Liturgia

Week of Fev 1st

  • 04º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    04º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    28 de Janeiro, 2024

    Ano B

    4.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 4.º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia do 4.º Domingo do Tempo Comum reafirma a irreversível decisão de Deus de oferecer aos homens, em cada passo do caminho que percorrem na história, a Vida e a salvação. Os textos bíblicos que neste domingo nos são servidos mostram algumas das estratégias de que Deus se socorre para vir ao encontro dos homens e para lhes apresentar os seus desafios e propostas.

    A primeira leitura propõe-nos – a partir da figura de Moisés – uma reflexão sobre a missão profética. O profeta é alguém que Deus escolhe, chama e envia para ser a sua “palavra” viva no meio dos homens. Através dos profetas, Deus apresenta-nos, em linguagem que entendemos, as suas indicações e propostas.

    O Evangelho mostra como Jesus, o Filho de Deus, com a autoridade que lhe vem do Pai, renova e transforma em homens livres todos aqueles que vivem prisioneiros do egoísmo, do pecado e da morte.

    A segunda leitura convida os crentes a repensar as suas prioridades e a não deixar que as realidades transitórias sejam impeditivas de um verdadeiro compromisso com as realidades perenes, nomeadamente o serviço de Deus e dos irmãos.

     

    LEITURA I – Deuteronómio 18,15-20

    Moisés falou ao povo, dizendo:
    «O Senhor teu Deus fará surgir
    no meio de ti, de entre os teus irmãos,
    um profeta como eu; a ele deveis escutar.
    Foi isto mesmo que pediste ao Senhor teu Deus
    no Horeb, no dia da assembleia:
    ‘Não ouvirei jamais a voz do Senhor meu Deus,
    nem verei este grande fogo, para não morrer’.
    O Senhor disse-me:
    ‘Eles têm razão;
    farei surgir para eles, do meio dos seus irmãos,
    um profeta como tu.
    Porei as minhas palavras na sua boca
    e ele lhes dirá tudo o que Eu lhe ordenar.
    Se alguém não escutar as minhas palavras
    que esse profeta disser em meu nome,
    Eu próprio lhe pedirei contas.
    Mas se um profeta tiver a ousadia
    de dizer em meu nome o que não lhe mandei,
    ou de falar em nome de outros deuses,
    tal profeta morrerá’».

     

    CONTEXTO

    O Livro do Deuteronómio é aquele “livro da Lei” ou “livro da Aliança” descoberto no Templo de Jerusalém (cf. 2 Re 22,3-13) no 18.º ano do reinado de Josias (622 a.C.). Neste livro, os teólogos deuteronomistas – originários do norte (Israel) mas, entretanto, refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do norte frente aos assírios – apresentam os dados fundamentais da sua teologia: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel, libertou-o da escravidão do Egito e fez com Ele uma aliança eterna, acompanhou-o na sua caminhada pelo deserto, deu-lhe a Terra Prometida… O Povo de Deus – esse povo com quem Deus se comprometeu – é o Povo eleito, a propriedade pessoal de Javé.

    A finalidade fundamental dos catequistas deuteronomistas, ao formular esta teologia, é levar o Povo de Deus a um compromisso firme e exigente com a Lei de Deus, proclamada no Sinai. É um convite firme ao Povo de Deus no sentido de abraçar a aliança com Javé e de viver na fidelidade aos compromissos assumidos.

    Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab, antes da entrada do Povo na Terra Prometida. Pressentindo a proximidade da morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua aliança com Javé.

    O texto que a liturgia deste dia nos propõe apresenta-se como parte do segundo discurso de Moisés (cf. Dt 4,44-28,68). Trata-se de um texto que integra um conjunto legislativo sobre as estruturas de governo do Povo de Deus (cf. Dt 16,18-18,22). Em concreto, o texto refere-se a uma dessas estruturas: o profetismo.

    O fenómeno profético não é exclusivo de Israel, mas é um fenómeno relativamente conhecido entre os povos do Crescente Fértil. Entre os cananeus, os movimentos proféticos apareciam com relativa frequência, normalmente ligados à adivinhação, ao êxtase, a convulsões, a delírios (habitualmente provocados por instrumentos sonoros, gritos, danças, etc.). A multiplicidade de experiências proféticas obriga, exatamente, a pôr o problema do discernimento entre a verdadeira e a falsa profecia… O que é que carateriza o verdadeiro profeta? Quando é que um profeta fala, realmente, em nome de Deus? Este problema devia pôr-se, particularmente, no Reino do Norte, na época de Acab (874-853 a.C.) e de Jezabel, quando os profetas de Baal dominavam. As tradições sobre o profeta Elias (cf. 1 Re 17-2 Re 13,21) traçam esse quadro de confronto diário entre a verdadeira e a falsa profecia.

    O catequista deuteronomista refere-se, precisamente, a esta questão. Ele apresenta, aqui, os critérios para que o Povo possa distinguir o verdadeiro e o falso profeta.

     

    MENSAGEM

    Para os teólogos deuteronomistas, Moisés é o exemplo e o modelo do verdadeiro profeta. O que é que isso significa?

    Significa, em primeiro lugar, que na origem e no centro da vocação de Moisés está Deus. Não foi Moisés que se candidatou à missão profética, por sua iniciativa; não foi Moisés que conquistou, pelas suas ações ou pelas suas qualidades, o “direito” a ser “profeta”. A iniciativa foi de Deus que, de forma gratuita, o escolheu, o chamou e o enviou em missão. Se Moisés foi designado para ser um sinal de Javé, foi porque Deus assim o quis. A consagração do “profeta” resulta de uma ação gratuita de Deus que, de acordo com critérios muitas vezes ilógicos na perspetiva dos homens, escolhe aquela pessoa em concreto, com as suas qualidades e defeitos, para o enviar aos seus irmãos.

    Em segundo lugar, Moisés disse sempre e testemunhou sempre as palavras que Deus lhe colocou na boca e que lhe ordenou que dissesse. A mensagem transmitida não era a mensagem de Moisés, mas a mensagem de Deus. O verdadeiro profeta não é aquele que transmite uma mensagem pessoal, ou que diz aquilo que os homens gostam de ouvir; o verdadeiro profeta é aquele que, com coragem e frontalidade, testemunha fielmente as propostas de Deus para os homens e para o mundo.

    As palavras do profeta devem ser cuidadosamente escutadas e acolhidas, pois são palavras de Deus. O próprio Deus pedirá contas a quem fechar os ouvidos e o coração aos desafios que, através do profeta, Ele apresenta ao mundo.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Moisés exerceu a sua missão profética no séc. XIII a.C.; mas os profetas não são figuras extintas de um passado que não volta. Deus, para se fazer presente na história dos homens, sempre chamou e enviou pessoas para serem sinais vivos da sua presença na vida do mundo. E isto continua a acontecer no nosso tempo e na nossa história. No momento do nosso Batismo fomos ungidos com o óleo do crisma, que nos constituiu profetas. Recebemos, nesse dia, a missão de sermos sinais vivos de Deus no meio dos nossos irmãos. Estou consciente deste compromisso? Tenho procurado ser um profeta de Deus no meio dos homens e mulheres que caminham comigo?
    • O profeta é a voz de Deus que ecoa no mundo dos homens. Ele tem a responsabilidade de dizer aos homens aquilo que Deus pretende transmitir-lhes. Por isso, o profeta deve viver em permanente escuta de Deus. Só assim saberá o que deve, em nome de Deus, dizer àqueles a quem é enviado. Procuro escutar Deus, dialogar com Ele, acolher as suas indicações, ler os seus sinais, antes de ir ao encontro dos meus irmãos para lhes testemunhar as indicações de Deus?
    • Consciente de que é um instrumento de Deus no meio da comunidade humana, o profeta deve levar muito a sério a missão que lhe foi confiada. A missão profética não é um passatempo ou um compromisso para as horas vagas; também não é algo que posso levar a sério ou deitar fora, conforme a minha disposição de momento. Trata-se de um compromisso que decorre da minha vocação batismal e que eu tenho de assumir com fidelidade absoluta e total empenho.
    • Se o profeta é designado para tornar presente no meio dos homens o projeto de Deus, ele não pode utilizar a missão em benefício próprio. O profeta não deve ceder à tentação de se vender aos poderes do mundo e pactuar com eles, a fim de concretizar a sua sede de poder; não pode “vender a alma ao diabo” para daí tirar algum benefício; não deve utilizar o seu ministério para conseguir sucesso, para promover a sua imagem e obter os aplausos das multidões. A missão profética tem de estar sempre ao serviço de Deus, dos planos de Deus, da verdade de Deus, e não ao serviço de esquemas pessoais, interesseiros e egoístas.

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 94 (95)

    Refrão:  Se hoje ouvirdes a voz do Senhor,
                  não fecheis os vossos corações.

    Vinde, exultemos de alegria no Senhor,
    aclamemos a Deus, nosso Salvador.
    Vamos à sua presença e dêmos graças,
    ao som de cânticos aclamemos o Senhor.

    Vinde, prostremo-nos em terra,
    adoremos o Senhor que nos criou;
    pois Ele é o nosso Deus
    e nós o seu povo, as ovelhas do seu rebanho.

    Quem dera ouvísseis hoje a sua voz:
    «Não endureçais os vossos corações,
    como em Meriba, como no dia de Massa no deserto,
    onde vossos pais Me tentaram e provocaram,
    apesar de terem visto as minhas obras».

     

    LEITURA II – 1 Coríntios 7,32-35

    Irmãos:
    Não queria que andásseis preocupados.
    Quem não é casado preocupa-se com as coisas do Senhor,
    com o modo de agradar ao Senhor.
    Mas aquele que se casou preocupa-se com as coisas do mundo,
    com a maneira de agradar à esposa,
    e encontra-se dividido.
    Da mesma forma, a mulher solteira e a virgem
    preocupam-se com os interesses do Senhor,
    para serem santas de corpo e espírito.
    Mas a mulher casada preocupa-se com as coisas do mundo,
    com a forma de agradar ao marido.
    Digo isto no vosso próprio interesse
    e não para vos armar uma cilada.
    Tenho em vista o que mais convém
    e vos pode unir ao Senhor sem desvios.

     

    CONTEXTO

    O texto da Carta aos Coríntios que nos é dado escutar neste 4.º domingo comum é a continuação de um outro – da mesma carta – que ouvimos no 3.º domingo comum. É o mesmo contexto e a mesma problemática.

    Paulo havia sido questionado pelos cristãos de Corinto sobre o melhor estado de vida, do ponto de vista cristão: o do matrimónio ou o do celibato. Era uma questão pertinente, para uma comunidade que oscilava, nas questões relativas à vivência da sexualidade, entre uma moral laxista (típica de uma cidade portuária, onde chegavam marinheiros de todo o Mediterrâneo e onde pontificava Afrodite, a deusa grega do amor) e uma moral marcada por tendências filosóficas que propunham o desprezo pelas realidades materiais, nomeadamente o casamento.

    Na sua resposta, Paulo explica que não tem “nenhum preceito do Senhor” sobre esta questão, e que tanto o casamento como o celibato são caminhos possíveis, perfeitamente aceitáveis, para o cristão. Mas lembra que “o tempo é breve” (o tempo entre a primeira vinda de Jesus e a sua segunda vinda); e, nesse cenário, o mais importante é que os crentes não absolutizem as realidades passageiras e vivam de olhos postos no encontro com o Senhor, que não tarda.

    É neste enquadramento que Paulo apresenta o elogio da virgindade.

     

    MENSAGEM

    O mais importante, na vida de um cristão, é o amor e a adesão a Cristo. E, na perspetiva de Paulo, o celibato deixa mais espaço à pessoa para viver para Cristo: quem não é casado tem mais tempo e disponibilidade para se preocupar “com as coisas do Senhor” (vers. 32b) e para agradar ao Senhor.

    Paulo é um missionário itinerante, que vive totalmente dedicado ao serviço do Evangelho. Nos últimos anos tem gastado a sua vida em viagens missionárias e em trabalhos sem conta, ao serviço de Cristo. Sente que, se tivesse de atender às necessidades de uma família e de dividir a sua atenção por uma série de realidades ligadas à vida do dia a dia, estaria muito mais limitado na sua entrega à missão. Mas, sem uma família que dependa dele, está muito mais livre para o serviço do Evangelho e do Reino de Deus.

    Paulo estará, aqui, a desvalorizar a vida conjugal e a sexualidade? Estará a sugerir que o matrimónio é um caminho a evitar, ou é um caminho que afaste de Deus? De modo nenhum. A reflexão de Paulo assenta noutra ordem. A insistência na “bondade” do celibato deve ser entendida na perspetiva da liberdade para o serviço do Reino.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Por detrás das afirmações que Paulo faz neste texto está a convicção de que as realidades terrenas são passageiras e efémeras e não devem, em nenhum caso, ser absolutizadas. Não se trata de propor uma evasão do mundo e uma espiritualidade descarnada, insensível, alheia ao amor, à partilha, à ternura; mas trata-se de avisar que as realidades desta terra não podem ser o objetivo final e único da vida da pessoa. Esta reflexão convida-nos a repensar as nossas prioridades e a não ancorar a nossa vida em realidades transitórias.
    • Paulo vê na castidade por amor do Reino uma forma de vida que liberta o coração do homem para o serviço de Deus e dos irmãos. E na verdade, hoje como ontem, muitos homens e mulheres sentem-se chamados por Deus a viverem deste jeito para serem mais livres na sua doação e no seu serviço. Nem sempre o mundo os aprecia e entende. Muitas vezes são mesmo criticados e ridicularizados pela sua opção. Mas essas pessoas generosas, de coração livre, que colocaram o serviço de Deus e dos irmãos como prioridade absoluta, são um dom de Deus à Igreja e ao mundo. Estamos conscientes disso e agradecemos a Deus esse dom?
    • Os irmãos e as irmãs que optaram pela castidade para se entregarem ao serviço de Deus e dos irmãos devem viver a sua vocação sem amargura, sem frustração, sem tristeza. Eles não “perderam” irremediavelmente as coisas bonitas da vida; mas, de forma livre e consciente, escolheram um amor maior e mais universal. Essa escolha é fonte inesgotável de alegria e de paz. E eles devem dar testemunho, no meio do mundo, dessa alegria e dessa paz.

     

    ALELUIA – Mateus 4,16

    Aleluia. Aleluia.

    O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz;
    para aqueles que habitavam na sombria região da morte
    uma luz se levantou.

     

    EVANGELHO – Marcos 1,21-28

    Jesus chegou a Cafarnaum
    e quando, no sábado seguinte, entrou na sinagoga
    e começou a ensinar,
    todos se maravilhavam com a sua doutrina,
    porque os ensinava com autoridade
    e não como os escribas.
    Encontrava-se na sinagoga um homem com um espírito impuro,
    que começou a gritar:
    «Que tens Tu a ver connosco, Jesus Nazareno?
    Vieste para nos perder?
    Sei quem Tu és: o Santo de Deus».
    Jesus repreendeu-o, dizendo:
    «Cala-te e sai desse homem».
    O espírito impuro, agitando-o violentamente,
    soltou um forte grito e saiu dele.
    Ficaram todos tão admirados, que perguntavam uns aos outros:
    «Que vem a ser isto?
    Uma nova doutrina, com tal autoridade,
    que até manda nos espíritos impuros e eles obedecem-Lhe!»
    E logo a fama de Jesus se divulgou por toda a parte,
    em toda a região da Galileia.

     

    CONTEXTO

    Na primeira parte do Evangelho que escreveu (cf. Mc 1,14-8,30), Marcos leva-nos numa viagem pela Galileia à descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Ao longo de um percurso que é mais catequético do que geográfico, os leitores de Marcos são convidados a acompanhar o dia a dia de Jesus, a escutar as suas palavras e o seu anúncio, a notar os seus gestos libertadores, a aderir à sua proposta de salvação. Este percurso de descoberta do Messias que o catequista Marcos nos propõe atinge o seu momento culminante em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe (que é, evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois de ter acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): “Tu és o Messias”.

    O texto que nos é hoje proposto aparece, exatamente, no princípio desta caminhada de encontro com o Messias e com o seu anúncio de salvação. Rodeado já pelos primeiros discípulos, Jesus começa a revelar-Se como o Messias-libertador, que está no meio dos homens para lhes apresentar a proposta de salvação que Deus Lhe confiou.

    A cena situa-nos em Cafarnaum (em hebraico Kfar Nahum, a “aldeia de Naum”), uma pequena cidade situada na costa noroeste do Lago Kineret (o Mar da Galileia). A sua importância advinha de estar ao lado da estrada onde passavam as caravanas provenientes da Síria. De acordo com os Evangelhos Sinópticos, é aí que Jesus se vai instalar durante o tempo do seu ministério na Galileia. Vários dos discípulos – Simão e seu irmão André, Tiago e seu irmão João – viviam em Cafarnaum.

     

    MENSAGEM

    A cena narrada no Evangelho deste dia acontece num sábado. A comunidade está reunida na sinagoga de Cafarnaum para a liturgia sinagogal. Jesus, chegado há pouco à cidade, entra na sinagoga – como qualquer bom judeu – para participar na liturgia sabática. A celebração comunitária começava, normalmente, com a “profissão de fé” (cf. Dt 6,4-9), a que se seguiam orações, cânticos e duas leituras (uma da Tora e outra dos Profetas); depois, vinha o comentário às leituras e as bênçãos. É provável que Jesus tivesse sido convidado, nesse dia, para comentar as leituras feitas. Fê-lo de uma forma original, diferente dos comentários que as pessoas estavam habituadas a ouvir aos “escribas” (os estudiosos das Escrituras). As pessoas ficaram maravilhadas com as palavras de Jesus, “porque ensinava com autoridade e não como os escribas” (vers. 22). Os escribas costumavam repetir uma e outra vez as tradições rabínicas e as opiniões dos mestres do passado. Jesus é diferente. Não repete lições que aprendeu dos mestres. Ele fala com autoridade. O que Ele diz vem-Lhe da sua experiência de Deus. É uma palavra livre, sincera, convincente, que mexe com os corações. As pessoas que O escutam percebem que as suas palavras vêm de Deus e têm a marca de Deus.

    A “autoridade” que se revela nas palavras de Jesus manifesta-se, também, em ações concretas (como se a “autoridade” das palavras tivesse de ser caucionada pela própria ação). Na sequência das palavras ditas por Jesus e que transmitem aos ouvintes um sinal inegável da presença de Deus, aparece em cena “um homem com um espírito impuro”. Os judeus estavam convencidos que todas as doenças eram provocadas por “espíritos maus” que se apropriavam dos homens e os tornavam prisioneiros. As pessoas afetadas por esses males deixavam de cumprir a Lei (as normas corretas de convivência social e religiosa) e ficavam numa situação de “impureza” – isto é, afastadas de Deus e da comunidade. Na perspetiva dos contemporâneos de Jesus, esses “espíritos maus” que afastavam os homens da órbita de Deus tinham um poder absoluto, que os homens não podiam, com as suas frágeis forças, ultrapassar. Acreditava-se que só Deus, com o seu poder e autoridade absolutos, era capaz de vencer os “espíritos maus” e devolver aos homens a vida e a liberdade perdidas.

    Numa encenação com um singular poder evocador, Marcos põe o “espírito mau” que domina “um homem” presente na sinagoga a interpelar violentamente Jesus. Marcos está a sugerir que, diante da proposta libertadora que Jesus veio apresentar, em nome de Deus, os “espíritos maus” responsáveis pelas cadeias que oprimem os homens ficam inquietos, pois sentem que o seu poder sobre a humanidade chegou ao fim. A ação da cura do homem “com um espírito impuro” constitui “a prova provada” de que Jesus traz uma proposta de libertação que vem de Deus; pela ação de Jesus, Deus vem ao encontro da pessoa para a salvar de tudo aquilo que a impede de ter vida em plenitude.

    Para Marcos, este primeiro episódio é uma espécie de apresentação de um programa de ação: Jesus veio ao encontro dos homens para os libertar de tudo aquilo que lhes rouba a vida. A libertação que Deus quer oferecer à humanidade está a acontecer. O “Reino de Deus” instalou-se no mundo. Jesus, cumprindo o projeto libertador de Deus, pela sua Palavra e pela sua ação, renova e transforma em homens livres todos aqueles que vivem prisioneiros do egoísmo, do pecado e da morte.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Aquele homem “com um espírito impuro” que interpela Jesus na sinagoga de Cafarnaum representa todos os homens e mulheres, de todas as épocas, que são reféns do egoísmo, do orgulho, da autossuficiência, do medo, da exploração, da exclusão, da injustiça, do ódio, da violência, do pecado; representa essa humanidade que percorre um caminho à margem de Deus e das suas propostas, que aposta em valores efémeros e escravizantes ou que procura a vida em propostas falíveis ou efémeras. Para todos nós que, de uma forma ou de outra, vivemos mergulhados nesta realidade desumanizadora, o relato de Marcos deixa uma Boa Notícia: Deus não Se conforma com o facto de os homens trilharem caminhos de morte, e virá sempre ter connosco para nos oferecer a liberdade e a salvação.
    • Para Marcos, a proposta de Deus chega torna-se realidade viva e atuante em Jesus. Ele é o Messias libertador que, com a sua vida, com a sua palavra, com os seus gestos, com as suas ações, vem propor aos homens um caminho novo de liberdade e de vida. Ao egoísmo, Ele contrapõe a doação e a partilha; ao orgulho e à autossuficiência, Ele contrapõe o serviço simples e humilde a Deus e aos irmãos; à exclusão, Ele propõe a tolerância e a misericórdia; à injustiça, ao ódio, à violência, Ele contrapõe o amor sem limites; ao medo, Ele contrapõe a liberdade; à morte, Ele contrapõe a vida. Estou disponível para caminhar com Jesus, para acolher as suas propostas, para abraçar o seu projeto, para acolher a libertação que Ele me veio oferecer?
    • Os discípulos de Jesus são as testemunhas, aqui e agora, da sua proposta libertadora. Eles têm de continuar a missão de Jesus e de assumir a mesma luta de Jesus contra todos os “demónios” que introduzem no mundo dinâmicas criadoras de sofrimento e de morte. Ser discípulo de Jesus é percorrer o mesmo caminho que Ele percorreu e lutar, se necessário até ao dom total da vida, por um mundo mais humano, mais livre, mais solidário, mais justo, mais fraterno. Os seguidores de Jesus não podem ficar de braços cruzados, a olhar para o céu, enquanto o mundo é construído e dirigido por aqueles que propõem uma lógica de egoísmo e de morte; mas têm a grave responsabilidade de lutar, objetivamente, contra tudo aquilo que desumaniza os filhos e filhas de Deus. Essa é também a minha luta?
    • O texto refere o incómodo do “homem com um espírito impuro”, diante da presença libertadora de Jesus. O pormenor faz-nos pensar nas reações agressivas e intolerantes – por parte daqueles que pretendem perpetuar situações de injustiça e de escravidão – diante do testemunho e do anúncio dos valores do Evangelho. Apesar da incompreensão e da intolerância de que são, por vezes, vítimas, os discípulos de Jesus não devem deixar-se encerrar nas sacristias, ficando à margem da história por medo ou comodismo; mas devem assumir corajosamente e de forma bem visível o seu empenho na transformação das realidades políticas, económicas, sociais, laborais, familiares.
    • Aquele homem dominado “por um espírito impuro” não deve ter entrado pela primeira vez na sinagoga de Cafarnaum naquele sábado. Provavelmente participava habitualmente na liturgia sinagogal, escutava a Palavra de Deus que era lida e as explicações dos escribas. Mas só nesse dia se sentiu questionado e incomodado pela Palavra que escutou. Porquê? Porque Jesus proclamou e explicou a Palavra de uma forma nova, “com autoridade”, com aquela autoridade que lhe vinha da sua experiência de Deus? É possível. E a Palavra de Deus que ecoa todos os dias nas nossas celebrações comunitárias? Transmite uma experiência de Deus e faz-nos sentir a presença de Deus? Provoca alguma transformação no coração dos que a escutam? Interroga-nos, desafia-nos, provoca-nos, inquieta-nos ou deixa-nos impávidos, indiferentes e sempre adormecidos?
    • A luta contra os “demónios” que desfeiam o mundo e escravizam os homens nossos irmãos é sempre um processo doloroso, que gera conflitos, divisões, sofrimento; mas é, também, uma aventura que vale a pena ser vivida e uma luta que vale a pena travar. Embarcar nessa aventura é tornar-se cúmplice de Deus na construção de um mundo de homens livres.

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 4.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A liturgia meditada ao longo da semana.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 4.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…

    2. PALAVRA DE VIDA.

    Os ouvintes de Jesus estavam habituados a receber ensinamentos. A diferença que fazem entre o ensino de Jesus e o dos escribas e fariseus é que Jesus ensina como homem que tem autoridade. Eles sentem que a sua palavra não é dita de cor, mas pronunciada do coração para atingir o coração. Será necessário tempo para que eles descubram que esta palavra vem do coração de Deus. O espírito mau sabe quem é Jesus – o Santo de Deus – e reconhece a sua autoridade: Jesus veio para vencer as forças do mal. Compreendemos a admiração da multidão, que já não tem mais medo porque, no seu meio, ergue-se o Salvador que fala e age. Tal é a sua verdadeira autoridade: Ele vem fazer uma nova criação: como na manhã do mundo, Ele diz e tudo é criado. Compreendemos então que o seu nome se espalhe em toda a Galileia. E se nós espalhássemos o seu nome? Com efeito, ainda hoje Ele diz e age.

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.

    Que fazemos da Palavra? Por duas vezes, Marcos chama a nossa atenção para o ensino de Jesus, feito “com autoridade”. As multidões são atingidas: esta palavra é verdadeiramente diferente das dos escribas. Estes últimos eram, na realidade, repetidores que apenas rediziam a Lei, triturando-a de mil maneiras, disputando sobre o sentido de cada palavra, acabando por diluir a Palavra de Deus nas suas argúcias. Jesus anuncia uma palavra nova, uma palavra de “autoridade”. Trata-se de uma palavra que faz crescer, que está ao serviço do crescimento do ser e da vida. É o sentido da ordem de Jesus ao espírito mau: “Silêncio! Sai deste homem!” Jesus veio para que os homens “tenham a vida e a tenham em abundância”. A sua autoridade é unicamente um poder de vida e não de morte. Os escribas acabavam por esterilizar a Lei. Jesus liberta-a de toda a carcaça para fazer dela uma Palavra criadora de vida. E nós, em Igreja, que fazemos desta Palavra? Muitas vezes, transformamos as palavras do Evangelho em tantos preceitos morais e jurídicos, que enfermam as consciências culpabilizando-as, em lugar de fazermos apelos ao Espírito de liberdade que nos quer colocar de pé, fazer de nós seres vivos.

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    Encontros com o Senhor… Os nossos dias, a nossa semana, podem ser pontuadas com encontros, mesmo curtos, com o Senhor: momentos de oração (sozinhos, em casal, em família, em comunidade), celebrações na paróquia ou na comunidade religiosa, momentos de meditação da Palavra de Deus; gestos e encontros para servir os mais pequenos. Agradar ao Senhor, colocando o nosso quotidiano sob o seu olhar: procurar fazer o ponto da situação, em cada noite, com Ele.

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    Proposta para Escutar, Partilhar, Viver e Anunciar a Palavra

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

  • IV Semana - Segunda-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    IV Semana - Segunda-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    29 de Janeiro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares
    IV Semana - Segunda-feira
    Lectio

    Primeira leitura: 2 Samuel 15, 13-14.30; 16, 5-13a

    13Naqueles dias, alguém foi informar David: «O coração dos israelitas inclinou-se para Absalão!» 4David disse aos servos que estavam com ele em Jerusalém: «Fujamos depressa porque, de outro modo, não podemos escapar a Absalão! Apressemo-nos a sair, não suceda que ele se apresse, nos surpreenda e se lance sobre nós, passando a cidade ao fio da espada.» 30David, chorando, subia o monte das Oliveiras, com a cabeça coberta e descalço. Todo o povo que o acompanhava subia também, chorando, com a cabeça coberta.
    5Chegou, pois, o rei a Baurim, e saía de lá um homem da parentela de Saul, chamado Chimei, filho de Guera, que, enquanto caminhava, ia proferindo maldições. 6Lançava pedras contra David e contra os servos do rei, apesar de todo o povo e todos os guerreiros seguirem o rei, agrupados à direita e à esquerda. 7E Chimei amaldiçoava-o, dizendo: «Vai, vai embora, homem sanguinário e criminoso. O Senhor fez cair sobre ti todo o sangue da casa de Saul, cujo trono usurpaste, e entregou o reino a teu filho Absalão. Vês-te, agora, oprimido de males, por teres sido um homem sanguinário.» 9Então, Abisai, filho de Seruia, disse ao rei: «Porque há-de continuar este cão morto a insultar o rei, meu senhor? Deixa-me passar, para lhe cortar a cabeça.» 10Mas o rei respondeu-lhe: «Que te importa, filho de Seruia? Deixa-o amaldiçoar-me. Se o Senhor lhe ordenou que amaldiçoasse David, quem poderá dizer-lhe: 'Porque fazes isto?'» 11David disse também a Abisai e aos seus homens: «Vede! Se o meu próprio filho, fruto das minhas entranhas, conspira contra a minha vida, quanto mais agora este filho de Benjamim? Deixai-o amaldiçoar-me, conforme a permissão do Senhor. 12Talvez o Senhor tenha em conta a minha miséria e me venha a dar bens em troca destes ultrajes.» 13David e os seus homens prosseguiram o seu caminho, mas Chimei seguia a par dele pelo flanco da montanha, amaldiçoando-o, atirando-lhe pedras e espalhando poeira no ar.

    David sente-se responsável pela indisciplina e pela ambição dos seus filhos. A conjura de Absalão é um dos dramáticos episódios que acompanham o declínio do reino de David. O rei foge. Essa fuga, mais que uma retirada estratégica, parece uma tentativa de evitar o confronto directo com o filho. David sofre com paciência e humildade exemplares. A sua fuga é, sobretudo, uma caminhada penitencial, uma humilde aceitação do castigo divino. Para trás, fica Jerusalém, a cidade heroicamente conquistada, a capital das tribos, cheia de tantas recordações felizes. As lágrimas de David, ao subir o Monte das Oliveiras, evocam já as lágrimas de Jesus (Lc 19, 41-44).
    O episódio da maldição de Chimei acentua a sensação de irreparabilidade da derrota, atribuída à vontade de Deus. Chimei pertencia à família de Saul (v. 5), que era um permanente perigo para David, devido à ameaça de secessão do Reino do norte. David tinha usurpado o reino de Saul; agora Absalão podia fazer o mesmo. David teme ter sido abandonado por Deus, como fora Saul (v. 11). Por isso, recusa ajuda para matar Chimei, e aceita a afronta como provação. David tem consciência dos seus próprios crimes, e espera que o sofrimento actual possa trazer-lhe bens no futuro (v. 12). David parece concentrar na sua pessoa toda a fé do povo eleito, provado por Deus e acostumado ao sofrimento e à humilhação.

    Evangelho: Mc 5, 1-20

    1Naquele tempo, Jesus e os seus discípulos chegaram à outra margem do mar, à região dos gerasenos. 2Logo que Jesus desceu do barco, veio ao seu encontro, saído dos túmulos, um homem possesso de um espírito maligno. 3Tinha nos túmulos a sua morada, e ninguém conseguia prendê-lo, nem mesmo com uma corrente, 4pois já fora preso muitas vezes com grilhões e correntes, e despedaçara os grilhões e quebrara as correntes; ninguém era capaz de o dominar. 5Andava sempre, dia e noite, entre os túmulos e pelos montes, a gritar e a ferir-se com pedras. 6Avistando Jesus ao longe, correu, prostrou-se diante dele 7e disse em alta voz: «Que tens a ver comigo, ó Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te, por Deus, que não me atormentes!» 8Efectivamente, Jesus dizia: «Sai desse homem, espírito maligno.» 9Em seguida, perguntou-lhe: «Qual é o teu nome?» Respondeu: «O meu nome é Legião, porque somos muitos.» 10E suplicava-lhe insistentemente que não o expulsasse daquela região. 11Ora, ali próximo do monte, andava a pastar uma grande vara de porcos. 12E os espíritos malignos suplicaram a Jesus: «Manda-nos para os porcos, para entrarmos neles.» 13Jesus consentiu. Então, os espíritos malignos saíram do homem e entraram nos porcos, e a vara, cerca de uns dois mil, precipitou-se do alto no mar e ali se afogou. 14Os guardas dos porcos fugiram e levaram a notícia à cidade e aos campos.As pessoas foram ver o que se passara.
    15Ao chegarem junto de Jesus, viram o possesso sentado, vestido e em perfeito juízo, ele que estivera possuído de uma legião; e ficaram cheias de temor. 16As testemunhas do acontecimento narraram-lhes o que tinha sucedido ao possesso e o que se passara com os porcos. 17Então, pediram a Jesus que se retirasse do seu território. 18Jesus voltou para o barco e o homem que fora possesso suplicou-lhe que o deixasse andar com Ele. 19Não lho permitiu. Disse-lhe antes: «Vai para tua casa, para junto dos teus, e conta-lhes tudo o que o Senhor fez por ti e como teve misericórdia de ti.» 20Ele retirou-se, começou a apregoar na Decápole o que Jesus fizera por ele, e todos se maravilhavam.

    Escutamos, hoje, um relato popular, de estilo burlesco, com que as primeiras comunidades cristãs acentuavam o poder benéfico do «kerygma» de Jesus. O episódio passa-se a oriente do lago de Tiberíades, em terra pagã, como se vê pela existência da vara de porcos, animais considerados impuros em Israel. É o caso do epiléptico, que não podia ser controlado pelos seus conterrâneos e, por isso, vivia no campo ou, pior ainda «entre os túmulos». A situação é grave e mesmo dramática. Ouvem-se os urros dos demónios, que reconhecem Jesus, proclamam a sua divindade e suplicam que não os expulse. Jesus mantém-se imperturbável: pergunta-lhes o nome, e concede-lhes refugiar-se nos porcos. A precipitação da vara no lago, sugere o seu regresso a Satanás, rei dos abismos. Os presentes continuam dominados pelo temor e pedem a Jesus que se afaste.
    O anúncio do Evangelho deve ser preparado e exige a mediação da testemunha, do apóstolo. Ao contrário do silêncio que, em Marcos, Jesus geralmente impõe aos miraculados, aqui manda ao possesso libertado que vá levar a notícia aos seus. O homem não se contenta com isso e apregoa na Decápole a obra que Jesus nele realizou.

    Meditatio

    Os últimos anos de David são marcados pelo drama da guerra civil provocada pe
    lo seu próprio filho e por vários episódios que o fazem sofrer. Hoje, a primeira leitura mostra-o a ser injuriado pelo assassínio de Saul que, na verdade, não matou. Abisai pede autorização para matar Chemei, o parente de Saul que proferia a calúnia e as maldições. Mas David opõe-se: «Se o Senhor lhe ordenou que amaldiçoasse David, quem poderá dizer-lhe: 'Porque fazes isto?'» (2 Sam 16, 10). O rei sabia que não tinha matado Saul. Mas também sabia que tinha matado Urias. Aceitava, por isso, o castigo anunciado por Natan. E confiava em Deus: «Talvez o Senhor tenha em conta a minha miséria e me venha a dar bens em troca destes ultrajes» (v. 12). Também nós, quando nos sentimos injustamente acusados, havemos de aceitar a afronta para nos penitenciarmos de tantas faltas cometidas e de quem ninguém nos acusa, renovar a nossa confiança em Deus e até dar-lhe graças porque os nossos adversários, felizmente, não sabem tudo sobre nós.
    O drama de David, amaldiçoado e apedrejado, que o servo pretende vingar cortando a cabeça a Chimei, aproxima-se do drama do endemoninhado de Gerasa, que vagueia entre sepulcros, quebrando correntes e grilhões, somando violências. Mas não é juntando violência à violência que o homem é libertado. David espera a libertação através da purificação do sofrimento. O geraseno alcança-o por uma intervenção gratuita de Jesus. Ninguém pediu esse milagre. O possesso nem tinha voz para falar. Era a legião dos demónios que gritava nele pedindo o afastamento de Jesus.
    Espanta-nos a passividade dos que observam a cena. Essa passividade torna-se, depois, hostilidade. Um estrangeiro, Jesus, vem perturbar a ordem estabelecida, devolvendo à sociedade um homem considerado excluído e remetendo para os abismos da impureza, animais criados com todo o cuidado. Os gerasenos ficaram assustados com tais gestos revolucionários, e pediram a Jesus «que se retirasse do seu território» (Mc 5, 17). É difícil conviver com a liberdade.
    Paulo VI, na Evangelii Nuntiandi, de Dezembro de 1975, acautela os cristãos para o perigo de indevidas "reduções", isto é, de se interessarem apenas pela miséria material, "sacrificando toda a preocupação espiritual e religiosa a iniciativas de ordem política e social" (n. 32). A libertação evangélica "deve mirar ao homem todo, em todas as suas dimensões, incluindo a sua abertura para o Absoluto... que é Deus" (n. 33). Libertação também mental e psicológica da ignorância, do fatalismo, da apatia. De facto, na medida em que cada um não conhece e não usa a sua vontade, torna-se vítima de toda a espécie de injustiça. As Constituições incitam-nos a empenhar-nos na libertação total do homem: "o mundo de hoje agita-se num imenso esforço de libertação: libertação de tudo quanto lesa a dignidade do homem e ameaça a realização das suas mais profundas aspirações: a verdade, a justiça, o amor, a liberdade" (n. 36).
    Os cristãos devem ser radicais, autênticos revolucionários, se quiserem ser verdadeiros. A sua revolução exclui a violência, mas não os meios enérgicos; é criativa e construtiva. Todos os homens têm direito à liberdade e, portanto, à justiça. "Pela fé, na fidelidade ao magistério da Igreja, relacionamos tais aspirações com a vinda do Reino, por Deus prometido e realizado em seu Filho" (n. 37). A Glória de Deus é o homem vivo. Como pode considerar-se vivo um homem sem liberdade?

    Oratio

    Senhor, dá-me a docilidade e a paciência de David, que se afasta sem combater, deixando que se cumpra a vontade de Deus. Quantas vezes, quis cortar cabeças, à maneira de Abisaí. Quantas vezes quis rebentar as correntes e grilhões que não me deixam ser livre. Mas a violência gera violência. Que eu saiba aceitar tudo, reconhecendo os meus pecados, e deixando-me purificar. Que eu saiba acolher as tuas intervenções maravilhosas, mesmo quando forem surpresas para mim. Que, iluminado pela fé, receba tudo das tuas mãos. E, então, experimentarei a paz, como uma criança nos braços do seu pai. Amen.

    Contemplatio

    E enquanto Jesus está no pretório com uma coroa, um ceptro e um manto ridículos, os seus carrascos insultam-no e ultrajam-no.
    Dão-lhe bofetadas com as suas mãos grosseiras, escarram-lhe na cara. Oprimem-no com zombarias, grosserias, injúrias: fizerem pouco delei. A prova é longa, é toda uma coorte: congregaverunt ad eum omnem cohortem. Rivalizam em grosseria e crueldade. No fim, está no mais triste estado onde jamais algum homem se encontrou; está coberto de escarros e de sangue. Já não tinha o aspecto de um homem: vimo-lo sem figura atraente.
    Antes era o mais belo, o mais nobre, o mais majestoso dos filhos dos homens; já não havia traço da sua beleza: sem aspecto atraente. Parecia desprezível e o último dos homens. O seu rosto desaparece sob as manchas; quem lhe atribuiria ainda alguma estima (cf. Is 53, 2). Mas não, enganai-vos, cruéis carrascos. Julgais humilhá-lo e exaltai-o. Glorificais a sua bondade, a sua paciência, a sua generosidade. Tornai-as manifestas. Mais o fazeis sofrer, mais manifestais a bondade do seu coração, mais o tornais amável aos nossos olhos e glorioso aos olhos do nosso Pai. Ah! As vossas vistas são curtas. Sabei somente dele aproveitar, pecadores de todos os séculos. Jesus é humilhado para vos levantar (Leão Dehon, OSP 3, p. 205s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Vai e conta tudo o que o Senhor fez por ti e como teve misericórdia de ti» (cf. Mc 5, 19).

    | Fernando Fonseca, scj |

  • IV Semana - Terça-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    IV Semana - Terça-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    30 de Janeiro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares
    IV Semana - Terça-feira
    Lectio

    Primeira leitura: 2 Samuel 18, 9-10.14b.24-25ª.30 - 19, 3

    Naqueles dias, 9Absalão, montado numa mula, encontrou-se, de repente, em frente dos homens de David. A mula passou sob a ramagem espessa de um grande carvalho, e a cabeça de Absalão ficou presa nos ramos da árvore, de modo que ficou suspenso entre o céu e a terra enquanto a mula, em que ia montado, seguia em frente. 10Alguém viu isto e informou Joab: «Vi Absalão suspenso num carvalho.» 14Joab respondeu: «Não tenho tempo a perder contigo.» Tomou, pois, três dardos e cravou-os no coração de Absalão. 24David estava sentado entre duas portas. A sentinela que tinha subido ao terraço da muralha por cima da porta, levantou os olhos e viu um homem que corria sozinho. 25Gritou para dar a notícia ao rei, que disse: «Se vem só, traz boas notícias.» 1Então, o rei, muito triste, subiu ao quarto que estava por cima da porta e pôs-se a chorar. E dizia, caminhando de um lado para o outro: «Meu filho Absalão, meu filho, meu filho Absalão! Porque não morri eu em teu lugar? Absalão, meu filho, meu filho!» 2Disseram a Joab: «O rei chora e lamenta-se por causa de Absalão.» 3E naquele dia a vitória converteu-se em luto para todo o exército, porque o povo soube que o rei estava acabrunhado de dor por causa do filho. 4Por isso, o exército entrou na cidade em silêncio, como entra, coberto de vergonha, um exército derrotado.

    Já na fase da decadência do reino, David enfrenta a revolta do seu filho Absalão. Desejando dominar a revolta, David pede que seja poupada a vida do filho. Mas o jovem, ao fugir, fica pendurado nos ramos de um carvalho e é morto por Joab que, com isso, pensa agradar ao rei.
    A liturgia apenas nos faz escutar alguns versículos desta dramática narrativa. David espera novidades da frente de batalha. Os servos começam por lhe dar as boas notícias. O drama explode quando, a uma pergunta directa do rei, têm de lhe comunicar a morte do filho. David desata a chorar amargamente. O filho, morto em combate, já não é um inimigo, mas um simples rapaz. O júbilo da vitória transformou-se em luto intenso. David tinha perdoado a vida a Saul (1 Sam 24 e 26); como não havia de perdoar ao filho?
    O mais específico, mas também o mais difícil do cristianismo, é o perdão dos inimigos: «Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam, rezai pelos que vos caluniam... Se amais os que vos amam, que agradecimento mereceis? Os pecadores também amam aqueles que os amam...Também os pecadores fazem o mesmo». Neste sentido, David foi um cristão antes do cristianismo.

    Evangelho: Mc 5, 21-43

    21Naquele tempo, depois de Jesus ter atravessado, no barco, para a outra margem, reuniu-se uma grande multidão junto dele, que continuava à beira-mar. 22Chegou, então, um dos chefes da sinagoga, de nome Jairo, e, ao vê-lo, prostrou-se a seus pés 23e suplicou instantemente: «A minha filha está a morrer; vem impor-lhe as mãos para que se salve e viva.» 24Jesus partiu com ele, seguido por numerosa multidão, que o apertava. 25Certa mulher, vítima de um fluxo de sangue havia doze anos, 26que sofrera muito nas mãos de muitos médicos e gastara todos os seus bens sem encontrar nenhum alívio, antes piorava cada vez mais, 27tendo ouvido falar de Jesus, veio por entre a multidão e tocou-lhe, por detrás, nas vestes, 28pois dizia: «Se ao menos tocar nem que seja as suas vestes, ficarei curada.» 29De facto, no mesmo instante se estancou o fluxo de sangue, e sentiu no corpo que estava curada do seu mal. 30Imediatamente Jesus, sentindo que saíra dele uma força, voltou-se para a multidão e perguntou: «Quem tocou as minhas vestes?» 31Os discípulos responderam: «Vês que a multidão te comprime de todos os lados, e ainda perguntas: 'Quem me tocou?'» 32Mas Ele continuava a olhar em volta, para ver aquela que tinha feito isso. 33Então, a mulher, cheia de medo e a tremer, sabendo o que lhe tinha acontecido, foi prostrar-se diante dele e disse toda a verdade. 34Disse-lhe Ele: «Filha, a tua fé salvou-te; vai em paz e sê curada do teu mal.» 35Ainda Ele estava a falar, quando, da casa do chefe da sinagoga, vieram dizer: «A tua filha morreu; de que serve agora incomodares o Mestre?» 36Mas Jesus, que surpreendera as palavras proferidas, disse ao chefe da sinagoga: «Não tenhas receio; crê somente.» 37E não deixou que ninguém o acompanhasse, a não ser Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago. 38Ao chegar a casa do chefe da sinagoga, encontrou grande alvoroço e gente a chorar e a gritar. 39Entrando, disse-lhes: «Porquê todo este alarido e tantas lamentações? A menina não morreu, está a dormir.» 40Mas faziam troça dele. Jesus pôs fora aquela gente e, levando consigo apenas o pai, a mãe da menina e os que vinham com Ele, entrou onde ela jazia. 41Tomando-lhe a mão, disse: «Talitha qûm!», isto é, «Menina, sou Eu que te digo: levanta-te!» 42E logo a menina se ergueu e começou a andar, pois tinha doze anos. Todos ficaram assombrados. 43Recomendou-lhes vivamente que ninguém soubesse do sucedido e mandou dar de comer à menina.

    Marcos apresenta-nos, hoje, dois gestos decisivos de Jesus contra a morte: a cura da mulher que sofria de um fluxo de sangue e a cura da filha de Jairo. A perda de sangue era, para a mulher hebreia, uma frustração vital, porque, não poder ter descendência, equivalia à morte prematura (cf. Gen 30, 1). A filha de Jairo estava mesmo morta e teve que ser «ressuscitada». Jesus livra ambas da morte mostrando que é o verdadeiro Messias, porque a sua palavra suscita vida.
    Os dois episódios estão entrelaçados um no outro, revelando pontos de contacto e diferenças. No caso da filha de Jairo, a súplica do pai recebe uma resposta pronta de Jesus, que imediatamente se dirige para sua casa. Mas a caminhada é abruptamente interrompida com a intervenção da mulher que sofria do fluxo de sangue. Contrasta o comportamento de Jairo, homem influente, e o da hemorroíssa que se aproxima furtivamente de Jesus. Mas ambos têm a mesma confiança em Jesus e obtêm uma resposta pronta. A mulher, primeiro é secretamente curada da sua doença física; depois é curada da sua timidez, dos seus complexos: a mulher ganha coragem, fala com Jesus, estabelece uma relação com Ele. Foi curada e foi salva.
    No caso da menina, Jesus tem uma reacção diferente: enquanto tinha incitado a mulher, que se apresentara em segredo, a mostrar-se diante de todos, aqui ordena a Jairo, que fizera publicamente o seu pedido, que não divulgasse o milagre.

    Meditatio

    O amor de David para com o seu filho Absalão dá-nos uma ideia, ainda que pálida do amor de Deus, nosso Pai, para com todos os seus filhos, ainda que pecadores. Ao receber a notícia da morte de Absalão, David não pensa na revolta, na ingratidão, na falta de amor do filho. Pensa no jovem Absalão, que já não é um inimigo, mas um pobre rapaz, um filho morto. Por isso, chora a
    margamente e a vitória transforma-se em luto pesado.
    É assim que Deus trata os seus filhos pecadores: «É assim que Deus demonstra o seu amor para connosco: quando ainda éramos pecadores é que Cristo morreu por nós» (Rom 5, 8). Diante dos filhos mortos pelo pecado, Deus como que Se esquece de Si e dos seus direitos para os fazer voltar à vida.
    O evangelho está cheio de lições muito concretas para nós. Aqueles que se dirigem a Jesus, para obter graças, fazem-no de diversos modos. Jesus também responde de diferentes modos. Por vezes, parece não querer ouvir quem lhe faz a súplica. Outras vezes, antecipa-se a conceder a graça, ainda antes que alguém lha peça.
    Jairo, um homem importante, não hesita em pedir, com humildade, a cura da filha. A hemorroíssa, pelo contrário, tem vergonha em pedir, porque a sua doença a excluía do contacto com os outros. Além disso, temia mais uma desilusão, depois de tantas que tivera com os médicos.
    Jesus atende-os os dois, porque ambos revelam uma grande fé. Mas trato-os de modo diferente. Obriga a mulher a dar a cara, talvez para ensinar que nenhuma doença, nenhuma condição humana, são motivo de exclusão, e que basta a fé para ser curado por Ele. Jairo, pelo contrário, ocupando um lugar de prestígio na sociedade, é, por assim dizer, convidado à sobriedade e à reserva: poucos discípulos assistem à ressurreição da menina, e Jairo não deve fazer publicidade do facto. Estando em causa uma criança, era preciso respeitar-lhe os sentimentos, evitar os excessos da curiosidade pública, e fazê-la voltar rapidamente a uma vida normal: «mandou dar de comer à menina».
    O evangelho dá-nos lições de respeito pela privacidade das pessoas...
    Quanta felicidade sinto em ser filho do Pai que está no Céu. Mas sou ainda mais feliz quando penso que "Deus mostrou o Seu amor por nós porque, quando éramos ainda pecadores, Cristo morreu por nós" (Rm 5, 8). Amou-nos quando "éramos (Seus) inimigos!" (Rm 5, 10). Então sinto uma ilimitada gratidão no coração por Deus-Pai, por Cristo e sinto-me tão feliz que, como S. Paulo, exclamo: "Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores e eu sou o primeiro" (Tm 1, 15).
    A Igreja, Povo de Deus, é comunidade-comunhão, que não pode comportar qualquer tipo de exclusão. A sua lei fundamental, o amor, implica respeito pela dignidade de todo o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus. O amor, sobre o qual se funda a comunhão, é o amor-oblativo, idêntico ao do Pai e de Cristo, um amor criativo, gratuito, universal, que sabe compreender, perdoar, salvar, transformar...

    Oratio

    Senhor Jesus, dá-me a fé e a confiança da mulher doente, e a humildade de Jairo, para que, indo ao teu encontro e procurando tocar-te e falar-te, me deixe tocar por Ti e escute a tua palavra salvadora. Tu sabes bem do que eu preciso. Derrama sobre mim o amor e a misericórdia do Pai. O teu poder venceu a morte e deu-nos a vida. Cura em mim tudo quanto me impede de viver com a dignidade de um filho do Pai que está no Céu. Dá-me a vida, para que a tenha em abundância. Amen.

    Contemplatio

    A juventude com a sua franqueza, os seus ardores e a sua generosidade, com as esperanças que faz conceber, não é menos cara ao Coração do bom Mestre do que a infância. As graças de ressurreição que concede na sua vida mortal são para a juventude: Lázaro é ainda um jovem; a filha de Jairo é uma criança de doze anos; o terceiro é um adolescente, o filho único da pobre viúva de Naim.
    Como Jesus se mostra solícito e dedicado em todas estas circunstâncias! A sua emoção trai o seu coração.
    «Mestre, dizem as irmãs de Lázaro, aquele que amais está doente. - O nosso amigo Lázaro dorme, diz Jesus. Desde que Jesus vê Madalena e os amigos de Lázaro a chorar, estremece, perturba-se: «Onde o colocaram?», diz, e chora; e os Judeus diziam: «Vede como o amava». - E chegado junto do túmulo, Jesus chamou o seu amigo Lázaro com grandes gritos e Lázaro levantou-se (Jo 11).
    Jesus dirige-se a casa de Jairo junto do cadáver de uma menina de doze anos. Toma-a pela mão gritando-lhe: «Menina, levanta-te, sou eu que o quero». E ordena que lhe dêem de comer (Mt 9, 18).
    Para o filho da viúva de Naim, Jesus emociona-se de compaixão. Diz à mãe: «Não chore». Toca no caixão, diz em alta voz: «Jovem, eu te ordeno, levanta-te». Depois, entrega-o à sua mãe (Lc 7, 11).
    Jesus ama os jovens, e quer ganhar o seu coração para o dar a seu Pai (Leão Dehon, OSP 4, p. 41).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Filha, a tua fé salvou-te; vai em paz e sê curada do teu mal» (Mc 5, 34).

    | Fernando Fonseca, scj |

  • IV Semana - Quarta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    IV Semana - Quarta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    31 de Janeiro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares
    IV Semana - Quarta-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 2 Samuel 24, 2.8b-17

    2Naqueles dias, David ordenou a Joab, chefe do exército: «Percorre todas as tribos de Israel, de Dan a Bercheba, e faz o recenseamento do povo, de maneira que eu saiba o seu número.» 8Percorreram, assim, todo o país e voltaram a Jerusalém, ao fim de nove meses e vinte dias. 9Joab apresentou ao rei a soma do recenseamento do povo. Havia em Israel oitocentos mil homens de guerra, que manejavam a espada e, em Judá, quinhentos mil homens. 10Feito o recenseamento do povo, David sentiu remorsos e disse ao Senhor: «Cometi um grande pecado, ao fazer isto. Mas perdoa, Senhor, a culpa do teu servo, porque procedi como um insensato.» 11Pela manhã, quando David se levantou, o Senhor tinha falado ao profeta Gad, vidente de David, nestes termos: 12«Vai dizer a David: 'Eis o que diz o Senhor. Dou-te a escolher entre três coisas; escolhe uma das três e a executarei.'» 13Gad foi ter com David e referiu-lhe estas palavras, dizendo: «Que preferes: sete anos de fome sobre a terra, três meses a fugir diante dos inimigos que te perseguem, ou três dias de peste no teu país? Reflecte, pois, e vê o que devo responder a quem me enviou.» 14David respondeu a Gad: «Vejo-me em grande angústia. É melhor cair nas mãos do Senhor, cuja misericórdia é grande, do que cair nas mãos dos homens!» 15O Senhor enviou a peste a Israel, desde a manhã daquele dia até ao prazo marcado. Morreram setenta mil homens do povo, de Dan a Bercheba. 16O anjo estendeu a mão contra Jerusalém para a destruir. Mas o Senhor arrependeu-se desse mal e disse ao anjo que exterminava o povo: «Basta, retira a tua mão.» O anjo do Senhor estava junto à eira de Araúna, o jebuseu. 17Vendo o anjo que feria o povo, David disse ao Senhor: «Fui eu que pequei, eu é que tenho culpa! Mas estes, que são inocentes, que fizeram? Peço que descarregues a tua mão sobre mim e sobre a minha família!»

    O recenseamento do povo, por David, é um pecado porque, com ele, o rei mostra confiar mais nos efectivos humanos do que em Deus. Por isso é que o rei sente remorsos e o profeta Gad anuncia um castigo. David pode escolher entre uma das três punições previstas pela Lei para quem atraiçoe a Aliança (cf. Dt 28, 21-26). David prefere a peste à guerra porque, um castigo vindo da mão de Deus, permite esperar na misericórdia divina (v. 14). De facto, Deus sente compaixão por Jerusalém, e poupa-a (v. 17). O próprio rei intercede pelo povo inocente, e assume as responsabilidades pelo sucedido (v. 1). Vemos, neste relato, a dialéctica da história da salvação: pecado, castigo, arrependimento, perdão. Vemos também nele a doutrina da retribuição colectiva: a conduta de uma pessoa pode repercutir-se, para o bem e para o mal, em toda a comunidade. Essa repercussão acentua-se se a pessoa em causa tiver responsabilidades em relação à comunidade, por exemplo, se for rei. Foi David que pecou; mas o castigo ameaça todo o povo.

    Evangelho: Mc 6, 1-6

    1Naquele tempo, Jesus foi para a sua terra, e os discípulos seguiam-no. 2Chegado o sábado, começou a ensinar na sinagoga. Os numerosos ouvintes enchiam-se de espanto e diziam: «De onde é que isto lhe vem e que sabedoria é esta que lhe foi dada? Como se operam tão grandes milagres por suas mãos? 3Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?» E isto parecia-lhes escandaloso. 4Jesus disse-lhes: «Um profeta só é desprezado na sua pátria, entre os seus parentes e em sua casa.» 5E não pôde fazer ali milagre algum. Apenas curou alguns enfermos, impondo-lhes as mãos. 6Estava admirado com a falta de fé daquela gente.

    Depois de apresentar alguns milagres de Jesus, Marcos abre uma nova secção do seu evangelho para falar de uma série de viagens, dentro e fora da Galileia. Começa por ir à «sua terra», a Nazaré e, em dia de sábado, entra na sinagoga. Usa o direito de comentar a Escritura na sinagoga, que era reconhecido a qualquer homem adulto. Mas a sua doutrina é diferente da dos outros rabis. Marcos não cita, ao contrário de Lucas (4, 17ss.) os versículos de Isaías lidos por Jesus. Mas regista o espanto de quantos o ouviram. Esse espanto era motivado pela origem das palavras pronunciadas por Jesus, pela sabedoria que demonstrava e pelos prodígios que fazia. Tudo parecia estar em contradição com o conhecimento que tinham dele e da sua família. Mas é nesta contradição que se revela a verdadeira identidade de Jesus (v. 3). Também os profetas foram muitas vezes perseguidos por aqueles que tinham maior obrigação de os compreender (v. 4). A falta de fé dos seus conterrâneos impede Jesus de fazer entre eles milagres e prodígios, como tinha feito noutras terras.

    Meditatio

    S. Marcos apresenta-nos o episódio de Jesus na sinagoga de Nazaré, sublinhando a incredulidade dos seus conterrâneos. Estes conheciam bem Jesus e a sua família. E não são capazes de se abrir à novidade que Deus coloca diante deles. Jesus devia continuar a ser o que sempre fora. Por isso, não aceitam os seus milagres nem a sua pregação.
    Esta tentação pode atingir, ainda hoje, a comunidade dos discípulos, seja no seu conjunto, seja nas comunidades particulares. Se Jesus, pelo seu Espírito, surpreende com novas iniciativas, facilmente se levantam oposições, porque se pensa que tudo deve continuar como sempre foi. E assim se impede o Senhor de realizar todos os prodígios que pode e quer fazer entre nós.
    As palavras e as acções proféticas de Jesus desencadeiam uma oposição violenta da parte dos nazarenos. Jesus, como israelita conhecedor da história do seu povo, não se espanta e, serenamente, afirma: «Nenhum profeta é bem recebido na sua pátria» (Lc 4, 24).
    Também os discípulos de Jesus se encontram numa situação parecida com a de Jesus. Sendo discípulos, julgam saber tudo sobre Ele. É por isso que as nossas comunidades cristãs, tantas vezes, já quase não escutam a sua palavra. Sabem-na de cor. Já não lhes causa espanto. Já não os interpela. Mas, se interpela, arranjam mil e uma desculpa para não se moverem, não se renovarem. Quantas vezes, também nos nossos dias, as vozes proféticas são silenciadas!
    A fé verdadeira leva a reconhecer que Jesus é o enviado de Deus, que traz toda a novidade e revela toda a criatividade de Deus. Por isso, pode surpreender-nos a cada momento, fazer coisas novas, graças à sabedoria e ao poder do Pai. A história da Igreja é bem elucidativa de tudo isto.
    Na primeira leitura, Deus sugere a David um recenseamento (2 Sam 24, 1). O Primeiro Livro das Crónicas atribui essa ideia a Satanás (1 Cr 21, 1). Na verdade, estamos perante uma leitura teológica: Satanás não é mais do que um instrumento nas mãos de Deus (cf. Jb 1, 6), por meio do qual põe à p
    rova a fé dos seus. Deus julga obedecer a uma sugestão vinda de fora dele; na verdade apenas obedece à sua sede de poder que o leva a tentar controlar o povo. Esquece que não é o dono, mas apenas o administrador do Povo de Deus.
    Para David, como para os nazarenos, a questão está em deixar-se conduzir pela palavra de Deus, sem querer saber mais ou julgar se no filho de um carpinteiro se pode ou não manifestar a Sabedoria de Deus.
    As nossas Constituições, ao tratarem da nossa participação na "missão da Igreja" (cf. nn. 26-34) afirmam: "Como todo o carisma na Igreja, o nosso carisma profético coloca-nos ao serviço da missão salvífica do Povo de Deus no mundo de hoje" (n. 27). Como filhos do Pe. Dehon, devemos ser também nós, no meio dos homens do nosso tempo "profetas do amor" e "servidores da reconciliação" (Cst. 7), testemunhas proféticas, pela "mística", mas também pela "política", isto é, pela vivência da nossa espiritualidade e pelas nossas iniciativas, colaborando para o "advento de um mundo mais humano" (Cst. 37) e mais justo, especialmente trabalhando pelos "pequenos", pelos "humildes", pelos "pobres" (Cst. 31), e empenhando-nos totalmente ao serviço do Reino (Cst. 48). Naturalmente tudo isso pode trazer incompreensões e mesmo oposições. Mas há que avançar, «tendo os olhos em Jesus» (Heb 12, 2).

    Oratio

    Senhor, suscita em mim a atitude da verdadeira fé. Perdoa o meu orgulho, os meus preconceitos, que me impedem tantas vezes de Te reconhecer e reconhecer a tua acção à minha volta. Pretendo controlar os acontecimentos e escandalizo-me quando as coisas não correm conforme as minhas previsões.
    Muitas vezes penso que estás longe, que não me escutas. Mas sou eu que ando afastado de Ti e surdo às tuas palavras. Por isso, não podes fazer prodígios em meu favor. Não podes perdoar-me, porque não reconheço o meu pecado.
    Vem, Senhor, em meu auxílio. Eu sei que estás perto, que me queres surpreender com as tuas palavras e com as tuas iniciativas maravilhosas. Que me encontres atento e disponível. Amen.

    Contemplatio

    Jesus veio à terra para curar e consolar os que sofrem. - O velho Simeão saudou-o no templo como a consolação de Israel.
    Nosso Senhor aplica a si mesmo, no seu discurso de Nazaré, esta passagem do profeta Isaías: «O Espírito do Senhor está sobre mim, por isso me marcou com a sua unção; enviou-me a evangelizar os pobres, a curar os que têm o coração partido, anunciar a libertação aos cativos, dar a vista aos cegos, libertar os oprimidos, e publicar o ano da misericórdia do Salvador e o dia da retribuição». - «E hoje, diz o Salvador, fechando o volume, realiza-se a passagem do Evangelho que acabais de escutar» (Lc 4, 16).
    Que vinha fazer ao mundo, senão trazer-lhe uma consolação maior ainda que a sua infelicidade? Consolar os que sofrem, era o fim da sua vida. Era por isso que multiplicava os seus encorajamentos, os seus milagres, os seus benefícios. Foi pela nossa consolação que sofreu, que morreu e que instituiu a sua Igreja com os seus sacramentos (Leão Dehon, OSP 4, p. 138).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Estava admirado com a falta de fé daquela gente» (Mc 6, 6).

    | Fernando Fonseca, scj |

  • IV Semana - Quinta-feira -Tempo Comum - Anos Pares

    IV Semana - Quinta-feira -Tempo Comum - Anos Pares

    1 de Fevereiro, 2024

    IV Semana - Quinta-feira -Tempo Comum - Anos Pares

    Lectio

    Primeira leitura: 1 Reis 2, 1-4.10-12

    1Ao aproximar-se o dia da sua morte, David deu a seu filho Salomão as ordens seguintes: 2«Eu avanço pelo caminho por onde vai toda a gente; tem coragem e sê um homem! 3Observa os mandamentos do Senhor, teu Deus, andando nos seus caminhos, guardando as suas leis, seus preceitos, seus costumes e exigências, conforme está escrito na Lei de Moisés; assim terás êxito em todos os teus planos e acções. 4Assim o Senhor fará cumprir a sua palavra que me dirigiu quando disse: 'Se os teus filhos velarem pela sua conduta e andarem na minha presença com lealdade, com todo o seu coração e toda a sua alma, então sim, jamais algum dos teus filhos deixará de se sentar sobre o trono de Israel.'
    10David morreu, juntando-se a seus pais e foi sepultado na cidade de David. 11A duração do reinado de David sobre Israel foi de quarenta anos. Em Hebron reinou sete anos e em Jerusalém trinta e três. 12Salomão sentou-se no trono de David, seu pai, e o seu reinado consolidou-se enormemente.

    Tal como os patriarcas e os grandes chefes de Israel, David, ao ver aproximar-se a morte, reúne os seus filhos para lhes ditar as últimas vontades e pronunciar sobre eles a bênção final (Gn 49; Dt 33; Jos 23-34; 1 Sam 12). Apesar dos seus erros e pecados, David «seguiu os caminhos do Senhor» e pôde juntar-se aos seus pais, de acordo com as expressões do Deuteronómio de dos livros históricos (v. 10). A escola deuteronomista deu forma literária ao testamento de David e deixou nele sinais da sua teologia. A permanência de Salomão no trono fica condicionada à observância dos mandamentos e preceitos da Lei de Moisés, enquanto na formulação da profecia de Natan não havia quaisquer condições (cf. 2 Sam 7, 14-16). Deduz-se, por isso, que o nosso texto foi composto durante o exílio e constitui um chamamento implícito à conversão. Os desterrados deviam saber que a restauração da monarquia, e a continuidade dinástica estavam condicionadas ao cumprimento das cláusulas da Aliança.

    Evangelho: Mc 6, 7-13

    7Naquele Tempo, Jesus chamou os Doze e começou a enviá-los dois a dois e deu-lhes poder sobre os espíritos malignos. 8Ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser um cajado: nem pão, nem alforge, nem dinheiro no cinto; 9que fossem calçados com sandálias e não levassem duas túnicas. 10E disse-lhes também: «Em qualquer casa em que entrardes, ficai nela até partirdes dali. 11E se não fordes recebidos numa localidade, se os seus habitantes não vos ouvirem, ao sair de lá, sacudi o pó dos vossos pés, em testemunho contra eles.» 12Eles partiram e pregavam o arrependimento, 13expulsavam numerosos demónios, ungiam com óleo muitos doentes e curavam-nos.

    A proclamação do reino não se faz de modo ocasional. Jesus cria uma «instituição» que põe em movimento e planifica o anúncio da Boa Nova. São os Doze que, depois da visita a Nazaré, Jesus envia em missão, dando-lhes os seus próprios poderes (cf. v. 7).
    Distinguimos no texto três momentos: no primeiro, Jesus dá orientações quanto ao estilo de vida dos missionários: não devem levar provisões, mas confiar na generosidade daqueles a quem se dirigem; no segundo, define o método de pregação: deter-se em casa de quem os acolhe, mas abandonar sem lamentações as daqueles que os não recebam; o terceiro momento é o da execução: os discípulos partem, pregam a conversão, fazem exorcismos e curas com sucesso (vv. 12s.).
    Contentar-se com o essencial da vida, que se apoia na absoluta confiança no Senhor, é condição indispensável para estar ao serviço da Palavra. Isto tem a ver com cada um dos missionários, mas também com a própria Igreja que, não só há-de ser Igreja dos pobres, mas também Igreja pobre.

    Meditatio

    David, antes de dar ao filho Salomão orientações sobre o modo de tratar os inimigos do reino, recomenda-lhe a obediência fiel aos preceitos da Lei, única condição para o sucesso de qualquer empresa em que se venha a meter.
    Num mundo que pretende organizar-se como se Deus não existisse, os crentes hão-de fazer-se eco desta advertência de David a Salomão. Num mundo de abundância, é fácil, para os próprios crentes, esquecer-se do essencial. A pressão dos media também pode levar-nos a orientar a nossa vida pelos lugares comuns em voga, ou a deixar-nos guiar por sondagens televisivas, quando ordenamos a nossa escala de valores.
    Bem diferentes são os parâmetros propostos pelas leituras de hoje. Escutámos as recomendações de David a Salomão. Mas também Jesus, no evangelho, manda aos discípulos dispensar coisas que nos parecem indispensáveis. Nas suas viagens missionárias não hão-de levar «nem pão, nem alforge, nem dinheiro no cinto». Podem ir «calçados com sandálias» mas não devem levar «duas túnicas» (cf. Mc 6, 8-9).
    É verdade que precisamos de alimentação e de umas tantas coisas para sobrevivermos. É verdade que a saúde, a família e o trabalho são importantes. Mas nada disso se há-de sobrepor a Deus. Nada disso se há-de sobrepor ao Reino e à missão que nele nos é confiada. Nada disso é condição indispensável para ser discípulos do Senhor ou para O servir. Em vez de nos desculparmos com essas necessidades e com esses valores para não nos comprometermos no voluntariado, para não darmos o devido tempo à oração, para não nos dedicarmos o tempo ao serviço dos irmãos e ao apostolado, procuremos primeiro a palavra do Senhor, e tudo o resto virá por acréscimo.
    O valor do homem não está em "ter" muito, mas no "ser", e o "ser" do homem é tanto mais perfeito quanto mais experimenta que «só Deus basta» e vive na sua intimidade: "Procurai primeiro o Reino dos Céus e tudo o resto vos será dado por acréscimo" (Mt 6, 33).
    Este ensinamento de Jesus torna-se eficaz quando é testemunhado com a vida, quando um cristão demonstra, com a sua existência, que se torna cada vez mais pessoa humana, prescindindo de tantos bens, que os homens consideram indispensáveis. Se esse cristão for também religioso e missionário, o absoluto de Deus, o desapego dos bens e a confiança na Providência divina, não só devem ser realidades, mas também aparecer como tais aos olhos dos outros cristãos. Se assim não for, o religioso, o missionário, podem tornar-se contra-testemunho.
    E também não basta o testemunho pessoal deste ou daquele religioso, deste ou daquele missionário. É indispensável o testemunho comunitário, o testemunho das próprias comunidades eclesiais.

    Oratio

    Senhor, quando devo partir em missão, faço uma lista de muitas coisas a levar, porque as julgo nec
    essárias. Hoje, Tu confundes-me, apresentando-me uma lista... do que não devo levar. Eu sei que não me queres desmazelado, mas apenas ensinar-me que não devo preocupar-me com demasiadas coisas... para não esquecer a confiança em Ti. Além disso, se aqueles a quem me envias me vissem excessivamente preocupado comigo mesmo, a minha pregação seria um contra-testemunho. Se me vissem utilizar meios poderosos, poderia tornar-se menos visível o poder da tua graça. Por isso, Te peço: afasta de mim a tentação de pôr a segurança da minha vida e o êxito da minha missão nas coisas ou nos meios a utilizar. Que eu me abra a Ti com um coração cada vez mais livre. Amen.

    Contemplatio

    Nosso Senhor indica aos apóstolos três condições requeridas para o sucesso da sua missão. A primeira é o espírito de desinteresse. «Recebestes gratuitamente, dai gratuitamente». Que os vossos ouvintes vejam que não é por ganho, mas pela salvação das almas e pela felicidade dos homens que trabalhais.
    A segunda é o desapego das coisas da terra e o amor da santa pobreza: «Não leveis convosco nem ouro nem provisões».
    A terceira é a mais inteira confiança nos cuidados e na protecção da divina Providência: «O trabalhador tem direito ao seu alimento».
    Estas condições são ainda hoje as do sucesso.
    Nosso Senhor previne depois os seus discípulos contra as perseguições que virão, e é para o ministério apostólico do futuro que os instrui, porque as perseguições não deviam surgir para eles senão depois do Pentecostes. «Envio-vos, diz-lhes, como cordeiros para o meio de lobos. Sede simples como as pombas, pela vossa doçura e pela vossa caridade, mas também sede prudentes como serpentes para evitardes as armadilhas que vos serão armadas... Não vos inquieteis com o que tereis de responder, se vos conduzirem diante dos juízes, o Espírito Santo assistir-vos-á... Não enfrenteis temerariamente a perseguição, fugi antes para outra cidade... As perseguições não devem, aliás, assustar-vos, elas hão-de preparar-vos uma recompensa incomparável. Quem perseverar será salvo, e em recompensa de sofrimentos passageiros, receberá a eterna felicidade dos céus e um peso imenso de glória (Leão Dehon, OSP 4, p. 267s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Procurai primeiro o Reino dos Céus e tudo o resto vos será dado por acréscimo» (Mt 6, 33).

    | Fernando Fonseca, scj |

  • Apresentação do Senhor

    Apresentação do Senhor


    2 de Fevereiro, 2024

    Esta festa já era celebrada em Jerusalém, no século IV. Chamava-se festa do encontro,hypapántè , em grego. Em 534, a festa estendeu-se a Constantinopla e, no tempo do Papa Sérgio, chegou a Roma e ao Ocidente. Em Roma, a festa incluía uma procissão até à Basílica de S. Maria Maior. No século X, começaram a benzer-se as velas.

    José e Maria levam o Menino Jesus ao templo, oferecendo-o ao Pai. Como toda a oferta implica renúncia, a Apresentação do Senhor é já o começo do mistério do sofrimento redentor de Jesus, que atingirá o seu ponto culminante no Calvário. Maria e José unem-se à oferta do seu divino Filho estando a seu lado e colaborando, cada um a seu modo, na obra da Redenção.

    Lectio

    Primeira Leitura: Malaquias 3, 1-4

    Assim fala o Senhor: "Eis que Eu vou enviar o meu mensageiro, a fim de que ele prepare o caminho à minha frente. E imediatamente entrará no seu santuário o Senhor, que vós procurais, e o mensageiro da aliança, que vós desejais. Ei-lo que chega! - diz o Senhor do universo. 2Quem suportará o dia da sua chegada? Quem poderá resistir, quando ele aparecer?Porque ele é como o fogo do fundidor e como a barrela das lavadeiras.  3Ele sentar-se-á como fundidor e purificador. Purificará os filhos de Levi e os refinará, como se refinam o ouro e a prata. E assim eles serão para o Senhor os que apresentam a oferta legítima. 4Então, a oferta de Judá e de Jerusalém será agradável ao Senhor como nos dias antigos, como nos anos de outrora".

    Os dois mensageiros anunciados pelo profeta introduzem-se mutuamente: um prepara a vinda do Senhor e outro realiza a Aliança, é o Esperado. Estas duas figuras perspetivam João Baptista e Cristo. Um é apenas precursor; o outro é o Messias esperado, de origem divina, o Redentor. O primeiro prepara o caminho; o segundo entra efetivamente no templo, santificando, pela oferta de si mesmo, o sacrifício da nova Aliança, os ministros e o culto.

    Segunda leitura: Hebreus 2, 14-18

    Uma vez que os filhos dos homens têm em comum a carne e o sangue, também Ele partilhou a condição deles, a fim de destruir, pela sua morte, aquele que tinha o poder da morte, isto é, o diabo, 15e libertar aqueles que, por medo da morte, passavam toda a vida dominados pela escravidão. 16Ele, de facto, não veio em auxílio dos anjos, mas veio em auxílio da descendência de Abraão. 17Por isso, Ele teve de assemelhar-se em tudo aos seus irmãos, para se tornar um Sumo Sacerdote misericordioso e fiel em relação a Deus, a fim de expiar os pecados do povo. 18É precisamente porque Ele mesmo sofreu e foi posto à prova, que pode socorrer os que são postos à prova.

    A carne e o sangue, submetidos ao poder da morte pelo inimigo, são divinizados e libertados por Cristo, Deus feito homem. A descendência de Abraão é restituída à vida. O Filho de Deus apresenta-se como primeiro entre muitos irmãos e como sacerdote, mediador na sua divindade e humanidade, da fidelidade de Deus, Pai da vida.

    Evangelho: Lucas 2, 22-40

    Ao chegarem os dias da purificação, segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém para o apresentarem ao Senhor, 23conforme está escrito na Lei do Senhor: «Todo o primogénito varão será consagrado ao Senhor» 24e para oferecerem em sacrifício, como se diz na Lei do Senhor, duas rolas ou duas pombas. 25Ora, vivia em Jerusalém um homem chamado Simeão; era justo e piedoso e esperava a consolação de Israel. O Espírito Santo estava nele. 26Tinha-lhe sido revelado pelo Espírito Santo que não morreria antes de ter visto o Messias do Senhor.27Impelido pelo Espírito, veio ao templo, quando os pais trouxeram o menino Jesus, a fim de cumprirem o que ordenava a Lei a seu respeito. 28Simeão tomou-o nos braços e bendisse a Deus, dizendo:  29«Agora, Senhor, segundo a tua palavra, deixarás ir em paz o teu servo, 30porque meus olhos viram a Salvação  31que ofereceste a todos os povos,  32Luz para se revelar às nações e glória de Israel, teu povo.» 33Seu pai e sua mãe estavam admirados com o que se dizia dele.  34Simeão abençoou-os e disse a Maria, sua mãe: «Este menino está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição; 35uma espada trespassará a tua alma. Assim hão-de revelar-se os pensamentos de muitos corações.»36Havia também uma profetisa, Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser, a qual era de idade muito avançada. Depois de ter vivido casada sete anos, após o seu tempo de donzela, 37ficou viúva até aos oitenta e quatro anos. Não se afastava do templo, participando no culto noite e dia, com jejuns e orações. 38Aparecendo nessa mesma ocasião, pôs-se a louvar a Deus e a falar do menino a todos os que esperavam a redenção de Jerusalém. 39Depois de terem cumprido tudo o que a Lei do Senhor determinava, regressaram à Galileia, à sua cidade de Nazaré. 40Entretanto, o menino crescia e robustecia-se, enchendo-se de sabedoria, e a graça de Deus estava com Ele.

    O Evangelho da Infância de Jesus tem o seu ponto alto no templo, lugar da plenitude do povo de Israel. É aí que Zacarias ouve a palavra que dirige a história para a sua meta (anúncio de João); é aí que o Menino é apresentado a Deus, revelado a Simeão e a Ana. É daí que regressa a Nazaré. Pano de fundo da cena da apresentação é lei judaica segundo a qual os primogénitos são sagrados e, por isso, devem ser apresentados a Deus. O Pai responde à apresentação e oferta de Jesus com o dom do Espírito ao velho Simeão, que profetiza. Israel pode estar descansado: a sua história não acaba em vão. Simeão viu o Salvador e sabe que a meta é agora o triunfo da vida.

    Meditatio

    Os pais de Jesus, de acordo com a lei mosaica, 40 dias depois do nascimento do primeiro filho, foram ao Templo de Jerusalém para oferecer o primogénito ao Senhor e para a mãe ser purificada. Mas este rito não foi exatamente igual aos outros. Nos ritos comuns, eram os pais que apresentavam os filhos a Deus em sinal de oferta e de pertença; neste rito é Deus que apresenta o seu Filho aos homens. Fá-lo pela boca do velho Simeão e da profetisa Ana. Simeão apresenta-O ao mundo como salvação para todos os povos, como luz que iluminará as gentes, mas também como sinal de contradição; como Aquele que revelará os pensamentos dos corações.
    O encontro de Jesus com Simeão e Ana no Templo de Jerusalém é símbolo de uma realidade maior e universal: a Humanidade encontra o seu Senhor na Igreja. Malaquias preanunciava este encontro: «Eis que Eu vou enviar o meu mensageiro, a fim de que ele prepare o caminho à minha frente. E imediatamente entrará no seu santuário o Senhor, que vós procurais». No Templo, Simeão reconheceu Jesus como o Messias esperado e proclamou-o salvador e luz do mundo. Compreendeu que, doravante, o destino de cada homem se decidia pela atitude assumida perante Ele; Jesus será ruína ou salvação. Como dirá João Baptista: Ele tem na mão a joeira para separar o trigo bom da palha (cf. Mt 3, 12).
    É o que acontece, a outra escala, também hoje: no novo templo de Deus que é a Igreja, os homens «encontram» Cristo, aprendem a conhecê-lo, recebem-no na Eucaristia, como Simeão o recebeu nos braços; a sua palavra torna-se, aí, para eles, luz e o seu corpo força e alimento. É a experiência que fazemos, sempre que vamos à missa. A comunhão é um verdadeiro encontro entre Deus e nós. Hoje, essa experiência é acentuada pelo simbolismo da festa: a procissão com que entramos na igreja com o sacerdote, levando a vela acesa e cantando, era, sinal deste ir ao encontro de Jesus que nos chama no interior da sua igreja, na esperança de irmos ao seu encontro um dia no Hypapante eterno, quando formos nós a ser apresentados por Ele ao Pai.
    A Candelária é festa de luz. A luz da fé não nos foi dada apenas para iluminar o nosso caminho, desinteressando-nos dos outros... A luz da fé também não é para ter acesa apenas na igreja, ou em certos momentos, mas em todos os momentos e situações da nossa vida... A nossa fé há de ser luz que ilumina, fogo que aquece... É luz e fogo quem é compreensivo e bom com todos... quem sabe apoiar os pequenos esforços... os pequenos progressos... quem tem palavras de amizade, de estímulo, de apoio... quem sabe dizer uma boa palavra, dar uma ajuda... O amor cristão tem a sua origem em Deus que nos amou e nos enviou o seu Filho com quem nos encontramos em vários momentos da nossa vida, particularmente quando celebramos a Eucaristia. Esse é o nosso encontro, enquanto esperamos o encontro definitivo no Céu.

    Oratio

    Ó Jesus, eis-me aqui para fazer a vossa vontade. Quero estar atento e ouvir as vossas ordens, os vossos desejos, que me chegam através da vossa Palavra, das orientações dos vossos representantes na terra, dos acontecimentos da minha vida e da vida dos meus irmãos. Uno-me à oblação generosa do vosso divino Coração. Que quereis que vos faça? Dizei-mo, pelos meus pastores, pelas vossas inspirações, pela vossa providência. Falai, Senhor, que o vosso servo escuta. Iluminai-me com a vossa luz divina e refleti-la-ei nos meus irmãos. Ámen.

    Contemplatio

    «Eis-me aqui, meu Deus, para vos servir e para fazer a vossa vontade: Eis a serva do Senhor: faça-se em mim segundo a tua palavra». Esta é a regra, Maria obedece. Está escrito na lei, no Levítico e no Êxodo. A jovem mãe apresentar-se-á no templo para ser purificada, quarenta dias depois do nascimento de um filho e oitenta dias depois do nascimento de uma filha. Maria não costuma hesitar quando se trata da lei. Cumpre tudo à letra, segundo a Lei de Moisés. No quadragésimo dia, está em Jerusalém. Não examina se está dispensada pelo carácter sobrenatural da sua maternidade. A hesitação não lhe vem, é a lei. Como o seu divino Filho, renuncia a todo o privilégio e, contente com a sorte comum, obedece à lei. Jesus obedece e deixa-se levar, apresentar, resgatar, Maria obedece também e deixa-se purificar. Como Jesus, Maria leva no meio do seu Coração a lei de Deus, como sua regra de vida. Oh! Como esta obediência pontual, humilde, heroica, condena todas as nossas hesitações, toda a nossa procura de exceções e de dispensas! Maria podia dizer: Eis a serva do Senhor. E eu posso dizer: Ecce venio: eis que venho, Senhor, para obedecer, para fazer a vossa vontade. Eis o teu servo. (Leão Dehon, OSP 3, p. 120).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a Palavra do Senhor:
    "Eu sou a luz do mundo" (Jo 8, 12).

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    Apresentação do Senhor (02 Fevereiro)

  • IV Semana - Sábado - Tempo Comum - Anos Pares

    IV Semana - Sábado - Tempo Comum - Anos Pares

    3 de Fevereiro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares
    IV Semana - Sábado
    Lectio

    Primeira leitura: 1 Reis 3, 4-13

    4Naqueles dias, o rei Salomão dirigiu-se a Guibeon, para aí oferecer um sacrifício, uma vez que esse era o principal lugar alto; e ali Salomão ofereceu em holocausto mil vítimas. 5Em Guibeon o Senhor apareceu a Salomão em sonhos, durante a noite, e disse-lhe: «Pede! Que posso Eu dar-te?» 6Salomão respondeu: «Tu trataste o teu servo David, meu pai, com grande misericórdia, porque ele andou sempre na tua presença com lealdade, justiça e rectidão de coração para contigo; conservaste para com ele essa grande misericórdia, concedendo-lhe um filho que hoje está sentado no seu trono. 7Agora, Senhor, meu Deus, és Tu também que fazes reinar o teu servo em lugar de David, meu pai; mas eu não passo de um jovem inexperiente que não sabe ainda como governar. O teu servo encontra-se agora no meio do teu povo escolhido, um povo tão numeroso que ninguém o pode contar nem enumerar, por causa da sua multidão. 9Terás, pois, de conceder ao teu servo um coração cheio de entendimento para governar o teu povo, para discernir entre o bem e o mal. De outro modo, quem seria capaz de julgar o teu povo, um povo tão importante?» 10Esta oração de Salomão agradou ao Senhor, 11que lhe disse: «Já que me pediste isso e não uma longa vida, nem riqueza, nem a morte dos teus inimigos, mas sim o discernimento para governar com rectidão, 12vou proceder conforme as tuas palavras: dou-te um coração sábio e perspicaz, tão hábil que nunca existiu nem existirá jamais alguém como tu. 13Dou-te também o que nem sequer pediste: riquezas e glória, de tal modo que, durante a tua vida, não existirá rei que te seja igual.

    O autor sagrado realça em Salomão três facetas: sábio (cc. 3-5), construtor (cc. 6-9), rico (c. 10). Mas a mais importante das três facetas é a sabedoria. Essa sabedoria abarca todos os campos: a governação (cf. 3, 16-28), as letras e as artes. Essa sabedoria é dom de Deus, fruto da oração. E a oração do rei é a melhor prova da sua sabedoria. A oração de Salomão, no santuário de Guibeon, é sábia e inteligente. Por isso, agradou ao Senhor. Não foi uma oração egoísta, mas uma oração em que pediu a Deus bons critérios para julgar e para discernir o bem e o mal, para governar com justiça.
    A narrativa do sonho de Salomão tem o estilo das lendas populares. O protagonista aparece como um herói positivo, que segue a lei de Deus e oferece sacrifícios ao Senhor, podendo, por essa razão, pedir o que quisesse (vv. 4s.). Na sua oração, o rei usa a linguagem sapiencial e profética: pede «um coração cheio de entendimento», para fazer justiça ao povo, e «para discernir entre o bem e o mal».
    Tal como nas lendas, o pedido do rei agrada a Deus e é atendido. Mas, com a sabedoria, Salomão recebe também a riqueza e a glória.

    Evangelho: Mc 6, 30-34

    30Naquele tempo, os Apóstolos reuniram-se a Jesus e contaram-lhe tudo o que tinham feito e ensinado. 31Disse-lhes, então: «Vinde, retiremo-nos para um lugar deserto e descansai um pouco.» Porque eram tantos os que iam e vinham, que nem tinham tempo para comer. 32Foram, pois, no barco, para um lugar isolado, sem mais ninguém. 33Ao vê-los afastar, muitos perceberam para onde iam; e de todas as cidades acorreram, a pé, àquele lugar, e chegaram primeiro que eles. 34Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão deles, porque eram como ove-lhas sem pastor. Começou, então, a ensinar-lhes muitas coisas.

    Na segunda parte do seu evangelho (6, 30-10), Marcos diz-nos que Jesus, apesar de galileu, é profundamente universal: dirige-se aos outros, aos afastados, aos gentios; mas não esquece os clássicos, os eleitos.
    O texto que escutamos lembra-nos uma visita «ad limina»: os Apóstolos vêm dos seus lugares de trabalho e contam a Jesus o que fizeram. Jesus escuta-os, mas não quer vê-los cair no triunfalismo do muito que fizeram e fazem, nem no activismo de quem se entrega às coisas do Senhor, esquecendo o próprio Senhor. Por isso, lhes diz: «Vinde, retiremo-nos para um lugar deserto e descansai um pouco». É um momento de intimidade entre Jesus e os seus, um convite ao repouso e ao recolhimento. A comunidade dos Doze, com Jesus no barco, recompõe-se e renova-se em vista da secção dos milagres e da dupla multiplicação dos pães. Estes milagres são preanunciado e introduzidos com a referência à necessidade de alimento, material e simbólico: os discípulos «não tinham tempo para comer» (v. 31); as multidões «eram como ovelhas sem pastor» (v. 34).
    É uma pena que a tradição os retiros e exercícios espirituais se tenham convertido em outras coisas que nem sempre contribuem para o bem dos homens e para o bem da Igreja.

    Meditatio

    Salomão não é grande por causa da sua riqueza, nem por causa da sua sabedoria. É grande porque soube dirigir a Deus a oração justa. Com verdadeira humildade, implorou de Deus a sabedoria como o mais elevado dom, que só Deus pode conceder. Soube também pedir o discernimento: «concede ao teu servo um coração cheio de entendimento... para discernir entre o bem e o mal» (1 Re 3, 8).
    Quanto precisamos da sabedoria para nos conduzirmos pelos critérios de Deus, e não pelos critérios do mundo em que vivemos! Se a obediência vale mais do que os sacrifícios (cf. 1 Sam 15, 22), quanto precisamos de nos habituar a discernir, sempre e em toda a parte, a vontade de Deus acerca de nós, das nossas comunidades e do mundo!
    Os discípulos de Jesus, ao regressarem, contam-lhe os êxitos da missão que lhes tinha confiado: expulsaram demónios, curaram doentes (cf. Mc 6, 13). Jesus, quase não lhes presta atenção, e aponta-lhes algo de mais importante: «Vinde, retiremo-nos para um lugar deserto e descansai um pouco» (Mc 6, 31).
    No mundo agitado em que vivemos, perdemos o sentido do repouso. Mergulhados em mil e uma tarefas, corremos desenfreadamente, sem reservarmos tempo para nós. Jesus lembra-nos que não podemos viver sem nos alimentarmos, sem repousarmos. São exigências da nossa condição humana que não podemos desprezar. A própria eficácia do nosso apostolado depende mais da graça do Senhor do que das nossas correrias e esforços. Precisamos de tempo para estarmos a sós com o Senhor, crescermos na intimidade com Ele, e apresentar-lhe as situações e as pessoas que encontramos no nosso apostolado. Sem nos alimentarmos na mesa da Palavra e da Eucaristia, a nossa vida definha e o nosso apostolado é estéril.
    O Vaticano II lembra aos sacerdotes a necessidade do descanso: "É bem... que se reúnam de boa vontade para passarem juntos, em alegria, alguns momentos de distensão e de repouso" (PO 8). Mas esta recomendação é válida também para os religiosos e mesmo para tantos cristãos que, com os sacerdotes e rel
    igiosos, se empenham denodadamente no apostolado.

    Oratio

    Senhor, dá-me um coração que saiba discernir a vontade do Pai, que saiba amá-la, que saiba cumpri-la pronta e generosamente. Peço-te esta graça por intercessão de Maria, a Virgem que sabia escutar, a Virgem do «Sim». Em cada momento, quer me convoques para a missão, quer me chames a descansar, direi como Tu e como Ela: «Ecce venio! Fiat!»: Eis-me aqui; faça-se!
    Ajuda-me a fazer silêncio, sobretudo dentro de mim. Dá-me o gosto da solidão preenchida pela tua presença. Liberta-me do frenesim da acção e da busca extenuante do barulho e da confusão.
    Que eu saiba escutar o silêncio. Que eu saiba ouvir a tua voz nas pequenas coisas de cada dia: no rosto do irmão, no encanto da natureza, nos trabalhos e na história, no repouso e no sono, quando tudo mergulha no silêncio e só Tu podes penetrar no íntimo dos corações. Amen.

    Contemplatio

    Jesus dedica-se à formação dos seus discípulos e dos seus apóstolos.
    Os seus primeiros encontros com André e João prolongam-se durante a noite (Jo 1, 38). Jesus não liga à fadiga.
    Leva-os a fazer um retiro de vez em quando: «Vinde até ao deserto, dizia-lhes, e repousai um pouco as vossas almas». É preciso às vezes deixar o excesso do ministério para se retemperar.
    Jesus é todo para os seus discípulos para os instruir. Consagra três anos à sua formação doutrinal. Muitas vezes toma-os à parte. No sermão da montanha, tem instruções especiais para os seus apóstolos e outras para as multidões. Fala aos seus apóstolos nas cumeadas e desce depois até ao povo, como para marcar que os padres devem fazer estudos mais elevados e mais difíceis.
    Depois de falar ao povo em parábolas, explica as suas parábolas aos seus apóstolos: «Quanto a vós, diz-lhes, tendes necessidade de compreender bem todos os mistérios do reino de Deus: A vós é dado a conhecer os mistérios do Reino do Céu» (Mt 13, 11).
    Era seu costume retomar os seus ensinamentos com os seus apóstolos e desenvolvê-los: explicava tudo aos discípulos, em particular (Mc 4, 34).
    Era como que os seus cursos de exegese e de teologia.
    E continuou assim até depois da sua ressurreição. Nas suas aparições, instruía-os sobre o reino de Deus, isto é, sobre a Igreja, a sua organização, o seu culto, os seus sacramentos: Apareceu-lhes durante quarenta dias e falava-lhes do Reino de Deus (Act 1, 4).
    Pensemos em perpetuar o nosso sacerdócio, em cultivar as vocações, em ajudá-las? Temos concorrido para desenvolver algumas? (Leão Dehon, OSP 2, p. 568s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Vinde e descansai um pouco» (Mc 6, 31).

    | Fernando Fonseca, scj |

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