se a imagem do Bom Pastor com a do Coração de Jesus, para significar o Amor de Jesus que é total, incondicional e “louco” pela Humanidade e que todo o sacerdote deve procurar anunciar e configurar-se, em toda a sua vida. A mancha no centro é expressão do efeito do Amor de Deus em nós: tal como numa aguarela basta um pouco de tinta com água para se espalhar a cor no papel, também assim é o toque do Amor de Deus em nós: um Amor que contagia, irradia e transforma. O Coração ferido de Jesus é esta fonte que toca a humanidade e fragilidade de todos nós, para nos elevar.
Toda esta simbólica é complementada pelo lema “Isto é o meu corpo entregue por vós” (Lc 22, 19). Para além de ser a frase que resume toda a acção e missão de Jesus e do sacerdócio, também é a frase que centra toda a minha vida na Eucaristia, realidade e dimensão muito própria da espiritualidade dos Sacerdotes do Coração Jesus, Congregação à qual pertenço. Nesta frase projecta-se uma vida de doação, de vivência eucarística e de intimidade com o Coração de Cristo.
Ao longo do meu percurso fui desenvolvendo um afecto particular pela imagem do Coração de Jesus, ferido na cruz. Naquele coração ferido, encontramos a razão das nossas lágrimas, mas também o motivo da nossa alegria. Aquele Coração ferido é sinal de todo um Corpo que se dá, para que eu possa ter vida. Ao dizer “Isto é o meu corpo”, através do próprio corpo, renova-se a doação total de Jesus. Ali está um mistério que expressa a missão do sacerdote: dar-se todo a Deus e doar-se por inteiro pelas suas ovelhas. Porque quem ama, dá-se todo e dá-se não a si, mas aos outros (“entregue por vós”). O nosso corpo, o Corpo de Jesus não existe para ser possuído (posse), mas para ser partilhado, entregue, vivido e amado.
Elementos biográficos
O Diácono António nasceu (1993) e viveu a sua infância na Serra de Água, junto da sua família – os seus pais e os seus dois irmãos – que desde bem cedo o educaram para a fé e para o serviço na comunidade. Neste meio frequentou a catequese, ingressou no grupo de acólitos e ali teve o primeiro contacto com os Dehonianos, sacerdotes religiosos que servem a zona pastoral da Ribeira Brava há largos anos.
Depois de ter frequentado alguns encontros como contacto e depois como pré-seminarista, entre 2003 e 2006, com 12 anos decidiu ingressar no Colégio Missionário do Sagrado Coração (Funchal) para fazer mais de perto a experiência do discernimento vocacional. Dali transitou para o Porto, onde frequentou os dois primeiros anos de teologia e foi recebido como postulante. Seguiu-se a etapa do noviciado em Aveiro, onde a 14 de Setembro de 2014 fez a sua profissão religiosa.
O caminho dos estudos e formação levou-o até a Alfragide – Seminário Nossa Senhora de Fátima, onde concluiu os seus estudos teológicos e também foi amadurecendo a sua vocação através da colaboração com diversas realidades pastorais. Como é hábito nos dehonianos, depois dos estudos e antes dos votos perpétuos – professados a 24 de julho de 2021 – , esteve dois anos em missão na comunidade dehoniana de Cosenza (Itália). Regressado a Portugal frequentou o ano pastoral, em Lisboa, e foi ordenado diácono em Dezembro passado.
Atualmente, encontra-se no Porto, no Seminário Missionário Padre Dehon, e colabora pastoralmente na Paróquia de Fânzeres.