Perscrutando a antropologia do Padre Dehon e das nossas Constituições

Este segundo dia do seminário «Anthropologia Cordis» desenvolveu-se em torno de dois grandes temas: na parte da manhã, centrada na figura do Padre Dehon, procurando saber se poderia reconhecer-se nos seus escritos – tanto espirituais como sociais e outros – uma determinada perspectiva antropológica; na parte da tarde, a atenção centrou-se nas nossas actuais Constituições ou Regra de Vida.

Na parte da manhã o método seguido foi semelhante a uma entrevista, feita por um moderador, o nosso confrade espanhol, Pe. Fernando Rodríguez Garrapucho, o qual, partindo de temas da antropologia da Gaudium et Spes, interpelava os conferentes no sentido de identificarem elementos que permitam configurar no Padre Dehon uma determinada perspectiva antropológica.

Resultou deste «debate» que o Padre Dehon, como o Concílio Vaticano II vai sublinhar naGaudium et Spes, tinha um projecto concreto de desenvolvimento de uma antropologia integral, vendo o homem em todas as dimensões do seu ser. No debate, tanto em grupos como em plenário, resultaram duas configurações antropológicas: do pobre e do homem ferido. O meu contributo específico foi sublinhar a importância da antropologia do homem ferido. É o tema dolado aberto no qual o Padre Dehon (cf. Coroas de Amor, Coroa da Paixão) fala da ferida visível que permite aceder e contemplar a ferida invisível do amor (tema que já vinha da teologia medieval). Temos assim o aspecto positivo e dinâmico do homem ferido, Cristo, com o qual o discípulo é chamado a identificar-se. Para o Padre Dehon, e, por conseguinte, para nós aqui se encontra, no lado aberto que abre para o coração, a chave hermenêutica que permite entender tudo. O concílio fala da ferida para se referir ao pecado que fere a Igreja na sua santidade; e que é uma ferida e uma cisão no homem. Temos assim uma surpreendente continuidade entre as grandes intuições do Padre Dehon e o concílio e, portanto, a sua actualidade.

Na parte da parte a atenção focalizou-se nas Constituições, com duas apresentações muito sugestivas. O Pe. Marcial, da Província Brasil/S. Paulo fez uma leitura das constituições em chave cristológica e antropológica mostrando como nas Constituições se dá uma relação, com profundas implicações antropológicas, entre o tema do ecce homo e o tema do ecce venio. A outra intervenção foi do Ir. Afonso Tadeu Murad, marista, que participou como observador externo, apresentando a sua leitura sobre as nossas constituições, na perspectiva daanthropologia cordis. Ele tomou como ponto de partida a análise que o primeiro conferencista G. Colzani tinha feito da situação aporética da antropologia contemporânea, que sintetizara nestes termos: uma antropologia que apresenta um homem sem casa, sem rosto e sem coração, para mostrar como nas nossas Constituições se encontram elementos que permitem reconhecer o contributo da nossa espiritualidade no sentido de dar ao homem contemporâneo uma casa, um rosto e um coração. Deteve-se na análise do narcisismo contemporâneo, como expressão de um antropologia negativa e referia-se à necessidade de se destruir os espelhos, símbolo do narcisismo contemporâneo, com alguma expressão em formas decadentes da vida religiosa, por janelas ou portas abertas para o outro. Neste contexto tem particular importância o nosso símbolo/emblema identificador do Coração aberto.

O meu contributo neste debate consistiu em chamar a atenção para dois pormenores em ambas contribuições.

O Pe. Marcial tinha feito um aceno um tanto pejorativo, devocional, segundo ele, ao tema daconsolação. Eu evoquei Bento XVI que na Spe Salvi chama a atenção para o tema daconsolatio, e como este tema é fundamental na cristologia e teologia trinitária, quando o evangelho de S. João nos apresenta Cristo e o Espírito Santo como consoladores. Mesmo na história da espiritualidade e na mística este tema é muito importante, para não falar na psicologia e na fenomenologia dos afectos. Todos temos na nossa vida necessidade de que alguém nosconsole, ou seja, não nos abandone deixando-nos sós e, neste sentido, as comunidades religiosas deveriam ser espaços de encontro e de consolação e centros irradiadores de consolação para o mundo.

O Ir. Afonso Murad tinha-se referido ao espelho apenas como símbolo do narcisismo, o que é verdade. Mas E. Levinas desenvolve o tema da fenomenologia do rosto como espelho, na medida em que é na relação de alteridade e no respeito pelo outro que é devolvida ao sujeito o sentido da sua identidade, e pode então dizer que o rosto do outro é o espelho no qual me sinto reflectido.

As intervenções em plenário foram muito ricas. O clima era de profunda e respeitosa atenção, um verdadeiro ensaio de uma procura em comum da nossa identidade espiritual, a casa comum na qual nos encontramos todos bem ou assim nos devemos encontrar.

José Jacinto Ferreira de Farias, scj

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