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  • 05º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    05º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    4 de Fevereiro, 2024

    Ano B

    5.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 5.º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia do 5.º Domingo do Tempo Comum coloca-nos face a questões que, desde sempre, inquietaram os seres humanos: qual o sentido do sofrimento e da dor que acompanham a caminhada do homem pela terra? Qual a “posição” de Deus face aos dramas que marcam a nossa existência? A Palavra de Deus que hoje escutamos não tem respostas absolutas para estas questões; mas deixa-nos uma certeza fundamental: o projeto que Deus tem para nós não é um projeto de morte, mas é um projeto de felicidade e de vida sem fim.

    Na primeira leitura, um crente chamado Job comenta, com amargura e desilusão, o facto de a sua vida estar marcada por um sofrimento atroz e de Deus parecer ausente e indiferente face ao desespero em que a sua existência decorre… Apesar disso, é a Deus que Job se dirige, pois sabe que Deus é a sua única esperança e que fora d’Ele não há possibilidade de salvação.

    No Evangelho manifesta-se a eterna preocupação de Deus com a felicidade dos seus filhos. Na ação libertadora de Jesus em favor dos homens, começa a manifestar-se esse mundo novo sem sofrimento, sem opressão, sem exclusão que Deus sonhou para os seus filhos e filhas. O texto sugere, ainda, que a ação de Jesus tem de ser continuada pelos seus discípulos.

    Na segunda leitura, Paulo de Tarso revela aos coríntios – e aos crentes de todas as épocas e lugares – que o amor é o princípio fundamental que guia cada um dos seus passos. Foi por amor que ele se fez servidor do Evangelho, sem exigir nada de ninguém. É de acordo com este princípio que os discípulos de Jesus devem viver.

     

    LEITURA I – Job 7,1-4.6-7

    Job tomou a palavra, dizendo:
    «Não vive o homem sobre a terra como um soldado?
    Não são os seus dias como os de um mercenário?
    Como o escravo que suspira pela sombra
    e o trabalhador que espera pelo seu salário,
    assim eu recebi em herança meses de desilusão
    e couberam-me em sorte noites de amargura.
    Se me deito, digo: ‘Quando é que me levanto?’
    Se me levanto: ‘Quando chegará a noite?’
    e agito-me angustiado até ao crepúsculo.
    Os meus dias passam mais velozes que uma lançadeira de tear
    e desvanecem-se sem esperança.
    – Recordai-Vos que a minha vida não passa de um sopro
    e que os meus olhos nunca mais verão a felicidade».

     

    CONTEXTO

    O Livro de Job, uma das pérolas da literatura universal, apresenta uma reflexão sobre algumas das grandes questões que se colocam aos seres humanos: qual o sentido da vida? Qual a situação do homem diante de Deus? Qual o papel de Deus na vida e nos dramas do ser humano? Qual o sentido do sofrimento?

    Job, a figura principal deste livro, é apresentado como um homem piedoso, bom, generoso e cheio de “temor de Deus”. Possuía muitos bens e uma família numerosa… Mas, repentinamente, viu-se privado de todos os seus bens, perdeu a família e foi atingido por uma grave doença.

    O drama de Job, apresentado em pormenor nos dois primeiros capítulos do livro, serve para introduzir uma reflexão sobre um dos grandes dogmas da fé israelita: o dogma da retribuição. Para a catequese tradicional de Israel, Javé recompensava os bons pelas suas boas obras e castigava os maus pelas injustiças e arbitrariedades que praticavam. A justiça de Deus era linear, lógica, imutável. De acordo com os teólogos de Israel, Javé é um Deus previsível, que Se limita a fazer a contabilidade das ações do homem e a pagar-lhe em consequência.

    No entanto, a vida nem sempre confirmava esta visão de Deus e da sua forma de atuar. Constatava-se, com frequência, que os maus possuíam bens em abundância e viviam vidas longas e felizes, enquanto que os justos eram pobres e sofriam por causa da injustiça e da violência dos poderosos. Mais ainda: o dogma não respondia ao problema do sofrimento do inocente. Se um homem bom, piedoso, que teme o Senhor e que vive na observância dos mandamentos sofre, como explicar esse sofrimento?

    Job discorda da teologia tradicional e, a partir da sua própria experiência, denuncia uma fé instalada em preconceitos e em teorias que não têm nada a ver com a vida. Ele não aceita as falsas imagens de Deus fabricadas pelos teólogos de Israel, para quem Deus não passa de um comerciante que paga conforme a qualidade da mercadoria que recebe.

    Como não pode aceitar esse deus falso, Job parte em demanda do verdadeiro rosto de Deus. Numa busca apaixonada, emotiva, dramática, temperada pelo sofrimento, marcada pela rebeldia e, às vezes, pela revolta, Job chega ao “face a face” com Deus. Descobre um Deus omnipotente, desconcertante, incompreensível, que ultrapassa infinitamente as lógicas humanas; mas que ama, com amor de Pai, cada uma das suas criaturas. A Job nada resta senão reconhecer a sua pequenez e finitude, a sua incapacidade para compreender os projetos de Deus, a vacuidade da sua pretensão de julgar Deus e de entendê-l’O à luz da lógica dos homens. Job decide, finalmente, trilhar o único caminho que faz sentido: vai entregar-se totalmente nas mãos desse Deus incompreensível mas cheio de amor, e vai confiar plenamente n’Ele.

    O texto que a liturgia deste dia nos propõe como primeira leitura integra o corpo central do livro (Jb 3,1 -31,40). Aí encontramos um diálogo entre Job (o crente inconformado, polémico, contestatário) e quatro “amigos” (os defensores da teologia tradicional). Nesse diálogo, Job vai desfazendo os argumentos da catequese oficial de Israel; e vai, também, derramando a sua insatisfação e revolta, num desafio a esse deus falso que os amigos lhe apresentam e que Job se recusa a aceitar. O primeiro dos “amigos” a falar é um tal Elifaz de Teman (Jb 4,1-5,27); Job responde-lhe com uma reflexão sobre o sentido da vida (Jb 6,1-7,21).

    MENSAGEM

    Para mostrar como a vida é dura, triste e dolorosa, Job utiliza três exemplos (vers. 1-2): o primeiro é o da vida do soldado, condenado a uma existência de luta, de risco e de sujeição; o segundo é o do escravo, condenado a uma vida de trabalho, de tortura e de maus tratos (só os breves momentos de descanso, à sombra, lhe dão algum alívio); o terceiro é o do trabalhador assalariado, condenado a trabalhar duramente de sol a sol (embora receba a recompensa de um salário). Estes são, na época, os três “estados” considerados mais penosos e miseráveis da vida do homem.

    No entanto, Job considera que a sua situação pessoal ainda é mais terrível. A dor que enche a sua existência cansa mais do que o trabalho do assalariado; a sua infelicidade é mais dolorosa do que a vida de luta e de risco do soldado; o seu desespero é mais pesado do que a sujeição do escravo. O sofrimento de Job não lhe dá descanso, nem de noite nem de dia, e a sua desilusão não é atenuada (como no caso do trabalhador) com a esperança de uma recompensa (vers. 3-4. 6).

    Depois de traçar o quadro da sua triste existência, Job dirige-se diretamente a Deus (vers. 7 e seguintes) e pede-lhe que “recorde” (isto é, que tenha em consideração) a triste situação do seu servo. O texto que a liturgia de hoje nos propõe termina no vers. 7; mas a oração de Job continua até ao final do capítulo (vers. 21).

    As palavras de Job estão carregadas de desespero, de amargura e de revolta contra esse Deus incompreensível e prepotente que Se recusa a pôr um fim ao drama do seu amigo Job. O grito de revolta de Job brota de um coração dolorido e é a expressão da angústia de um homem que, na sua miséria, se sente injustiçado e condenado pelo próprio Deus; mas é também o grito do crente que, sentindo-se completamente à deriva, sabe que só em Deus pode encontrar a esperança e o sentido para a sua existência.

     

    INTERPELAÇÕES

    • O sofrimento – sobretudo o sofrimento do inocente – é o drama mais inexplicável que atinge o homem ao longo da sua caminhada pela história. Que razões há para o sofrimento de uma criança ou de uma pessoa boa e justa? Porque é que algumas vidas estão marcadas por um sofrimento atroz e sem esperança? Como é que um Deus bom, cheio de amor, preocupado com a felicidade dos seus filhos, Se situa face ao drama do sofrimento humano? A única resposta honesta é admitir que não temos explicações definitivas para realidades que nos ultrapassam absolutamente. O “sábio” autor do livro de Job lembra-nos, a este propósito, a nossa pequenez, os nossos limites, a nossa finitude, a nossa incapacidade para entender os mistérios e os caminhos de Deus; mas deixa-nos também uma certeza fundamental: dê a vida as voltas que der, Deus ama-nos com amor de pai e de mãe e quer conduzir-nos ao encontro da vida verdadeira e definitiva, da felicidade sem fim… O nosso mundo está cheio de dramas que nos deixam sem palavras… Talvez nem sempre sejamos capazes de entender os caminhos de Deus; mas, mesmo quando as coisas não fazem sentido do ponto de vista da nossa lógica humana, resta-nos confiar no amor e na bondade do nosso Deus e entregarmo-nos confiadamente nas suas mãos. Como é que lidamos com as questões que nos ultrapassam e põem em causa a nossa visão do mundo e da vida? Somos capazes de confiar em Deus, a fundo perdido, mesmo quando não compreendemos a lógica das suas decisões?
    • Ao longo do livro de Job, multiplicam-se os desabafos magoados de um homem a quem o sofrimento tornou duro, exigente, amargo, agressivo, inconformado, revoltado até. No entanto, Deus nunca condena o seu amigo Job pela violência das suas críticas e das suas exigências… Deus sabe que as vicissitudes da vida podem levar o homem ao desespero; por isso, entende o seu drama e não leva demasiado a sério as suas expressões menos próprias e menos respeitosas. A atitude compreensiva e tolerante de Deus convida-nos a uma atitude semelhante face aos lamentos de revolta e de incompreensão vindos do coração daqueles irmãos que a vida maltratou… Que ressonância tem no nosso coração o lamento sentido dos nossos irmãos, mesmo quando esse lamento assume expressões mais contundentes e mais chocantes?
    • Job é, também, o crente honesto e livre, que não aceita certas imagens pré-fabricadas de Deus, apresentadas pelos profissionais do sagrado. Recusa-se a acreditar num Deus construído à imagem dos esquemas mentais do ser humano, que funciona de acordo com a lógica humana da recompensa e do castigo, que Se limita a fazer a contabilidade do bem e do mal do ser humano e a responder com a mesma lógica. Com coragem, correndo o risco de não ser compreendido, Job recusa esse Deus e parte à procura do verdadeiro rosto de Deus – esse rosto que não se descobre nos livros ou nas discussões teológicas abstratas, mas apenas no encontro “face a face”, na aventura da procura arriscada, na novidade infinita do mistério. Estamos dispostos, também nós, a percorrer esse caminho de descoberta e de encontro com Deus?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 146 (147)

    Refrão:  Louvai o Senhor, que salva os corações atribulados.

    Ou:        Aleluia.

     

    Louvai o Senhor, porque é bom cantar,
    é agradável e justo celebrar o seu louvor.
    O Senhor edificou Jerusalém,
    congregou os dispersos de Israel.

    Sarou os corações dilacerados
    e ligou as suas feridas.
    Fixou o número das estrelas
    e deu a cada uma o seu nome.

    Grande é o nosso Deus e todo-poderoso,
    é sem limites a sua sabedoria.
    O Senhor conforta os humildes
    e abate os ímpios até ao chão.

     

    LEITURA II – 1 Coríntios 9,16-19.22-23

    Irmãos:
    Anunciar o Evangelho não é para mim um título de glória,
    é uma obrigação que me foi imposta.
    Ai de mim se não anunciar o Evangelho!
    Se o fizesse por minha iniciativa,
    teria direito a recompensa.
    Mas, como não o faço por minha iniciativa,
    desempenho apenas um cargo que me está confiado.
    Em que consiste, então, a minha recompensa?
    Em anunciar gratuitamente o Evangelho,
    sem fazer valer os direitos que o Evangelho me confere.
    Livre como sou em relação a todos,
    de todos me fiz escravo,
    para ganhar o maior número possível.
    Com os fracos tornei-me fraco,
    a fim de ganhar os fracos.
    Fiz-me tudo para todos,
    a fim de ganhar alguns a todo o custo.
    E tudo faço por causa do Evangelho,
    para me tornar participante dos seus bens.

     

    CONTEXTO

    No mundo grego, os templos eram os principais matadouros de gado. Os animais eram oferecidos aos deuses e imolados nos templos. Uma parte do animal era queimada e outra parte pertencia aos sacerdotes. Havia ainda sobras, que o pessoal do templo comercializava. Essas sobras encontravam-se à venda nas bancas dos mercados, eram compradas pela população e entravam na cadeia alimentar. No entanto, tal situação não deixava de suscitar algumas questões aos cristãos: comprar essas carnes e comê-las – como toda a gente fazia – não seria, de alguma forma, comprometer-se com os cultos idolátricos? E que fazer quando se recebia um convite para comer em casa de um amigo e eram servidas carnes que provinham dos templos pagãos?

    Paulo foi questionado pelos coríntios sobre estas questões; e respondeu-lhes em 1 Cor 8-10. Concretamente, a resposta de Paulo aparece em vinte versículos (cf. 1 Cor 8,1-13 e 10,22-29): dado que os ídolos não existem, comer dessa carne não tem qualquer problema; contudo, o mais importante é não escandalizar os mais débeis. Se houver esse perigo, evite-se comer a carne de animais imolados aos ídolos, a fim de não faltar à caridade.

    Contudo, Paulo vai mais além da questão concreta posta pelos coríntios e enuncia um princípio geral que vale para este caso e vale em qualquer outra situação: o que é fundamental não é o que eu tenho o direito de fazer (aqui, em concreto, comer da carne imolada aos ídolos), mas é que os meus comportamentos sejam guiados pelo amor. Ora, o amor pode, em certas circunstâncias, exigir que eu renuncie aos meus direitos e à minha liberdade, em benefício de um bem maior. Para ilustrar esta “doutrina”, Paulo dá o seu próprio exemplo: ele renunciou muitas vezes aos seus direitos, por causa do amor aos irmãos. Em concreto, Paulo foi escolhido por Deus para ser apóstolo e, como apóstolo, podia reivindicar viver à custa do Evangelho… Mas nunca exigiu nada porque o que o preocupa, mais do que tudo, é o benefício das comunidades e dos irmãos (cf. 1 Cor 9,1-15).

     

    MENSAGEM

    Na verdade, a tarefa de anunciar o Evangelho nunca foi, para Paulo, um emprego que lhe dava jeito ou uma carreira apetecível, mas foi sempre “uma obrigação” que lhe foi imposta (vers. 16). Trata-se de uma afirmação surpreendente… Então Paulo sente-se obrigado a anunciar o Evangelho? Assim é, de facto. Desde aquele dia em que, no caminho de Damasco, encontrou Cristo, Paulo apaixonou-se por Cristo e pelo seu projeto de libertação. É essa “paixão” que o obriga a dar testemunho da Boa Nova de Jesus. Paulo sente, inclusive, que se não tivesse agarrado essa missão com todas as suas forças e com todo o seu querer, a sua vida deixaria de fazer sentido. A expressão “ai de mim se não anunciar o Evangelho” traduz esse imperativo que Paulo sente e que brota do seu amor a Cristo, ao Evangelho e aos homens. Por amor, Paulo renunciou à sua própria liberdade e pôs a sua vida ao serviço de Cristo e do Evangelho.

    Mais ainda: ao dedicar toda a sua vida ao serviço do Evangelho, Paulo teria o direito a receber o seu sustento daqueles que beneficiam do seu trabalho missionário; mas nunca quis qualquer pagamento. Ele sempre agiu por amor: por amor a Cristo e por amor aos irmãos. Quando se ama, a recompensa deixa de ser importante. Por amor, Paulo renunciou aos seus direitos e fez-se “servo de todos” (vers. 19); por amor, ele renunciou aos seus próprios interesses e benefícios pessoais e identificou-se com os fracos, fez-se “tudo para todos” (vers. 22-23).

    Cá está a “lei” fundamental, a lei decisiva que orienta a vida de Paulo: o amor. O amor está acima da própria liberdade; o amor sobrepõe-se até aos mais legítimos direitos da pessoa. É de acordo com este princípio que os discípulos de Cristo devem viver.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Para Paulo, o valor realmente absoluto e ao qual tudo o resto se deve subordinar é o amor. Só assim seremos dignos filhos desse Deus que, por amor, desceu ao encontro dos homens, partilhou as suas dores, enfrentou as forças do ódio e da injustiça, e até sofreu morte maldita numa colina fora da cidade santa de Jerusalém. No concreto do nosso dia a dia, é o amor – vivido ao jeito de Jesus, como renúncia ao egoísmo, como entrega total, como serviço simples e humilde – que conduz as nossas opções? E isso traduz-se no respeito pela vida, pela dignidade, pelos direitos dos nossos irmãos e irmãs?
    • A nossa sociedade é muito sensível aos direitos individuais e valoriza muito a liberdade. Trata-se, sem dúvida, de uma das dimensões mais significativas e mais positivas da cultura do nosso tempo… Contudo, a afirmação intransigente dos próprios direitos e da própria liberdade pode, por vezes, traduzir-se em prejuízo para os outros irmãos… Quando está em jogo o bem dos meus irmãos, onde começa e onde acaba a nossa liberdade?
    • A expressão “ai de mim se não anunciar o Evangelho” traduz a atitude de quem descobriu Jesus Cristo e a sua proposta e sente a responsabilidade por passar essa proposta libertadora aos outros homens. Implica o dom de si, o esquecimento dos seus interesses e esquemas pessoais, para fazer da própria vida um dom a Cristo, ao Reino e aos outros irmãos. Que eco é que esta exigência encontra no nosso coração? O amor a Cristo e aos irmãos sobrepõe-se aos nossos esquemas e programas pessoais e obriga-nos a sentirmo-nos comprometidos com o Evangelho e com o testemunho do Reino?
    • O serviço do Evangelho e dos irmãos não pode ser, nunca, uma instalação numa vida fácil, descomprometida, cómoda, pouco exigente. Aquele que dedica a sua vida ao serviço do Reino não é um mero funcionário que resolve os problemas “burocráticos” que a “profissão” exige e que se retira comodamente para o seu mundo isolado, em paz com a sua consciência… Mas é alguém que põe o amor aos irmãos e à comunidade acima de tudo, que está sempre disponível para servir, que é capaz de renunciar até aos seus tempos de descanso para acompanhar os irmãos, para os escutar, para os acolher. Como discípulos de Jesus, o amor está sempre acima dos nossos próprios interesses e faz da nossa vida dom, serviço, entrega total?

     

    ALELUIA – Mateus 8,17

    Aleluia. Aleluia.

    Cristo suportou as nossas enfermidades
    e tomou sobre Si as nossas dores.

     

    EVANGELHO – Marcos 1,29-39

    Naquele tempo,
    Jesus saiu da sinagoga
    e foi, com Tiago e João, a casa de Simão e André.
    A sogra de Simão estava de cama com febre
    e logo Lhe falaram dela.
    Jesus aproximou-Se, tomou-a pela mão e levantou-a.
    A febre deixou-a e ela começou a servi-los.
    Ao cair da tarde, já depois do sol-posto,
    trouxeram-Lhe todos os doentes e possessos
    e a cidade inteira ficou reunida diante da porta.
    Jesus curou muitas pessoas,
    que eram atormentadas por várias doenças,
    e expulsou muitos demónios.
    Mas não deixava que os demónios falassem,
    porque sabiam qual Ele era.
    De manhã, muito cedo, levantou-Se e saiu.
    Retirou-Se para um sítio ermo
    e aí começou a orar.
    Simão e os companheiros foram à procura d’Ele
    e, quando O encontraram, disseram-Lhe:
    «Todos Te procuram».
    Ele respondeu-lhes:
    «Vamos a outros lugares, às povoações vizinhas,
    a fim de pregar aí também,
    porque foi para isso que Eu vim».
    E foi por toda a Galileia,
    pregando nas sinagogas e expulsando os demónios.

     

    CONTEXTO

    Estamos na primeira parte (cf. Mc 1,14-8,30) do Evangelho segundo Marcos. Nesta parte, Jesus é apresentado como o Messias que proclama o “Reino de Deus”.

    No texto do Evangelho que escutamos no passado domingo (Mc 1,21-28), Marcos tinha-nos levado até à sinagoga de Cafarnaum, num sábado de manhã, para testemunharmos como Jesus curou “um homem com um espírito impuro”, deixando as pessoas presentes a questionar-se sobre a origem da sua autoridade. Agora Marcos propõe-se descrever o seguimento desse dia (Mc 1,29-39). Convida-nos, antes de mais, a acompanhar Jesus até à casa de Pedro onde está preparada, para Ele, a refeição de sábado. A casa de Pedro ficava a uns 40 metros da sinagoga de Cafarnaum, segundo os dados arqueológicos. Mas, na “agenda” de Jesus para esse dia, ainda havia mais um “compromisso”: já ao anoitecer, Ele encontra-se com “a cidade inteira”, reunida “à porta” da “casa de Pedro”. Estes diversos quadros fazem parte do que se convencionou chamar “a jornada de Cafarnaum” (Mc 1,21-39): é a descrição de um dia típico de Jesus, no cumprimento da missão que o Pai lhe confiou.

     

    MENSAGEM

    Entremos com Jesus na “casa de Pedro e André. Connosco vão, também, Tiago e João. É, portanto, uma casa cheia de discípulos. Está lá, ainda, a sogra de Pedro: ela pertence àquela casa. É uma casa de família e aqueles que estão lá dentro são a família de Jesus (cf. Mc 3,35: “aquele que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”). Pedro ocupa, nesta casa, um lugar de referência.

    Ora, um dos membros daquela família – a sogra de Pedro – está numa situação de debilidade (vers. 30: “estava de cama com febre”); mas Jesus, que veio para dar vida, aproxima-se dela e cura-a (vers. 31). O episódio é descrito com simplicidade e sobriedade, sem gestos teatrais desnecessários. Três pormenores sobressaem na descrição (vers. 31). O primeiro é a indicação de que Jesus “aproximou-Se” da mulher doente. Naturalmente, a iniciativa de Se aproximar de quem está prisioneiro do sofrimento, da doença, da opressão, é sempre de Jesus. Ele toma a iniciativa, pois a missão que recebeu do Pai consiste em realizar a libertação do homem de tudo aquilo que o faz sofrer e lhe rouba a vida. O segundo é a indicação de que Jesus tomou a doente pela mão e “levantou-a”. O verbo utilizado pelo evangelista (o verbo grego “egueirô” – “levantar”) aparece frequentemente em contextos de “ressurreição” (cf. Mc 5,41;6,14.16;9,27;12,26;14,28;16,6). A mulher está prostrada pelo sofrimento que lhe limita a possibilidade de viver plenamente; mas o contacto com Jesus devolve-lhe a vida e equivale a uma ressurreição. O terceiro é a indicação de que a mulher “começou a servi-los”. O efeito imediato do contacto com Jesus e do dinamismo de vida que d’Ele brota é a atividade que se concretiza no serviço dos irmãos.

    No final desse dia, Marcos convida-nos a acompanhar Jesus até à porta da casa. Está ali reunida “a cidade inteira”. O sol já se pôs, as trevas mergulharam toda aquela gente numa escuridão sem esperança. Só Jesus, no seu papel de Messias libertador, é capaz de lhes devolver a luz. “Jesus” – diz Marcos – “curou muitas pessoas que eram atormentadas por várias doenças e expulsou muitos demónios” (vers. 32-34). Aqueles enfermos e os possessos do demónio representam, aqui, todos aqueles que estão privados de vida, que estão prisioneiros do sofrimento, da injustiça, do egoísmo, do pecado. O evangelista convida-nos a ver em Jesus Aquele que tem poder para libertar o homem das suas misérias mais profundas e para lhe oferecer uma vida nova, uma vida livre e feliz.

    A “casa de Simão Pedro” (onde Jesus atua e diante da qual se reúne “toda a cidade” à procura da libertação que Jesus veio oferecer) pode ser – nesta catequese que Marcos nos propõe – uma representação da Igreja. É aí que Jesus oferece à “família de Pedro” (isto é, à sua comunidade) vida em abundância. Nesse espaço familiar, Jesus aproxima-Se dos homens, liberta-os do sofrimento que escraviza e aliena, dá-lhes vida definitiva e capacita-os para o serviço dos irmãos. A multidão que se reúne à porta da casa de Pedro representa, provavelmente, essa humanidade que busca a libertação e a vida verdadeira e que, dia a dia, olha ansiosamente para a “casa de Pedro” (a Igreja) à procura de Jesus e da sua proposta libertadora.

    No quadro final (vers. 35-38), antes de dar por concluída esta jornada, Marcos ainda nos convida a olhar para Jesus, retirado num lugar solitário, em oração. A oração, o tempo para o encontro e para o diálogo com o Pai, não podia faltar num dia típico de Jesus. A oração é, para Jesus, o cume e a fonte da ação.

    Dessa forma, a oração aparece, também, como condição para o surgimento do “Reino”. É na oração que Jesus encontra a motivação para a sua ação em prol do “Reino”; é na oração que Jesus encontra a força para se libertar da tentação da popularidade fácil e para centrar, de novo, a sua atenção em Deus e no seu projeto. O encontro a sós com Deus não é uma alienação, uma fuga dos problemas do mundo, mas é um momento de comunhão com Deus que nos ajuda a perceber os projetos e planos que Deus tem para o mundo. A oração torna-se, assim, o ponto de partida para o nosso compromisso com a transformação do mundo.

    Alimentado pelo diálogo com o Pai, Jesus pode agora retomar a missão e partir ao encontro das “povoações vizinhas” a propor, em palavras e em gestos libertadores, a Boa Notícia do Reino de Deus (vers. 38-39). Não irá sozinho (“vamos”): a missão de anunciar a libertação (vers. 38-39) também diz respeito a esses discípulos que estiveram com Jesus na “casa de Pedro”, aos de ontem, aos de hoje, aos de sempre.

     

    INTERPELAÇÕES

    • A presença de Jesus na nossa história, as suas palavras e os seus gestos libertadores atestam, até ao infinito, a preocupação de Deus com a vida e a felicidade dos seus filhos. É verdade: os dias de Jesus foram preenchidos, de fio a pavio, com a luta contra tudo aquilo que destrói e desumaniza os filhos e filhas de Deus. Deus sonhou, para nós, um mundo de onde estão ausentes o sofrimento, a maldição e a exclusão, e onde cada pessoa tem acesso à vida verdadeira, à felicidade definitiva, à salvação. Talvez nem sempre entendamos o sentido do sofrimento que nos espera em cada esquina da vida; talvez nem sempre sejam claros, para nós, os caminhos por onde se desenrolam os projetos de Deus… Mas Jesus veio garantir-nos absolutamente o empenho de Deus na felicidade e na libertação do homem. Resta-nos confiar em Deus e entregarmo-nos ao seu amor. É essa a perspetiva que nós, discípulos de Jesus, temos de Deus e do seu projeto salvador?
    • O encontro com Jesus e com o “Reino” é sempre uma experiência libertadora. Pedro, André, Tiago e João fizeram essa experiência. Aceitar o convite de Jesus para O seguir e para se tornar “discípulo” significa a rutura com as cadeias de egoísmo, de orgulho, de comodismo, de autossuficiência, de injustiça, de pecado que impedem a nossa felicidade e que geram sofrimento, opressão e morte nas nossas vidas e nas vidas dos nossos irmãos. Quem se encontra com Jesus, escuta e acolhe a sua mensagem, assume o compromisso de conduzir a sua vida pelos valores do Evangelho e passa a viver no amor, no perdão, na tolerância, no serviço aos irmãos. Na perspetiva da catequese que o Evangelho de hoje nos apresenta, é um “levantar-se”, um ressuscitar para uma vida nova e eterna. Nós que nos encontramos com Jesus e decidimos segui-l’O, temos procurado viver e testemunhar os valores do Reino?
    • O exemplo da sogra de Pedro que, depois de ter sido curada da sua enfermidade, “começou a servir” os que estavam na casa, lembra-nos que do encontro libertador com Jesus deve resultar o compromisso com a libertação dos nossos irmãos. Quem encontra Jesus e aceita inserir-se na dinâmica do “Reino” compromete-se com a transformação do mundo: com generosidade, põe-se ao serviço dos irmãos frágeis, necessitados, abandonados, perseguidos e leva-lhes a ternura e a bondade de Deus em gestos concretos de amor e cuidado. Os nossos gestos são sinais da vida de Deus para os irmãos que caminham ao nosso lado?
    • Na multidão que se concentra à porta da “casa de Pedro”, podemos ver a imensa multidão de seres humanos que, à nossa volta, todos os dias grita a sua frustração pela guerra, pela violência, pela injustiça, pela miséria, pela exclusão, pela solidão, pela falta de amor… A Igreja de Jesus Cristo (a “casa de Pedro”) tem nas mãos a proposta libertadora que recebeu do próprio Jesus e que deve ser oferecida a todos estes irmãos que vivem prisioneiros de um sofrimento sem esperança. O que é que nós, discípulos de Jesus, temos feito no sentido de transformar as existências sofridas desses nossos irmãos e irmãs? Ao olhar para a Igreja de Jesus, os imigrantes clandestinos que chegam às nossas praias, os homens e as mulheres vítimas do preconceito e da condenação social ou religiosa encontram solidariedade, ajuda, fraternidade, preocupação real com os seus dramas e misérias, ou apenas discursos teológicos abstratos e virados para o céu? Os nossos irmãos idosos, doentes, esquecidos encontram nos nossos gestos o amor libertador de Jesus que dá esperança e que aponta no sentido de um mundo mais fraterno e mais humano, ou encontram egoísmo, indiferença, solidão, abandono?
    • O exemplo de Jesus mostra que o aparecimento do “Reino de Deus” está ligado a uma vida de comunhão e de diálogo com Deus. Rezar não é fugir do mundo ou alienar-se dos problemas do mundo e dos dramas dos homens… Mas é uma tomada de consciência dos projetos de Deus para o mundo e um ponto de partida para o compromisso com o “Reino”. Só na comunhão e no diálogo íntimo com Deus percebemos os seus projetos e recebemos a força de Deus para nos empenharmos na transformação do mundo. No meio da azáfama do dia a dia, conseguimos reservar momentos para o encontro e o diálogo com o Pai? Estamos conscientes da importância de escutar o Pai, de tentar entender e acolher os seus projetos para nós e para o mundo?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 5.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA meditada ao longo da semanA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 5.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. PALAVRA DE VIDA.

    O Evangelho de hoje resume a missão de Jesus: Ele veio para levantar os homens feridos no seu corpo e no seu espírito. Se pegou na mão da sogra de Pedro, quis atingir a mão de tantos estropiados da vida que se apressavam no seu caminho. Ele veio, com o seu exemplo, dizer-nos que somos chamados a entrar em relação com Deus: “A glória de Deus é o homem vivo, a vida do homem é a visão de Deus»”, dizia S. Ireneu. Se Jesus Se retira para um lugar deserto, não é para fugir do mundo, mas para falar do mundo a seu Pai. Ele proclama a Boa Nova. Ora, qual é esta Boa Nova senão a libertação da humanidade e a glória de Deus? Não é um exemplo que Jesus nos dá: estender as mãos aos nossos irmãos em humanidade e, ao mesmo tempo, erguer os olhos para Deus na oração? Missão e contemplação não se opõem, pelo contrário completam-se e enriquecem-se mutuamente.

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.

    Rezar não é perder tempo… “Todos Te procuram”. Há uma espécie de reprimenda nas palavras dos apóstolos. É verdade: há tantos doentes a curar, o sofrimento é um oceano inesgotável! Então, porque Se retira Jesus para um lugar deserto para rezar? Face às urgências do momento, não deveria ficar no meio dos pobres para os aliviar? Porém… As curas corporais, por mais importantes que sejam, têm apenas um tempo. Todos os miraculados de Jesus são mortos! Então Jesus quer fazer compreender que os seus milagres são sinais que apontam para outra realidade, infinitamente mais importante: a sua vitória sobre o único mal que pode verdadeiramente matar os homens, o pecado, a recusa do amor. É para isso que o seu Pai O enviou. Jesus deve, pois, alimentar-Se desta vontade do Pai, para a cumprir até ao fim. Passar tempo a rezar não é perder o seu tempo. Pelo contrário, é deixar a vontade do seu Pai invadi-l’O cada vez mais. É isso que Jesus quer fazer compreender aos discípulos de então e de hoje: é preciso que também eles se enraízem cada vez mais profundamente neste amor do Pai. Então poderemos tornar-nos testemunhas eficazes deste amor, que se transbordará, sem dúvida, no serviço muito concreto aos pobres e aos doentes, e que abrirá perspetivas sobre o nosso verdadeiro destino: a vida eterna junto do Pai.

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    Anunciar o Evangelho… “Ai de mim se não evangelizar!” Não nos é pedido o impossível, mas talvez, numa ou noutra ocasião, poderíamos testemunhar a nossa fé nesta “Boa Nova”: na nossa maneira de reagir face às preocupações da vida (preocupações materiais face à grave crise económica que estamos a passar em todo o mundo, problemas de saúde, incertezas nas nossas relações), na nossa maneira de misturar ou não Deus nos problemas dos homens, nas palavras de alívio que podemos dizer a todo aquele que procura, que duvida, que sofre, ou ainda nas palavras de esperança que podemos ousar dizer, com respeito, face a uma situação difícil… Anunciar o Evangelho é, talvez, deixar simplesmente transparecer a força do Evangelho que nos habita…

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS

    Proposta para Escutar, Partilhar, Viver e Anunciar a Palavra

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

     

     

  • 06º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    06º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    11 de Fevereiro, 2024

    Ano B

    6.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 6.º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia do 6.º Domingo do Tempo Comum fala-nos de um Deus que ama e abraça, com ternura de pai e de mãe, todos os seus filhos e filhas, particularmente aqueles que os acidentes da vida magoaram e desfiguraram. Ele não exclui ninguém nem aceita que, em seu nome, se inventem sistemas de discriminação ou de marginalização dos irmãos.

    A primeira leitura apresenta-nos a legislação veterotestamentária que definia a forma de tratar com os leprosos. Em nome da saúde pública, mas também em nome de Deus e da santidade do Povo de Deus, as leis de Israel determinavam a exclusão do doente de qualquer contacto com a comunidade. O projeto de Deus para o mundo e para os homens passará por uma sociedade que deixa para trás os “diferentes”?

    O Evangelho mostra-nos como, em Jesus, Deus desce ao encontro dos seus filhos vítimas da rejeição e da exclusão, compadece-Se da sua miséria, estende-lhes a mão com amor, liberta-os dos seus sofrimentos, convida-os a integrar a comunidade do “Reino”. Deus não pactua com a discriminação e denuncia como contrários aos seus projetos todos os mecanismos de exclusão dos irmãos.

    A segunda leitura convida os cristãos a terem como prioridade a glória de Deus e o serviço dos irmãos. O exemplo supremo deve ser o de Cristo, que viveu na obediência incondicional aos projetos do Pai e fez da sua vida um dom de amor, ao serviço da libertação dos homens.

     

    LEITURA I – Levítico 13,1-2.44-46

    O Senhor falou a Moisés e a Aarão, dizendo:
    «Quando um homem tiver na sua pele
    algum tumor, impigem ou mancha esbranquiçada,
    que possa transformar-se em chaga de lepra,
    devem levá-lo ao sacerdote Aarão
    ou a algum dos sacerdotes, seus filhos.
    O leproso com a doença declarada
    usará vestuário andrajoso e o cabelo em desalinho,
    cobrirá o rosto até ao bigode e gritará:
    ‘Impuro, impuro!’
    Todo o tempo que lhe durar a lepra,
    deve considerar-se impuro
    e, sendo impuro, deverá morar à parte,
    fora do acampamento».

     

    CONTEXTO

    O Livro do Levítico trata, sobretudo, de questões relacionadas com o culto (que era incumbência dos sacerdotes, considerados membros da tribo de Levi). Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de discursos que Javé teria proferido diante de Moisés no Sinai e nos quais teria explicado ao Povo o que este deveria fazer para viver sempre em comunhão com Deus, no âmbito da Aliança.

    Na realidade, o livro apresenta um conjunto de leis, de preceitos, de ritos de épocas e proveniências diversas, reunidos ao longo de vários séculos e reelaborados pelos teólogos da “escola sacerdotal” (uma “escola” que, sobretudo a partir da época do Exílio na Babilónia, se empenhou em coligir e ordenar diversos materiais da tradição religiosa de Israel, particularmente os que diziam respeito à área de intervenção da classe sacerdotal). A grande maioria dessas leis, ritos e preceitos dizem respeito à vida cultual e pretendem ensinar os israelitas a viver como Povo de Deus e a responder, de forma adequada, ao amor e à solicitude do Deus da Aliança. Fundamentalmente, o Levítico preocupa-se em instilar na consciência dos fiéis que a comunhão com o Deus vivo é a verdadeira vocação do homem.

    O texto que nos é proposto pertence à terceira parte do Livro do Levítico (cf. Lv 11-16), conhecida como “lei da pureza”. Aí, apresentam-se os vários géneros de “impureza” que impedem o homem de se aproximar do santuário, bem como os ritos destinados a “purificar” o homem.

    A noção de “impureza” que aparece no Livro do Levítico está muito próxima da noção de “tabu” que os especialistas da história das religiões conhecem bem. Supõe-se que o homem deseja a sua vida balizada por regras bem definidas, que o protejam da angústia e do risco do desconhecido. Ora, nesta compreensão da existência, tudo o que é excecional, anormal, insólito, misterioso, é considerado como algo suscetível de libertar forças incontroláveis que o homem não domina e que podem destruir a harmonia e o equilíbrio pretendidos. Portanto, o mais seguro é erguer uma barreira que mantenha o homem afastado dessas realidades.

    Desde tempos imemoriais, certos “tabus” interditavam aos israelitas o contacto com determinadas realidades (o sangue, um cadáver, certos tipos de alimentos, etc.). Se o homem entrava em contacto com elas, ficava “impuro”. O contacto com a “impureza” não era pecado; mas o homem devia “limpar” a “impureza” contraída, logo que possível, a fim de reencontrar o equilíbrio e a harmonia. Só depois de purificado (isto é, de eliminado o estado de indignidade em que se encontrava), podia voltar a aproximar-se do Deus santo e a estabelecer comunhão com Ele.

    O caso mais grave de “impureza” era causado por uma doença – a lepra. É a essa realidade que o texto se refere.

    MENSAGEM

    O texto estabelece o procedimento a adotar, no caso de alguém contrair a “lepra”. A palavra “lepra” designa, aqui, um conjunto variado de afeções da pele, e não somente a doença que nós conhecemos, atualmente, com esse nome. No geral, utiliza-se a palavra “lepra” para designar vários tipos de enfermidade da pele, que deformam a aparência da pessoa afetada.

    Seja como for, a verdade é que esse leque de afeções aqui catalogado sob o nome geral de “lepra” é visto como um estado insólito e anormal, uma manifestação de forças misteriosas que ameaçam a harmonia e o equilíbrio da existência do homem. O “leproso” era, em consequência, segregado e afastado da convivência diária com as outras pessoas. Tal medida tinha, antes de mais, uma intenção higiénica e pretendia evitar o contágio. Significava, além disso, a dificuldade da comunidade em lidar com o insólito, o estranho, as forças misteriosas e inquietantes da doença (e, aqui, de uma doença particularmente repulsiva, que não podia ser tratada e que, potencialmente, levava à morte).

    No entanto, a segregação estabelecida pela legislação israelita para os “leprosos” tinha também um motivo religioso. Para a mentalidade tradicional do povo bíblico, Deus distribuía as suas recompensas e os seus castigos de acordo com o comportamento do ser humano. A doença era sempre um castigo de Deus para os pecados e infidelidades da pessoa. Ora, uma doença tão assustadora e repugnante como a “lepra” era tida como um castigo terrível para um pecado muito grave. O “leproso” era considerado, portanto, um pecador, especialmente amaldiçoado por Deus, indigno de pertencer à comunidade do Povo de Deus e que em nenhum caso podia ser admitido às assembleias onde Israel celebrava o culto na presença do Deus santo.

    Porque é que o “leproso” devia apresentar-se ao sacerdote? Quando alguém exteriorizava sinais de pecado e de indignidade, devia ser banido pelas autoridades competentes (os sacerdotes) da comunidade santa. O sacerdote não aplicava remédios nem tinha funções terapêuticas (embora a sua intervenção devesse ajudar a controlar o mal e a impedir o contágio). A sua ação destinava-se, sobretudo, a decidir da capacidade ou da incapacidade de alguém para integrar a comunidade do Povo de Deus e para ser admitido à presença do Deus santo.

    Não será difícil percebermos, do ponto de vista humano, a dificuldade da comunidade israelita em lidar com uma doença contagiosa especialmente grave e repugnante. Talvez nos seja mais difícil aceitar que, em nome de Deus e da santidade do Povo de Deus, se criem mecanismos de rejeição, de exclusão, de marginalização. Mas tudo isto irá ajudar-nos a entender melhor a revolução proposta por Jesus.

    INTERPELAÇÕES

    • A legislação levítica sobre os leprosos e a forma de lidar com eles mostra como o medo ou a repulsa podem gerar mecanismos de indiferença e de afastamento face a irmãos que, em contexto de doença e fragilidade, necessitam de amor e cuidado. Como lido com as pessoas doentes, idosas ou de qualquer outro modo feridas de fragilidade, que Deus colocou no meu caminho? Procuro que o amor que lhes devo fale mais alto do que o meu medo, a minha repugnância, o meu comodismo, o meu egoísmo, na hora de lhes prestar os cuidados de que necessitam?
    • A legislação religiosa de Israel determinou, em nome de Deus e da santidade de Deus, a exclusão e a marginalização de pessoas sem culpa especial. Marcou-as, cortou-lhes o acesso à comunidade, determinou que elas eram malditas à face de Deus, condenou-as à morte em vida. A nós, homens e mulheres do séc. XXI, formados na escola de Jesus, esse quadro deixa-nos inquietos. Mas talvez essa inquietação seja um bom ponto de partida para repensarmos algumas das nossas atitudes e comportamentos face aos nossos irmãos. Não será possível que os nossos preconceitos, a nossa preocupação com o legalismo, a nossa obsessão pelo politicamente correto estejam a criar marginalização e exclusão para alguns “diferentes” que se cruzam connosco? Não pode acontecer que, em nome de Deus, dos “sãos princípios”, da “verdadeira doutrina”, das exigências de radicalidade, estejamos a afastar as pessoas, a condená-las, a catalogá-las, a impedi-las de fazer uma verdadeira experiência de Deus e de comunidade?
    • Embora de forma indireta, o texto denuncia a atitude daqueles que, instalados nas suas certezas e seguranças, constroem um Deus à medida da pessoa e que atua segundo uma lógica humana, injusta, prepotente, criadora de exclusão e de marginalização. Não faz qualquer sentido criarmos um Deus que atue de acordo com os nossos esquemas mentais, com as nossas lógicas e preconceitos. Percebemos e acolhemos verdadeiramente a lógica de Deus na nossa vida?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 31 (32)

    Refrão:  Sois o meu refúgio, Senhor;
                  dai-me a alegria da vossa salvação.

    Feliz daquele a quem foi perdoada a culpa
    e absolvido o pecado.
    Feliz o homem a quem o Senhor não acusa de iniquidade
    e em cujo espírito não há engano.

    Confessei-vos o meu pecado
    e não escondi a minha culpa.
    Disse: Vou confessar ao Senhor a minha falta
    e logo me perdoastes a culpa do pecado.

    Vós sois o meu refúgio, defendei-me dos perigos,
    fazei que à minha volta só haja hinos de vitória.
    Alegrai-vos, justos, e regozijai-vos no Senhor,
    exultai, vós todos os que sois retos de coração.

     

    LEITURA II – 1 Coríntios 10,31-11,1

    Irmãos:
    Quer comais, quer bebais, ou façais qualquer coisa,
    fazei tudo para glória de Deus.
    Portai-vos de modo que não deis escândalo
    nem aos judeus, nem aos gregos, nem à Igreja de Deus.
    Fazei como eu, que em tudo procuro agradar a toda a gente,
    não buscando o próprio interesse, mas o de todos,
    para que possam salvar-se.
    Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo.

     

    CONTEXTO

    A segunda leitura que a liturgia deste 6.º domingo comum nos propõe é a conclusão do ensinamento de Paulo sobre o consumo da carne dos animais sacrificados nos santuários religiosos de Corinto (cf. 1 Cor 8-10).

    A propósito da segunda leitura do passado domingo, já vimos a definição da questão: uma parte da carne dos animais imolados em honra dos deuses, nos templos pagãos da cidade, era comercializada. Os cristãos, bem como os outros cidadãos de Corinto, compravam essa carne e usavam-na na alimentação do dia a dia. No entanto, alguns dos membros da comunidade cristã sentiam escrúpulos quanto a isto: comprar essas carnes e comê-las – como toda a gente fazia – não seria, de alguma forma, comprometer-se com os cultos idolátricos?

    Vimos também a resposta de Paulo: dado que os ídolos não são nada, comer dessa carne é indiferente; contudo, deve-se evitar escandalizar os mais débeis na fé. Se houver o perigo de ofender os sentimentos de algum irmão, evite-se comer da carne sacrificada nos santuários pagãos, a fim de não faltar à caridade.

    Na conclusão da sua reflexão sobre o tema, Paulo retoma e enuncia os elementos que apresentou anteriormente.

    MENSAGEM

    Paulo começa a sua exortação conclusiva com um primeiro imperativo: “fazei tudo para a glória de Deus” (10,31). Esse “tudo” é bem expressivo: já não se trata apenas do que se come, nem do que se bebe; mas trata-se da totalidade da vida: toda a ação do crente deve ter como finalidade a glorificação de Deus.

    Vem depois um segundo imperativo, desta vez em forma negativa: “não deis escândalo” (10,32). Antes, Paulo tinha-se referido a não causar escândalo junto dos mais débeis, como no caso do consumo das carnes imoladas aos ídolos; mas agora o olhar do apóstolo amplia-se às dimensões da cidade e do mundo. Abraça todos os homens e mulheres, de todas as raças e culturas e inclui naturalmente os irmãos na fé (da comunidade cristã de Corinto ou de qualquer outra Igreja). Não é lícito, ao crente, fazer mal seja a quem for. Os estudiosos de Paulo consideram que este segundo imperativo não é mais do que uma explicitação do primeiro: a glorificação de Deus passa pelo respeito absoluto por cada homem ou mulher com quem o crente se cruza no caminho. A este propósito Paulo refere – para ilustração dos coríntios – o seu próprio exemplo (10,33): ele, como os coríntios bem sabem, nunca procurou o seu próprio interesse, mas sim o bem de todos. O que sempre o moveu, na sua ação e missão, foi exclusivamente o amor aos irmãos a quem Deus o enviou a anunciar a Boa Notícia.

    O terceiro imperativo aparece logo a seguir (11,1): “sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo”. Explica porque é que, atrás, se tinha apresentado como exemplo: não é porque se ache melhor do que os outros, mas porque tem procurado, com toda a honestidade e coerência, imitar Cristo. Ora, Cristo não viveu ao sabor dos seus interesses próprios e dos seus projetos pessoais, mas deu a vida para que se concretizasse o projeto salvador do Pai em favor dos homens. Cristo tem sido, para Paulo, a fonte inspiradora. Com Cristo, Paulo aprendeu a viver para a glória de Deus, servindo os irmãos. É esse o caminho que Paulo aponta aos seus irmãos de Corinto.

     

    INTERPELAÇÕES

    • “Fazei tudo para a glória de Deus” – pede Paulo aos cristãos de Corinto; mas logo acrescenta que a “glória de Deus” exige que façamos tudo para o bem dos filhos e filhas de Deus que caminham ao nosso lado. Santo Ireneu de Lião resumia admiravelmente tudo isto quando dizia: “a glória de Deus é o homem vivo”. Estou consciente de que a minha resposta de amor ao Deus que me ama passa pelo respeito, pelo cuidado, pelo amor aos meus irmãos, particularmente aos mais desgraçados? Estou convicto de que o meu melhor ato de culto é “pôr em liberdade os oprimidos, quebrar toda a espécie de opressão, repartir o pão com os esfomeados, dar abrigo aos infelizes sem casa, vestir os nus e não desprezar nenhum irmão” (Is 58,6-7)?
    • Paulo revela aos coríntios que aquele Jesus que lhe apareceu no caminho de Damasco é a sua referência suprema. A grande preocupação do apóstolo, na hora de decidir as suas prioridades, é imitar aquele que não viveu para si, mas fez da sua vida um dom de amor ao Pai e aos homens, até ao dom total da vida. Cristo é a minha referência? Na hora crítica das escolhas, para onde me inclino: para o exemplo de Cristo, ou para os meus interesses e projetos pessoais? Procuro ter sempre diante dos meus olhos aquilo que Jesus disse e fez, mesmo quando as suas propostas vão contra a corrente e são ridicularizadas pelos modernos “influencers”?

    ALELUIA – Lucas 7,16

    Aleluia. Aleluia.

    Apareceu entre nós um grande profeta:
    Deus visitou o seu povo.

     

    EVANGELHO – Marcos 1,40-45

    Naquele tempo,
    veio ter com Jesus um leproso.
    Prostrou-se de joelhos e suplicou-Lhe:
    «Se quiseres, podes curar-me».
    Jesus, compadecido, estendeu a mão, tocou-lhe e disse:
    «Quero: fica limpo».
    No mesmo instante o deixou a lepra
    e ele ficou limpo.
    Advertindo-o severamente, despediu-o com esta ordem:
    «Não digas nada a ninguém,
    mas vai mostrar-te ao sacerdote
    e oferece pela tua cura o que Moisés ordenou,
    para lhes servir de testemunho».
    Ele, porém, logo que partiu,
    começou a apregoar e a divulgar o que acontecera,
    e assim, Jesus já não podia entrar abertamente
    em nenhuma cidade.
    Ficava fora, em lugares desertos,
    e vinham ter com Ele de toda a parte.

     

    CONTEXTO

    Jesus anda a percorrer as vilas e aldeias da Galileia, a propor o Reino de Deus (cf. Mc 1,39). No seu vaivém cruza-se com todo o tipo de pessoas e conhece todo o tipo de homens e mulheres com vidas fragilizadas. Muitos vivem marginalizados e esquecidos, pelas razões mais diversas. Para esses, o anúncio da proximidade do Reino de Deus é uma “Boa Notícia” que acende a esperança numa vida mais humana e mais feliz.

    No episódio que o Evangelho deste domingo nos propõe, Jesus cruza-se com um leproso. Não se identifica o homem pelo nome, nem se diz o lugar onde se desenrola a cena. É como se aquele leproso sem nome e sem ligação geográfica fosse o protótipo de todos os marginalizados que Jesus encontrou ao percorrer os caminhos da Galileia.

    Pela primeira leitura deste domingo, já conhecemos a situação social e religiosa dos leprosos. Para a ideologia oficial, o leproso era um pecador e um maldito, vítima de um particularmente doloroso castigo de Deus. A sua condição excluía-o da comunidade e impedia-o de frequentar a assembleia do Povo de Deus. Tinha que viver isolado, apresentar-se andrajoso e avisar, aos gritos, o seu estado de impureza, a fim de que ninguém se aproximasse dele. Não tinha acesso ao Templo, nem sequer à cidade santa de Jerusalém, a fim de não conspurcar, com a sua impureza, o lugar sagrado. O leproso era o protótipo do marginalizado, do excluído, do segregado. A sua condição afastava-o, não só da comunidade dos homens, mas também do próprio Deus.

    MENSAGEM

    Um leproso – um homem doente, marginalizado da comunidade do Povo santo de Deus, considerado pecador e maldito – toma a iniciativa de vir ter com Jesus. Tinham-lhe chegado aos ouvidos os ecos do anúncio do “Reino” e ele sentira abrir-se uma janela de esperança. Resolve arriscar: o desejo de sair da situação de miséria e de marginalidade em que estava mergulhado obriga-o a vencer o medo de infringir a Lei; e ele aproxima-se de Jesus sem respeitar as distâncias que um leproso devia manter das pessoas sãs. É um ato desesperado de um homem que não se conforma em viver à margem de Deus e da comunidade.

    Uma vez diante de Jesus, o leproso é humilde, mas também insistente (“prostrou-se de joelhos e suplicou-lhe” – vers. 40), pois o encontro com Jesus é uma oportunidade de libertação que ele não pode desperdiçar. Não exige nada, mas coloca tudo nas mãos de Jesus: “se quiseres…”. A expressão parece revelar a sua absoluta confiança no poder de Jesus. Ele está convicto de que Jesus pode ajudá-lo a sair da sua triste situação.

    Curiosamente, aquele homem não pede para ser curado, mas sim para ser “purificado” (“podes purificar-me”: o verbo grego “katharizô”, aqui utilizado, significa “purificar” ou “limpar”). Não é tanto a doença que lhe pesa; o que ele não suporta mais é sentir-se sujo, pecador, em rutura com Deus. Deseja que o obstáculo que o priva da comunhão com Deus seja removido por Jesus.

    A reação de Jesus é absolutamente inacreditável, pelo menos de acordo com os padrões judaicos… Jesus não se indignou, não se afastou com repulsa, não acusou aquele homem de infringir a Lei e de pôr em causa a saúde pública; mas “compadeceu-se até às entranhas” (vers. 41). O verbo “splankhnízomai”, aqui utilizado, é aplicado, na literatura neotestamentária, só a Deus e a Jesus. Habitualmente, é usado em contextos onde se refere a ternura de Deus pelos homens, comparável à ternura que a mãe sente pelo seu filho querido. Jesus “comovido até às entranhas” diante do sofrimento intolerável daquele homem, revela que Deus tem coração de mãe, um coração que transborda de ternura face à miséria e sofrimento dos homens. Depois, o amor de Deus tornado presente em Jesus vai manifestar-se num gesto concreto para com o leproso: Jesus estende a mão e toca-o. É, evidentemente, um gesto “humano”, um gesto de afeto que manifesta a bondade e a solidariedade de Jesus para com aquele homem desfigurado pela doença e abandonado por todos; mas o gesto de estender a mão tem um profundo significado teológico, pois é o gesto que acompanha, na história do Êxodo, as ações libertadoras de Deus em favor do seu Povo (cf. Ex 3,20; 6,8; 8,1; 9,22; 10,12; 14,16.21.26-27; etc.). O amor de Deus manifesta-se como gesto libertador, que salva o homem leproso da escravidão em que a doença o havia lançado.

    Por outro lado, ao tocar o leproso, Jesus está, consciente e deliberadamente, a infringir a Lei. Dessa forma, Ele denuncia uma Lei que criava marginalização e exclusão. Jesus, com a autoridade que Lhe vem de Deus, mostra que a marginalização imposta pela Lei não expressa a vontade de Deus. O gesto de tocar o leproso diz, com toda a frontalidade, que a distinção entre puro e impuro consagrada pela Lei não vem de Deus e não transmite a lógica de Deus. Na verdade, Deus não discrimina ninguém; o que Ele quer é reunir todos os seus filhos e filhas numa grande família, a comunidade do Reino.

    A resposta verbal de Jesus (“quero: fica limpo” – vers. 41) não acrescenta mais nada. Apenas confirma, por palavras, que, do ponto de vista de Deus, o leproso não é um marginal, um pecador condenado, um homem indigno, mas um filho amado a quem Deus quer oferecer a salvação e a Vida em plenitude.

    Consumada a purificação do leproso, Jesus recomenda-lhe veementemente que não diga nada a ninguém (vers. 44). Esta recomendação de Jesus aparece várias vezes no Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,34;5,43;7,36;7,36; etc.). Provavelmente, é um dado histórico, que resulta do facto de Jesus não querer alimentar equívocos ou ser aceite pelas razões erradas. De acordo com Mt 11,5, a cura dos leprosos era uma obra do Messias; assim, o gesto de Jesus define-O como o Messias que Israel esperava. No entanto, numa Palestina em plena febre messiânica, Jesus pretende evitar um título que tem algo de ambíguo, por estar ligado a perspetivas nacionalistas e a sonhos de luta política contra o ocupante romano. Jesus não quer deitar mais lenha para a fogueira da esperança messiânica, pois tem consciência de que o seu messianismo não passa por um trono político (como sonhavam as multidões), mas pela cruz.

    Ao leproso purificado, Jesus diz ainda para ir mostrar-se aos sacerdotes (vers. 44). Segundo a Lei, o leproso só podia ser reintegrado na comunidade religiosa depois de a sua cura ter sido homologada pelo sacerdote em funções no Templo. No entanto, Jesus acrescenta: “para lhes servir de testemunho”. Dado que a cura de um leproso só podia ser operada por Deus e era, por isso, um sinal messiânico, o facto devia servir aos líderes do Povo para concluírem que o Messias tinha chegado e que o “Reino de Deus” estava já presente no mundo. O leproso purificado devia, portanto, ser um “testemunho” da presença de Deus no meio do seu Povo e um sinal de que os novos tempos tinham chegado. Mas, apesar das evidências, os líderes judaicos estavam demasiado entrincheirados nas suas certezas, preconceitos e privilégios e recusaram-se sempre a acolher a novidade de Deus, a novidade do Reino.

    O texto termina com a indicação de que o leproso purificado “começou a apregoar e a divulgar o que acontecera”, apesar do silêncio que Jesus lhe impusera. Marcos quer, provavelmente, sugerir que quem experimenta o poder integrador e salvador de Jesus converte-se necessariamente em profeta e em testemunha entusiasta do amor e da bondade de Deus.

    INTERPELAÇÕES

    • Jesus, profundamente comovido diante daquele leproso abandonado pela sociedade e pela religião, revela-nos que Deus tem um coração de mãe, um coração que transborda de amor pelos seus filhos magoados e esmagados pelos acidentes da vida. O amor maternal de Deus não exclui, não condena, não sente repulsa; o amor de Deus purifica, cura as feridas, humaniza, salva. O Deus que Jesus revela nas suas palavras e nos seus gestos, não é o Deus intolerante, severo, distante, incapaz de compreender os limites e as fragilidades dos seres humanos; é o Deus do amor nunca desmentido, do amor que ultrapassa todos os limites, do amor excessivo que tudo cura e tudo purifica. Qual é o Deus em que acreditamos: o Deus de Jesus que é amor e misericórdia, ou o Deus intransigente e severo que alguns teimam em propor?
    • A atitude de Jesus em relação ao leproso (bem como a outros excluídos da sociedade do seu tempo) é uma atitude de proximidade, de solidariedade, de aceitação, de acolhimento. Jesus não está preocupado com o que é política ou religiosamente correto, ou com a indignidade da pessoa, ou com o perigo que ela representa para uma certa ordem social… Ele apenas vê em cada pessoa um irmão que Deus ama e a quem é preciso estender a mão e amar, também. Como é que lidamos com os excluídos da sociedade ou da Igreja? Procuramos integrar e acolher os estrangeiros, os marginais, os pecadores, os “diferentes” ou, com a nossa intransigência, ajudamos a perpetuar os mecanismos de exclusão e de discriminação?
    • O gesto de Jesus de estender a mão e tocar o leproso é um gesto provocador, verdadeiramente profético, que denuncia uma Lei iníqua, geradora de discriminação, de exclusão e de sofrimento. Com a autoridade de Deus, Ele retira qualquer valor a essa Lei e garante que Deus não discrimina ninguém. Apesar de todos os nossos progressos civilizacionais, continuamos a ter leis (umas escritas nos nossos códigos legais civis ou religiosos, outras que não estão escritas mas que são consagradas pela moda, pelo politicamente correto ou até por uma ideia deturpada da santidade de Deus) que são geradoras de marginalização, de exclusão e de sofrimento. Como discípulos de Jesus, temos feito tudo o que está ao nosso alcance para construir, a nível da legislação e dos comportamentos, a civilização do amor e não a civilização do egoísmo, da exclusão, da condenação dos “diferentes”?
    • Mais uma vez, o Evangelho deste domingo propõe à nossa consideração a atitude dos líderes judaicos. Comodamente instalados no alto das suas certezas e preconceitos, eles perpetuam, em nome de Deus, um sistema religioso que gera sofrimento e miséria e não se deixam questionar nem desafiar pela novidade de Deus. Estão tão seguros e convictos das suas verdades particulares que fecham totalmente o coração a Jesus e não se reveem nas suas propostas. Estamos sempre em alerta para a necessidade de nos desinstalarmos e de abrirmos o coração aos desafios de Deus?
    • O leproso, apesar da proibição de Jesus, “começou a apregoar e a divulgar o que acontecera”. Marcos sugere, desta forma, que o encontro com Jesus transforma de tal forma a vida da pessoa que ela não pode calar a alegria pela novidade que Cristo introduziu na sua vida e tem de dar testemunho. Somos capazes de testemunhar, no meio dos nossos irmãos, a libertação que Cristo nos trouxe?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 6.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA meditada ao longo da semana.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 6.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. PALAVRA DE VIDA.

    “A Deus nada é impossível”, diz o anjo a Maria. É verdade, Deus pode criar, pode salvar, pode santificar… Jesus pode curar os doentes que encontra, mas espera uma palavra de confiança: “Se queres!” O homem submete-se, então, à sua vontade. Diante desta confiança do doente, Jesus tem piedade, porque vê que ele se abandona nas suas mãos para ser recriado, levantado, salvo, purificado. Deus deixa-Se tocar pelo ser humano, sua criatura, quando esta se deixa remodelar por Ele, do mesmo modo que se deixa modelar na manhã da criação. Jesus recomenda para não dizer nada a ninguém, porque não quer aparecer como um taumaturgo que manifesta o sensacional, mas como Aquele que é sinal da parte de Deus. Um único grito toca-O: “Se Tu queres, podes!” Oxalá que as nossas orações de pedido começassem todas com a expressão da nossa submissão à vontade de Deus!…

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.

    Ele toma o nosso lugar… A maldição que atingia os leprosos era total: mortos vivos, excluídos dos lugares habitados, proibidos do Templo e da sinagoga, impuros aos olhos dos homens mas, sobretudo, de Deus. Um deles quebra os interditos e aproxima-se de Jesus que, perturbado até às entranhas, ousa um gesto impensável: estende a mão e toca o infeliz, tornando-se Ele mesmo, imediatamente, impuro. Passa-se, então, algo de extraordinário. Realiza-se a palavra do salmista: “Senhor, viste o mal e o sofrimento, toma-os na tua mão”. Jesus toma nas suas mãos o mal e o sofrimento deste homem. Tira-o da sua lepra, liberta-o da sua exclusão, de toda a impureza. O leproso pode reencontrar a companhia dos outros e de Deus. Mas então, é Jesus que “não podia entrar abertamente numa cidade. Era obrigado a evitar os lugares habitados”. Certamente que era para se proteger da multidão… Mas, de facto, é como se Jesus tivesse tomado o lugar do leproso. Jesus, o bem amado do Pai, toma sobre Ele as nossas faltas e os nossos sofrimentos, Ele toma o nosso lugar para absorver na sua pessoa e no amor do Pai todas as nossas misérias. E, ao mesmo tempo, encontramos toda a nossa dignidade de homens e de mulheres livres, de pé, capazes de entrar de novo em relação uns com os outros e, sobretudo, de nos aproximarmos de novo de Deus, sem qualquer medo.

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    Para a glória de Deus… em família. Que tudo sirva para a glória de Deus! E se, em família, tirássemos tempo para dar glória a Deus? Por exemplo, sobretudo se há filhos jovens, pode-se fazer um “poster para a glória de Deus”: um poster bonito (desenhos, fotos…) que mostre tudo o que, juntos em família, vemos de belo e que é motivo para dar glória a Deus.

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    Proposta para Escutar, Partilhar, Viver e Anunciar a Palavra

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

  • 01º Domingo do Tempo da Quaresma - Ano B [atualizado]

    01º Domingo do Tempo da Quaresma - Ano B [atualizado]

    18 de Fevereiro, 2024

    ANO B

    1.º DOMINGO DO TEMPO DA QUARESMA

    Tema do 1.º Domingo do Tempo da Quaresma

    No primeiro Domingo da Quaresma, a liturgia diz-nos que Deus nunca desiste de recriar o nosso mundo, tantas vezes ferido pelo egoísmo e pela maldade dos homens; e desafia-nos a colaborar com Deus na construção de um mundo novo, de harmonia e de paz, que é o projeto original do Criador.

    A primeira leitura é um extrato de uma velha lenda sobre um cataclismo que lavou o mundo do pecado. Ensina que Deus, depois de eliminar o mal, não está interessado em fazer guerra aos homens; por isso, depõe o seu “arco de guerra” e oferece aos homens uma Aliança incondicional de paz. Deus espera que, da sua iniciativa, nasça uma humanidade nova, capaz de concretizar o sonho de Deus para o mundo.

    O Evangelho mostra-nos Jesus a recusar o mal e a optar pelo caminho que lhe foi indicado pelo Pai. Essa opção está na origem de um mundo novo, ao qual Jesus chamava “o Reino de Deus”. Ele conta com os seus discípulos para serem, em todos os momentos da história humana, construtores e arautos do “Reino de Deus”.

    Na segunda leitura, o autor da primeira Carta de Pedro recorda que, pelo Batismo, os cristãos aderiram a Cristo e à salvação que Ele trouxe. Comprometeram-se, portanto, a seguir Jesus no caminho do amor, do serviço, do dom da vida. Envolvidos nesse dinamismo de vida e de salvação que brota de Jesus, os cristãos são semente de uma nova humanidade.

     

    LEITURA I – Génesis 9,8-15

    Deus disse a Noé e a seus filhos:
    «Estabelecerei a minha aliança convosco,
    com a vossa descendência
    e com todos os seres vivos que vos acompanham:
    as aves, os animais domésticos,
    os animais selvagens que estão convosco,
    todos quantos saíram da arca e agora vivem na terra.
    Estabelecerei convosco a minha aliança:
    de hoje em diante
    nenhuma criatura será exterminada pelas águas do dilúvio
    e nunca mais um dilúvio devastará a terra».
    Deus disse ainda:
    «Este é o sinal da aliança que estabeleço convosco
    e com todos os animais que vivem entre vós,
    por todas as gerações futuras:
    farei aparecer o meu arco sobre as nuvens
    e aparecer nas nuvens o arco,
    recordarei a minha aliança convosco
    e com todos os seres vivos
    e nunca mais as águas formarão um dilúvio
    para destruir todas as criaturas».

     

    CONTEXTO

    Os primeiros onze capítulos do Livro do Génesis apresentam um conjunto de tradições sobre as origens do mundo e dos homens. A intenção dos autores destes textos (os teólogos de Israel) nunca foi apresentar factos históricos concretos ocorridos na aurora da humanidade, mas sim expor as suas convicções e descobertas sobre Deus, sobre o mundo e sobre os seres humanos. Recorreram, para o efeito, a uma linguagem própria, comum aos povos da região do denominado “Crescente Fértil” (a zona geográfica que se estende desde a planície Mesopotâmia até ao Egipto, tornada fértil pelos rios Tigre e Eufrates a norte, e o Nilo a sul). É por isso que estes relatos bíblicos apresentam notáveis semelhanças literárias com certas lendas e mitos de outros povos da zona, nomeadamente os da Mesopotâmia.

    O texto que a liturgia deste domingo da Quaresma nos apresenta como primeira leitura faz parte de uma secção que abrange Gn 6,1-9,17. É a história de um cataclismo de águas, que teria eliminado toda a humanidade, exceto Noé e a sua família. Como terá aparecido esta história?

    Alguns estudiosos consideram que o dilúvio bíblico poderia estar relacionado com o fim da era glaciar, quando a fusão dos gelos provocou notáveis avalanchas de água que invadiram as terras habitadas e deixaram profundos sinais na memória coletiva dos povos. Mas o mais provável é que o dilúvio descrito no livro do Génesis (e que é contado em moldes semelhantes em certos textos mesopotâmicos) se refira a uma das inúmeras inundações dos rios Tigre e Eufrates… A arqueologia dá, aliás, conta de várias inundações especialmente catastróficas nessa parte do mundo entre 4000 e 2800 a.C.. É provável que o texto bíblico evoque essa realidade. Não se tratou, evidentemente, de um dilúvio que submergiu a terra inteira; mas a fantasia popular, a partir de uma das inúmeras inundações registadas na planície mesopotâmica, expandiu as dimensões do acontecimento e apresentou-o como um “castigo” que atingiu toda a humanidade.

    Os catequistas de Israel quiseram dizer ao seu Povo que Deus não fica de braços cruzados quando os homens se lançam por caminhos de corrupção e de pecado… Com esse propósito, lançaram mão da velha lenda mesopotâmica do dilúvio, apresentando essa catástrofe como um castigo enviado por Deus para punir o pecado dos homens… Mas, porque Deus não castiga às cegas bons e maus, justos e injustos, os autores vão propor a história do justo Noé e da sua família, salvos por Deus da catástrofe.

    O texto que hoje nos é proposto situa-nos na fase imediatamente posterior ao dilúvio, quando já tinha deixado de chover e quando Noé e a sua família já tinham desembarcado em terra seca. Os sobreviventes construíram um altar e ofereceram holocaustos sobre o altar. Por sua vez, Deus comprometeu-Se a não mais castigar os seres vivos de forma tão radical (cf. Gn 8,13-22), abençoou Noé e a sua família e entregou-lhes o cuidado da criação (cf. Gn 9,1-7). Noé e a sua família são a nova humanidade, nascida da água purificadora do dilúvio.

     

    MENSAGEM

    Javé, depois de declarar solenemente que não mais voltará a amaldiçoar a terra e a castigar os seres vivos (cf. 8,21-22), oferece a Noé, aos seus descendentes e a todos os seres vivos que saíram da Arca uma Aliança de paz. É a primeira Aliança entre Deus e os homens (a segunda será entre Deus e Abraão – cf. Gn 17,1-14; a terceira será a Aliança do Sinai, entre Deus e Israel – cf. Ex 19,3-25).

    No entanto, esta Aliança é completamente diferente das Alianças que, mais tarde, vão ser feitas com Abraão e com Israel. Nas Alianças posteriores, um indivíduo ou um Povo eram chamados a uma relação de comunhão com Deus e aceitavam ou não esse desafio; se o indivíduo ou o Povo em causa não aceitassem, não haveria relação e, portanto, não haveria Aliança… Ao contrário, a Aliança de Javé com Noé e seus descendentes não implica nenhuma adesão ou reconhecimento da parte do homem, nem implica qualquer promessa, por parte do homem, no sentido de não voltar a percorrer caminhos de corrupção e de pecado. Deus sabe que o homem é frágil e pecador; mas, exclusivamente por sua própria iniciativa e sem contrapartidas, decidiu que nunca mais voltará a entrar em guerra com os seres que criou. Esta Aliança é uma decisão unilateral de Deus que decide viver em paz com a sua criação.

    Porque é que Deus tomou esta decisão? Só se vislumbra uma resposta: porque o seu amor é infinitamente maior do que a sua vontade de castigar. Porque ama, Deus decidiu viver em paz com os homens; e garante isso através de um compromisso solene. Doravante, o ser humano não precisará de viver com medo de Deus.

    O sinal desta decisão de Deus será o arco-íris. Em hebraico, a mesma palavra (“qeshet”) designa o “arco-íris” e o “arco de guerra”. Jogando com esta duplicidade, o teólogo sacerdotal, autor deste texto, sugere que Javé pendurou na parede do horizonte o seu “arco de guerra”, a fim de demonstrar ao homem as suas intenções pacíficas. O “arco-íris”, sinal belo e misterioso que toca o céu e a terra, é o “arco” de Javé, através do qual o desígnio de paz de Deus abraça o mundo e os homens.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Todos os dias vemos a maldade que desfeia o mundo… E esta não é uma realidade só deste nosso tempo, mas é uma realidade de sempre. Deus fica indiferente diante do egoísmo, do ódio, da violência, da injustiça, do orgulho, da prepotência que destroem a vida dos seus filhos e que estragam esse mundo bom e belo que Ele nos encarregou de continuamente recriar? Deus finge que não vê tudo aquilo que atenta contra o seu projeto de um mundo onde os homens e as mulheres podem viver felizes e em paz? Há 2600 anos os catequistas de Israel, recorrendo a velhas mas expressivas linguagens, quiseram dizer que o pecado é algo incompatível com Deus e com os projetos de Deus para o mundo e para o homem. Fizeram-no através da história de um dilúvio purificador, que limpou o mundo de toda a maldade. Esta catequese recorda-nos, no início da nossa caminhada quaresmal, que o pecado não é uma realidade que possa coexistir com essa vida nova que Deus nos quer oferecer e que é a nossa vocação fundamental. O pecado, nas suas mil e uma formas, destrói a vida e arruína a felicidade do homem; por isso, tem de ser combatido em cada passo. Estamos disponíveis para lutar contra tudo aquilo que, dentro ou fora de nós, potencia o domínio do pecado?
    • Deus odeia o pecado, mas não odeia os seus filhos pecadores. Conscientes disso, os catequistas de Israel falaram-nos de um Deus que vem ao encontro dos homens, abençoa-os e abraça-os, mesmo quando eles, no seu egoísmo e autossuficiência, teimam em trilhar caminhos de pecado e de infidelidade. Nesta Quaresma, procuramos fazer esta experiência de um Deus que nos ama apesar das nossas infidelidades e deixar que o amor de Deus nos transforme e nos faça renascer para a vida nova?
    • A lógica do amor de Deus – amor incondicional, total, universal, que se derrama até sobre os que o não merecem – convida-nos a repensar a nossa forma de abordar a vida e de tratar os nossos irmãos. Podemos sentir-nos filhos deste Deus quando utilizamos uma lógica de vingança, de intolerância, de incompreensão perante as fragilidades e limitações dos irmãos? Podemos sentir-nos filhos deste Deus quando respondemos com uma violência maior àqueles que consideramos maus e violentos? Procuramos viver este tempo de Quaresma como tempo propício para repensarmos as nossas atitudes e para nos convertermos à lógica do amor incondicional, à lógica de Deus?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 24 (25)

    Refrão:  Todos os vossos caminhos, Senhor, são amor e verdade
                  para os que são fiéis à vossa aliança.

    Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos,
    ensinai-me as vossas veredas.
    Guiai-me na vossa verdade e ensinai-me,
    porque Vós sois Deus, meu Salvador.

    Lembrai-Vos, Senhor, das vossas misericórdias
    e das vossas graças que são eternas.
    Lembrai-Vos de mim segundo a vossa clemência,
    por causa da vossa bondade, Senhor.

    O Senhor é bom e reto,
    ensina o caminho aos pecadores.
    Orienta os humildes na justiça
    e dá-lhes a conhecer a sua aliança.

     

    LEITURA II – 1 Pedro 3,18-22

    Caríssimos:
    Cristo morreu uma só vez pelos pecados
    – o Justo pelos injustos –
    para vos conduzir a Deus.
    Morreu segundo a carne,
    mas voltou à vida pelo Espírito.
    Foi por este Espírito que Ele foi pregar
    aos espíritos que estavam na prisão da morte
    e tinham sido outrora rebeldes,
    quando, nos dias de Noé, Deus esperava com paciência,
    enquanto se construía a arca,
    na qual poucas pessoas, oito apenas,
    se salvaram através da água.
    Esta água é figura do Batismo que agora vos salva,
    que não é uma purificação da imundície corporal,
    mas o compromisso para com Deus de uma boa consciência;
    ele vos salva pela ressurreição de Jesus Cristo,
    que subiu ao céu e está à direita de Deus,
    tendo sob o seu domínio os Anjos,
    as Dominações e as Potestades.

     

    CONTEXTO

    A Primeira Carta de Pedro é uma carta dirigida aos cristãos de cinco províncias romanas da Ásia Menor (a carta cita explicitamente a Bitínia, o Ponto, a Galácia, a Ásia e a Capadócia – cf. 1 Pe 1,1). O seu autor apresenta-se com o nome do apóstolo Pedro; no entanto, a análise literária e teológica não confirma que Pedro seja o autor deste texto: em termos literários, a qualidade literária da carta não corresponde à maneira de escrever de um pescador pouco instruído, como seria o caso de Pedro; a teologia apresentada demonstra uma reflexão e uma catequese bem posteriores à época de Pedro; e o “ambiente” descrito na carta corresponde, claramente, à situação da comunidade cristã no final do séc. I, quando Pedro já tinha desaparecido (Pedro, muito provavelmente, foi morto em Roma durante a perseguição de Nero, por volta do ano 67). O autor da carta será, portanto, um cristão anónimo – provavelmente um responsável de alguma comunidade cristã –, culto e que conhece profundamente a situação das comunidades cristãs da Ásia Menor. Ele escreve em finais do séc. I (nunca antes dos anos 80), provavelmente a partir de uma comunidade cristã não identificada da Ásia Menor.

    As comunidades a que esta carta se destina são comunidades rurais que vivem à margem das grandes cidades. A maioria dos seus membros são pastores ou camponeses que trabalham propriedades que não lhes pertencem; mas também há entre eles alguns pequenos proprietários de terras. Trata-se, em geral, de gente economicamente débil, vulnerável a um ambiente que começa a manifestar uma crescente hostilidade para com o cristianismo.

    O autor da carta conhece as provações que estes cristãos sofrem todos os dias. Exorta-os, no entanto, a manterem-se fiéis à sua fé, apesar das dificuldades. Convida-os a olharem para Cristo, que passou pela experiência da paixão e da cruz, antes de chegar à ressurreição; e exorta-os a manterem a esperança, o amor, a solidariedade, vivendo com alegria, coerência e fidelidade a sua opção cristã.

    O texto que nos é proposto é a parte final de uma perícope (cf. 1 Pe 3,13-4,11) na qual o autor da carta explica qual deve ser a atitude dos crentes, confrontados com as provocações, as injustiças e a hostilidade do mundo. Depois de pedir aos crentes que mesmo no meio do sofrimento não se cansem de fazer o bem (cf. 1 Pe 3,13-17), o autor da carta apresenta a razão fundamental pela qual os crentes devem agir desta forma tão “ilógica”: esse foi o exemplo que Cristo deixou.

     

    MENSAGEM

    Cristo, que era justo e bom e não tinha feito nada de mal, aceitou morrer para conduzir todos os homens – mesmo os maus e os injustos – ao encontro da vida verdadeira, da felicidade plena. A sua morte não foi um fracasso, pois a sua existência não terminou no sepulcro; vivificado pelo Espírito, Ele alcançou de novo a Vida e a glória (vers. 18).

    Mais ainda: depois de ser vivificado pelo Espírito, Ele “foi pregar aos espíritos que estavam na prisão da morte e tinham sido outrora rebeldes” (vers. 19-20). O autor deste texto refere-se a quê? Provavelmente, refere-se à velha verdade proclamada no credo cristão de que Jesus ressuscitado teria descido “à mansão dos mortos” para libertar todos aqueles que eram prisioneiros da morte. A morte e a ressurreição de Cristo tiveram uma dimensão salvadora que atingiu toda a humanidade, inclusive essa humanidade pecadora que tinha perecido nas águas do dilúvio, no tempo de Noé.

    Na sequência, o autor deste texto aproveita a imagem do dilúvio para fazer avançar a sua reflexão… Com o dilúvio, Deus afogou o mal e fez surgir da água uma humanidade nova. A água purificadora do dilúvio pode ser, para os seguidores de Cristo, uma figura do Batismo. Ora, ao sermos batizados, aderimos a Cristo e participamos da salvação que Ele nos trouxe. Pelos méritos da entrega de Cristo, o nosso pecado ficou sepultado na água do Batismo; morremos para o pecado, ressuscitamos com Ele para uma Vida nova e fomos vivificados pelo Espírito. Animados agora pelo mesmo Espírito, comprometemo-nos a seguir Jesus nessa vida de dom, de entrega, de amor que Ele viveu; pelo batismo, nascemos para a vida do bem, da justiça, da verdade (cf. vers. 21); pelo Batismo tornamo-nos pessoas novas.

    Nós, batizados em Cristo, temos por missão dar testemunho dessa Vida nova que recebemos. Cristo é o nosso modelo de vida. Se vivermos de forma coerente com a nossa opção por Cristo, seremos a semente de um mundo novo.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Jesus, “o justo”, depois de uma vida cumprida em modo de dom e entrega ao Pai e aos homens, foi preso, julgado, torturado, condenado e morto na cruz. Talvez aqueles que o viram atravessar as ruas de Jerusalém com a cruz às costas a caminho do calvário, tenham pensado que Ele tinha fracassado e que toda a sua luta tinha sido em vão. No entanto, Deus ressuscitou-O; e, ao ressuscitá-l’O, deu-lhe razão. Ao ressuscitar Jesus, Deus garantiu-nos que uma vida feita dom e serviço, mesmo que termine numa morte injusta, não é uma vida fracassada ou sem sentido. Empenhamo-nos na luta pela justiça, pela verdade e pela paz, quando somos confrontados com a incompreensão, a maledicência, a crítica, a provocação, talvez até o ódio de alguns dos nossos irmãos?
    • Diante dos ataques – às vezes incoerentes e irracionais – daqueles que não se reveem nos valores de Jesus, como reagimos? Com a mesma agressividade com que nos tratam? Com a mesma intolerância dos nossos adversários? Fechando janelas de diálogo e de entendimento com o mundo que nos rodeia e ao qual devemos anunciar o Evangelho?
    • Quando fomos batizados, escolhemos Jesus e fomos vivificados pelo Espírito. Assumimos a responsabilidade de caminhar com Jesus e de sermos semente de uma humanidade nova. Temos vivido com coerência esse compromisso? As nossas palavras e os nossos gestos são anúncio e testemunho, ao vivo e a cores, daquilo que aprendemos com Jesus?

     

    ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO – Mateus 4,4b
    (escolher um dos 7 refrães)

    1. Louvor e glória a Vós, Jesus Cristo, Senhor.
    2. Glória a Vós, Jesus Cristo, Sabedoria do Pai.
    3. Glória a Vós, Jesus Cristo, Palavra do Pai.
    4. Glória a Vós, Senhor, Filho do Deus vivo.
    5. Louvor a Vós, Jesus Cristo, Rei da eterna glória.
    6. Grandes e admiráveis são as vossas obras, Senhor.
    7. A salvação, a glória e o poder a Jesus Cristo, Nosso Senhor.

    Nem só de pão vive o homem,
    mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.

     

    EVANGELHO – Marcos 1,12-15

    Naquele tempo,
    o Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto.
    Jesus esteve no deserto quarenta dias
    e era tentado por Satanás.
    Vivia com os animais selvagens
    e os Anjos serviam-n’O.
    Depois de João ter sido preso,
    Jesus partiu para a Galileia
    e começou a pregar o Evangelho, dizendo:
    «Cumpriu-se o tempo
    e está próximo o reino de Deus.
    Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».

     

    CONTEXTO

    O Evangelho de Marcos começa com uma introdução (cf. Mc 1,2-13) destinada a apresentar Jesus. Essa introdução aparece em forma de tríptico. No primeiro quadro (cf. Mc 1,2-8), João Batista, “a voz que clama no deserto”, testemunha que Jesus é Aquele que vem “batizar no Espírito Santo” (cf. Mc 1,2-8); no segundo quadro (cf. Mc 1,9-11), é Deus que apresenta Jesus como o Seu “Filho amado”, sobre quem repousa o Espírito; no terceiro quadro, é Marcos, o nosso catequista, que nos fala de Jesus como o Messias que enfrenta e vence o mal, criando as condições para o nascimento de um mundo novo (cf. Mc 1,12-13).

    A primeira parte do Evangelho deste primeiro domingo da Quaresma apresenta-nos, precisamente, o terceiro destes quadros. Situa-nos num “deserto” não identificado, mas não longe do lugar onde Jesus foi batizado por João Batista. É o momento em que Jesus faz a sua opção fundamental.

    Mas o texto evangélico deste dia tem uma segunda parte. Aí Marcos apresenta-nos um “sumário-anúncio” da pregação inaugural de Jesus sobre o “Reino” (cf. Mc 1,14-15). Agora já não estamos “no deserto”, mas sim na Galileia, região setentrional da Palestina, terra em permanente contato com o mundo pagão e, portanto, considerada à margem da história da salvação. Mas é precisamente aí que a proposta de Deus ecoa no mundo dos homens.

     

    MENSAGEM

    De acordo com a catequese de Marcos, o Espírito que ungiu Jesus, no momento do seu batismo no rio Jordão, impeliu-o logo depois para o deserto (vers. 13). A partir daqui – e não apenas neste quadro – Jesus é constantemente impelido pelo Espírito em ordem à concretização da missão que o Pai lhe confiou.

    Orientados por Marcos, acompanhamos Jesus ao “deserto”. O deserto é, na teologia de Israel, o lugar privilegiado do encontro com Deus: foi no deserto que o Povo experimentou o amor e a solicitude de Javé e foi no deserto que Javé propôs a Israel uma Aliança. Contudo, o deserto é também o lugar da “prova”, da “tentação”: foi no deserto que Israel foi confrontado com opções e foi no deserto, também, que Israel sentiu, várias vezes, a tentação de escolher caminhos contrários aos propostos por Deus… O “deserto” para onde Jesus “vai” é, portanto, o “lugar” do encontro com Deus e do discernimento dos seus projetos; e é o “lugar” da prova, onde se é confrontado com a tentação de abandonar Deus e de seguir outros caminhos.

    Nesse “deserto”, Jesus ficou “quarenta dias” (vers. 13a). O número “quarenta” é frequente no Antigo Testamento. Refere-se, numerosas vezes, ao tempo da caminhada do Povo de Israel pelo deserto, desde que deixou a terra da escravidão, até entrar na terra da liberdade (quarenta anos – cf. Ex 16,35; Dt 8,2-4); mas também é usado para definir o tempo que Moisés ficou no “monte”, junto de Deus (cf. Ex 34,28), e o tempo que demorou a caminhada de Elias em direção ao Horeb, o “monte de Deus” (cf. 1 Re 19,8). Evoca um tempo de prova que é, simultaneamente, um tempo em que se manifesta a ação salvífica de Deus.

    Durante esse tempo, Jesus foi “tentado por Satanás” (vers. 13b). A palavra “satanás” designava, originalmente, o adversário que, no contexto do julgamento, apresentava a acusação (cf. Sl 109,6). Mais tarde, a palavra vai passar a designar uma personagem que integrava a corte celeste e que acusava o homem diante de Deus (cf. Jb 1,6-12). Na época de Jesus, a figura de “satanás” tinha registado uma evolução e evocava um espírito mau, inimigo do homem, que procurava destruir o homem e frustrar os planos de Deus. É certamente neste sentido que ele aparece aqui… “Satanás” vai tentar levar Jesus a esquecer os planos de Deus e a fazer escolhas pessoais que estejam em contradição com os projetos do Pai.

    Marcos (ao contrário de Mateus e Lucas) não especifica as tentações que Jesus teve de enfrentar; mas é natural que estivesse a pensar, em concreto, em tentações de poder e de messianismo político. O deserto era, tradicionalmente, o lugar de refúgio dos agitadores e dos rebeldes com pretensões messiânicas. A tentação pretenderia, portanto, induzir Jesus a enveredar por um caminho de poder, de autoridade, de violência, de messianismo político, frustrando os projetos de Deus que passavam por um messianismo marcado pelo amor incondicional, pelo serviço simples e humilde, pelo dom da vida.

    A referência às “feras” que rodeavam Jesus e aos “anjos” que O serviam (vers. 13c) deve aludir a certas interpretações de Gn 2-3, muito em voga nos ambientes rabínicos, no século I. Alguns “mestres” de Israel ensinavam que Adão, o primeiro homem, vivia no paraíso em paz completa com todos os animais e que os anjos estavam à sua volta para o servir; mas, quando Adão escolheu o caminho da autossuficiência e se revoltou contra Deus, rompeu-se a harmonia original, os animais tornaram-se inimigos do homem e até os anjos deixaram de o servir. A catequese dos “rabis” adiantava ainda que, quando o Messias chegasse, nasceria um mundo harmonioso, sem violência e sem conflito, onde até os animais ferozes viveriam em paz com o homem. Seria o regresso à harmonia original, ao plano original de Deus para os homens e para o mundo. Muito provavelmente é isso que Marcos está aqui a sugerir: com Jesus, chegou esse tempo messiânico de paz sem fim, chegou o tempo de o mundo regressar a essa harmonia que era o plano inicial de Deus. Marcos terá, ainda, a intenção de estabelecer um paralelo entre Adão e Jesus: Adão cedeu à tentação de escolher caminhos contrários aos de Deus e criou inimizade, violência, conflito, escravidão, sofrimento; Jesus escolheu viver na mais completa fidelidade aos projetos de Deus e fez nascer um mundo novo, de harmonia, de paz, de amor, de felicidade sem fim.

    Na segunda parte do Evangelho deste domingo (vers. 14-15), Marcos convida-nos a acompanhar Jesus à Galileia e a testemunhar como Ele, sempre impelido pelo Espírito, começa a concretizar a missão que o Pai lhe confiou.

    Ora, as primeiras palavras de Jesus são, precisamente, para anunciar que “chegou o tempo”. Que “tempo” é esse? É o “tempo” do “Reino de Deus”. A expressão – tão frequente no Evangelho segundo Marcos – leva-nos a um dos grandes sonhos do Povo de Deus…

    A catequese de Israel referia-se, com frequência, a Javé como a um rei que governa o seu Povo. Mesmo quando Israel passou a ter reis terrenos, esses eram considerados, apenas, como “servos” de Deus, escolhidos e ungidos por Javé para governar o Povo, em lugar do verdadeiro rei que era Deus. O exemplo mais típico de um rei/servo, que governa Israel em nome de Javé, submetendo-se em tudo à vontade de Deus, foi David. A saudade deste rei ideal e do tempo ideal de paz e de felicidade em que Javé reinava (através de David) sobre o seu povo vai marcar toda a história futura de Israel. Nas épocas de crise e de frustração nacional, quando reis medíocres conduziam a nação por caminhos de morte e de desgraça, o Povo sonhava com o regresso aos tempos gloriosos de David. Os profetas, por sua vez, vão alimentar a esperança do Povo anunciando a chegada de um tempo, no futuro, em que Javé vai voltar a reinar sobre Israel e vai restabelecer a situação ideal da época de David. Essa tarefa, na perspetiva profética, será confiada a um “ungido” que Deus vai enviar ao seu Povo. Esse “ungido” (em hebraico “messias”, em grego “cristo”) estabelecerá, então, de forma definitiva, um reino de paz, de justiça, de abundância, de felicidade.

    O “Reino de Deus” é, portanto, uma noção que resume a esperança de Israel num mundo novo, preparado por Deus para o seu Povo. Esta esperança está bem viva no coração de Israel na época em que Jesus aparece a dizer: “cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus”. Certas afirmações de Jesus, registadas nos Evangelhos sinóticos, mostram que Ele tinha consciência de estar pessoalmente ligado ao Reino e de que a chegada do Reino dependia da sua ação.

    Jesus começa, precisamente, a construção desse “Reino” pedindo aos seus conterrâneos a conversão (“metanoia”) e o acolhimento da Boa Nova (“evangelho”). “Converter-se” significa transformar a mentalidade e os comportamentos, reformular os valores que orientam a própria vida; é reequacionar a vida, de modo que Deus passe a estar no centro da existência do homem e ocupe sempre o primeiro lugar. Na perspetiva de Jesus, não é possível que esse mundo novo de amor e de paz se torne uma realidade, sem que o homem renuncie ao egoísmo, ao orgulho, à autossuficiência e passe a escutar, de novo, Deus e as suas propostas. “Acreditar” é, sobretudo, aderir à pessoa de Jesus, escutar a sua proposta, acolhê-la no coração, fazer dela o guia da própria vida; é escutar essa “Boa Notícia” de salvação (“evangelho”) que Jesus propõe e fazer dela o centro à volta do qual se constrói toda a existência.

    “Conversão” e “adesão ao projeto de Jesus” são duas faces de uma mesma moeda: a construção de um Homem Novo, com uma nova mentalidade, com novos valores, com uma postura vital inteiramente nova. Então, sim teremos um mundo novo – o “Reino de Deus”.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Jesus, ao longo do caminho que percorreu entre nós, foi confrontado com opções. Ele desceu ao terreno movediço onde a vida de cada dia acontece e teve de escolher entre viver na fidelidade aos projetos do Pai, ou frustrar os planos de Deus e enveredar por um caminho de egoísmo, de poder, de autossuficiência. Mas Jesus escolheu viver – de forma total, absoluta – na obediência às propostas do Pai. Nem o espectro da cruz lhe tirou o ânimo para percorrer o caminho que Deus lhe apontava. Nós, discípulos de Jesus, somos confrontados a todos os instantes com as mesmas opções. Qual tem sido a nossa resposta? Na hora crítica de optar, têm prevalecido os nossos interesses pessoais, o nosso desejo de uma vida cómoda e instalada, a nossa vontade de realização e de triunfos, os nossos medos paralisantes, ou a vontade de Deus a nosso respeito?
    • Ao dispor-se a cumprir integralmente o projeto de salvação que o Pai tinha para os homens, Jesus começou a construir um mundo novo, de harmonia, de justiça, de reconciliação, de amor e de paz. A esse mundo novo, Jesus chamava “Reino de Deus”. Nós aderimos a esse projeto e comprometemo-nos com ele no dia em que escolhemos ser seguidores de Jesus. O nosso empenho na construção do “Reino de Deus” tem sido coerente e consequente? Mesmo contra a corrente, temos procurado ser profetas do amor, testemunhas da justiça, servidores da reconciliação, construtores da paz?
    • Para que o “Reino de Deus” se torne uma realidade, o que é necessário fazer? Na perspetiva de Jesus, o “Reino de Deus” exige, antes de mais, a “conversão”. “Converter-se” é renunciar a caminhos de egoísmo e de autossuficiência e recentrar a própria vida em Deus, de forma a que Deus e os seus projetos sejam sempre a nossa prioridade máxima. Implica, naturalmente, modificar a nossa mentalidade, os nossos valores, as nossas atitudes, a nossa forma de encarar Deus, o mundo e os outros; exige que sejamos capazes de renunciar ao egoísmo, ao orgulho, à autossuficiência, ao comodismo e que voltemos a escutar Deus e as suas propostas. O que é que temos de “converter” – quer em termos pessoais, quer em termos institucionais – para que aconteça, realmente, esse mundo novo tão esperado?
    • A construção do “Reino de Deus” exige, também, o “acreditar” no Evangelho. “Acreditar” não é, na linguagem neotestamentária, a aceitação de certas verdades afirmadas pelo discurso teológico ou a concordância com um conjunto de definições a propósito de Deus, de Jesus ou da Igreja; mas é, sobretudo, uma adesão total à pessoa de Jesus e ao seu projeto de vida. Com a sua pessoa, com as suas palavras, com os seus gestos e atitudes, Jesus propôs aos homens – a todos os homens – uma vida de amor total, de doação incondicional, de serviço simples e humilde, de perdão sem limites. Nós “acreditamos” em Jesus, incondicionalmente, e estamos dispostos a ir atrás dele no “caminho do discípulo”?
    • O chamamento a integrar a comunidade do “Reino” não é algo reservado a uma elite privilegiada, a pessoas que têm uma missão especial no mundo e na Igreja; mas é algo que Deus dirige a cada homem e a cada mulher, sem exceção. Todos os batizados são chamados a ser discípulos de Jesus, a “converter-se”, a “acreditar no Evangelho”, a seguir Jesus nesse caminho de amor e de dom da vida. Aceitamos que o “Reino” se torne o valor fundamental, a grande prioridade, o principal objetivo da nossa vida?
    • O “Reino” é uma realidade que Jesus começou e que já está, decisivamente, implantada na nossa história. Não tem fronteiras materiais e definidas; mas está a acontecer e a concretizar-se através dos gestos de bondade, de serviço, de doação, de amor gratuito que acontecem à nossa volta (muitas vezes, até fora das fronteiras institucionais da “Igreja”) e que são um sinal visível do amor de Deus nas nossas vidas. Sabemos olhar para o mundo com olhos de ver e conseguimos reconhecer, nos gestos de bondade e de amor que não cessam de acontecer, os sinais da presença do “Reino” na vida e na história dos homens? A presença do “Reino” neste mundo onde a nossa vida se cumpre é para nós fonte de alegria e de esperança?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 1.º DOMINGO DA QUARESMA
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 1.º Domingo da Quaresma, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. PALAVRA DE VIDA.

    São Marcos inicia o seu Evangelho proclamando a encarnação do Filho de Deus. Jesus é plenamente homem, pois é tentado, e plenamente Deus, ao manifestar a vitória do Amor sobre o Mal, a vitória de Deus sobre o Maligno. Ele faz uma declaração: os tempos cumpriram-se. Dirige-Se a um povo à espera de um Messias que estabelecerá um Reino novo. Ora, este Reino está bem próximo, afirma Jesus, que vem precisamente trazer a esperança a todo o povo. Mas Deus não impõe a sua vinda, Ele faz-Se desejar. Então, duas atitudes do coração são necessárias: a conversão, mudando de vida e voltando a Deus; e a fé, aderindo plenamente com todo o ser à mensagem que Jesus vem anunciar. Se Jesus começa a sua pregação por estas duas recomendações, isso significa a sua urgência e a sua importância.

    3. À ECUTA DA PALAVRA.

    A verdadeira conversão… Quaresma, tempo de penitência, de sacrifícios de toda a espécie, de resistência às tentações, à imitação de Jesus no deserto… Tempo não muito entusiasmante! Porém, na breve passagem do Evangelho, S. Marcos fala duas vezes da Boa Nova. Uma Boa Nova dilata o coração, traz alegria. Então, porque não falar de alegria durante a Quaresma? Será que isso desvirtua o seu sentido? Trata-se de conversão. Mas isso não quer dizer, em primeiro lugar, como pensamos muitas vezes, parar de cometer pecados, voltar a uma vida moralmente pura e reta. A verdadeira conversão é, antes de mais, “acreditar na Boa Nova”. E esta Boa Nova é a manifestação do verdadeiro rosto de Deus em Jesus: um Pai no qual só há amor, porque Ele é Amor em estado puro, a fonte absoluta do Amor. Às vezes, a primeira tentação, a mais terrível, consiste em transpor para Deus as nossas maneiras de amar, de compreender a justiça, o poder. Ora, não é Deus que é à nossa imagem, nós é que somos à sua imagem. A verdadeira conversão consiste em mudar todas as nossas conceções de Deus para acolher um Pai que nunca pára de nos amar, que nunca nos rejeita. E quando recusamos o seu amor, Ele só tem um desejo: manifestar-nos ainda mais o seu amor, até nos dar o seu Filho, para que, enfim, nós nos deixemos amar. A Quaresma não é demasiado tempo para descobrir este Deus!

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    Rezar em cada manhã o Salmo 24… Ao longo da semana, rezar em cada manhã, lentamente, este Salmo 24. Pode ser meditado, “ruminado”. Esforçar-se também por memorizar um versículo para cada dia (“Tu és o Deus que me salva”; “lembra-te, Senhor, da tua ternura”); repeti-lo várias vezes ao longo do dia, como uma caminhada com o Senhor. Será uma maneira possível de viver a exortação à oração em segredo, a exortação que ouvimos na Quarta-feira de Cinzas. Procurar também recorrer a esta oração quando temos uma decisão a tomar, uma escolha a fazer, cada vez que um discernimento se nos impõe (“guiai-me na verdade”, “ensinai-me”…).

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    Proposta para Escutar, Partilhar, Viver e Anunciar a Palavra

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

  • 02º Domingo do Tempo da Quaresma - Ano B [atualizado]

    02º Domingo do Tempo da Quaresma - Ano B [atualizado]

    25 de Fevereiro, 2024

    ANO B

    2.º DOMINGO DO TEMPO DA QUARESMA

    Tema do 2.º Domingo do Tempo da Quaresma

    No segundo Domingo da Quaresma, a Palavra de Deus convida-nos a dar mais um passo em direção à Páscoa (à de Jesus e à nossa). Diz-nos que é na obediência radical a Deus e na escuta atenta de Jesus que descobrimos o caminho que nos permite encontrar a Vida em abundância.

    O Evangelho relata a transfiguração de Jesus. Marcos, o evangelista, apresenta-nos uma catequese sobre Jesus, o Filho amado de Deus, que vai concretizar o seu projeto libertador em favor dos homens através do dom da vida. Aos discípulos, desanimados e assustados, Jesus diz: o caminho do dom da vida não conduz ao fracasso, mas à Vida plena e definitiva. Segui-o, vós também.

    Na primeira leitura apresenta-se a figura de Abraão como paradigma do crente. Abraão é o homem de fé inabalável, que vive numa constante escuta de Deus, que aceita os apelos de Deus e que lhes responde com a obediência total. Essa “entrega” a Deus é fonte de Vida e de bênção.

    A segunda leitura lembra aos crentes que Deus os ama com um amor imenso e eterno. A melhor prova desse amor é Jesus Cristo, o Filho amado de Deus que morreu para ensinar ao homem o caminho da vida verdadeira. Sendo assim, o cristão nada tem a temer e deve enfrentar a vida com serenidade e esperança.

     

    LEITURA I – Génesis 22,1-2.9a.10-13.15-18

    Naqueles dias,
    Deus quis pôr à prova Abraão e chamou-o:
    «Abraão!»
    Ele respondeu: «Aqui estou».
    Deus disse: «Toma o teu filho,
    o teu único filho, a quem tanto amas, Isaac,
    e vai à terra de Moriá,
    onde o oferecerás em holocausto,
    num dos montes que Eu te indicar.
    Quando chegaram ao local designado por Deus,
    Abraão levantou um altar e colocou a lenha sobre ele.
    Depois, estendendo a mão, puxou do cutelo para degolar o filho.
    Mas o Anjo do Senhor gritou-lhe do alto do Céu:
    «Abraão, Abraão!»
    «Aqui estou, Senhor», respondeu ele.
    O Anjo prosseguiu:
    «Não levantes a mão contra o menino,
    não lhe faças mal algum.
    Agora sei que na verdade temes a Deus,
    uma vez que não Me recusaste o teu filho, o teu único filho».
    Abraão ergueu os olhos
    e viu atrás de si um carneiro, preso pelos chifres num silvado.
    Foi buscá-lo e ofereceu-o em holocausto, em vez do filho.
    O Anjo do Senhor chamou Abraão do Céu pela segunda vez
    e disse-lhe:
    «Por Mim próprio te juro – oráculo do Senhor –
    já que assim procedeste
    e não Me recusaste o teu filho, o teu único filho,
    abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência
    como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar,
    e a tua descendência conquistará as portas das cidades inimigas.
    Porque obedeceste à minha voz,
    na tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra».

     

    CONTEXTO

    A primeira leitura de hoje faz parte de um bloco de textos a que se dá o nome genérico de “tradições patriarcais” (cf. Gn 12-36). Trata-se de um conjunto de relatos singulares, originalmente independentes uns dos outros, sem grande unidade e sem carácter de documento histórico. Nesses capítulos aparecem, de forma indiferenciada, “mitos de origem” (descreviam a “tomada de posse” de um lugar pelo patriarca do clã), “lendas cultuais” (narravam como um deus tinha aparecido nesse lugar ao patriarca do clã), indicações mais ou menos concretas sobre a vida dos clãs nómadas que circularam pela Palestina durante o segundo milénio e reflexões teológicas posteriores destinadas a apresentar aos crentes israelitas modelos de vida e de fé.

    O relato do sacrifício de Isaac (Gn 22) é aquilo a que os biblistas chamam uma “lenda cultual”. Nasceu, provavelmente, num santuário do sul do país, muito antes de os patriarcas bíblicos se terem instalado na zona. A lenda primitiva contava como num lugar sagrado o deus aí adorado tinha salvo uma criança destinada a ser oferecida em sacrifício (no mundo dos cananeus, os sacrifícios humanos eram frequentes). A partir daí, nesse lugar, os sacrifícios de crianças tinham sido substituídos por sacrifícios de animais. Foi essa a primeira etapa da tradição.

    Numa segunda fase, esta história primitiva foi aplicada à figura de Abraão, quando o clã de Abraão se instalou na zona. O pai cananeu da primitiva história, que levava o filho para ser oferecido em sacrifício, foi identificado com o patriarca Abraão. A tradição acabou por englobar um clã ligado ao de Abraão, o clã de Isaac. Isaac tornou-se, assim, o filho destinado ao sacrifício de que falava a velha lenda pré-israelita.

    Numa terceira fase (talvez por volta do séc. VIII a.C.), os teólogos de Israel pegaram na antiga lenda cultual e utilizaram-na para ilustrar a catequese que queriam apresentar. Serviu para dizer que o crente ideal é aquele que, como Abraão, não hesita em acolher a vontade e os desafios de Deus.

    Por fim, um redator posterior acrescentou ao texto outros elementos de carácter teológico. Foi ele que ligou a lenda do sacrifício de Isaac com o monte santo dos sacrifícios do Templo de Jerusalém; foi ele, também, que acrescentou à história a ideia de que o comportamento de Abraão para com Deus mereceu uma recompensa e que essa recompensa iria, no futuro, derramar-se sobre todos os descendentes de Abraão.

     

    MENSAGEM

    No início da narração (vers. 1), aparece um verbo que vai presidir a todo o relato e definir o sentido que os catequistas de Israel atribuíram a esta história: o verbo “pôr à prova” (em hebraico “nassah”). No Antigo Testamento, este verbo apresenta, com frequência, as “nuances” de “examinar”, “experimentar”, “testar”. À partida, define-se logo o que está em jogo: Deus vai “submeter Abraão a um teste”. A ideia de que Deus submete o seu Povo ou indivíduos particulares a “provas” é relativamente frequente no Antigo Testamento. Estas “provas” servem, normalmente, para que Deus possa conhecer o coração do seu Povo e experimentar a sua fidelidade (cf. Dt 8,2). São uma forma de Deus confirmar que tal comunidade ou tal pessoa é capaz de viver uma relação de especial comunhão e intimidade com Ele. Abraão, contudo, não sabe que está a ser “testado”.

    A “prova” a que Abraão é submetido é especialmente dramática: Deus pede-lhe que tome Isaac, o seu único filho, e o ofereça em holocausto sobre um monte (vers. 2). Contudo, Isaac não é, apenas, o filho único e amado de Abraão, embora só isso já fosse suficiente para tornar esta “prova” tremendamente dura; mas Isaac é, também, o herdeiro dessa promessa que Deus, continuamente, renovou a Abraão… Isaac é a garantia de um futuro, de uma descendência numerosa que irá tomar posse da terra; é a garantia dessas promessas que deram sentido à peregrinação de Abraão desde que Deus o mandou deixar a sua terra, a sua família e a casa de seus pais. Abraão encontra-se diante de um Deus que parece retomar o que havia dado e cuja palavra de hoje parece desmentir a de ontem. Porquê essa mudança de planos? Quais são, na realidade, os desígnios de Deus? Pode-se confiar num Deus que muda de ideias desta forma? A aposta de Abraão em deixar tudo (cf. Gn 12) para apostar nos desafios de Deus terá sido uma boa opção? A verdadeira “prova” é esta… É o absurdo de uma exigência que nega a própria história da salvação; é o continuar a esperar num Deus que, num instante, parece querer destruir os sonhos que Ele próprio ajudou a criar; é o continuar a confiar num Deus que Se contradiz e que parece, de repente, esquecer tudo o que tinha prometido; é o impasse, a obscuridade, o sofrimento em que Abraão de repente se acha; é o ser convidado a atirar-se às cegas para um caminho escuro e incompreensível.

    Como é que Abraão vai reagir a esta tremenda “prova”? Do princípio ao fim, Abraão não abre a boca a não ser para dizer “aqui estou” (vers. 1. 11) – expressão de disponibilidade total diante de Deus. De resto, Abraão não discute, não argumenta, não procura obter respostas para esse drama incompreensível que parece hipotecar tudo o que Deus lhe havia prometido. Abraão age, apenas. Levanta-se de madrugada, prepara as coisas para o holocausto, põe-se a caminho. Já no “monte do sacrifício”, Abraão constrói o altar, amarra a vítima e puxa do cutelo para matar o filho. O silêncio de Abraão, a imediatez da resposta e a forma determinada como age mostram a entrega, a confiança absoluta em Deus, a obediência levada até às últimas consequências.

    Percorrido o longo e angustiante caminho da “prova”, chega finalmente o momento em que Deus, pela voz do seu mensageiro, faz o balanço e constata o resultado: todo o comportamento de Abraão ao longo desta “crise” testemunha que ele “teme o Senhor” (vers. 12). A expressão – frequente no Antigo Testamento – traduz, por um lado, a reverência e o respeito e, por outro lado, a pronta obediência à vontade divina, a confiança inamovível no Deus que não falha, a humilde renúncia aos próprios critérios, a adesão incondicional à vontade de Deus, a aceitação plena das propostas e mandamentos de Deus.

    A nossa história termina com uma referência à “recompensa” oferecida por Deus. A obediência de Abraão irá gerar plenitude de vida e de dons divinos (bênção), uma descendência numerosa “como as estrelas do céu ou como a areia que está na margem do mar” e a posse da terra (vers. 17). O mais interessante é a indicação de que a obediência do “justo” Abraão terá um alcance universal e resultará em bênção para “todas as nações da terra”.

    Nesta “catequese”, a intenção fundamental do autor não é dizer-nos quem é Deus e como é que Ele age (por isso, não adianta estarmos a “perguntar” ao texto se, na realidade, os métodos de Deus passam por submeter o homem a provas desumanas a fim de o “testar”). A história do sacrifício de Isaac destina-se, sobretudo, a propor-nos a atitude que o crente deve assumir diante de Deus. Abraão é apresentado como o protótipo do crente ideal, que sabe escutar Deus e acolher os seus projetos com obediência incondicional, com confiança total… Mesmo que as propostas de Deus resultem incompreensíveis ou que os desafios de Deus interfiram com os projetos do homem, o crente ideal deve acolher os planos de Deus e realizá-los com fidelidade. Foi para deixar esta lição aos seus concidadãos – lição que serve, naturalmente, para os crentes de todos os tempos – que os teólogos de Israel foram buscar esta velha lenda.

     

    INTERPELAÇÕES

    • O comportamento de Abraão nesta “crise” revela, antes de mais, o lugar absolutamente central que Deus ocupa na sua existência. Deus é, para Abraão, o valor máximo, a prioridade fundamental; por isso, Abraão mostra-se disposto a fazer a Deus um dom total de si próprio, da sua família, do seu futuro, dos seus sonhos, das suas aspirações, dos seus projetos, dos seus interesses. Para Abraão, nada mais conta quando estão em jogo os planos de Deus… Na vida do homem do séc. XXI, contudo, nem sempre Deus ocupa o lugar que Lhe é devido. Com frequência, o dinheiro, o poder, a carreira profissional, o reconhecimento social, o sucesso, a influência dos líderes de opinião, ocupam o lugar de Deus e determinam as nossas opções, os nossos interesses, os valores que priorizamos. À luz da figura de Abraão, procuramos, nesta Quaresma, rever as nossas prioridades e a dar a Deus, no cenário da nossa vida, o lugar que Ele merece?
    • Na sua relação com Deus, o crente Abraão manifesta uma vasta gama de “qualidades” – a reverência, o respeito, a humildade, a disponibilidade, a obediência, a confiança, o amor, a fé – que o definem como o crente “ideal”, o modelo para os crentes de todas as épocas. Neste tempo de preparação para a Páscoa (para a Vida nova), são estas “qualidades” que nos são propostas, também. Estamos disponíveis para concretizar um processo de conversão que nos torne cada vez mais atentos e disponíveis para acolher e para viver na fidelidade aos planos de Deus?
    • O crente Abraão ensina-nos, ainda, a confiar em Deus, mesmo quando tudo parece cair à nossa volta e quando os caminhos de Deus se revelam estranhos e incompreensíveis. Quando os nossos projetos se desmoronam, quando as nuvens negras da guerra, da violência, da opressão, se acastelam no horizonte da nossa existência, quando o sofrimento nos leva ao desespero, é preciso continuar a caminhar serenamente, confiando nesse Deus que é a nossa esperança e que tem um projeto de Vida plena para nós e para o mundo. Deus é, para nós, esse rochedo firme que nos suporta nas crises e vicissitudes com que a vida, tantas vezes, nos surpreende?
    • Quando os catequistas de Israel põem Deus a dizer que a obediência de Abraão é fonte de vida para ele, para a sua família e para “todas as nações da terra”, estão a afirmar a validade do caminho que Abraão escolheu. Fazemos de Deus o centro da própria existência e renunciamos aos próprios critérios e interesses para cumprir os planos de Deus, não como uma escravidão que coarta a liberdade do homem, mas como uma opção que nos abre novas e que nos proporciona o acesso à Vida plena e verdadeira?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 115 (116)

    Refrão 1:  Andarei na presença do Senhor sobre a terra dos vivos.

    Refrão 2: Caminharei na terra dos vivos na presença do Senhor.

    Confiei no Senhor, mesmo quando disse:
    «Sou um homem de todo infeliz».
    É preciosa aos olhos do Senhor
    a morte dos seus fiéis.

    Senhor, sou vosso servo, filho da vossa serva:
    quebrastes as minhas cadeias.
    Oferecer-Vos-ei um sacrifício de louvor,
    invocando, Senhor, o vosso nome.

    Cumprirei as minhas promessas ao Senhor
    na presença de todo o povo,
    nos átrios da casa do Senhor,
    dentro dos teus muros, Jerusalém.

     

    LEITURA II – Romanos 8,31b-34

    Irmãos:
    Se Deus está por nós, quem estará contra nós?
    Deus, que não poupou o seu próprio Filho,
    mas O entregou à morte por todos nós,
    como não havia de nos dar, com Ele, todas as coisas?
    Quem acusará os eleitos de Deus?
    Deus, que os justifica?
    E quem os condenará?
    Cristo Jesus, que morreu, e mais ainda, que ressuscitou
    e que está à direita de Deus e intercede por nós?

     

    CONTEXTO

    Quando Paulo escreve aos Romanos, está a terminar a sua terceira viagem missionária e prepara-se para partir para Jerusalém. Tinha terminado a sua missão no oriente (cf. Rm 15,19-20) e queria levar o Evangelho ao ocidente. Dirigindo-se por carta aos cristãos de Roma, Paulo aproveita para estabelecer laços com eles e para lhes apresentar os principais problemas que o ocupavam (entre os quais sobressaía a questão da unidade, um problema bem presente na comunidade cristã de Roma, afetada por alguns problemas de relacionamento entre judeo-cristãos e pagano-cristãos). Estamos no ano 57 ou 58.

    Na primeira parte da Carta (cf. Rm 1,18-11,36), Paulo vai fazer notar aos cristãos divididos que o Evangelho é a força que congrega e que salva todo o crente, sem distinção de judeu, grego ou romano. Embora o pecado seja uma realidade universal, que afeta todos os homens (cf. Rm 1,18-3,20), a “justiça de Deus” dá vida a todos, sem distinção (cf. Rm 3,1-5,11); e é em Jesus Cristo que essa vida se comunica e que transforma o homem (cf. Rm 5,12-8,39). Batizados em Cristo, os cristãos morrem para o pecado e nascem para uma vida nova. Passam a ser conduzidos pelo Espírito e tornam-se filhos de Deus; libertados do pecado e da morte, produzem frutos de santificação e caminham para a Vida eterna.

    É depois de desenvolver esta reflexão que Paulo entende celebrar o amor salvador de Deus com um hino (cf. Rm 8,31-39): é nesse amor que os filhos e filhas de Deus podem fundamentar a sua esperança no triunfo final.

    A segunda leitura deste dia é parte desse hino (Rm 8,31b-34).

     

    MENSAGEM

    A razão para a esperança dos cristãos está na certeza que Deus ama todos os seus filhos com um amor imenso e eterno. O envio ao mundo de Jesus Cristo, o Filho único de Deus, que nos mostrou o caminho da vida plena e da felicidade sem fim, que lutou até à morte contra tudo o que oprimia e escravizava o homem, é a “prova provada” do imenso amor de Deus por nós (vers. 32).

    Ora, se Deus nos ama dessa forma tão intensa e tão total, temos medo de quê? Quem se atreverá a acusar-nos, a condenar-nos, ou a fazer-nos mal? O próprio Deus, com o coração inundado de amor, “justifica-nos” (vers. 33) – quer dizer pronuncia sobre nós um veredicto de graça e de perdão, apesar das nossas faltas e infidelidades. Ele escolheu salvar-nos, apesar de o não merecermos!

    E Jesus? Ele condena-nos? Claro que não! Ele morreu para nos libertar e está agora ao lado de Deus a interceder por nós. O amor que Ele nos dedica iguala o amor do Pai!

    Sendo assim, podemos enfrentar a vida com serenidade e esperança, confiando totalmente no amor de Deus.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Para Paulo, há uma constatação incrível, que não cessa de o espantar: Deus ama-nos com um amor profundo, total, radical, que nada nem ninguém consegue apagar ou eliminar. Esse amor veio ao nosso encontro em Jesus Cristo, atingiu a nossa existência e transformou-a, capacitando-nos para caminharmos ao encontro da vida eterna. Ora, antes de mais, é esta descoberta que Paulo nos convida a fazer… Nos momentos de crise, de desilusão, de perseguição, de orfandade, quando parece que todo o mundo está contra nós e que não entende a nossa luta e o nosso compromisso, a Palavra de Deus grita: “não tenhais medo; Deus ama-vos”. Esta certeza reside no nosso coração e anima todos os nossos passos?
    • Descobrir o amor de Deus por nós dá-nos a coragem necessária para enfrentar a vida com serenidade, com tranquilidade e com o coração cheio de paz. O crente é aquele homem ou mulher que não tem medo de nada porque está consciente de que Deus o ama e que lhe oferece, aconteça o que acontecer, a vida em plenitude. Procuramos entregar a nossa vida como dom, correr riscos na luta pela paz e pela justiça, enfrentar os poderes da opressão e da morte, porque confiamos no Deus que nos ama e nos salva?

     

    ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO
    (escolher um dos 7 refrães)

    1. Louvor e glória a Vós, Jesus Cristo, Senhor.
    2. Glória a Vós, Jesus Cristo, Sabedoria do Pai.
    3. Glória a Vós, Jesus Cristo, Palavra do Pai.
    4. Glória a Vós, Senhor, Filho do Deus vivo.
    5. Louvor a Vós, Jesus Cristo, Rei da eterna glória.
    6. Grandes e admiráveis são as vossas obras, Senhor.
    7. A salvação, a glória e o poder a Jesus Cristo, Nosso Senhor.

    No meio da nuvem luminosa, ouviu-se a voz do Pai:
    «Este é o meu Filho muito amado: escutai-O».

     

    EVANGELHO – Marcos 9,2-10

    Naquele tempo,
    Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João
    e subiu só com eles
    para um lugar retirado num alto monte
    e transfigurou-Se diante deles.
    As suas vestes tornaram-se resplandecentes,
    de tal brancura que nenhum lavadeiro sobre a terra
    as poderia assim branquear.
    Apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus.
    Pedro tomou a palavra e disse a Jesus:
    «Mestre, como é bom estarmos aqui!
    Façamos três tendas:
    uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias».
    Não sabia o que dizia, pois estavam atemorizados.
    Veio então uma nuvem que os cobriu com a sua sombra
    e da nuvem fez-se ouvir uma voz:
    «Este é o meu Filho muito amado: escutai-O».
    De repente, olhando em redor,
    não viram mais ninguém,
    a não ser Jesus, sozinho com eles.
    Ao descerem do monte,
    Jesus ordenou-lhes que não contassem a ninguém
    o que tinham visto,
    enquanto o Filho do homem não ressuscitasse dos mortos.
    Eles guardaram a recomendação,
    mas perguntavam entre si o que seria ressuscitar dos mortos.

     

    CONTEXTO

    Marcos situa o episódio da transfiguração num momento charneira da atividade de Jesus. Estamos na fase final da etapa da Galileia, antes de Jesus se dirigir para Jerusalém. É um momento decisivo para o projeto do Reino.

    Depois do êxito inicial da sua pregação, Jesus vinha sentindo cada vez mais resistência, por parte dos líderes religiosos locais, ao seu anúncio. Pouco antes do episódio da transfiguração, os fariseus e alguns doutores da Lei tinham criticado a liberdade de Jesus face às tradições religiosas judaicas; e, em resposta, Jesus tinha-os acusado de se preocuparem com ritos externos e de não terem em conta o essencial (cf. Mc 7,1-23). Depois, os fariseus tinham exigido que Jesus lhes desse um sinal de que atuava em nome de Deus; e Jesus tinha recusado (cf. Mc 8,11-13). Parecia cada vez mais claro que o judaísmo oficial nunca iria aceitar Jesus e o seu projeto.

    Para os discípulos de Jesus, isto levantava questões inquietantes… Eles viam Jesus como “o Messias” que Israel esperava ansiosamente (cf. Mc 8,29-30); mas as autoridades judaicas estavam contra Ele e não lhe davam crédito. Teriam os discípulos feito um erro de cálculo quando acreditaram em Jesus e se dispuseram a andar com Ele?

    As coisas ficaram ainda mais complicadas quando Jesus comunicou aos discípulos a sua decisão de se dirigir para Jerusalém e os avisou de que lá iria sofrer muito e ser morto pelas autoridades (Ele tinha acrescentado que iria ressuscitar depois de três dias; mas, nessa altura, os discípulos não sabiam bem o que é que isso queria dizer – cf. Mc 8,31). Pedro atreveu-se a contestar a decisão de Jesus; e Jesus convidou-o a pôr-se no seu lugar de discípulo e a não ser obstáculo ao projeto de Deus (cf. Mc 8,32-33). Mais ainda: antes de começar a caminhar para Jerusalém, Jesus convidou os discípulos a renegar-se a si mesmos, a “tomar a cruz” e a segui-l’O no caminho do dom da vida até à morte (cf. Mc 8,34-38). Valeria a pena seguir um Mestre que só tinha a cruz para oferecer?

    Face a este estado de coisas, Jesus achou que tinha chegado a hora de revitalizar o ânimo dos discípulos. Chamou, então, Pedro, Tiago e João – o “núcleo duro” daquele grupo – e convidou-os a subir com Ele a um monte. Nesse dia e nesse monte eles iriam ser confrontados com o princípio e o fundamento do caminho proposto por Jesus.

    O texto não identifica o “monte elevado” para onde Jesus, Pedro, Tiago e João se dirigiram. Contudo, a tradição fala do Monte Tabor, uma montanha com 588 metros de altura, situada no meio da planície de Jezreel, coberta de carvalhos, pinheiros, ciprestes, aroeiras e plantas silvestres. O Tabor tinha sido, nos tempos antigos, um lugar sagrado para os povos cananeus.

    Literariamente, a narração da transfiguração é uma teofania – quer dizer, uma manifestação de Deus. Portanto, o autor do relato vai colocar no quadro todos os ingredientes que, no imaginário judaico, acompanham as manifestações de Deus (e que encontramos quase sempre presentes nos relatos teofânicos do Antigo Testamento): o monte, as aparições, as vestes brilhantes, a nuvem, a voz que vem do céu e mesmo o medo e a perturbação daqueles que presenciam o encontro com o divino. Isto quer dizer o seguinte: não estamos diante de um relato exato de acontecimentos, mas de uma catequese (construída de acordo com o imaginário judaico) destinada a confirmar a verdade da proposta de Jesus.

     

    MENSAGEM

    Esta página de catequese está construída sobre elementos simbólicos tirados do Antigo Testamento. Que elementos são esses?

    O monte situa-nos num contexto de revelação: é sempre num monte que Deus Se revela; e, em especial, é num monte (o Sinai) que Ele faz uma aliança com o seu Povo e dá a Moisés as tábuas da Lei.

    A mudança do rosto e as vestes brilhantes, muitíssimo brancas, recordam o resplendor de Moisés, ao descer do Sinai (cf. Ex 34,29), depois de se encontrar com Deus e de receber as tábuas da Lei. Além disso, o branco é a cor de Deus: indica que estamos no âmbito do divino.

    A nuvem, por sua vez, indica a presença de Deus: era na nuvem que Deus se ocultava e era a partir da nuvem que Deus conduzia o seu Povo ao longo da caminhada pelo deserto, em direção à Terra Prometida (cf. Ex 40,34-35; Nm 9,18.22; 10,34).

    Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas (que anunciam Jesus e que permitem entender Jesus); além disso, são personagens que, de acordo com a catequese judaica, deviam aparecer no “dia do Senhor”, quando se manifestasse a salvação definitiva (cf. Dt 18,15-18; Mal 3,22-23).

    O temor e a perturbação dos discípulos são a reação lógica de qualquer homem ou mulher, diante da manifestação da grandeza, da omnipotência e da majestade de Deus (cf. Ex 19,16; 20,18-21).

    Mas o elemento mais significativo é, sem dúvida, “a voz” que vem da “nuvem” (o espaço onde Deus se oculta). Essa “voz” dirige-se aos discípulos e declara solenemente: “Este é o meu Filho muito amado”. O próprio Deus “apresenta” Jesus e garante que Ele é “o Filho amado” que veio ao encontro dos homens com um mandato do Pai. E o testemunho de Deus sobre Jesus completa-se com um imperativo: “escutai-o”. Os discípulos ficam assim prevenidos de que devem escutar e acolher as indicações de Jesus, sem mais hesitações e medos, em cada passo do caminho.

    Marcos, o nosso catequista, pegou em todos estes elementos, amassou-os e com eles construiu a sua catequese. Nela, Jesus é apresentado, antes de mais, como o Filho amado de Deus, em quem se manifesta a glória do Pai. Ele não é um visionário que vive iludido e que não tem os pés assentes na terra; nem é um revolucionário com sede de protagonismo que se aproveita, em benefício do seu projeto político, de um grupo de discípulos ingénuos… Jesus é o Filho amado de Deus, enviado aos homens para lhes propor a salvação e a Vida verdadeira. Tudo o que Ele diz e propõe está de acordo com o projeto salvador de Deus. Os discípulos devem escutá-lo, levar a sério as suas indicações, mesmo quando Ele propõe um caminho difícil de dom da vida até às últimas consequências (cf. Mc 8,34-37).

    Jesus é, também, de acordo com esta catequese, o Messias libertador e salvador esperado por Israel, anunciado pela Lei (Moisés) e pelos Profetas (Elias). Ele veio concretizar as promessas que, ao longo da história da salvação, Deus fez ao seu Povo.

    Finalmente, Jesus é o novo Moisés, Aquele através de quem Deus dá ao seu Povo a nova lei e através de quem propõe aos homens uma nova Aliança. Da ação libertadora de Jesus, o novo Moisés, irá nascer um novo Povo de Deus. Guiado por Jesus, esse Povo caminhará pelo deserto da cruz e da morte até chegar à Terra Prometida, onde encontrará Vida em abundância.

    Por cima deste quadro paira a luz gloriosa da ressurreição. A glória de Deus que se manifesta em Jesus, as “vestes brilhantes, muitíssimo brancas” (que lembram a túnica branca do “jovem” sentado junto do túmulo de Jesus e que anuncia às mulheres a ressurreição – cf. Mc 16,5) e a recomendação final de Jesus (“que não contassem a ninguém o que tinham visto, enquanto o Filho do Homem não ressuscitasse dos mortos” – Mc 9,9) apontam nesse sentido. Os discípulos são, assim, convidados a olhar para lá da cruz e a descobrir que, no final do caminho de Jesus, não está o fracasso, mas está a ressurreição, a vida plena, a vitória sobre a morte. No entanto, eles ainda não estão preparados para entender o alcance de tudo isto (enquanto desciam do monte, discutiam “uns com os outros o que seria ressuscitar de entre os mortos” – Mc 9,10). Só o compreenderão mais tarde, à luz da ressurreição de Jesus.

    Mas, mesmo sem tudo compreender, a verdade é que os discípulos desceram daquele monte com uma outra perspetiva de Jesus e do seu projeto… E, sem mais hesitações, seguiram atrás de Jesus no caminho para Jerusalém.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Neste segundo domingo da Quaresma façamos, também nós, a experiência de subir com Jesus ao monte… Enquanto subimos, podemos conversar com Ele e, com toda a sinceridade, dizer-Lhe as nossas dúvidas e inquietações. Podemos dizer-Lhe que, por vezes, nos sentimos perdidos e desanimados diante da forma como o nosso mundo se constrói; podemos dizer-lhe que o caminho que Ele aponta é duro e exigente e que não sabemos se teremos a coragem de o percorrer até ao fim; podemos até dizer-lhe, talvez com alguma vergonha, que às vezes duvidamos dele e corremos atrás de outras apostas, mais cómodas, mais atraentes e menos arriscadas… E, depois de lhe dizermos isso tudo, deixemos que Jesus nos fale, nos explique o seu projeto, nos renove o seu desafio… E vamos, também, prestar atenção à voz de Deus que nos garante: “olhem que esse Jesus que Eu enviei ao vosso encontro é o meu Filho amado, aquele a quem Eu entreguei o projeto de um mundo mais humano e mais fraterno… Confirmo a verdade do caminho que Ele vos propõe. Escutai-O, ide com Ele, acolhei as suas propostas e indicações, mesmo que tenhais de remar contra a maré. O caminho que Ele vos aponta pode passar pela cruz, mas conduz à Vida verdadeira, à ressurreição”. É com estas atitudes que somos seguidores de Jesus Cristo?
    • “Este é o meu Filho amado. Escutai-o”. É verdade: precisamos de escutar Jesus mais e melhor. Quando o “escutamos” – quer dizer, quando ouvimos o que Ele nos diz, quando acolhemos no coração as suas indicações e quando procuramos concretizá-las na vida – começamos a ver tudo com uma luz mais clara. Começamos a perceber qual é a maneira mais humana de enfrentar os problemas da vida e os males do nosso mundo; damos conta dos grandes erros que os seres humanos podem cometer e descobrimos as soluções que Deus nos aponta… Escutar Jesus pode curar-nos das nossas cegueiras seculares, dos preconceitos que nos impedem de acolher a novidade de Deus, dos medos que nos paralisam; escutar Jesus pode libertar-nos de desalentos e cobardias, e abrir o nosso coração à esperança. A escuta de Jesus está no centro da nossa experiência de fé? Nas nossas comunidades cristãs damos espaço suficiente à escuta de Jesus?
    • O tempo de Quaresma é um tempo favorável de conversão, de transformação, de renovação. Traz-nos um convite a questionarmos a nossa forma de encarar a vida, os valores que priorizamos, as opções que vamos fazendo, as nossas certezas e apostas, os nossos interesses e projetos… O que é que eu, pessoalmente, necessito de mudar, na minha forma de pensar e de agir, a fim de me tornar um discípulo coerente e comprometido, que segue Jesus no caminho do amor levado até às últimas consequências, até ao dom total de si próprio?
    • É verdade que, para muitos dos nossos contemporâneos, o caminho proposto por Jesus não parece muito entusiasmante… Não assegura bem-estar, nem bens materiais, nem triunfos, nem reconhecimento, nem fama, nem poder, nem tranquilidade, nem qualquer outro valor que muitos dos homens e mulheres do nosso tempo consideram fundamentais para que as suas vidas tenham algum sentido. Contudo, nós, discípulos de Jesus, acreditamos que só o amor – o amor vivido como serviço, como dom de si próprio, ao estilo de Jesus – dá sentido à vida; acreditamos que a construção de um mundo novo – mais humano, mais são, mais verdadeiro – depende de acolhermos e vivermos as propostas de Jesus. O que poderemos fazer para contagiar os nossos irmãos e irmãs com o nosso entusiasmo por Jesus e pelo seu projeto de um mundo novo?
    • Pedro, Tiago e João, testemunhas da transfiguração de Jesus, parecem não ter muita vontade de “descer à terra” e de enfrentar o mundo e os problemas dos homens. Propõem fazer três tendas e ficar no cimo daquele monte, onde tudo parece tão fácil e tão indolor. Representam aqueles que vivem de olhos postos no céu, alheados da realidade concreta do mundo, sem vontade de intervir para o renovar e transformar. No entanto, ser seguidor de Jesus obriga-nos a “regressar ao mundo” para testemunhar aos homens, mesmo contra a corrente, que a realização autêntica está no dom da vida; obriga a atolarmo-nos no mundo, nos seus problemas e dramas, a fim de dar o nosso contributo para o aparecimento de um mundo mais justo e mais feliz. Assumimos a nossa ligação a Deus, não como uma droga que nos adormece, mas como compromisso com Deus que se concretiza no esforço de construirmos um mundo mais justo, mais humano, mais cheio de amor?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 2.º DOMINGO DA QUARESMA
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 2.º Domingo da Quaresma, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. PALAVRA DE VIDA.

    Jesus encontra-Se com o seu Pai. O monte é o lugar de encontro com Deus: Moisés e Elias encontram Deus no monte Horeb, Jesus retira-Se muitas vezes para o monte para rezar. Naquele dia, Deus toma a palavra para reconhecer Jesus como seu Filho bem-amado, e pede para O escutar. Jesus encontra-Se com Moisés e Elias, estes porta-vozes cheios do poder de Deus libertador junto do seu povo. A sua presença no monte da transfiguração revela que Jesus veio cumprir tudo o que os profetas tinham anunciado. Enfim, Jesus encontra-Se no monte das Oliveiras com as testemunhas adormecidas da Paixão. E se Jesus Se transfigura a seus olhos, é para lhes fazer ver a glória que Lhe vem de seu Pai. Mas para conhecer esta glória, é preciso passar pelo sofrimento e pela morte. Ainda não chegou o momento para nos sentarmos, é preciso retomar o caminho para “passar” com o Mestre.

    3. À ECUTA DA PALAVRA.

    A sua Palavra como uma semente de vida… “Mestre, como é bom estarmos aqui! Façamos três tendas: uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias”. Dito de outro modo: instalemo-nos, fiquemos aqui para sempre, estamos tão bem a contemplar a tua glória! Como seria tão bom se nós tivéssemos podido guardar Jesus glorioso no meio de nós! Ele manifestaria desde agora a sua vitória sobre todas as forças do mal e sobre a própria morte. Ele curaria todas as doenças, Ele estabeleceria a justiça, Ele apaziguaria todas as tempestades, Ele suprimiria todas as violências. Jesus estaria sempre ao nosso serviço, à nossa disposição! Seria verdadeiramente o paraíso na terra! Mas Jesus não se deixou apanhar na armadilha. “Olhando em redor, não viram mais ninguém, a não ser Jesus, sozinho com eles”. Foi necessário retomar o caminho quotidiano. Será preciso que atravessem a noite do Gólgota, depois os seus próprios sofrimentos e a sua própria morte. Jesus não veio tirar-nos da nossa condição humana com uma varinha mágica. Mas Ele vem juntar-se a nós nos nossos caminhos pedregosos, dando-nos o seu Espírito para que nos tornemos capazes de O escutar, no mais íntimo de nós mesmos. Então a sua Palavra pode enraizar-se cada vez mais profundamente em nós, como uma semente de vida. Não a percebemos sempre… mas ela rebentará na plenitude da luz, na Ressurreição com Jesus.

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    A nossa fé na ressurreição… Concretamente, como fazer, que fazer? Alguns meios podem ajudar-nos: a oração, para pedir a Deus a fé (que é graça) e a sua luz; a meditação da Palavra de Deus; leituras, livros de teologia ou de espiritualidade, testemunhos de crentes; ou ainda a ajuda de um conselheiro espiritual, que nos permita debater questões mais actuais (incompatibilidade entre fé na ressurreição e crença na reincarnação, por exemplo).

     

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