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Eventos Setembro 2024

  • 22º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    22º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]


    1 de Setembro, 2024

    ANO B
    22.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 22.º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia do 22.º Domingo do Tempo Comum propõe-nos uma reflexão sobre a “Lei de Deus”. Deus tem procurado, com as suas sugestões e propostas, ajudar os seus filhos e filhas a encontrar o caminho que conduz à Vida. Convém escutar e acolher as indicações que Ele dá. Mas o coração do homem não deve centrar-se no mero cumprimento de leis externas, mas sim no amor e na comunhão com Deus.

    Na primeira leitura, Moisés convida o povo libertado do Egito a escutar, acolher e pôr em prática as leis e preceitos de Deus. Se Israel se deixar conduzir pelas indicações de Deus, sem as adulterar e sem as desprezar, encontrará o futuro de liberdade e de Vida abundante que busca ansiosamente.

    No Evangelho, Jesus alerta para os perigos do “legalismo”: a absolutização que os fariseus faziam da Lei vai em sentido contrário ao projeto original de Deus. Uma vivência religiosa que absolutiza a Lei impede que o crente possa fazer uma verdadeira experiência de encontro com Deus. As leis podem ajudar a delimitar o caminho; mas nunca devem sobrepor-se ao amor e à misericórdia.

    Na segunda leitura fala-se de uma “boa dádiva”, de um “dom perfeito” vindo de Deus: a “palavra da verdade”. Essa “palavra da verdade” é a Palavra evangélica, dom de Deus que proporciona o nascimento para uma Vida nova a todos aqueles que se dispuserem a acolhê-lo.

     

    LEITURA I – Deuteronómio 4,1-2.6-8

    Moisés falou ao povo, dizendo:
    «Agora escuta, Israel,
    as leis e os preceitos que vos dou a conhecer
    e ponde-os em prática,
    para que vivais e entreis na posse da terra
    que vos dá o Senhor, Deus de vossos pais.
    Não acrescentareis nada ao que vos ordeno,
    nem suprimireis coisa alguma,
    mas guardareis os mandamentos do Senhor vosso Deus,
    tal como eu vo-los prescrevo.
    Observai-os e ponde-os em prática:
    eles serão a vossa sabedoria e a vossa prudência
    aos olhos dos povos,
    que, ao ouvirem falar de todas estas leis, dirão:
    ‘Que povo tão sábio e tão prudente é esta grande nação!’
    Qual é, na verdade, a grande nação
    que tem a divindade tão perto de si
    como está perto de nós o Senhor, nosso Deus,
    sempre que O invocamos?
    E qual é a grande nação
    que tem mandamentos e decretos tão justos
    como esta lei que hoje vos apresento?»

     

    CONTEXTO

    O Livro do Deuteronómio é o “livro da Lei” (ou parte dele) que, de acordo com a notícia de 2 Re 22, 8-13, foi descoberto no Templo de Jerusalém no décimo oitavo ano do reinado de Josias (622 a.C.). Nesse livro, os teólogos deuteronomistas – originários do Norte (Israel) mas, entretanto, refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do norte frente aos assírios – apresentam os elementos principais da sua visão teológica: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com Ele uma Aliança eterna; o Povo de Deus é propriedade pessoal de Javé e deve viver para o serviço de Deus; nenhum outro Deus deve ocupar, no coração do Povo, o lugar que é de Javé por direito.

    Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab, antes de o Povo atravessar o rio Jordão para tomar posse da Terra Prometida. Pressentindo a proximidade da sua morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua aliança com Javé.

    O texto que a liturgia do vigésimo segundo domingo comum nos propõe como primeira leitura apresenta-se como parte do primeiro discurso de Moisés (cf. Dt 1,6-4,43). Na primeira parte desse discurso (cf. Dt 1,6-3,29), em estilo narrativo, o autor deuteronomista põe na boca de Moisés um resumo da história do Povo, desde a estadia no Horeb/Sinai, até à chegada ao monte Pisga, na Transjordânia; na parte final desse discurso (cf. Dt 4,1-43), o autor apresenta, em estilo exortativo, um pequeno resumo da Aliança e das suas exigências. Esta secção final do primeiro discurso de Moisés começa com a expressão “e agora, Israel…”. Isso indica que, na perspetiva dos teólogos deuteronomistas, o compromisso que agora se vai pedir a Israel se apoia nos acontecimentos históricos anteriormente expostos: a ação de Deus ao longo da caminhada do Povo pelo deserto deve conduzir ao compromisso.

    O capítulo 4 do Livro do Deuteronómio é um texto redigido, muito provavelmente, na fase final do Exílio do Povo de Deus na Babilónia. Perdido numa terra estrangeira e mergulhado numa cultura estranha, hostilizado quando tentava afirmar a sua fé em Javé e celebrá-la através do culto, impressionado com o esplendor ritual e as solenidades do culto babilónico, o Povo bíblico corria o risco de trocar Javé pelos deuses babilónicos. Neste contexto os teólogos da escola deuteronomista vão convidar o Povo a olhar para a sua história (cf. Dt 1,6-3,29), a redescobrir nela a presença salvadora e amorosa de Javé e a comprometer-se de novo com Deus e com a Aliança.

     

    MENSAGEM

    No passado recente, Deus concretizou a maravilhosa obra da libertação do Egito e, em seguida, conduziu Israel pelo deserto até às portas da Terra prometida. Portanto, Israel viu do que Deus é capaz e já percebeu que pode confiar na sua bondade e no seu amor. Mas, agora, Deus propõe-se escrever uma página nova na história da salvação: vai oferecer ao seu Povo leis e preceitos sábios e justos. Guiado pelas indicações seguras de Deus, o Povo entrará na Terra Prometida aos seus antepassados e habitará nela; terá Vida em abundância e verá concretizados os seus sonhos de felicidade e de liberdade. (vers. 1).

    Contudo, é fundamental que Israel escute as indicações de Deus, as acolha e viva de acordo com elas. O Povo não deverá ceder à tentação de adulterar as leis e preceitos que Deus lhe vai dar (vers. 2). Se os ignorar ou deturpar estará, se preferir seguir caminhos à margem de Deus, estará a cavar um futuro de sofrimento e morte (como aconteceu quando, em Baal Peor, os israelitas se deixaram seduzir por outros deuses e por outras propostas de felicidade e sofreram na pele as consequências das suas opções erradas – cf. Nm 25,1-19). A Palavra de Deus deve ser uma proposta sagrada, que o Povo se esforçará por abraçar e cumprir fielmente.

    De resto, o cumprimento das leis e preceitos de Deus tornará Israel grande aos olhos de outros povos. Ao verem como Israel vive e caminha, sob a orientação das leis e preceitos de Deus, as outras nações (não esquecer que este texto foi provavelmente acrescentado ao livro primitivo do Deuteronómio quando o Povo estava exilado na Babilónia) comentarão, com espanto: “que povo tão sábio e tão prudente é esta grande nação!”. E os teólogos deuteronomistas acham que essa admiração é justificada: é um orgulho para Israel ser o Povo eleito de Deus, o Povo especial de Javé (“qual a grande nação que tem a divindade tão perto de si como está perto o Senhor nosso Deus sempre que O invocamos?” – vers. 7); é uma honra para Israel possuir leis justas e sábias, que os outros povos admiram e invejam (“qual é a grande nação que tem mandamentos e decretos tão justos como esta lei que hoje vos apresento?” – vers. 8).

    Deus elegeu Israel, de entre todos os povos da terra, como o seu povo predileto. Israel, por sua vez, deve deixar-se guiar por Deus e viver na fidelidade aos seus mandamentos. Essa será a melhor resposta que o Povo poderá dar à iniciativa amorosa de Deus.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Na catequese de Israel, as leis e os preceitos dados por Javé são vistos como o resultado do amor e da solicitude de Deus pelo seu Povo. O Deus criador, libertador e salvador acompanha os passos que Israel dá na história e, a cada instante, oferece-lhe indicações seguras sobre o caminho a seguir. A escuta e o acolhimento dessas “palavras” de Deus garantem, quer em termos pessoais, quer em termos comunitários, felicidade, harmonia, paz, Vida em abundância. Ora, o tesouro da Palavra de Deus continua à nossa disposição hoje. Os tempos são diferentes, mas as indicações de Deus não têm prazo de validade: continuam a dizer, aos homens e mulheres do séc. XXI, o que devem fazer para construírem vidas com sentido. Que importância é que as palavras de Deus assumem na construção da nossa vida e na escolha dos nossos caminhos? No meio da azáfama e do ativismo em que a nossa vida decorre, conseguimos encontrar tempo e disponibilidade para escutar, para meditar e para interiorizar a Palavra eterna de Deus?
    • Há quem considere que as leis e preceitos de Deus condicionam a autonomia e limitam a liberdade do homem; há quem veja nas leis e preceitos de Deus expressões de uma moral ultrapassada, que não condiz com os valores do nosso tempo e que deve permanecer, coberta de pó, no museu da história. Em contrapartida, há quem olhe para as leis e preceitos de Deus como um caminho sempre válido, que ajuda os seres humanos a construírem vidas com sentido, livres de todas as escravidões e balizadas por valores verdadeiros, como o amor, a partilha, o serviço, o dom da vida… E nós, como vemos e entendemos as leis e preceitos de Deus?
    • Uma das recomendações do texto é a de não adulterar a Palavra de Deus, ao sabor dos interesses pessoais ou grupais. Existe sempre o perigo, quer na nossa reflexão pessoal, quer na nossa partilha comunitária, de torcermos a Palavra ao sabor dos nossos interesses, de limarmos a sua radicalidade, de lhe cortarmos os aspetos mais questionantes, ou de a fazermos dizer coisas que não vêm de Deus… É preciso perguntarmo-nos constantemente se a Palavra que vivemos e anunciamos é a Palavra de Deus ou é a nossa “palavra”, se ela transmite os valores de Deus ou os nossos valores pessoais, se ela testemunha a lógica de Deus ou a nossa lógica humana. Este processo de discernimento é mais fácil quando é feito em comunidade, no diálogo e no confronto com os irmãos que caminham connosco, que nos questionam e que partilham connosco a sua perspetiva das coisas. Que Palavra testemunhamos: a de Deus, ou a nossa? Aceitamos que a nossa visão pessoal das coisas seja confrontada com perspetivas ou entendimentos diferentes?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 14 (15)

    Refrão 1: Quem habitará, Senhor, no vosso santuário?
    Refrão 2: Ensinai-nos, Senhor: quem habitará em vossa casa?

    O que vive sem mancha e pratica a justiça
    e diz a verdade que tem no seu coração
    e guarda a sua língua da calúnia.

    O que não faz mal ao seu próximo nem ultraja o seu semelhante,
    o que tem por desprezível o ímpio,
    mas estima os que temem o Senhor.

    O que não falta ao juramento, mesmo em seu prejuízo,
    e não empresta dinheiro com usura,
    nem aceita presentes para condenar o inocente.
    Quem assim proceder jamais será abalado.

     

    LEITURA II – Tiago 1,17-18.21-22.27

    Caríssimos irmãos:
    Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto,
    descem do Pai das luzes,
    no qual não há variação nem sombra de mudança.
    Foi Ele que nos gerou pela palavra da verdade,
    para sermos como primícias das suas criaturas.
    Acolhei docilmente a palavra em vós plantada,
    que pode salvar as vossas almas.
    Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes,
    pois seria enganar-vos a vós mesmos.
    A religião pura e sem mancha,
    aos olhos de Deus, nosso Pai,
    consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações
    e conservar-se limpo do contágio do mundo.

     

    CONTEXTO

    O autor da Carta de onde foi extraída a segunda leitura deste vigésimo segundo domingo comum apresenta-se a si próprio como “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (cf. Tg 1,1). A tradição liga-o ao Tiago “irmão” (parente) do Senhor, que presidiu à Igreja de Jerusalém e do qual os Evangelhos falam acidentalmente como filho de Maria (cf. Mt 13,55; 27,56). De acordo com Flávio Josefo, teria sido martirizado em Jerusalém no ano 62. No entanto, a atribuição deste escrito a tal personagem levanta bastantes dificuldades. O mais certo é estarmos perante um outro qualquer Tiago, desconhecido até agora (o “Tiago, filho de Alfeu” – de que se fala em Mc 3,18 – e o “Tiago, filho de Zebedeu” e irmão de João – de que se fala em Mc 1,19 – também não se encaixam neste perfil). É, de qualquer forma, um autor que escreve em excelente grego, recorrendo até a recursos retóricos como a “diatribe” (um género muito usado pela filosofia popular helénica), a perguntas retóricas e a jogos de paradoxos e contrastes. Inspira-se particularmente na literatura sapiencial, para extrair dela lições de moral prática; mas depende também profundamente dos ensinamentos do Evangelho. Trata-se de um sábio judeo-cristão que repensa, de maneira original, as máximas da sabedoria judaica, em função do cumprimento que elas encontraram nas palavras e no ensinamento de Jesus.

    A carta de Tiago foi enviada “às doze tribos que vivem na Diáspora” (Tg 1,1). Provavelmente, a expressão alude a cristãos de origem judaica, dispersos no mundo greco-romano, sobretudo nas regiões próximas da Palestina – como a Síria ou o Egipto; mas, também pode referir-se, em termos metafóricos, à totalidade da comunidade de Jesus, dispersa pelo mundo greco-romano. Exorta os crentes a que não percam os valores cristãos autênticos herdados do judaísmo através dos ensinamentos de Cristo. Apela a que os cristãos vivam com coerência e verdade a própria fé.

    O texto pertence à primeira parte da carta (cf. Tg 1,2-26). Aí, o autor apresenta, aparentemente sem ordem nem lógica, um conjunto de desenvolvimentos e de sentenças sobre a autenticidade e a coerência da fé. Convida os cristãos a enfrentarem com alegria as provações (Tg 1,2-18), a escutarem e a porem em prática a Palavra de Deus (cf. Tg 1,19-27), a viverem no amor (cf. Tg 2,1-13) e a conciliarem a fé com obras concretas em favor dos irmãos (cf. Tg 2,14-26).

     

    MENSAGEM

    Os versículos que compõem a nossa leitura referem-se a uma “boa dádiva”, a um “dom perfeito” vindo de Deus (designado aqui como “Pai das luzes” porque foi Ele que criou o sol, a lua, as estrelas e é Ele que ilumina os caminhos dos homens): a “palavra da verdade” (vers. 17-18). Essa “palavra da verdade” é, com toda a certeza, a Palavra evangélica, dom de Deus que proporciona o nascimento para uma Vida nova a todos aqueles que se dispuserem a acolhê-lo.

    Depois desta apresentação, o autor da carta de Tiago desenvolve, de forma descontínua mas, ao mesmo tempo, desafiante, a sua reflexão sobre a forma como os crentes devem ver e acolher essa Palavra geradora de uma humanidade nova.

    Antes de mais, o dom de Deus deve ser acolhido com docilidade (vers. 21). Os que acolhem a Palavra com um coração disponível e obediente, estão a criar condições para que surja o Homem novo, o homem transformado, o homem da Vida plena; mas os que prescindem das indicações de Deus e se fecham na sua autossuficiência estão a recusar a oportunidade de dar pleno sentido à sua existência: instalam-se na mediocridade, convivem com a malícia, acomodam-se à escuridão que leva à morte.

    A Palavra escutada e acolhida com docilidade deve, depois, conduzir à ação (vers. 22). Escutar a Palavra é assumir um caminho de conversão, de mudança de vida, de abandono da vida velha do egoísmo e do pecado; escutar a Palavra é, além disso, aceitar o desafio de Deus e comprometer-se na luta pela transformação do mundo.

    Finalmente, o autor da Carta de Tiago convida os membros da comunidade cristã a viverem a sua fé no quadro de uma religião autêntica (por oposição à religião vazia, inoperante, morta, daqueles que falam muito mas não praticam ações coerentes com as suas palavras). A “religião pura e sem mancha”, a religião que Deus quer, é a que se traduz em ações concretas, como “visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações” e “conservar-se limpo do contágio do mundo” (vers. 27). Ligando este versículo com o tema central do resto da leitura (a “Palavra da verdade”), podemos dizer que é a escuta atenta da Palavra de Deus que nos leva a passar de uma religião ritual, legalista, externa, superficial, para uma religião de efetivo compromisso com a realização do projeto de Deus e com o amor dos irmãos.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Na nossa época há uma marcada tendência para a superabundância de palavras. As redes sociais, de forma especial, deram-nos possibilidades quase ilimitadas de fazer ouvir a nossa voz e de dar a nossa opinião sobre tudo o que nos apetecer. Isso abre-nos canais de comunicação, de diálogo e de partilha que nos enriquecem e nos aproximam uns dos outros. Mas, por outro lado, faz-nos viver imersos num ruído de fundo – muitas vezes feito de fake news, de opiniões pouco fundamentadas, de ditos pouco sérios, de pronunciamentos agressivos, de conversas sem conteúdo – que vai degradando o poder e a força das palavras. Habituamo-nos, para nossa defesa, a não levar demasiado a sério todas as palavras que escutamos, a relativizar aquilo que vamos ouvindo aqui e ali… E a Palavra eterna de Deus, como a situamos e valorizamos no meio de tudo isto? Ela tem, na nossa vida, um valor superlativo, ou é mais ou menos igual a tantas outras palavras que todos os dias ferem os nossos ouvidos e intoxicam a nossa mente?
    • Por vezes, nos nossos “tiques” de autossuficiência, temos a tentação de encarar as sugestões que nos são apresentadas como ingerências estranhas, que põem em causa a nossa autonomia e a nossa liberdade. Como reação, fechamo-nos no casulo das nossas certezas e rejeitamos aquilo que nos é proposto, correndo o risco de passar ao lado de desafios importantes. É por isso que o autor da Carta de Tiago nos convida a acolher a Palavra de Deus com docilidade, com boa vontade, com um coração disponível e obediente. Deus não é um adversário dos homens; as palavras que Ele diz nunca serão um atentado contra a nossa liberdade. Deus, ao propor-nos a “Palavra da verdade”, apenas pretende vestir a nossa vida de sentido e apontar-nos caminhos seguros para chegarmos à Vida em plenitude. Alguma vez encaramos as indicações de Deus como intromissões que limitam as nossas escolhas ou a nossa liberdade?
    • A Palavra de Deus que escutamos e que acolhemos deve conduzir-nos à ação e ao compromisso. Se ficamos apenas pela escuta e pela contemplação da Palavra, ela torna-se estéril e inútil. A Palavra de Deus leva-nos efetivamente a uma mudança de vida, a um refazer as nossas prioridades, a uma purificação dos valores que sustentam a nossa caminhada? A Palavra de Deus faz-nos sair de nós próprios, abandonar a nossa zona de conforto e envolver-nos na luta pela justiça, pela paz, pela dignidade dos nossos irmãos, pelos direitos dos mais pobres, por um mundo mais humano e mais fraterno?
    • A vivência da religião, sem a escuta atenta e comprometida da Palavra de Deus, pode facilmente tornar-se o mero cumprimento de ritos e práticas devocionais, a simples preservação de uma tradição que herdámos dos nossos antepassados, a adoção de práticas que tornam mais fácil a nossa inserção num determinado meio social… A Palavra de Deus põe-nos em diálogo com Deus, faz-nos conhecer os projetos de Deus, envolve-nos na vida de Deus, chama-nos a viver na obediência a Deus, compromete-nos com Deus e com o projeto que Ele tem para o mundo e para os homens. Que lugar tem a Palavra de Deus na nossa vivência religiosa?

     

    ALELUIA – Tiago 1,18

    Aleluia. Aleluia.

    Deus Pai nos gerou pela palavra da verdade,
    para sermos como primícias das suas criaturas.

     

    EVANGELHO – Marcos 7,1-8.14-15.21-23

    Naquele tempo,
    reuniu-se à volta de Jesus
    um grupo de fariseus e alguns escribas
    que tinham vindo de Jerusalém.
    Viram que alguns dos discípulos de Jesus
    comiam com as mãos impuras, isto é, sem as lavar.
    – Na verdade, os fariseus e os judeus em geral
    não comem sem terem lavado cuidadosamente as mãos,
    conforme a tradição dos antigos.
    Ao voltarem da praça pública,
    não comem sem antes se terem lavado.
    E seguem muitos outros costumes
    a que se prenderam por tradição,
    como lavar os copos, os jarros e as vasilhas de cobre –.
    Os fariseus e os escribas perguntaram a Jesus:
    «Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos,
    e comem sem lavar as mãos?»
    Jesus respondeu-lhes:
    «Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas,
    como está escrito:
    ‘Este povo honra-Me com os lábios,
    mas o seu coração está longe de Mim.
    É vão o culto que Me prestam,
    e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos’.
    Vós deixais de lado o mandamento de Deus,
    para vos prenderdes à tradição dos homens».
    Depois, Jesus chamou de novo a Si a multidão
    e começou a dizer-lhe:
    «Ouvi-Me e procurai compreender.
    Não há nada fora do homem
    que ao entrar nele o possa tornar impuro.
    O que sai do homem é que o torna impuro;
    porque do interior dos homens é que saem os maus pensamentos:
    imoralidades, roubos, assassínios,
    adultérios, cobiças, injustiças,
    fraudes, devassidão, inveja,
    difamação, orgulho, insensatez.
    Todos estes vícios saem lá de dentro
    e tornam o homem impuro».

     

    CONTEXTO

    Enquanto andava pela Galileia a anunciar a chegada do Reino de Deus, Jesus era frequentemente questionado pelos fariseus e doutores da Lei (cf. Mc 2,6.16.18.24; 3,6.22).

    Os fariseus eram uma presença determinante no universo religioso judaico. Procuravam a cada passo – nomeadamente na liturgia sinagogal – contagiar o povo com o amor que eles próprios sentiam pela Tora (a Lei). Apoiando-se nos “escribas” (ou “doutores da Lei”), ensinavam as regras (“halakot”) que deviam dirigir cada passo da vida dos israelitas. A santidade, para eles, não estava reservada aos sacerdotes, mas era algo que dizia respeito a todo o povo. Chegava-se à santidade, cumprindo todas as exigências da Lei. E quando todo o povo cumprisse a Lei, o Messias viria trazer a salvação a Israel. Nesse sentido, vigiavam atentamente para que o Povo não se afastasse das “tradições dos antigos”.

    Essa “tradição dos antigos” não se cingia – na visão dos fariseus – às normas escritas contidas na Tora, mas abrangia um imenso conjunto de leis orais onde apareciam as decisões e as sentenças dos Rabis acerca dos mais diversos temas. Na época de Jesus, essa “tradição dos antigos” constava de 613 leis (tantas quantas as letras do Decálogo dado a Moisés no Monte Sinai), das quais 248 eram preceitos de formulação positiva e 365 eram preceitos de formulação negativa. Essas leis – que o Povo tinha dificuldade em conhecer na sua totalidade e que tinha, ainda mais, dificuldade em praticar – eram, para os fariseus, o caminho para tornar Israel um Povo santo e para apressar a vinda libertadora do Messias. Vai ser, precisamente, à volta desta temática que se vai centrar a polémica entre Jesus e os fariseus que o Evangelho de hoje nos relata.

    Quando Marcos escreveu o seu Evangelho (durante a década de 60), a questão do cumprimento da Lei judaica ainda era uma questão “quente”. Para os cristãos vindos do judaísmo, a fé em Jesus devia ser complementada com o cumprimento rigoroso das leis judaicas… No entanto, a imposição dos costumes judaicos levaria, certamente, ao afastamento dos cristãos vindos do paganismo. Como proceder? O cumprimento da Lei de Moisés era importante para a experiência cristã? Para que o Reino que Jesus propôs se concretizasse, era necessário o cumprimento integral da Lei judaica? O Concílio de Jerusalém (realizado por volta do ano 49) já havia dado uma primeira resposta à questão: para os cristãos, o fundamental é a pessoa de Jesus e o seu Evangelho; não é lícito impor aos cristãos vindos do paganismo o fardo da Lei de Moisés. No entanto, o problema continuou a colocar-se durante algumas décadas mais, nomeadamente a propósito dos tabus alimentares hebraicos, que os cristãos vindos do judaísmo pretendiam impor a toda a Igreja (cf. Rm 14,1-15,6).

    O evangelista Marcos está ciente, na altura em que escreve o seu Evangelho, de que esta questão ainda levanta problemas à convivência entre cristãos vindos do mundo judaico e cristãos vindos do mundo pagão. Neste relato, recorrendo à autoridade de Jesus, Marcos pretende responder a esta problemática.

     

    MENSAGEM

    Os povos antigos, em geral, e os judeus, em particular, sentiam um grande desconforto quando tinham de lidar com certas realidades desconhecidas e misteriosas (quase sempre ligadas à vida e à morte) que não podiam controlar nem dominar. Criaram, então, um conjunto de regras que interditavam o contacto com essas realidades (por exemplo, os cadáveres, o sangue, a lepra, etc.) ou que, pelo menos, regulamentavam a forma de lidar com elas, de forma a torná-las inofensivas. No contexto judaico, quem infringia – mesmo involuntariamente – essas regras, colocava-se a si próprio numa situação de marginalidade e de indignidade que o impedia de se aproximar do mundo divino (o culto, o Templo) e de integrar a comunidade do Povo de Deus. Dizia-se então que a pessoa ficava “impura”. Para readquirir o estado de “pureza” e poder reintegrar a comunidade do Povo santo, o crente necessitava de realizar um rito de “purificação”, cuidadosamente estipulado na Lei.

    Na época de Jesus, as regras da “pureza” (cf. Lv 11,1-15,33) tinham sido absurdamente ampliadas pelos doutores da Lei. Havia uma lista de coisas que tornavam o homem “impuro” e que o afastavam da comunidade do Povo santo de Deus. Daí a obsessão com os rituais de “purificação”, que deviam ser cumpridos a cada passo da vida diária.

    Um desses ritos consistia na lavagem das mãos antes das refeições. Na sua origem está, provavelmente, a universalização do preceito que mandava os sacerdotes lavarem os pés e as mãos, antes de se aproximarem do altar para o exercício do culto (cf. Ex 30,17-21). Na perspetiva dos doutores da Lei, a purificação das mãos antes das refeições não era uma questão de higiene, mas uma questão de “pureza ritual”. Em cada momento o crente corria o risco, mesmo sem o saber, de tropeçar com uma realidade impura e de lhe tocar; para evitar que a “impureza” (que lhe ficara agarrada às mãos) se introduzisse, juntamente com os alimentos, no corpo exigia-se a lavagem das mãos antes das refeições.

    Na Galileia, terra em permanente contacto com o mundo pagão e onde as normas de “pureza” não eram tão rígidas como em Jerusalém, não se dava demasiada importância ao ritual de lavar as mãos antes das refeições para evitar a ingestão da “impureza”. Mas os fariseus vindos de Jerusalém, testemunhando como os discípulos comiam sem realizar o gesto ritual de purificação das mãos, ficaram escandalizados e referiram o caso a Jesus. Provavelmente, a história serviu aos fariseus para sondar Jesus e para averiguar a sua ortodoxia e o seu respeito pela tradição dos antigos.

    Para Jesus, a obsessão dos fariseus com os ritos externos de purificação é sintoma de uma grave deficiência quanto à forma de ver e de viver a religião. Respondendo a esses fariseus “vindos de Jerusalém” que o interpelaram, Jesus vai dizer exatamente isso. Partindo da Escritura (vers. 6-8), Jesus acusa-os de uma praxis que preserva a letra da Lei, mas que não tem em conta o espírito dessa mesma Lei (vers. 9-13). Eles limitam-se a repetir sem critério práticas externas e formalistas, mas não se preocupam com o acolhimento da vontade de Deus (“este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” – vers. 6) nem com o bem das pessoas. A religião que praticam é uma religião vazia e estéril (“é vão o culto que Me prestam” – vers. 7), que não vem de Deus mas foi inventada pelos homens (“as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos” – vers. 7). Segundo Jesus, quem se instala numa vivência religiosa desse tipo é “hipócrita” (vers. 6): interessa-lhe mais o “parecer” do que o “ser”, a materialidade do que a essência das coisas, a salvaguarda dos próprios interesses do que o cumprimento da vontade de Deus… Na realidade, os fariseus cumprem as regras, mas não amam; vestem com fingimento a máscara da religião, mas não se preocupam minimamente com a vontade de Deus. A religião deles é uma mentira, uma hipocrisia, ainda que se revista de ares muito santos e muito piedosos.

    Depois, Jesus dirige-Se à multidão e formula o princípio decisivo da autêntica moralidade: “não há nada fora do homem que ao entrar nele o possa tornar impuro; o que sai do homem é que o torna impuro” (vers. 15). Este princípio geral, à primeira vista enigmático e passível de várias interpretações, será explicado mais à frente à comunidade dos discípulos: “do interior do homem é que saem os maus pensamentos: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez. Todos estes vícios saem lá de dentro e tornam o homem impuro” (vers. 22-23). O dito de Jesus refere-se, naturalmente, a dois “circuitos” diversos: o do estômago (onde entram os alimentos que se ingerem) e o do coração (de onde saem os pensamentos, os sentimentos e as ações). Os alimentos que entram no estômago não são fonte de “impureza”; os pensamentos e as ações más que saem do coração do homem é que são fonte de “impureza”: afastam o homem de Deus e podem colocá-lo à margem da comunidade do Povo santo de Deus.

    Na antropologia judaica, o “coração” é o “interior do homem” em sentido amplo; é aí que está a sede dos sentimentos, dos desejos, dos pensamentos, dos projetos e das decisões do homem. É nesse “centro vital” de onde tudo parte que é preciso atuar. A verdadeira religião não passa, portanto, pelo cumprimento de regras externas, ou pela repetição de rituais vazios; mas passa por uma autêntica conversão do coração, por uma mudança autêntica que leve o homem a redirecionar a sua vida para Deus, a buscar apaixonadamente a vontade de Deus, a assumir os valores do Reino de Deus e a concretizá-los na vida do dia a dia. Os rituais externos, por si, não transformam o coração do homem. Podem até distrair o crente do essencial, dando-lhe uma falsa segurança e uma falsa sensação de estar em regra com Deus. A verdadeira preocupação do crente deve ser moldar o seu coração, a fim de que os seus sentimentos, os seus desejos, os seus pensamentos, os seus projetos, as suas decisões se concretizem, a cada instante, na escuta atenta dos desafios de Deus e no amor aos irmãos.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Muitas pessoas estão mais à vontade com definições claras, objetivas e seguras; mas não se sentem tão à vontade no campo nem sempre bem balizado da consciência e do coração. Têm medo do imprevisto, do que é novo e diferente, daquilo que não é claramente “branco” ou “preto”. Por isso, sentem necessidade de leis que lhes digam, sem margem para dúvidas, o que devem fazer e o como devem viver. Preferem que seja outra pessoa – talvez até o padre – a pensar por elas, a decidir por elas, a dizerem-lhe o que está certo e o que está errado. Escondem-se atrás de leis e sentem-se de consciência tranquila porque descarregaram a sua responsabilidade nas leis. As leis são a sua salvaguarda, as leis definem o seu caminho, as leis são uma proteção segura para lidar com aquilo que as ultrapassa. Vivem a religião das leis. Se transgredirem as leis, confessam-se e voltam a estar de consciência tranquila. O problema é que esta forma de viver a religião não liberta, não traz alegria, não enche o coração de paz. Também não ajuda a abraçar a religião de Jesus, a religião do amor. As leis, na sua rigidez de pedra, deixam pouco espaço para o amor, a misericórdia, a compaixão. Era esse o problema de Jesus com a religião das leis e com os fariseus, os arautos dessa experiência religiosa. E nós? A nossa vivência religiosa está presa a leis que balizam tudo aquilo que fazemos e dizemos, ou é a religião do amor, da tolerância, da misericórdia, do Evangelho, da abertura de coração aos desafios sempre novos de Deus?
    • “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim”, diz Jesus, citando o profeta Isaías. Esse é o risco de uma vivência religiosa que assenta na simples repetição de orações decoradas, na mera reprodução mecânica de respostas não assumidas interiormente, em hábitos e gestos rotineiros, em tradições fixas e imutáveis, num aparato externo que não envolve o coração e uma clara opção por Deus e pelas suas propostas. A nossa forma de viver e de celebrar a fé tem alguma coisa a ver com isto?
    • “A doutrina que ensinam são preceitos humanos”, diz Jesus. É inevitável: com o passar do tempo, as religiões vão acumulando normas, costumes, devoções, hábitos, tradições, rituais, fórmulas teológicas, que nasceram num determinado contexto cultural, social e religioso e que se transformaram em património inalienável. Todas essas coisas podem ser úteis e fazer bem; mas também podem fazer mal, se nos distraem e afastam da Palavra de Deus e do seguimento radical de Jesus. Os “preceitos humanos” nunca devem ter a primazia. Seria um erro grave se a comunidade de Jesus ficasse prisioneira das tradições humanas do passado e não buscasse, antes de tudo, a fidelidade a Jesus e ao Evangelho; seria uma falha grave se nos esforçássemos por manter intactas as tradições do passado, sem nos preocuparmos em dar testemunho vivo do Reino de Deus com a linguagem que os homens e mulheres do nosso tempo entendem; seria um grave equívoco se dessemos a mesma importância a certas leis da Igreja (sobre a liturgia, o jejum, o celibato dos padres, a organização paroquial, por exemplo) e às palavras de Jesus. Na nossa vivência da fé, a que é que damos o primeiro lugar: a tradições e a doutrinas humanas, ou à Palavra eterna e sempre nova de Deus?
    • “É vão o culto que me prestam”, diz Jesus. Ao dizer isto, Jesus poderia perfeitamente estar a falar de certas celebrações litúrgicas cheias de pompa e circunstância que todos os domingos se desenrolam nas nossas igrejas, mas que não correspondem, para aqueles que nelas participam, a uma opção clara por Deus e pela Vida de Deus: há celebrações do matrimónio que são meros acontecimentos de caráter social; há celebrações de batismo que não passam de atos impostos pela tradição familiar ou pela cultura ambiente; há celebrações da primeira caminhão que são vistos como simples “rituais de passagem” na história de vida de uma criança. Todas as nossas belas, solenes e elevadas celebrações litúrgicas são um encontro sincero com Deus? Quando vamos celebrar a fé preparamos o coração para o encontro com Deus?
    • “É do interior dos homens que saem os maus pensamentos: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez”, diz Jesus. É verdade. Podemos criar todo o tipo de mecanismos legais que combatam a injustiça, a corrupção, a violência, as desigualdades sociais, a indiferença diante da miséria, a deterioração moral da sociedade… Mas nada disso modificará substancialmente o estado do nosso mundo se não atuarmos ao nível dos corações. A conversão é sempre um processo pessoal, que implica uma renovação do coração, um redirecionar o coração para Deus e para as propostas de Deus. Estamos disponíveis para uma conversão, para uma mudança do coração que nos leve a viver segundo Deus?
    • A “religião das leis” pode ter efeitos perversos na nossa forma de vermos Deus e de situarmos a nossa relação com Deus… Quando absolutizamos as leis, elas podem tornar-se para nós um fim e não um caminho. Vivemos de acordo com as leis, procuramos cumpri-las integralmente, ficamos satisfeitos e descansados, sentimo-nos em regra com Deus e com a nossa consciência… Na sequência, corremos o risco de nos tornarmos orgulhosos e autossuficientes, pois sentimos que somos nós que, com o nosso esforço para estar em regra, conquistamos a nossa salvação. Deixamos de precisar de Deus, ou só precisamos d’Ele para apreciar o nosso esforço e para nos dar aquilo que julgamos ser uma “justa recompensa”. O culto que prestamos a Deus pode tornar-se, nesse caso, um processo interesseiro de compra e venda de favores e não uma manifestação do nosso amor a Deus. Tenho consciência de que o mero cumprimento das leis não torna Deus meu devedor? Sei que a salvação é um dom de Deus e não o resultado de uma conquista que eu fiz ao cumprir as leis?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 22.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 22.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.

    Só Deus pode ver o coração, enquanto os homens, esses, veem as aparências. É, pois, com toda a confiança filial que podemos deixar Deus olhar-nos. Mas isso é exigente para nós, porque todas as nossas palavras e todos os nossos gestos devem estar em harmonia com o que o nosso coração quer exprimir. As nossas palavras e orações devem ser a expressão do nosso amor filial e fraternal. A lei de Deus está inscrita no nosso coração, conhecemos a sua vontade, sabemos muito bem o que Lhe agrada: cabe a nós pormo-nos de acordo sobre os nossos comportamentos e sobre esta vontade de Deus. Aliás, falta-nos pedir-Lhe: “Que a tua vontade seja feita!” Então, talvez Deus dir-nos-á: “Honras-Me com os lábios, fazes a minha vontade, mas o teu coração está longe de Mim”.

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.

    Os escribas e fariseus tinham enchido a Lei de Moisés com tantas interpretações que se acabou por sacralizá-la e torná-la intocável, sob o nome de “tradições dos antigos”. A lei tinha-se tornado, em todos os detalhes da vida quotidiana, um fardo insuportável denunciado pelo próprio Jesus. Assim, era contrário à tradição dos antigos comer sem ter lavado as mãos. Regra de higiene elementar, sem dúvida, mas que se tinha intitulado de “purificação”. Não se submeter a essa regra era tornar-se impuro aos olhos de Deus! O que faziam precisamente alguns discípulos de Jesus. Jesus aproveita para dar uma lição de moral… A palavra de Jesus tem todo o seu valor e vigor. Quantas interpretações dadas em Igreja, ao longo dos séculos, que acabámos por identificar com a Palavra de Deus! Multiplicaram-se leis, obrigações e proibições, dizendo: “É a tradição!” Nem pensar em mudar uma vírgula das regras litúrgicas ou morais! É, sem dúvida, uma atitude tranquilizadora, mas esconde muitas vezes medos e inseguranças. É a mesma reação que a dos escribas e dos fariseus! Ora, não é protegendo a nossa fé com uma carapaça de leis que a tornamos mais sólida, mas por uma escuta sem cessar nova daquilo que “o Espírito diz às Igrejas”. Mas é verdade que o Espírito Santo sempre teve tendência para mexer com os homens e provocá-los, para fazê-los avançar para o grande largo! O Espírito de Jesus quer construir-nos como seres vivos, com uma coluna vertebral interior e não com uma carapaça exterior, para que possamos manter-nos de pé, como ressuscitados!

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    Ter um objetivo… Não fiquemos pelas boas intenções… Não tenhamos demasiadas ambições… Cristo não nos pede grandes façanhas, Ele prefere a sinceridade do coração e a vontade de servir o nosso próximo. Vale mais ter um objetivo razoável (visitar determinada pessoa que está só, ajudar outra nas suas preocupações materiais) e tudo fazer para o atingir.

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

  • 23º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    23º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]


    8 de Setembro, 2024

    ANO B
    23.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 23.º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia do 23.º Domingo do Tempo Comum fala-nos de um Deus eternamente comprometido com a vida e a felicidade dos seus filhos. Ele está presente em cada pedaço do caminho que a humanidade vai percorrendo, orientando os seus filhos e filhas, apontando-lhes a direção que leva à Vida plena, à felicidade sem ocaso.

    Na primeira leitura, um profeta do tempo do Exílio na Babilónia garante aos exilados, desanimados, desiludidos e sem esperança, que Deus vai salvá-los e reconduzi-los à terra que tinham deixado para trás. Nas imagens dos cegos cujos olhos veem novamente a luz, dos surdos que voltam a ouvir, dos coxos que saltarão como veados e dos mudos a cantar com alegria, o profeta representa essa Vida nova, excessiva, abundante, transformadora, que Deus vai oferecer ao seu Povo.

    No Evangelho Jesus, cumprindo a promessa de Deus, abre os ouvidos e solta a língua de um surdo-mudo. Ele diz-nos, com esse gesto, que Deus não Se conforma quando vê o homem fechar-se no egoísmo e na autossuficiência, que só trazem sofrimento e infelicidade. Jesus propõe aos “surdos-mudos” que encontra, que abram o coração ao amor, partilha, à comunhão: esse é o caminho para o Homem novo, para o homem que vai em direção à Vida autêntica.

    A segunda leitura dirige-se àqueles que acolheram a proposta de Jesus e se comprometeram a segui-l’O no caminho do amor. Convida-os a não desvalorizar ou discriminar qualquer irmão e a acolher com especial bondade os pequenos, os pobres e os frágeis.

     

    LEITURA I – Isaías 35,4-7a

    Dizei aos corações perturbados:
    «Tende coragem, não temais.
    Aí está o vosso Deus;
    vem para fazer justiça e dar a recompensa;
    Ele próprio vem salvar-nos».
    Então se abrirão os olhos dos cegos
    e se desimpedirão os ouvidos dos surdos.
    Então o coxo saltará como um veado
    e a língua do mudo cantará de alegria.
    As águas brotarão no deserto
    e as torrentes na aridez da planície;
    a terra seca transformar-se-á em lago
    e a terra árida em nascentes de água.

     

    CONTEXTO

    Os capítulos 34-35 do Livro de Isaías constituem aquilo a que os biblistas chamam o “pequeno apocalipse de Isaías” (para distinguir do “grande apocalipse de Isaías”, que aparece nos capítulos 24-27). Descrevem o castigo definitivo das nações inimigas de Israel, particularmente de Edom, o povo nascido de Esaú, irmão de Jacob (capítulo 34), e a vitória definitiva do Povo de Deus sobre os inimigos (capítulo 35).

    Estes dois capítulos, pelos motivos e pela temática, parecem poder ser relacionados com os capítulos 40-55 do Livro de Isaías (cujo autor é o profeta designado por Deutero-Isaías, que atuou na Babilónia entre os exilados, na fase final do Exílio). Porque razão estes dois capítulos se apresentam separados do seu “ambiente natural” (Is 40-55)? Provavelmente, foram atraídos pelas peças escatológicas soltas de Is 28-33 (especialmente pelo capítulo 33).

    O autor destes dois capítulos escreve na fase final do exílio do Povo de Deus na Babilónia (por volta do ano 550 a.C.). A sua intenção é consolar os exilados, desanimados, frustrados e mergulhados no desespero, porque a libertação tarda e parece que Deus os abandonou (uma temática que será desenvolvida e aprofundada nos capítulos 40-55 do Livro de Isaías).

    Depois de apresentar o julgamento de Deus sobre as nações (cf. Is 34,1-4) e o castigo de Edom (cf. Is 34,5-15), o autor descreve, por contraste, a alegria do Povo de Deus porque chegou a hora da libertação. A própria terra (o Líbano glorioso, o belo monte Carmelo e a policromada planície do Saron) alegrar-se-á, vestir-se-á das suas melhores cores, encher-se-á de flores para celebrar a iniciativa salvadora de Deus e para acolher os exilados que regressam triunfalmente (cf. 35,1-2).

     

    MENSAGEM

    Depois de quase quarenta anos de cativeiro, o Povo de Deus, exilado na Babilónia, está paralisado e desencantado. Mostra-se abatido e incapaz de sair, por si só, da sua triste situação. Acha que Deus o abandonou e esqueceu. Não tem perspetivas de futuro e não vê razões para ter esperança.

    Mas o profeta, em nome de Deus, dirige-se aos exilados e anuncia-lhes a iminência da libertação. Esse anúncio provoca uma explosão de alegria: a natureza e as pessoas exultam jubilosas porque o Senhor Se apresta para salvar Judá do cativeiro e para abrir uma estrada no deserto, a fim de que o seu Povo possa retornar em triunfo a Jerusalém.

    Apesar das aparências, Deus não esqueceu o seu Povo. Judá deve recobrar ânimo e preparar-se para acolher o Senhor. O próprio Javé irá realizar a libertação; Ele fará justiça e recompensará o seu Povo por todos os sofrimentos suportados no tempo do cativeiro (vers. 4).

    O resultado da iniciativa salvadora e libertadora de Deus traduzir-se-á no despertar do Povo, paralisado e desanimado, para uma vida nova. O encontro com o Deus libertador e salvador transformará o Povo, dar-lhe-á de novo a liberdade, a alegria, a coragem para enfrentar o caminho, a Vida em abundância. Nas imagens dos cegos que voltam a contemplar a luz, dos surdos que voltam a ouvir, dos coxos que saltarão como veados e podem acompanhar o ritmo da caminhada, dos mudos a cantar com alegria (vers. 5-6), o profeta representa essa Vida nova, excessiva, abundante, transformadora, renovadora, que Deus vai oferecer a Judá.

    Por outro lado, o dom de Deus manifestar-se-á na própria natureza. O deserto desolado e estéril, que os exilados terão de atravessar na caminhada de regresso à sua terra, transformar-se-á numa terra fértil, com água em abundância e onde o Povo não terá dificuldade em saciar a sua fome e a sua sede. A abundância de água no deserto, de que o profeta fala, é um motivo tradicionalmente usado para mostrar a vontade de Deus em cumular o seu Povo de Vida plena e abundante.

    A marcha do Povo da terra da escravidão para a terra da liberdade será um novo êxodo, onde se repetirão as maravilhas operadas pelo Deus libertador aquando do primeiro êxodo; no entanto, este segundo êxodo será ainda mais grandioso, quanto à manifestação e à ação de Deus. Será uma peregrinação festiva, uma procissão solene, feita na alegria e na festa.

    Qual o papel e o lugar do Povo em tudo isto? Judá deve recobrar ânimo e acolher, com fé, com coragem, com confiança, os dons de Deus.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Para uns, o nosso tempo é um tempo fascinante, cheio de realizações, de descobertas, de conquistas, que abrem aos seres humanos possibilidades infinitas. Para outros, no entanto, o nosso tempo é um tempo assustador, marcado pelo sobreaquecimento do planeta, pela subida do nível do mar, pela destruição da camada do ozono, pela eliminação das florestas, pela poluição dos rios e mares, pelo espectro da fome e da miséria de biliões de seres humanos, pelas guerras cada vez mais violentas e destruidoras, pelo risco de holocausto nuclear… Para todos, é um tempo de desafios, de interpelações, de procura, de risco… Como é que nós nos relacionamos com este mundo? Vemo-lo com os olhos da esperança, ou com os óculos escuros do pessimismo?
    • Os crentes, seja qual for a avaliação que façam do mundo e das suas cores, não podem esquecer que “Deus está aí”: Ele preside à história humana, Ele conhece e acompanha a caminhada dos homens, Ele abraça a humanidade inteira com o seu carinho e a sua ternura de pai e de mãe. É Ele que faz com que o deserto se revista de vida nova e que na planície árida do desespero brote a flor da esperança; é Ele que ilumina o caminho para que não andemos aos tropeções, na escuridão; é Ele que desperta os surdos do seu isolamento e da sua autossuficiência e os convida a escutar os gritos de sofrimento dos pobres; é Ele que devolve aos coxos, presos por cadeias de opressão, de injustiça e de pecado, a possibilidade de serem livres. É com a certeza da presença salvadora e amorosa de Deus e com a convicção de que Ele não nos deixará abandonados nas mãos das forças da morte que somos convidados a caminhar pela vida e a enfrentar a história. Confiamos em Deus, na sua providência, na sua solicitude, no seu amor?
    • O profeta é o homem que rema contra a maré… Quando todos cruzam os braços e se afundam no desespero, o profeta é capaz de olhar para o futuro com os olhos de Deus e ver, para lá do horizonte do sol poente, um amanhã novo. Ele vai então gritar aos quatro ventos a esperança, fazer com que o desespero se transforme em alegria e que o imobilismo se transforme em luta empenhada por um mundo melhor. E nós, chamados a ser no mundo sinais vivos de Deus, somos profetas da desgraça, ou arautos e testemunhas da esperança?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 145 (146)

    Refrão 1: Ó minha alma, louva o Senhor.

    Refrão 2: Aleluia.

    O Senhor faz justiça aos oprimidos,
    dá pão aos que têm fome
    e a liberdade aos cativos.

    O Senhor ilumina os olhos dos cegos,
    o Senhor levanta os abatidos,
    o Senhor ama os justos.

    O Senhor protege os peregrinos,
    ampara o órfão e a viúva
    e entrava o caminho aos pecadores.

    O Senhor reina eternamente;
    o teu Deus, ó Sião,
    é rei por todas as gerações.

     

    LEITURA II – Tiago 2,1-5

    Meus irmãos:
    A fé em Nosso Senhor Jesus Cristo
    não deve admitir aceção de pessoas.
    Pode acontecer que na vossa assembleia
    entre um homem bem vestido e com anéis de ouro
    e entre também um pobre e mal vestido;
    talvez olheis para o homem bem vestido e lhe digais:
    «Tu, senta-te aqui em bom lugar»,
    e ao pobre: «Tu, fica aí de pé»,
    ou então: «Senta-te aí, abaixo do estrado dos meus pés».
    Não estareis a estabelecer distinções entre vós
    e a tornar-vos juízes com maus critérios?
    Escutai, meus caríssimos irmãos:
    Não escolheu Deus os pobres deste mundo
    para serem ricos na fé
    e herdeiros do reino que Ele prometeu àqueles que O amam?

     

    CONTEXTO

    O autor da “Carta de Tiago” apresenta-se a si próprio como “servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (Tg 1,1). A tradição identifica-o com o Tiago “irmão do Senhor”, figura de referência na comunidade cristã de Jerusalém (cf. At 12,17; 15,13-21; 21,18-25), que foi martirizado no ano 62. No entanto, é pouco provável que esse Tiago tenha sido o autor deste escrito. Também não parece provável que a carta tenha sido escrita por Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João (cf. Mc 1,19; 3,17), ou pelo outro Tiago, o “filho de Alfeu” (cf. Mc 3,18), que fazia parte do grupo dos Doze apóstolos.

    A carta é endereçada “às doze tribos da Dispersão” (Tg 1,1). Isso pode querer dizer que o documento se destinava a cristãos de origem judaica que viviam fora da Palestina; no entanto, as “doze tribos da Dispersão” também podem, em sentido figurado, ser as comunidades cristãs dispersas pelo mundo greco-romano.

    Seja como for, o autor desta carta é um escritor exímio, que se exprime muito bem na língua grega, apesar de usar diversos semitismos. Tem um vocabulário rico e utiliza recursos estilísticos de belo efeito.

    A Carta de Tiago não é um tratado de teologia. É, digamos assim, um conjunto de reflexões de um mestre cristão empenhado em propor, a partir da mensagem de Jesus, um caminho de vida cristã autêntica. Os discípulos de Jesus, destinatários da carta, são exortados a acolher a sabedoria que vem do alto e a deixar que ela os guie pelo caminho da fé e da vida.

    O texto que a liturgia deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum nos propõe como segunda leitura pertence à segunda parte da carta (cf. Tg 2,1-26), que reflete sobre a fé. De uma forma muito prática, este “sábio” cristão ensina que a fé se concretiza no amor ao próximo, sem qualquer tipo de discriminação ou de aceção de pessoas (cf. Tg 2,1-13); e que a fé se expressa, não através de ritos formais ou de palavras ocas, mas de ações concretas em favor do homem (cf. Tg 2,14-26). De acordo com o autor da Carta de Tiago, a fé dos crentes deve ser uma fé operativa, que se traduz num compromisso social e comunitário.

     

    MENSAGEM

    Jesus não fez qualquer aceção de pessoas, mas a todos acolheu e a todos amou igualmente, mesmo os pobres, os “últimos”, os marginalizados, os pecadores, os doentes, aqueles que ninguém queria e que a própria religião condenava e ostracizava. O mundo novo que Jesus propôs (o “Reino de Deus”) é um mundo onde todos têm lugar, sem exceção, e onde todos são filhos amados de Deus. Quem aderiu a Jesus Cristo e procura, com coerência, segui-l’O, tem de assumir os seus valores, os valores do Reino; por isso, não pode, no trato com as pessoas, deixar-se levar pelo favoritismo e a parcialidade, ou assumir qualquer tratamento discriminatório (vers. 1).

    Depois da afirmação de caráter geral, o autor da Carta de Tiago apresenta exemplos concretos: a comunidade cristã não pode acolher e tratar de forma diferente o rico e o pobre, aquele que se apresenta bem vestido e aquele que se apresenta mal vestido, aquele que é conhecido e famoso e aquele que é humilde e passa despercebido (vers. 2-3). Na comunidade cristã, todos são iguais e dignos de consideração e de respeito, ainda que desempenhem funções diferentes e serviços diversos. Para os seguidores de Jesus, a aceção de pessoas por razões ligadas à riqueza, ao poder, à fama, à posição social, é um esquema perverso, absolutamente incompatível com a fé em Cristo (vers. 4).

    O texto que a liturgia deste domingo nos propõe termina (embora a reflexão do autor da Carta de Tiago se prolongue ainda por mais alguns versículos) com uma pergunta que corta pela raiz qualquer razão para tratar com menos consideração os mais pequenos e frágeis: “não escolheu Deus os pobres deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do reino que Ele prometeu àqueles que O amam?” (vers. 5). No universo bíblico, os “pobres deste mundo” são, mais do que uma categoria sociológica, uma categoria religiosa. A expressão designa os humildes, os débeis, os pacíficos, aqueles que se apresentam diante de Deus numa atitude de simplicidade, despidos de qualquer atitude de orgulho, de autossuficiência, de preconceitos; são aqueles que, com humildade e disponibilidade, aceitam os dons de Deus e acolhem as suas propostas com alegria e gratidão. Perpassa por diversos textos bíblicos a sugestão de que esses “pobres” têm um lugar especial no coração de Deus. Em primeiro lugar, porque são os que mais necessitam de ser acolhidos, cuidados e salvos; em segundo lugar, porque são os mais disponíveis para acolher o dom do Reino. Não é que o Reino de Deus seja uma opção de classe e que os ricos e poderosos não possam, à partida, ter acesso ao Reino; mas os ricos, os poderosos, os instalados, com o coração cheio de orgulho e de autossuficiência, muitas vezes não estão disponíveis para acolher a novidade revolucionária e libertadora do Reino de Deus… São os “pobres”, na sua simplicidade, humildade e despojamento, na sua ânsia de libertação, que estão preparados para acolher o dom de Deus que se torna presente em Jesus e nos seu projeto.

     

    INTERPELAÇÕES

    • O autor da Carta de Tiago tem razão: a nossa fé em Cristo Jesus é incompatível com qualquer atitude que sugira a aceção de pessoas. Sabemos como Jesus viveu: Ele sentou-se à mesa com os desclassificados, acolheu os doentes, estendeu a mão aos leprosos, chamou um publicano para fazer parte do seu grupo de discípulos, disse que os pobres eram os filhos queridos de Deus, amou aqueles que a sociedade religiosa do tempo considerava amaldiçoados e condenados… Ora, a comunidade cristã é hoje, no meio do mundo, o rosto vivo de Cristo; por isso, deve ser a “casa de família” onde todos os filhos de Deus, sem exceção, se sentem acolhidos, queridos e amados. Isto é, naturalmente, uma evidência que ninguém contesta… Mas, na prática, todos são acolhidos na nossa comunidade cristã com respeito e amor? Na nossa comunidade cristã tratamos com a mesma delicadeza e com o mesmo respeito quem é rico e quem é pobre, quem tem uma posição social relevante e quem a não tem, quem tem um título universitário e quem é analfabeto, quem se dá bem com o padre e quem tem uma atitude crítica diante de certas opções dos responsáveis da comunidade?
    • Na nossa vida do dia a dia deparamo-nos, a cada passo – no nosso círculo de relações, no nosso universo profissional, no nosso prédio, talvez até na nossa família – com pessoas que têm ideias diferentes, das nossas, que têm comportamentos que reprovamos, que talvez levam vidas pouco recomendáveis, que vivem “fora da caixa” e não são social ou politicamente corretas… Como lidamos com as pessoas “diferentes”, com aqueles que a sociedade marcou, julgou e condenou? Somos, para todos e em todos os momentos, testemunhas daquele Jesus que nunca fez aceção de pessoas e que acolheu até aqueles que a sociedade julgava e condenava?
    • Deus tem uma relação privilegiada com os pobres. Isto não quer dizer, contudo, que Deus tenha uma opção de classe e que privilegie uns em detrimento de outros… Na verdade, Deus oferece o seu amor, a sua graça e a sua vida a todos; contudo, uns acolhem os seus dons e outros não… Os “pobres” são aqueles que, na sua simplicidade e humildade estão disponíveis para acolher os dons de Deus. Estamos conscientes de que temos de despir-nos do orgulho, da autossuficiência, dos preconceitos, das ostentações, das vaidades, para que nos nossos corações haja espaço para os desafios e as propostas de Deus?

     

    ALELUIA – cf. Mateus 4,23

    Aleluia. Aleluia.

    Jesus pregava o Evangelho do reino
    e curava todas as enfermidades entre o povo.

     

    EVANGELHO – Marcos 7,31-37

    Naquele tempo,
    Jesus deixou de novo a região de Tiro
    e, passando por Sidónia, veio para o mar da Galileia,
    atravessando o território da Decápole.
    Trouxeram-Lhe então um surdo que mal podia falar
    e suplicaram-Lhe que impusesse as mãos sobre ele.
    Jesus, afastando-Se com ele da multidão,
    meteu-lhe os dedos nos ouvidos
    e com saliva tocou-lhe a língua.
    Depois, erguendo os olhos ao Céu,
    suspirou e disse-lhe:
    «Effathá», que quer dizer «Abre-te».
    Imediatamente se abriram os ouvidos do homem,
    soltou-se-lhe a prisão da língua
    e começou a falar corretamente.
    Jesus recomendou que não contassem nada a ninguém.
    Mas, quanto mais lho recomendava,
    tanto mais intensamente eles o apregoavam.
    Cheios de assombro, diziam:
    «Tudo o que faz é admirável:
    faz que os surdos oiçam e que os mudos falem».

     

    CONTEXTO

    Na fase final da “etapa da Galileia”, multiplicam-se as reações negativas contra Jesus e contra o seu projeto, apesar do rasto de esperança que Ele vai deixando pelas aldeias e cidades por onde passa. As últimas discussões com os fariseus e com doutores da Lei a propósito de questões legais e da “tradição dos antigos” (cf. Mc 7,1-23) são uma espécie de gota de água que faz Jesus abandonar o território judeu e a passar, por algum tempo, ao território pagão.

    Marcos refere, neste contexto, uma viagem de Jesus pela Fenícia, que o leva até Tiro e Sídon, cidades da faixa costeira oriental do mar Mediterrâneo, no Líbano atual (cf. Mc 7,24). Aí teria curado a filha de uma mulher pagã, siro-fenícia de origem (cf. Mc 7,25-30). No regresso dessa incursão pela Fenícia, Jesus não teria vindo diretamente na direção do Mar da Galileia, mas teria dado uma longa volta pelo território pagão da Decápole (cf. Mc 7,31). O nome Decápole servia para designar uma liga de dez cidades (Damasco, Filadélfia, Rafana, Bet-Shean, Gadara, Hipos, Diom, Pela, Gerasa e Canata), que se formou depois da conquista da Palestina pelos romanos (ano 63 a.C.). Essas cidades situavam-se a oriente do Mar da Galileia e estavam sob a administração do legado romano da Síria. Eram centros de cultura grega, e cada uma delas tinha um certo grau de autonomia. Os judeus, por sua vez, viam a Decápole como um território pagão, completamente à margem dos caminhos da salvação.

    É nesse ambiente geográfico e humano que Marcos situa a cura, por Jesus, de um homem surdo-mudo. Provavelmente o catequista Marcos está a sugerir, com este enquadramento, que o anúncio do Evangelho aos pagãos – que alguns anos mais tarde, após o Concílio de Jerusalém, vem a ser uma aposta firme da comunidade cristã – foi algo que estava já nos planos e na prática de Jesus.

     

    MENSAGEM

    Algures no território pagão da Decápole, trouxeram a Jesus “um surdo que mal podia falar e suplicaram-Lhe que impusesse as mãos sobre ele” (vers. 32). Na base do relato de Marcos estará, certamente, o encontro de Jesus com esse homem e os gestos (alguns bem estranhos) que Jesus fez para o curar; mas Marcos, ao descrever-nos esse encontro, vai um pouco mais além e propõe-nos uma catequese sobre a missão que Jesus recebeu do Pai. O que nos interessa, além do facto em si, é perceber como é que Marcos entendeu a ação curadora de Jesus em favor daquele homem e os diversos gestos que a acompanharam.

    No centro da cena está o homem surdo-mudo. Se a linguagem é um meio privilegiado de comunicar, de estabelecer relação, o surdo-mudo é um homem que tem dificuldade em estabelecer laços, em dialogar com as outras pessoas, em viver em comunhão, em abrir-se à relação. Por outro lado, num universo religioso que considera as enfermidades físicas como consequência do pecado, o surdo-mudo é, de forma notória, um “impuro”, um pecador e um maldito: um problema físico que impedisse o homem de escutar a Lei era considerado um especial castigo de Deus. Finalmente, o surdo-mudo vive no território pagão da Decápole: é, portanto, um desses pagãos que, segundo a teologia oficial judaica, não podem contar com a salvação de Deus.

    Na reflexão que Marcos entendeu propor-nos, este surdo-mudo representa todos aqueles que vivem fechados no seu mundo, na sua pobre autossuficiência, de ouvidos fechados às propostas de Deus e de coração fechado à relação com os outros homens. Representa também aqueles que a teologia oficial considerava pecadores e malditos, incapazes de estabelecer uma relação verdadeira com Deus, de escutar a Palavra de Deus e de viver de forma coerente com os desafios de Deus. Representa ainda esses “pagãos” que os judeus desprezavam e que consideravam completamente alheados dos caminhos da salvação.

    Aquele surdo-mudo vem ao encontro de Jesus trazido por pessoas não identificadas. Aparentemente, a iniciativa de se encontrar com Jesus não é dele (“trouxeram-Lhe um surdo que mal podia falar” – vers. 32). O surdo-mudo, fechado em si próprio, acomodado a essa vida sem relação, instalado na sua autossuficiência, não sente necessidade de abrir o coração à comunhão com Deus e com os irmãos. É preciso que alguém o traga, que o apresente a Jesus, que o empurre para essa Vida nova de amor e de comunhão que ele não conhece e que não procura. Marcos estará aqui a tentar dizer-nos, com toda a certeza, que esse é o papel da comunidade cristã: os que já descobriram Jesus, que O escutaram, que se deixaram transformar pela sua Palavra, que aceitaram segui-l’O, devem dar testemunho dessa experiência e desafiar outros irmãos para o encontro libertador com Jesus.

    Frente a frente com o homem, Jesus dispõe-se a libertá-lo da sua triste situação. O primeiro gesto de Jesus é tomar o homem à parte, afastando-o da multidão. Depois, mete-lhe os dedos nos ouvidos e faz saliva com a qual lhe toca a língua (vers. 33). Trata-se, segundo alguns comentadores, de gestos que os curandeiros da época costumavam fazer em circunstâncias semelhantes para inspirar ao doente a certeza do seu poder curador. No entanto, é provável que Marcos relacione estes gestos com os relatos de criação do livro do Génesis: o afastamento da multidão poderia estar a sugerir (como em Gn 2,21) que o prodigioso “criar” de Deus é um processo exclusivamente divino, que não tolera espetadores; o tocar os ouvidos do surdo lembra a modelação do homem, por Deus, a partir do barro da terra (cf. Gn 2,7); o pôr saliva na língua do mudo lembra o sopro de vida de Deus (cf. Gn 2,7), que transformou o barro inerte do primeiro homem num ser dotado de vida divina. Sendo assim, Marcos convida-nos a ler o episódio em chave de criação: a missão que Jesus recebeu do Pai é fazer nascer um Homem novo, dotado da energia vital do próprio Jesus (saliva), aberto à comunhão com Deus e à relação com os outros homens e mulheres.

    Para completar a criação desse Homem novo, diz Marcos, Jesus ergueu “os olhos ao Céu, suspirou e disse: «effathá», que quer dizer «abre-te»” (vers. 34). O gesto de levantar os olhos ao céu deve ser entendido como uma invocação de Deus: Jesus, ao criar um Homem novo, age em nome de Deus e por mandato de Deus; o que Ele acabou de fazer tem o aval do Pai e insere-se no projeto salvador que o Pai tem para os homens. A palavra “effathá” (“abre-te”), dita por Jesus, dirige-se mais ao coração do que aos ouvidos daquele homem. Não é uma palavra mágica, com especiais virtudes curativas; mas é um convite ao homem fechado no seu mundo pessoal a abrir o coração à Vida nova da relação com Deus e com os irmãos; é um convite ao surdo-mudo a sair do seu fechamento, do seu comodismo, do seu egoísmo, da sua instalação, para fazer da sua vida uma história de comunhão com Deus e de partilha com os irmãos. O processo de transformação do homem velho num Homem novo não é um processo em que só Jesus age e onde o homem assume uma atitude de passividade; mas é um processo que exige o compromisso ativo e livre do homem. Jesus faz as propostas, lança desafios, oferece o seu Espírito que transforma e renova o coração do homem; mas o homem tem de acolher a proposta, optar por Jesus e abrir o coração aos desafios de Deus.

    A ação de Jesus e a sua palavra poderosa e convincente fazem com que aquele homem se disponha a sair da prisão em que estava encerrado: “imediatamente se abriram os ouvidos do homem, soltou-se-lhe a prisão da língua e começou a falar corretamente” (vers. 35). O episódio lembra-nos imediatamente o anúncio de Isaías na primeira leitura: “Tende coragem, não temais. Aí está o vosso Deus; vem para fazer justiça e dar a recompensa; Ele próprio vem salvar-nos. Então se abrirão os olhos dos cegos e se desimpedirão os ouvidos dos surdos. Então o coxo saltará como um veado e a língua do mudo cantará de alegria” (Is 35,4-6). Jesus é efetivamente o Deus que veio ao encontro dos homens, a fim de os libertar das cadeias do egoísmo, do comodismo, da autossuficiência, dos preconceitos religiosos que impedem a relação, o diálogo, a comunhão com Deus e com os irmãos. Em Jesus, as promessas de Deus concretizam-se plenamente.

    No final do relato da cura do surdo-mudo, as testemunhas do acontecimento dizem a propósito de Jesus: “tudo o que Ele faz é admirável” (vers. 37). A expressão parece ser um eco de Gn 1,31 (“Deus, vendo a sua obra, considerou-a muito boa”). Mas poderia ser, também, a profissão de fé de uma comunidade agradecida que reconhece e agradece a ação maravilhosa de Jesus, a feliz concretização da sua obra criadora e vivificadora.

     

    INTERPELAÇÕES

    • A “surdez” e a “mudez” que atacam os seres humanos não estavam no plano original de Deus para a humanidade. Deus criou o ser humano para a relação, para o diálogo, para a comunhão (“não é conveniente que o homem esteja só” – disse Deus no início de tudo – cf. Gn 2,18). A “surdez” e a “mudez” que nos paralisam e nos tornam infelizes não vêm de Deus, mas são consequência das escolhas erradas feitas pelo homem. Contudo, Deus nunca se conformou com essa opção que priva os seres humanos de Vida verdadeira. Para nos curar da nossa “surdez” e da nossa “mudez”, enviou-nos o seu Filho, a sua “Palavra eterna”. Cumprindo a missão que o Pai Lhe entregou, Jesus convidou-nos insistentemente a superar o egoísmo, a autossuficiência, o isolamento, e a abrir o coração à comunhão, à partilha, ao amor (“effathá”, “abre-te”). Estamos disponíveis para nos encontrar com Jesus, para acolher o desafio que Ele nos veio propor, para assumir os valores do Reino de Deus, para O seguir até à cruz, até ao dom da vida por amor? Estamos convictos de que escolher viver na “surdez” e na “mudez” é uma opção estúpida, que impede a nossa realização plena, a nossa felicidade?
    • O “surdo-mudo”, incapaz de escutar a Palavra de Deus, pode perfeitamente representar aqueles homens e mulheres que vivem fechados aos projetos e aos desafios de Deus, que não têm espaço nem disponibilidade para Deus e para as suas propostas. Essa é, aliás, uma das “doenças” mais significativas do nosso tempo. O que carateriza o séc. XXI não é o ateísmo; mas é a indiferença em relação a Deus. Muitos dos nossos contemporâneos optam por permanecer surdos a Deus e às suas indicações; o que Deus diz e propõe não lhes interessa. O que é que as propostas de Deus significam para nós? Damos ouvidos aos apelos e desafios de Deus, ou aos valores e propostas que o mundo nos apresenta?
    • O “surdo-mudo” pode também ser figura daqueles que não se preocupam em comunicar, em escutar e acolher os outros, em partilhar a vida, em deixar-se questionar pelas achegas e sugestões dos irmãos… Os “surdos-mudos” são que não precisam dos irmãos para nada, que vivem instalados nas suas certezas e nos seus preconceitos, convencidos de que são donos absolutos da verdade; são aqueles que não têm tempo nem disponibilidade para ouvir os outros com paciência e compaixão, que não conseguem compreender os erros e as falhas dos outros e não sabem perdoar… Uma vida de “surdez” é uma vida vazia, estéril, triste, egoísta, fechada, sem amor. Temos consciência de que nesse caminho nunca encontraremos a nossa realização e a nossa felicidade?
    • O “surdo-mudo” representa ainda aqueles que se fecham no egoísmo e no comodismo e ficam indiferentes aos apelos do mundo… Somos “surdos-mudos” quando escutamos os gritos dos injustiçados e lavamos as nossas mãos; somos “surdos-mudos” quando toleramos estruturas que geram injustiça, miséria, sofrimento e morte; somos “surdos-mudos” quando pactuamos com valores que tornam o homem mais escravo e mais dependente; somos “surdos-mudos” quando encolhemos os ombros, indiferentes, face à guerra, à fome, à injustiça, à doença, ao analfabetismo; somos “surdos-mudos” quando nos demitimos das nossas responsabilidades e deixamos que sejam os outros a comprometer-se e a arriscar; somos “surdos-mudos” quando calamos a nossa revolta por medo, cobardia ou calculismo; somos “surdos-mudos” quando nos resignamos a vegetar no nosso espaço de conforto, sem nos empenharmos na construção de um mundo novo… Uma vida comodamente instalada nesta “surdez-mudez” descomprometida é uma vida que vale a pena ser vivida?
    • O “surdo-mudo” de que o Evangelho deste vigésimo terceiro domingo comum nos fala foi trazido e apresentado a Jesus por outras pessoas. Isto deve fazer-nos pensar na nossa obrigação de fazer a ponte entre os irmãos que vivem prisioneiros da “surdez-mudez” e a proposta libertadora de Jesus. Poderemos ficar de braços cruzados quando algum dos nossos irmãos se instala em esquemas de fechamento, de egoísmo, de autossuficiência, e renuncia assim à possibilidade de construir uma vida com sentido? O que poderemos fazer – respeitando sempre as opções e a liberdade de cada um – para que os “surdos-mudos” que encontramos nos caminhos da vida descubram a alegria do encontro, da comunhão, da partilha, do serviço, do amor?
    • Antes de curar o “surdo-mudo”, Jesus “ergueu os olhos ao céu”. O gesto de Jesus recorda-nos que é preciso manter sempre, no meio da ação, a referência a Deus. Não conseguiremos ser arautos de uma nova humanidade – de uma humanidade liberta do egoísmo e da autossuficiência – se não nos mantivermos conectados com Deus, em diálogo com Deus, atentos aos projetos e desafios de Deus, fortalecidos pelo Espírito de Deus. Deus é a nossa referência, a razão última de tudo aquilo que fazemos? Procuramos encontrar tempo para o escutar, para lhe colocar as nossas dúvidas e questões, para falar com Ele e para entender os seus caminhos e projetos? Quando tentamos fazer alguma coisa em favor de alguém, sentimos que agimos em nome de Deus e não em nome de nós próprios ou dos nossos projetos e interesses?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 23.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 23.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.

    Marcos é um verdadeiro encenador. Ele faz a decoração em pleno território de Decápole, habitado pelos pagãos. Coloca em primeiro plano da cena duas personagens: Jesus e o surdo-mudo, enquanto a multidão fica em segundo plano. O ator principal, Jesus, só pronuncia uma palavra: “Effata!” (Abre-te) e faz três gestos: mete o dedo nos ouvidos do doente, toca-lhe a língua com a sua própria saliva e levanta os olhos para o céu. A segunda personagem deixa-se levar, pois põe-se a falar corretamente. Jesus vira-se para a multidão, pedindo-lhe para não dizer nada do que se tinha passado. A cena termina com um coro unânime: “Tudo o que faz é admirável: faz que os surdos oiçam e que os mudos falem”. E nós, onde nos vamos situar? Nós somos este surdo-mudo doente, recusando por vezes escutar a Palavra de Deus e não ousando anunciá-la. Então, Jesus dirige-Se a nós, faz-nos sinal, pede-nos para nos abrirmos nós mesmos, como tinha pedido ao paralítico para se levantar. Cada Eucaristia é uma passagem de Cristo ressuscitado: deixemo-nos tocar por Ele para nos abrirmos…

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.

    “Effata!” “Abre-te!” Esta palavra tão simples é na realidade muito perigosa. Como diz o dicionário, abrir é fazer com que o que está fechado não o fique mais. Óbvio, mas cheio de consequências! Os Judeus de Jerusalém tinham consciência de serem o Povo eleito por Deus, posto à parte pelos outros povos. Nem pensar misturar-se aos outros povos, aos pagãos, aos estrangeiros! E eis que Jesus faz o contrário. Sai das fronteiras de Israel, vai junto dos pagãos, fazendo mesmo milagres em seu favor. É o mundo ao contrário! Ele não teme mesmo ter contacto físico com este surdo-mudo, impuro aos olhos dos Judeus fiéis. Antes de abrir os ouvidos do infeliz, é Jesus que Se abre aos estrangeiros, tornando-Se um impuro aos olhos dos Judeus. Evidentemente, é muito arriscado, ainda hoje, abrir a sua porta, mas primeiro o seu coração aos estrangeiros. Porque é preciso olhá-los ultrapassando os preconceitos, aceitando outras maneiras de pensar e de viver. Aquele que segue Jesus não pode esquivar-se à interrogação: E eu, onde estou quanto à minha abertura de coração? Jesus quer sempre vir até mim, tocar os meus ouvidos para que eu ouça melhor o grito dos meus irmãos em angústia, tocar os meus olhos para que procure encontrar o olhar de Deus sobre os outros. A um visitante que lhe perguntava para que servia um concílio, João XXIII respondeu: ” o concílio é a janela aberta. Ou ainda, é tirar a poeira e varrer a casa, e pôr flores e abrir a porta dizendo a todos: Vinde e vede, aqui é a casa do bom Deus!” Na manhã de Páscoa, já houve uma abertura, quando a pedra que fechava o túmulo de Jesus foi retirada. E antes ainda, tinha havido já uma abertura, quando o soldado romano tinha aberto o lado de Jesus com um golpe de lança. Estas duas aberturas nunca foram fechadas. Participando em cada Eucaristia, vimos beber a água e o sangue que brotam para que o grito de Jesus seja eficaz também em nós: “Effata!” “Abre-te!”

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    Um tempo de meditação… Para nos impregnarmos daquilo que o Senhor deseja para nós, tomemos o tempo para rezar e meditar estas simples palavras de Cristo: “Abre-te”. O Salmo 145 pode ajudar-nos. Por este tempo de meditação, ou com a ajuda de um acompanhador espiritual, procuremos descobrir o que impede ainda em nós a verdadeira libertação oferecida pelo Senhor.

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

  • 24º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    24º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]


    15 de Setembro, 2024

    ANO B
    24.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 24.º Domingo do Tempo Comum

    Por que caminhos temos de andar para que a nossa vida seja plenamente realizada? A liturgia do 24.º Domingo do Tempo Comum responde: a realização plena do homem passa pela obediência aos projetos de Deus e pelo dom total da vida aos irmãos. Quem quiser salvar a sua tranquilidade, o seu bem-estar, os seus interesses, os seus bens materiais, destruirá a sua vida para sempre; quem aceitar servir de forma simples e humilde, cuidar dos mais frágeis e necessitados, lutar por um mundo mais justo e humano, alcançará a plenitude da existência, pois a sua vida alimenta-se de amor.

    A primeira leitura traz-nos a palavra e o drama de um profeta anónimo, que no cumprimento da sua missão, enfrenta a incompreensão, a prisão, a tortura, a condenação. Apesar de tudo isso, o profeta não sente que a sua vida tenha sido um fracasso. Está absolutamente convicto de que Deus virá em seu auxílio e fá-lo-á triunfar sobre a perseguição e a morte. Os primeiros cristãos viram neste “servo de Deus” a figura de Jesus.

    O Evangelho apresenta Jesus como o Messias de Deus, enviado pelo Pai para indicar aos homens o caminho que conduz à Vida verdadeira. Ora, segundo Jesus, o caminho da Vida plena e definitiva é o caminho da cruz, do dom da própria vida, do amor até ao extremo. Jesus vai percorrer esse caminho; e quem quiser ser seu discípulo, tem de aceitar percorrer um caminho semelhante.

    Na segunda leitura, um “mestre” cristão lembra aos seus irmãos na fé que o seguimento de Jesus não se concretiza com belas palavras ou com teorias muito bem elaboradas, mas com gestos concretos de amor, de partilha, de serviço, de solidariedade para com os irmãos.

     

    LEITURA I – Isaías 50,5-9a

    O Senhor Deus abriu-me os ouvidos
    e eu não resisti nem recuei um passo.
    Apresentei as costas àqueles que me batiam
    e a face aos que me arrancavam a barba;
    não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam.
    Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio
    e por isso não fiquei envergonhado;
    tornei o meu rosto duro como pedra,
    e sei que não ficarei desiludido.
    O meu advogado está perto de mim.
    Pretende alguém instaurar-me um processo?
    Compareçamos juntos.
    Quem é o meu adversário?
    Que se apresente!
    O Senhor Deus vem em meu auxílio.
    Quem ousará condenar-me?

     

    CONTEXTO

    A primeira leitura do vigésimo quarto domingo comum pertence ao “Livro da Consolação”, do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). “Deutero-Isaías” é um nome convencional com que os biblistas designam um profeta anónimo da escola de Isaías, que cumpriu a sua missão profética na Babilónia, entre os exilados judeus, na fase final do Exílio (talvez entre 550 e 539 a.C., aproximadamente).

    A missão do Deutero-Isaías é consolar os exilados judeus. Nesse sentido, ele começa por anunciar a iminência da libertação e por comparar a saída da Babilónia ao antigo êxodo, quando Deus libertou o seu Povo da escravidão do Egipto (cf. Is 40-48); depois, anuncia a reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).

    No meio desta proposta “consoladora” aparecem, contudo, quatro poemas (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que se diferenciam um tanto da temática desenvolvida pelo profeta no resto do livro. Referem-se a uma figura enigmática, que o próprio Deus apresenta como “o meu Servo” (Is 42,1). O nome “Servo de Javé” é, na Bíblia, um título honorífico. Refere-se, habitualmente, a alguém a quem Deus chama a colaborar no seu projeto salvador. De facto, o “Servo de Javé” que nos é apresentado pelo Deutero-Isaías, foi eleito por Deus e recebeu de Deus uma missão (cf. Is 42,1a; 49,1-5). Essa missão tem a ver com a Palavra de Deus e tem caráter universal, pois deve concretizar-se no meio das nações (cf. Is 42,1b; 49,6); será vivida pelo “servo” na humildade, no sofrimento e na obediência incondicional ao projeto de Deus (cf. Is 42,2-3). Apesar de a missão terminar num aparente insucesso (cf. Is 53,2-3.7-9), a dor do profeta não foi em vão: ela tem um valor expiatório e redentor; dela resulta o perdão para o pecado do Povo (cf. Is 53,6.10). Deus aprecia o sacrifício do profeta e recompensá-lo-á, elevando-o à vista de todos, fazendo-o triunfar dos seus detratores e adversários (cf. Is 53,11-12).

    Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma do profeta que sofre por causa da Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho da Palavra no ambiente hostil do Exílio? É um profeta desconhecido? É uma figura coletiva, que representa o Povo exilado, humilhado, esmagado, mas que continua a dar testemunho de Deus, no meio das outras nações? É uma figura representativa, que une a recordação de personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras míticas, de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não sabemos; no entanto, a figura apresentada nesses poemas vai receber uma outra iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida e do seu destino.

    O texto que nos é proposto é parte do terceiro cântico do “servo de Javé”.

     

    MENSAGEM

    Quem toma a palavra é um personagem anónimo, que tem consciência de que foi chamado por Deus para a missão. Não se designa a si próprio como “servo”; mas assemelha-se a esse “servo” de que se fala no primeiro cântico do servo de Javé (cf. Is 42,1-9). Também não se intitula “profeta”; porém, narra a sua vocação com os elementos típicos dos relatos proféticos de vocação.

    A missão que este profeta/servo recebeu de Deus tem claramente a ver com o anúncio da Palavra. O profeta é o homem da Palavra, aquele através de quem Deus fala aos homens; a proposta de redenção que Deus faz a todos aqueles que necessitam de salvação/libertação ecoa na palavra profética. Ora, o profeta/servo acolheu a missão para a qual foi convocado; sem resistência, sem discussão, numa entrega total aos desígnios de Deus (vers. 5).

    Pela sua fidelidade a Deus e à missão, o profeta conheceu a prisão, a tortura, o sofrimento. A palavra proclamada em nome de Deus é uma palavra que incomoda e provoca resistências; daí resultam para o profeta, inevitavelmente, incompreensão e perseguição. No entanto, o profeta manteve-se impassível face aos perseguidores: apresentou as costas àqueles que lhe batiam e a face aos que lhe arrancavam a barba; não desviou o rosto dos que o insultavam e cuspiam” (vers. 6). Não por insensibilidade ou masoquismo, mas porque estava decidido a tudo suportar para levar até ao fim a missão que Deus lhe tinha confiado.

    Finalmente, o profeta reconhece que Deus nunca o abandonou. Fortalecido pelo auxílio de Deus, o profeta/servo teve força para enfrentar todas as contrariedades e dores que os seus inimigos lhe infligiram. Mesmo agora, enquanto está na prisão à espera de enfrentar o tribunal que o vai julgar, continua a confiar em Deus: sabe que Deus estará ao seu lado e que nunca o desiludirá (vers 7-9). Espera serenamente o momento em que Deus o irá defender, confundindo os seus detratores.

    O que mais impressiona neste texto é a serenidade com que o profeta, prisioneiro e sofredor, enfrenta o seu destino. Essa serenidade vem-lhe, não da inconsciência, da insensibilidade ou de uma leviana indiferença perante a morte, mas de uma total confiança no Deus que não falha e que não deixa cair aqueles que ama.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Não sabemos, efetivamente, quem é este “servo de Javé”; no entanto, os primeiros cristãos vão utilizar este texto como grelha para interpretar o mistério de Jesus: Ele é a Palavra de Deus feita carne, que oferece a sua vida para trazer a salvação/libertação aos homens… A vida de Jesus realiza plenamente esse destino de dom e de entrega da vida em favor de todos; e a sua glorificação mostra que uma vida vivida deste jeito não termina no fracasso, mas na ressurreição que gera Vida nova. No entanto, talvez esta conceção da vida nos pareça estranha e incongruente face àquilo que vemos acontecer todos os dias à nossa volta… Como é que me situo face a isto? Acredito que uma vida gasta como a de Jesus ou a do profeta/servo da primeira leitura deste domingo é uma vida com sentido e que conduz à Vida nova?
    • O profeta/servo que, sem hesitar, põe a sua palavra e a sua vida ao serviço da libertação dos seus irmãos – mesmo que isso implique para si próprio sofrimento, perseguição e humilhação – deixa-nos um desafio que não podemos ignorar… Vivemos cercados por ilhas de miséria e de dor onde tantos e tantos irmãos nossos permanecem prisioneiros; passamos a cada passo por homens e mulheres abandonados, esquecidos, atirados para as margens da história, privados dos seus direitos e dignidade; assistimos diariamente à crucifixão de tanta gente que luta contra os sistemas de opressão e de morte… O que fazemos? Permanecemos indiferentes e viramos a cara para outro lado para não ver e para não sermos incomodados, ou levantamos a voz para denunciar o egoísmo, a violência, a injustiça, as mil formas de maldade que desfeiam o mundo e destroem a Vida?
    • Temos consciência que a nossa missão profética passa por sermos Palavra viva de Deus que ecoa no mundo dos homens? Nas nossas palavras, nos nossos gestos, no nosso testemunho, a proposta libertadora de Deus alcança o mundo e o coração dos homens?
    • O profeta/servo da nossa leitura garante-nos que nunca desistirá da missão que lhe foi confiada porque confia em Deus: sabe que Deus estará sempre com ele e que nunca o desiludirá. Que fantástica expressão de confiança e de fé! Seremos capazes de dizer, com convicção, a mesma coisa? Acreditamos que Deus nunca nos desiludirá?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 114 (115)

    Refrão 1: Andarei na presença do Senhor sobre a terra dos vivos.

    Refrão 2: Caminharei na terra dos vivos na presença do Senhor.

    Refrão 3: Aleluia.

    Amo o senhor,
    porque ouviu a voz da minha súplica.
    Ele me atendeu
    no dia em que O invoquei.

    Apertaram-me os laços da morte,
    caíram sobre mim as angústias do além, vi-me na aflição e na dor.
    Então invoquei o Senhor:
    «Senhor, salvai a minha alma».

    Justo e compassivo é o Senhor,
    o nosso Deus é misericordioso.
    O Senhor guarda os simples:
    estava sem forças e o Senhor salvou-me.

    Livrou da morte a minha alma,
    das lágrimas os meus olhos, da queda os meus pés.
    Andarei na presença do Senhor,
    sobre a terra dos vivos.

     

    LEITURA II – Tiago 2,14-18

    Meus irmãos:
    De que serve a alguém dizer que tem fé, se não tem obras?
    Poderá essa fé obter-lhe a salvação?
    Se um irmão ou uma irmã não tiverem que vestir
    e lhes faltar o alimento de cada dia,
    e um de vós lhe disser: «Ide em paz.
    Aquecei-vos bem e saciai-vos»,
    sem lhes dar o necessário para o corpo,
    de que lhes servem as vossas palavras?
    Assim também a fé sem obras está completamente morta.
    Mas dirá alguém:
    «Tu tens a fé e eu tenho as obras».
    Mostra-me a tua fé sem obras,
    que eu, pelas obras, te mostrarei a minha fé.

     

    CONTEXTO

    O autor da Carta de Tiago apresenta-se a si próprio como “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (Tg 1,1). Mas, na verdade, não sabemos quem é este personagem. Não será, certamente, o Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João (cf. Mc 1,19), nem sequer o “Tiago, filho de Alfeu” que também integrava a lista dos Doze apóstolos de Jesus (cf. Mc 3,18). Também é pouco provável que seja o “Tiago, irmão do Senhor” (Gl 1,19; cf. Mc 6,3; At 12,17), que presidiu à comunidade cristã de Jerusalém e que foi martirizado no ano 62. Mas parece ser um cristão de origem judaica, que fala muito bem a língua grega e que conhece bem o Antigo Testamento.

    A carta é endereçada “às Doze tribos da Dispersão”, o que poderia supor que os seus destinatários seriam cristãos de origem judaica, a viver fora da Palestina. No entanto, a expressão pode também ser entendida em sentido metafórico e referir-se às comunidades cristãs (o novo “Povo de Deus”) que vivem espalhadas pelo mundo greco-romano.

    O escrito tem um cunho marcadamente judaico. O seu pensamento está enraizado no Antigo Testamento. É daí que o autor – um mestre cristão – parte para refletir sobre a existência cristã e desafiar os seus irmãos a viverem a sua fé de forma autêntica, empenhada e coerente.

    O nosso texto pertence à segunda parte da carta (cf. Tg 2,1-26). Aí, o autor trata dois temas fundamentais: a fé concretiza-se no amor ao próximo, sem qualquer tipo de discriminação ou de aceção de pessoas (cf. Tg 2,1-13); a fé expressa-se, não através de ritos formais ou de palavras ocas, mas através de ações concretas em favor do homem (cf. Tg 2,14-26). No geral, este capítulo convida os crentes a assumir uma fé operativa, que se traduz num compromisso social e comunitário.

     

    MENSAGEM

    O nosso texto refere-se à relação entre a fé e as obras. A tese do autor da Carta de Tiago é que a fé sem obras não serve para nada (vers. 14.17).

    É uma questão candente. Diversas correntes filosóficas gregas convidavam os crentes a centrar a atenção no conhecimento de Deus; mas não se referiam à dimensão moral e à necessidade de praticar obras boas. Paralelamente, a teologia paulina afirmava que “é pela fé que o homem é justificado, independentemente das obras da Lei” (Rm 3,28). Na verdade, Paulo não está, com esta afirmação, a contrapor a fé às obras, ou a dizer que as obras não são necessárias; o que ele está a fazer é contrapor o regime da fé ao regime da Lei, o regime de Cristo ao regime de Moisés: não é na Lei e em Moisés que o homem encontra a salvação, mas sim em Cristo. De resto, Paulo está bem consciente de que a fé “atua pelo amor” (Gl 5,6); e o amor, “o caminho que ultrapassa todos os outros” (1 Co 12,31), vive-se em gestos bem concretos (cf. 1 Co 13,1-11).

    Em qualquer caso, é natural que esta questão fosse abordada nas comunidades cristãs na segunda metade do séc. I. O autor da Carta de Tiago terá pretendido envolver-se nesta discussão e arremeter contra a tese paulina? Provavelmente não é essa a sua intenção quando afirma categoricamente que “a fé sem obras está completamente morta” (vers. 17). O que ele está a fazer é deixar um aviso “às doze tribos da Dispersão” de que as obras são inerentes à própria fé: a fé deve levar a ações concretas que traduzam de forma prática aquilo em que se acredita. Se isso não acontecer, essa fé é apenas uma declaração de boas intenções, mas que não passa de uma farsa sem valor e sem conteúdo.

    A adesão a Jesus e ao seu projeto (fé) significa que o homem está disposto a acolher essa Vida nova e plena que Deus, gratuitamente e sem condições, lhe oferece (salvação). Essa vida, interiorizada e assumida, tem de transparecer em gestos concretos de amor, de solidariedade, de fraternidade, de serviço, de partilha, de perdão. Quando um seguidor de Jesus vê um irmão a necessitar de comida ou roupa e não faz nada para o ajudar, é porque ainda não acolheu essa Vida nova que Jesus lhe propôs (vers. 15-16). Nesse caso, não se pode dizer que ele tenha fé: a sua pretensa adesão a Jesus é uma mentira. Quem não vive ao estilo de Jesus, é porque não acredita n’Ele.

    Os bonitos discursos que fazemos, os conselhos muito sábios que damos, as teorias bem elaboradas que apresentamos, as reflexões muito piedosas que impingimos, não passam de belas palavras que podem não significar nada. Quando um irmão tem fome, ou não tem que vestir, ou está a sofrer, é preciso ir ao seu encontro e manifestar-lhe, com gestos concretos, o nosso amor, a nossa solidariedade, a nossa fraternidade. A nossa religião tem de manifestar-se na vida e tem de transparecer nos nossos gestos.

     

    INTERPELAÇÕES

    • O que é ser cristão? O nosso compromisso cristão é algo que se vive a nível da teoria, ou do compromisso vital? O que caracteriza um cristão não é o conhecimento de belas fórmulas que expressam uma determinada ideologia, nem o cumprimento exato de ritos vazios e estéreis, nem uma assinatura feita no livro de registos de batismo da paróquia, mas é a adesão a Cristo. Ora, aderir a Cristo (fé), significa conformar, a cada instante, a própria vida com os valores de Cristo, seguir Cristo a par e passo no caminho do amor a Deus e da entrega total aos irmãos. Não se pode fugir a isto: a nossa caminhada cristã não é um processo teórico e abstrato concretizado num reino de belas palavras; mas é um compromisso efetivo com Cristo que tem de se traduzir, a cada instante, em gestos concretos em favor dos irmãos. A nossa fé em Jesus e na Vida que Ele nos propõe traduz-se em obras concretas em favor dos nossos irmãos, especialmente dos mais necessitados?
    • Os discípulos de Cristo são aqueles que vão atrás d’Ele e que aprendem com Ele como é que se vive, como é que se ama, como é que se constrói o Reino de Deus. Ora, Cristo lutou pela justiça e pela verdade, denunciou tudo aquilo que escravizava o homem e o impedia de ser feliz, foi ao encontro dos marginalizados e manifestou-lhes o amor de Deus, realizou gestos de serviço e de partilha, distribuiu o perdão e a paz, ofereceu a sua própria vida para salvar os seus irmãos. Quem acredita em Cristo tem de viver assim: tem de lutar, objetivamente, contra as estruturas que geram injustiça e opressão; tem de acolher e amar aqueles que a sociedade marginaliza e rejeita; tem de denunciar uma sociedade construída sobre esquemas de egoísmo e de mostrar, com o seu testemunho, que só a partilha e o amor tornam o homem feliz; tem de quebrar a espiral da violência e do ódio e propor a tolerância e o amor. Que obras fazemos? As nossas obras são as mesmas que Cristo fez?
    • Por vezes, há uma profunda dicotomia entre a fé que afirmamos e a vida que levamos. O nosso compromisso cristão traduz-se na participação certa nas eucaristias dominicais, na oferta de chorudas quantias para as obras da igreja, na participação destacada em manifestações públicas de religiosidade, na pertença a movimentos eclesiais… e mais nada. Depois, na vida do dia a dia, praticamos injustiças, pactuamos com esquemas de corrupção, criticamos e rotulamos aqueles de quem não gostamos, passamos indiferentes diante das necessidades e dores dos irmãos, tratamos com sobranceria os mais humildes e fracos, dizemos palavras que ferem e que levantam muros de desentendimento, demitimo-nos das nossas responsabilidades na construção de um mundo novo e melhor… De acordo com os ensinamentos da Carta de Tiago, a nossa religião será verdadeira se não se traduzir em gestos concretos de amor e de fraternidade?

     

    ALELUIA – cf. Gal 6,14

    Aleluia. Aleluia.

    Toda a minha glória está na cruz do Senhor,
    por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo.

     

    EVANGELHO – Marcos 8,27-35

    Naquele tempo,
    Jesus partiu com os seus discípulos
    para as povoações de Cesareia de Filipe.
    No caminho, fez-lhes esta pergunta:
    «Quem dizem os homens que Eu sou?»
    Eles responderam:
    «Uns dizem João Baptista; outros, Elias;
    e outros, um dos profetas».
    Jesus então perguntou-lhes:
    «E vós, quem dizeis que Eu sou?»
    Pedro tomou a palavra e respondeu: «Tu és o Messias».
    Ordenou-lhes então severamente
    que não falassem d’Ele a ninguém.
    Depois, começou a ensinar-lhes
    que o Filho do homem tinha de sofrer muito,
    de ser rejeitado pelos anciãos,
    pelos sumos sacerdotes e pelos escribas;
    de ser morto e ressuscitar três dias depois.
    E Jesus dizia-lhes claramente estas coisas.
    Então, Pedro tomou-O à parte e começou a contestá-l’O.
    Mas Jesus, voltando-Se e olhando para os discípulos,
    repreendeu Pedro, dizendo: «Vai-te, Satanás,
    porque não compreendes as coisas de Deus,
    mas só as dos homens».
    E, chamando a multidão com os seus discípulos, disse-lhes:
    «Se alguém quiser seguir-Me,
    renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me.
    Na verdade, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á;
    mas quem perder a vida, por causa de Mim e do Evangelho,
    salvá-la-á».

     

    CONTEXTO

    O texto que nos é hoje proposto é um texto central no Evangelho segundo Marcos. Apresenta-nos os últimos versículos da primeira parte (cf. Mc 8,27-30) e os primeiros versículos da segunda parte (cf. Mc 8,31-35) deste Evangelho.

    A primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30) tem como objetivo fundamental levar à descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Ao longo de um percurso que é mais catequético do que geográfico, os leitores do Evangelho são convidados a acompanhar a revelação de Jesus, a escutar as suas palavras e o seu anúncio, a fazerem-se discípulos que aderem à sua proposta de salvação. Este percurso de descoberta do Messias que o catequista Marcos nos propõe termina, em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe (que é, evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois de ter acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): “Tu és o Messias”.

    Depois, vem a segunda parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 8,31-16,8). Nesta segunda parte, o objetivo do catequista Marcos é explicar que Jesus, além de ser o Messias libertador, é também o “Filho de Deus”. No entanto, Jesus não veio ao mundo para cumprir um destino de triunfos e de glórias humanas, mas para oferecer a sua vida em dom de amor aos homens. Ponto alto desta “catequese” é a afirmação do centurião romano junto da cruz (que Marcos convida, implicitamente, os seus cristãos a repetir): “realmente este homem era o Filho de Deus” (Mc 15,39).

    Cesareia de Filipe – o cenário geográfico onde o Evangelho deste vigésimo quarto domingo comum nos coloca – era uma cidade situada no Norte da Galileia, no sopé do Monte Hermon, junto de uma das nascentes do rio Jordão (na zona da atual Bânias). Durante o período helenístico, a cidade tinha tomado o nome de Panion, em virtude de haver lá um santuário dedicado ao deus grego Pan; mas, no ano 2 ou 3 a.C., Herodes Filipe (filho de Herodes o Grande) reconstruiu-a e deu-lhe o nome de Cesareia, em honra de César Augusto, imperador de Roma. Era, portanto, uma cidade marcada pelo paganismo e pelo culto ao imperador.

     

    MENSAGEM

    Enquanto caminha para Cesareia de Filipe, Jesus lança aos discípulos uma dupla questão (vers. 27-30): o que é que as pessoas dizem d’Ele e o que é que os próprios discípulos pensam d’Ele?

    A opinião dos “homens” sobre Jesus reflete entendimentos e visões diversas. Os contemporâneos de Jesus veem-nO em continuidade com o passado (“és João Baptista”, “Elias”, ou “algum dos profetas” – vers. 28). Eles não captam a condição única de Jesus, a sua novidade, a sua originalidade. Reconhecem apenas que Jesus é um homem convocado por Deus e enviado ao mundo com uma missão – como os profetas do Antigo Testamento… Mas não vão além disso. Na perspetiva dos “homens”, Jesus é apenas alguém bom, justo, generoso, que escutou os apelos de Deus e que Se esforçou por ser um sinal vivo de Deus, como tantos outros homens antes d’Ele. É muito, mas não é o suficiente: significa que os “homens” não entenderam a novidade de Jesus, nem a profundidade do seu mistério.

    A opinião dos discípulos acerca de Jesus vai muito além da opinião comum. Eles acompanharam Jesus por toda a Galileia, conviveram com Ele noite e dia, escutaram as suas palavras e testemunharam os seus gestos… É natural que tenham visto em Jesus uma dimensão que as outras pessoas ainda não captaram. Pedro, porta-voz do grupo dos discípulos, resume o sentir da comunidade do Reino na expressão: “Tu és o Messias” (vers. 29). Dizer que Jesus é o “Messias” (o Cristo, o “ungido de Deus”) significa dizer que Ele é esse libertador que Israel esperava, enviado por Deus para libertar o seu Povo e para lhe oferecer a salvação definitiva.

    A resposta de Pedro estava correta. No entanto, a compreensão de Jesus como Messias podia prestar-se a graves equívocos, numa altura em que o título de Messias estava conotado com esperanças político-nacionalistas. Por isso, os discípulos recebem ordens para não falarem disso a ninguém. Era preciso evitar equívocos que poderiam ter consequências nefastas.

    Aliás, Jesus está consciente de que os próprios discípulos tinham ideias erradas acerca do Messias e da sua missão. Por isso, apressa-se a explicar-lhes que o seu messianismo não passa pelos triunfos políticos ou militares, mas pela cruz e pelo dom da vida. Depois dos confrontos que teve, por toda a Galileia, com os líderes religiosos judaicos, Jesus está bem consciente daquilo que o espera, se continuar a ser fiel ao projeto que o Pai lhe confiou. As lideranças recusam o Reino de Deus e irão fazer tudo para eliminar a proposta que Jesus traz. Por isso – para que tudo fique claro – fala “claramente” aos discípulos do destino que o espera em Jerusalém. Mas deixa também claro que a sua entrega na cruz não é o ponto final da sua vida: Ele ressuscitará “três dias depois”, porque a entrega da própria vida por amor é fonte de Vida definitiva (vers. 31).

    Pedro não está de acordo com esse final, pois não entende que a cruz conduza à Vida. Assim, opõe-se, decididamente, a que Jesus caminhe em direção ao seu destino de cruz (vers. 32). A oposição de Pedro (e dos discípulos, pois Pedro continua a ser o porta-voz da comunidade) significa que a sua compreensão do mistério de Jesus ainda é muito imperfeita. Para ele, a missão do “messias, Filho de Deus” é uma missão gloriosa e vencedora; e, na lógica de Pedro – que é a lógica do mundo – a vitória não pode estar na cruz e no dom da vida.

    Jesus dirige-se a Pedro com bastante dureza, pois Pedro está entrincheirado atrás de conceções puramente egoístas e não parece disposto a abandoná-las (vers. 33). O plano de Deus não passa por triunfos humanos, nem por esquemas de poder e de domínio; mas passa pelo dom da vida e pelo amor até às últimas consequências (de que a cruz é a expressão mais radical). Ao pedir a Jesus que não embarque nos projetos do Pai, Pedro está a repetir essas tentações que Jesus experimentou no início do seu ministério (cf. Mc 1,13); por isso, Jesus responde a Pedro: “Vai-te, Satanás”. As palavras de Pedro pretendem desviar Jesus do cumprimento dos planos do Pai; e Jesus não está disposto a transigir com qualquer proposta que O impeça de concretizar, com amor e fidelidade, os projetos de Deus.

    Depois de anunciar o seu destino (que será cumprido, em obediência ao plano do Pai, no dom da própria vida em favor dos homens), Jesus convida os seus discípulos a seguir um percurso semelhante: se quiserem ser seus discípulos, têm de “renunciar a si mesmo”, de “tomar a cruz” e de segui-l’O no caminho do amor, da entrega e do dom da vida (vers. 34). Jesus não obriga ninguém, apenas apresenta a proposta; cada um, sabendo o que uma decisão desse tipo implica, tem de fazer a sua escolha.

    O que é que significa, exatamente, renunciar a si mesmo? Significa renunciar ao seu egoísmo e autossuficiência, para fazer da vida um dom a Deus e aos outros. O discípulo de Jesus não pode viver fechado em si próprio, prisioneiro dos seus interesses e critérios pessoais, preocupado apenas em concretizar os seus projetos de riqueza, de segurança, de bem-estar, de domínio, de êxito, de triunfo… Aquele que opta pelo seguimento de Jesus passa a viver como Ele, colocando toda a sua existência ao serviço do projeto de Deus e do bem dos irmãos.

    O que é que significa “tomar a sua cruz” e seguir Jesus? “Tomar a cruz” é estar disponível para fazer da própria vida, até às últimas consequências, um dom de amor. Foi isso que Jesus fez. Mas Jesus não viveu essa entrega por amor apenas no calvário; Ele gastou toda a sua vida, desde o seu nascimento até à sua morte, a fazer o bem. Tomar a própria cruz e seguir Jesus é fazer de toda a vida – diariamente, vinte e quatro horas por dia e não apenas pontualmente – um dom de amor, ao serviço de Deus e dos irmãos.

    No final desta instrução, Jesus explica aos discípulos as razões pelas quais eles devem abraçar a “lógica da cruz”. Convida-os a entender que oferecer a vida por amor não é perdê-la, mas ganhá-la. Quem é capaz de dar a vida a Deus e aos irmãos, não fracassou; mas ganhou a Vida eterna, a Vida verdadeira que Deus oferece a quem caminha acordo com as suas propostas (vers. 35).

     

    INTERPELAÇÕES

    • Quem é Jesus? Como é que os homens do séc. XXI o veem? Muitos dos nossos contemporâneos – crentes, agnósticos ou mesmo ateus – veem em Jesus um homem bom, generoso, atento aos sofrimentos dos outros, que sonhou com um mundo diferente; outros veem em Jesus um admirável “mestre” de moral, que tinha uma proposta de vida “interessante”, mas que não conseguiu impor os seus valores; alguns veem em Jesus um admirável condutor de massas, que acendeu a esperança nos corações das multidões carentes e órfãs, mas que passou de moda quando as multidões deixaram de se interessar pelo fenómeno; outros, ainda, veem em Jesus um revolucionário, ingénuo e inconsequente, preocupado em construir uma sociedade mais justa e mais livre, que procurou promover os pobres e os marginais e que foi eliminado pelos poderosos, preocupados em manter o “status quo”. Que achamos destas “visões” sobre Jesus? Consideramo-las redutoras, ou exatas? Jesus terá sido apenas um “homem” que deixou a sua pegada na história humana, como tantos outros que a história absorveu e digeriu?
    • “E vós, quem dizeis que Eu sou?” – perguntou Jesus diretamente aos seus discípulos nos arredores de Cesareia de Filipe. É uma pergunta decisiva, que deve ecoar, de forma constante, nos ouvidos e no coração dos discípulos de Jesus de todas as épocas. A nossa resposta a esta questão não pode ficar-se pela repetição papagueada de velhas fórmulas que aprendemos na catequese, ou pela reprodução impessoal de uma definição tirada de um qualquer tratado de teologia. A questão vai dirigida ao âmago do nosso ser e exige uma tomada de posição pessoal, um pronunciamento sincero, sobre a forma como Jesus toca a nossa vida. A resposta a esta questão é o passo mais importante e decisivo na vida de cada crente. Quem é Jesus para nós? Que lugar ocupa Ele na nossa existência? Que valor damos às suas propostas? Que importância assumem os seus valores nas nossas opções de vida? Jesus é, para nós, a grande referência, o vetor à volta do qual o nosso mundo se constrói? Ele é para nós, de facto, “caminho, verdade e vida”?
    • Evangelho do vigésimo quarto domingo comum coloca frente a frente a lógica dos homens (Pedro) e a lógica de Deus (Jesus). A lógica dos homens aposta no poder, no domínio, no triunfo, no êxito; garante-nos que a vida só tem sentido se estivermos do lado dos vencedores, se tivermos dinheiro em abundância, se formos reconhecidos e incensados pelas multidões, se pudermos cercar-nos de bem-estar e garantir que os nossos dias decorram tranquilos e confortáveis, se assegurarmos a nossa quota de poder e influência… A lógica de Deus aposta na entrega da vida a Deus e aos irmãos; garante-nos que a vida só faz sentido se assumirmos os valores do Reino e vivermos no amor, na partilha, no serviço, na solidariedade, na humildade, na simplicidade… Na nossa vida de cada dia estas duas perspetivas confrontam-se, a par e passo e exigem de nós um posicionamento claro. Qual é a nossa escolha? Na nossa perspetiva, qual destas duas propostas apresenta um caminho de felicidade seguro e duradouro?
    • Jesus tornou-se um de nós para concretizar os planos do Pai e propor aos homens – através do amor, do serviço, do dom da vida – o caminho da salvação. Neste texto fica claramente expressa a fidelidade radical de Jesus a esse projeto. Por isso, Ele não aceita que nada nem ninguém O afastem do caminho do dom da vida: dar ouvidos à lógica do mundo e esquecer os planos de Deus é, para Jesus, uma tentação diabólica que Ele rejeita terminantemente. Que significado e que lugar ocupam na nossa vida os projetos de Deus? Esforçamo-nos, como Jesus, por descobrir a vontade de Deus a nosso respeito e a respeito do mundo? Mantemo-nos atentos, em cada passo do nosso caminho, a esses “sinais dos tempos” através dos quais Deus nos interpela? Somos capazes de acolher e de viver com fidelidade e radicalidade as propostas de Deus, mesmo quando elas são exigentes e vão contra os nossos interesses e projetos pessoais?

     

    • O que é que faz de nós verdadeiros discípulos de Jesus? Muitos de nós receberam uma catequese que insistia em ritos, em fórmulas, em práticas de piedade, em determinadas obrigações legais, mas que nem sempre punha em relevo o essencial do cristianismo: o seguimento de Jesus. No entanto, a identidade cristã constrói-se à volta de Jesus, do seu Evangelho, da sua proposta de vida. Sentimo-nos verdadeiramente discípulos de Jesus? Estamos disponíveis, de alma e coração, para ir atrás d’Ele no caminho da doação da vida e do amor até às últimas consequências?
    • Jesus convida os seus discípulos a renunciarem a si mesmos… O que é “renunciar a si mesmo”? É não deixar que o egoísmo, o orgulho, o comodismo, a autossuficiência, a ambição, a mentira, dominem a nossa vida. O seguidor de Jesus não vive fechado na sua zona de segurança, a olhar para si mesmo, indiferente aos dramas que se passam à sua volta, insensível às necessidades dos irmãos, alheado das lutas e reivindicações dos outros homens; mas vive para Deus e na solidariedade, na partilha e no serviço aos irmãos. Até que ponto estamos disponíveis para renunciar a nós mesmos e para colocar a nossa vida ao serviço do projeto de Deus?
    • Jesus também convida os seus discípulos a tomarem a cruz… O que é “tomar a cruz”? É amar até às últimas consequências, até à morte, se for necessário; é gastar cada instante da vida a servir, a amar, a cuidar, a fazer o bem… O seguidor de Jesus é aquele que está disposto a dar a vida para que os seus irmãos sejam mais livres e mais felizes. Por isso, o cristão não tem medo de lutar contra a injustiça, a exploração, a miséria, o pecado, mesmo que isso signifique enfrentar a morte, a tortura, as represálias dos poderosos. Aceitamos tomar cada dia a nossa cruz e a viver para os outros, como Jesus?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 24.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 24.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.

    Ficamos sempre admirados ao ver Jesus proibir que falem d’Ele. A razão é simples: tem medo que os seus discípulos ou a multidão desfigurem o seu rosto de Messias. Os homens olham com os olhos da carne, e que desejam eles? Um Messias nacionalista, poderoso, libertando o seu povo da ocupação romana. Quanto a Jesus, pede que O olhem com os olhos da fé: o Messias prometido é um Messias sofredor, porque Deus quer dar aos homens o sinal do seu Amor, um Amor que vai até ao fim, até ao dom total. Pedro terão, então, necessidade de purificar a sua fé, e é após a ressurreição que os seus olhos se abrirão, reconhecendo o Messias n’Aquele que lhe mostrará as suas chagas. E Ele mesmo fará a experiência da passagem pela morte para conhecer a Vida, ele caminhará atrás do seu Mestre, ele renunciará a si próprio, ele tomará a sua cruz e seguirá Jesus até ao fim.

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.

    Como qualquer ser humano, Pedro é uma mistura muito complexa de sombra e de luz. À questão de Jesus “para vós, quem sou Eu?”, ele responde: “Tu és o Messias”. Mateus precisa que é por uma revelação do Pai que Pedro pôde reconhecer que Jesus era o Messias. Daí a necessidade que Pedro estivesse aberto e acolhedor, na escuta do Pai! É o lado-luz do apóstolo… E logo depois, quando Jesus anuncia a sua paixão e morte, Pedro muda. Aos seus olhos, é o Mestre que se engana. Pedro aqui não escuta o Pai, fecha-se. É o lado-sombra de Pedro… Pedro ficará sempre o mesmo. Conhecemos bem as suas declarações de fidelidade incondicional, seguidas, alguns horas depois, pela sua tríplice negação. Ele terá a mesma atitude após o Pentecostes. Em Antioquia, segundo os Atos dos Apóstolos, ele não hesitava em comer com os pagãos convertidos a Jesus, o que um bom judeu não podia aceitar. Eis que pessoas que andavam com Tiago chegam. Pedro tem medo: vão contestá-lo. Então, retira-se. Através de Pedro, vemos como Deus age. Jesus escolheu Pedro para que fosse o primeiro servidor da unidade dos discípulos. Ele teve nele uma confiança ainda maior após a sua negação. Jesus não muda! Ele continua a escolher e a enviar discípulos para que sejam, ao serviço da unidade da comunidade, pastores que prolongam a ação do único Pastor. Mas estes homens guardam o seu lado-luz e o seu lado-sombra. S. Paulo dirá que Deus confia o seu tesouro a vasos de argila, “para que a vossa fé repouse, não na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus”. Apesar dos limites e dos defeitos dos pastores, o Espírito Santo continua a fazer crescer o Reino! Que Ele fortaleça a nossa fé e a nossa esperança!

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    Em nome de Jesus Cristo… Nesta semana, através dalguns pequenos “atos” (gestos de gentileza, de serviço, de perdão, de partilha, etc.), procuremos seguir o caminho de Cristo, mas tendo consciência de o fazer em seu nome, em nome do amor com que nos ama. E ofereçamos-Lhe estes pequenos testemunhos na nossa oração da tarde.

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

  • 25º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    25º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]


    22 de Setembro, 2024

    ANO B
    25.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 25.º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia do 25.º Domingo do Comum convida-nos a escolher entre a “sabedoria do mundo” e a “sabedoria de Deus”. A “sabedoria do mundo” talvez nos torne importantes, humanamente falando; mas apenas nos proporciona uma felicidade efémera. A “sabedoria de Deus”, por outro lado, não nos assegura glórias e triunfos humanos; mas leva-nos ao encontro de algo infinitamente mais valioso: a Vida verdadeira e eterna.

    No Evangelho Jesus, imbuído da lógica de Deus, apresenta aos discípulos o caminho que se dispõe a percorrer: é o caminho do dom da vida, do amor até ao extremo, da entrega na cruz. Jesus está plenamente convencido de que esse caminho é o caminho que conduz à Vida plena. Mas os discípulos, impregnados da lógica do mundo, têm dificuldade em comprometerem-se com essa opção: preferem as honras, os privilégios, o poder. Jesus, no entanto, não está disposto a baixar a fasquia; e avisa-os de que quem não estiver disponível para abraçar a “loucura da cruz”, não terá lugar na comunidade do Reino.

    Na segunda leitura, um “mestre” cristão do primeiro século exorta os discípulos de Jesus a viverem de acordo com a “sabedoria do alto”, que é fonte de paz, de misericórdia e de frutos bons. A recusa em viver de acordo com a “sabedoria do alto” gera divisões, conflitos, ciúmes, discórdias, que causam sofrimento pessoal e impedem a comunhão dos irmãos.

    A primeira leitura desvenda a estratégia dos “ímpios” para lidarem com os “justos” que os incomodam. Os “justos”, incompreendidos, desprezados, hostilizados a cada passo pelos “ímpios”, não terão uma vida fácil e indolor; mas, coerentes com a sua fé, viverão com o coração cheio de paz e saberão que Deus está do lado deles.

     

    LEITURA I – Sabedoria 2,12.17-20

    Disseram os ímpios:
    «Armemos ciladas ao justo,
    porque nos incomoda e se opõe às nossas obras;
    censura-nos as transgressões à lei
    e repreende-nos as faltas de educação.
    Vejamos se as suas palavras são verdadeiras,
    observemos como é a sua morte.
    Porque, se o justo é filho de Deus,
    Deus o protegerá e o livrará das mãos dos seus adversários.
    Provemo-lo com ultrajes e torturas
    para conhecermos a sua mansidão
    e apreciarmos a sua paciência.
    Condenemo-lo à morte infame,
    porque, segundo diz, Alguém virá socorrê-lo».

     

    CONTEXTO

    Os biblistas situam a redação do livro da Sabedoria por volta do ano 50 a.C., o que o torna o mais recente de todos os livros do Antigo Testamento. Foi escrito em grego por um judeu de língua grega, nascido e educado na Diáspora. Exprimindo-se em termos e conceções do mundo helénico, o autor faz o elogio da “sabedoria” israelita, traça o quadro da sorte que espera o “justo” e o “ímpio” no mais-além e descreve – com exemplos tirados da história do Êxodo – as sortes diversas que tiveram os pagãos (idólatras) e os hebreus (fiéis a Javé).

    O “berço” da reflexão proposta pelo autor é, provavelmente, a cidade de Alexandria. Por essa altura, a cultura helénica marca o ritmo da vida da cidade e dos seus habitantes. As outras culturas – nomeadamente a judaica – são desvalorizadas e hostilizadas. A enorme colónia judaica residente no Egito conhece mesmo, sobretudo nos reinados de Ptolomeu Alexandre (106-88 a.C.) e de Ptolomeu Dionísio (80-52 a.C.), uma dura perseguição. Os sábios helénicos procuram demonstrar, por um lado, a superioridade da cultura grega e, por outro, a incongruência do judaísmo e da sua proposta de vida. Os judeus são encorajados a deixar a sua fé, a “modernizar-se” e a abrir-se aos brilhantes valores da cultura helénica.

    É neste contexto que o sábio autor do Livro da Sabedoria se propõe fazer a defesa dos valores da fé e da cultura do seu Povo. O seu objetivo é duplo: dirigindo-se aos seus compatriotas judeus (mergulhados no paganismo, na idolatria, na imoralidade), convida-os a redescobrir a fé dos pais e os valores judaicos; dirigindo-se aos pagãos, convida-os a constatar o absurdo da idolatria e a aderir a Javé, o verdadeiro e único Deus. Para uns e para outros, o autor pretende deixar este ensinamento fundamental: só Javé garante a verdadeira “sabedoria” e a verdadeira felicidade.

    O texto que a primeira leitura deste domingo nos propõe integra a primeira parte do livro da Sabedoria (cf. Sb 1-5), que apresenta uma reflexão sobre o destino dos “justos” e o destino dos “ímpios”. O autor descreve a forma de pensar e de agir dos ímpios, analisa os seus raciocínios (cf. Sb 1,16-2,9) e as suas reações de desprezo face aos “justos” (cf. Sb 2,10-20). Depois conclui: os ímpios, agindo assim, estão longe de Deus e do prémio que Ele reserva para aqueles que vivem nos seus caminhos (cf. Sb 2,21-24).

    Mostrando o sem sentido da conduta dos “ímpios”, ele pretende dizer aos seus concidadãos que vale a pena ser “justo” e manter-se fiel aos valores tradicionais da fé de Israel.

     

    MENSAGEM

    Os “ímpios”, entrincheirados atrás da sua arrogância e insolência, olham com desprezo para os “justos”. A vida dos “justos” parece-lhes um contrassenso, um absurdo, uma tolice, uma aposta ilógica e irracional.

    Concretamente, quem são esses “ímpios”, cujas opiniões sobre os “justos” o autor do livro da Sabedoria aqui reproduz? São, certamente, os pagãos hostis, que zombavam dos costumes e dos valores religiosos judaicos e que levavam uma vida de corrupção, de materialismo e de imoralidade; mas são também os judeus apóstatas, que se tinham deixado contaminar pela cultura grega, que haviam abandonado as tradições dos antepassados e que consideravam a religião judaica um conjunto de tradições obscurantistas e ultrapassadas, completamente desfasadas de uma visão “moderna” e racional da vida.

    Ora, os “impios” sentem a vida dos “justos” como uma provocação e um incómodo. Essa gente que procura preservar os seus valores e viver de forma consequente com a sua fé, irrita e desconcerta os “ímpios”. A coerência, a honestidade, a verticalidade, a fidelidade dos “justos” são um espinho permanente que não deixa os “ímpios” sentirem-se em paz com a sua consciência.

    A essa “ameaça”, os “ímpios” respondem com a força e a violência. Sentem que é preciso silenciar os “justos” e o desafio que eles representam. Por isso, armam ciladas aos “justos”, multiplicam os ultrajes, inventam calúnias, servem-se da tortura, chegam mesmo ao assassínio… Os “justos” de todas as épocas conhecem bem estes mecanismos de perseguição e de morte; é o preço que têm de pagar pela sua coerência, pela sua fidelidade a Deus e às suas propostas.

    A existência dos “justos” estará, então, condenada ao fracasso? Valerá a pena enfrentar a perseguição e conservar-se fiel a Deus e aos seus valores? As opções dos “justos” fazem sentido, num mundo onde, tantas vezes, são os “impios” que parecem prevalecer? O texto que a liturgia deste vigésimo quinto domingo comum nos propõe como primeira leitura não responde a estas questões; no entanto, o autor do Livro da Sabedoria dirá, mais à frente, que a fidelidade do “justo” será recompensada e que a sua vida desembocará nessa Vida plena e definitiva que Deus reserva para aqueles que seguem os seus caminhos.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Deixemos de lado a classificação de “ímpios” e “justos”, utilizada pelo “sábio”, que é um tanto redutora e rotuladora… Fixemo-nos antes no confronto – bem claro no texto – entre os valores de Deus e os valores do mundo, entre a “sabedoria de Deus” e a “sabedoria do mundo”. Trata-se de um “frente-a-frente” que conhecemos bem e que atravessa cada momento do caminho histórico que a humanidade vai percorrendo… Há quem tente simplificar as coisas resumindo tudo isto à mera opção entre valores antiquados e valores atuais, valores passados de moda e valores condizentes com o quadro civilizacional do nosso tempo… Na realidade, não é assim tão simples. O confronto é entre valores eternos e valores passageiros, entre valores que asseguram Vida verdadeira e valores que apenas proporcionam flashes de felicidade efémera. Neste confronto, em que campo nos situamos?
    • O que é a “sabedoria do mundo”? A “sabedoria do mundo” é a atitude de quem, fechado no seu orgulho, arrogância e autossuficiência, resolve prescindir de Deus e dos seus valores; é a opção de quem vive para o “ter”, de quem põe em primeiro lugar o dinheiro, o poder, o êxito, a fama, a ambição, os valores efémeros. Trata-se de uma “sabedoria” que, em lugar de conduzir o homem à sua plena realização, o deixa vazio, frustrado, deprimido, escravo. A “sabedoria do mundo” pode apresentar-se com as cores sedutoras da felicidade efémera, com o brilho da filosofia que está na moda, com a respeitabilidade das construções intelectuais mais sólidas, com o selo de garantia dos influencers de serviço; mas não assegurará ao homem uma felicidade duradoura. Que papel joga a “sabedoria do mundo” nas nossas vidas?
    • O que é a “sabedoria de Deus”? A “sabedoria de Deus” é a atitude daqueles que assumiram e interiorizaram as propostas de Deus e se deixam conduzir por elas. Atentos à vontade e aos desafios de Deus, procuram escutá-l’O e seguir os seus caminhos; tendo como modelo de vida Jesus Cristo, vivem a sua existência no amor, na partilha, no serviço simples e humilde aos irmãos; estão sempre atentos a quem chora, a quem sofre, a quem necessita de amor e cuidado; comprometem-se com a construção de um mundo mais fraterno e lutam pela justiça e pela paz; não se conformam com as injustiças e as violências que desfeiam o mundo, e esforçam-se por construir o Reino de Deus. Os que se deixam conduzir pela “sabedoria de Deus” nem sempre são compreendidos e aceites. Às vezes chamam-lhes “fracos”, “perdedores”, “incapazes”, “retrógrados”, e colocam-nos em guetos onde podem ser controlados. Mas eles, mesmo desautorizados e incompreendidos, procuram ser sal que dá sabor ao mundo e luz viva que ilumina os caminhos que a humanidade percorre. Que papel joga a “sabedoria de Deus” no nosso projeto de vida?
    • Quem escolhe a “sabedoria de Deus”, não tem uma vida fácil. Com frequência será incompreendido, caluniado, escarnecido, desautorizado, perseguido, torturado – como aconteceu com Jesus. É claro que o sofrimento, a incompreensão, a perseguição, são assustadores; mas devem ser vistos como consequência natural da fidelidade a Deus e aos seus valores. Não devemos ficar preocupados quando o mundo nos persegue; devemos ficar preocupados quando somos aplaudidos e adulados por aqueles que escolheram a “sabedoria do mundo”. Alguma vez o medo de sermos incompreendidos e perseguidos nos impediu de sermos testemunhas coerentes da “sabedoria de Deus”?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 53 (54)

    Refrão: O Senhor sustenta a minha vida.

    Senhor, salvai-me pelo vosso nome,
    pelo vosso poder fazei-me justiça.
    Senhor, ouvi a minha oração,
    atendei às palavras da minha boca.

    Levantaram-se contra mim os arrogantes
    e os violentos atentaram contra a minha vida.
    Não têm a Deus na sua presença.

    Deus vem em meu auxílio,
    o Senhor sustenta a minha vida.
    De bom grado oferecerei sacrifícios,
    cantarei a glória do vosso nome, Senhor.

     

    LEITURA II – Tiago 3,16-4,3

    Caríssimos:
    Onde há inveja e rivalidade,
    também há desordem e toda a espécie de más ações.
    Mas a sabedoria que vem do alto
    é pura, pacífica, compreensiva e generosa,
    cheia de misericórdia e de boas obras,
    imparcial e sem hipocrisia.
    O fruto da justiça semeia-se na paz
    para aqueles que praticam a paz.
    De onde vêm as guerras?
    De onde procedem os conflitos entre vós?
    Não é precisamente das paixões que lutam nos vossos membros?
    Cobiçais e nada conseguis: então assassinais.
    Sois invejosos e não podeis obter nada:
    então entrais em conflitos e guerras.
    Nada tendes, porque nada pedis.
    Pedis e não recebeis, porque pedis mal,
    pois o que pedis é para satisfazer as vossas paixões.

     

    CONTEXTO

    A chamada “Carta de Tiago” é uma exortação de um mestre cristão do séc. I, que se apresenta como “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (Tg 1,1). Ainda não foi possível identificar concretamente este “Tiago”. Em qualquer caso parece ser um personagem de origem semita, que conhece bem as escrituras sagradas judaicas, mas que é capaz de se expressar muito bem em língua grega, recorrendo inclusive a recursos retóricos muito apreciados pelos literatos helénicos.

    O escrito é endereçado às “doze tribos da Diáspora”. A expressão designa, provavelmente, as comunidades cristãs de origem judaica existentes fora da Palestina (Síria, Egito, Ásia Menor); mas também pode ser uma expressão metafórica utilizada para designar as comunidades cristãs em geral, dispersas pelo mundo greco-romano.

    O objetivo do autor desta “carta encíclica” será ajudar os cristãos a viverem a sua fé com coerência e autenticidade, dentro de um estilo de vida que reflita os valores do Evangelho de Jesus. Os temas abordados na carta são diversos e vão-se sucedendo sem uma ordem ou plano doutrinal previamente definido. Avultam as indicações de caráter prático, às vezes num estilo que lembra a reflexão sapiencial: um “mestre” cristão deixa aos seus “discípulos” conselhos práticos sobre a arte de viver de acordo com o espírito cristão nas mais diversas circunstâncias.

    Depois de convidar os crentes à autenticidade e coerência da fé (cf. Tg 1,2-27) e de os exortar a expressar a fé em atitudes concretas (cf. Tg 2,1-24), o autor da Carta de Tiago reflete, na terceira parte do seu escrito (cf. Tg 3,1-4,10), sobre alguns aspetos bem concretos onde deve transparecer a opção que os seguidores de Jesus fizeram. O primeiro aspeto particular a que o autor se refere é ao cuidado a ter com a língua (cf. Tg 3,1-12); o segundo alude à necessidade de os crentes rejeitarem a “sabedoria do mundo” e de acolherem a “sabedoria que vem do alto” (cf. Tg 3,13-18); o terceiro aponta a origem das discórdias que envenenam a vida das comunidades cristãs (cf. Tg 4,1-10). O texto que nos é proposto junta alguns versículos do segundo com alguns versículos do terceiro dos referidos pontos. O objetivo é sempre exortar os crentes a pautarem as suas vidas pelos valores cristãos autênticos.

     

    MENSAGEM

    As primeiras considerações do texto (cf. Tg 3,16-18) vão no sentido de exortar os crentes a viverem de acordo com a “sabedoria que vem do alto”.

    A “sabedoria do mundo” gera inveja, contendas, falsidade (cf. Tg 3,14), rivalidade, desordem e toda a espécie de más ações (cf. Tg 3,16). Não é uma boa base para construir uma vida com sentido. Destrói a pessoa e cria continuamente obstáculos que impedem a convivência e a comunhão com os outros irmãos. Trata-se de uma “sabedoria” incompatível com as exigências da autêntica adesão a Cristo.

    Ao contrário, a “sabedoria que vem do alto” é “pura, pacífica, compreensiva, generosa, cheia de misericórdia e boas obras, imparcial e sem hipocrisia” (Tg 3,17). São sete as “qualidades” da “sabedoria” aqui enumeradas. Como, no universo judaico, o número sete significa “perfeição”, “plenitude”, o autor da Carta de Tiago está a propor aos crentes um caminho de perfeição, de realização total, de Vida plena. A “sabedoria” dos cristãos é a “sabedoria” que brota da cruz de Cristo e que leva a viver no amor. As “boas obras” são a expressão prática desse amor.

    Na segunda parte do texto (cf. Tg 4,1-3), o autor da Carta de Tiago convida a uma reflexão sobre as causas dos conflitos e discórdias que afetam a vida das comunidades cristãs. Para ele, as coisas são bem evidentes: muitos dos membros da comunidade cristã não aderiram, de facto, a Jesus e à proposta de vida que Ele veio trazer. A sua fé, apesar de todas as declarações de circunstância, não é autêntica. Vivem ainda a vida velha do homem preso ao pecado. Estão dominados pelo egoísmo, pelo orgulho, pela ambição, pela inveja, pela cobiça, pela vontade de se sobreporem aos outros… E essas “paixões”, deixadas à solta, traduzem-se em atitudes de luta, em sentimentos de inveja e de rivalidade, em manifestações de ciúme, de arrogância e de ira. Vivem ainda agarrados à “sabedoria do mundo” e não de acordo com a “sabedoria do alto”, com a sabedoria do Evangelho.

    Vivendo assim, estes cristãos de nome e não de facto ficam de mãos vazias e constroem vidas sem sentidos. Deus não escuta os seus pedidos, pois o que pedem destina-se só a satisfazer os seus desejos egoístas. E Deus não dá nada para esse peditório. Uma oração que assenta em interesses egoístas não pode ser escutada por Deus.

     

    INTERPELAÇÕES

    • O Batismo é, para todos os crentes, o momento em que se encontram com Jesus e optam por Ele (mesmo que esse momento tenha ocorrido numa idade em que não tinham plena consciência das implicações dessa opção, entretanto renovada posteriormente); é o momento em que os crentes escolhem a “sabedoria do alto” e passam a conduzir a sua vida pelos critérios de Deus. Ungidos no batismo com o óleo do crisma, os batizados são escolhidos para serem sinais de Deus e rostos vivos dessa Vida nova que Deus quer propor ao mundo e aos homens. Coerentes com a sua opção batismal, os crentes fazem a diferença e anunciam – com as suas palavras, com os seus gestos, com a sua vida – um mundo mais humano, mais justo, mais fraterno, mais feliz para todos os filhos e filhas de Deus. Vivemos conscientes de que esta é a vocação a que são chamados todos os batizados? Procuramos viver de forma coerente com os compromissos que assumimos no dia do nosso Batismo? Os valores que conduzem a nossa vida e que testemunhamos são os valores que brotam da “sabedoria do alto”?
    • O autor da Carta de Tiago considera que muitos batizados, seduzidos pela “sabedoria do mundo”, instalam-se no egoísmo e na autossuficiência, vivem para o “ter”, deixam que a sua existência seja dirigida por critérios de ambição e de ganância, recusam-se a fazer da sua vida uma partilha generosa com os irmãos… Essa opção – diz ele – traz inevitáveis consequência negativas: não lhes assegura a sua plena realização, não enche de sentido as suas vidas; e destrói a vida das comunidades onde eles caminham, pois gera desordem, guerras, rivalidades, conflitos, divisões. A forma de se derrotar a “sabedoria do mundo” passa por nos mantermos em contínuo processo de conversão, sempre disponíveis para nos questionarmos sobre as nossas opções erradas e para voltarmos a escutar Deus e a sua “sabedoria”. É nesse sentido que caminhamos? Estamos acomodados à “sabedoria do mundo”, ou estamos continuamente dispostos a rever as nossas opções, a voltar para Deus e a viver de acordo com as propostas que Ele nos faz?
    • Finalmente, o autor da Carta de Tiago avisa que, quando o nosso coração está cheio da “sabedoria do mundo”, a nossa oração torna-se um monólogo egoísta, uma pedinchice de coisas que se destinam a satisfazer as nossas “paixões”, as nossas ambições egoístas, os nossos interesses pessoais. Ora, Deus não está disponível para esse tipo de conversa. Deixa-nos a falar sozinhos. A nossa oração é, nesse caso, inconsequente. Antes de falar com Deus, precisamos de mudar o nosso coração, de reequacionar os valores que priorizamos, de aprender a ver o mundo e a vida com os olhos de Deus, de nos aproximar de Deus. Então, sim, a nossa oração será um verdadeiro diálogo com Deus… Através desse diálogo, tornamo-nos mais conscientes do que Deus quer, dos planos que Ele tem para nós e para o mundo; ao mesmo tempo, partilhamos com Deus as nossas dificuldades, as nossas esperanças, os nossos sonhos, e entregamos tudo nas mãos d’Ele. A nossa oração será, então, um diálogo de amor entre Pai e filho, que encherá de paz e de esperança o nosso coração. Como é o nosso diálogo com Deus? É um monólogo que serve para atirar a Deus as nossas reivindicações e pedidos, ou é um diálogo sereno e cheio de amor com o nosso Pai do céu?

     

    ALELUIA – cf. 2Tes 2,14

    Aleluia. Aleluia.

    Deus chamou-nos por meio do Evangelho,
    para alcançarmos a glória de Nosso Senhor Jesus Cristo.

     

    EVANGELHO – Marcos 9,30-37

    Naquele tempo,
    Jesus e os seus discípulos caminhavam através da Galileia,
    mas Ele não queria que ninguém o soubesse;
    porque ensinava os discípulos, dizendo-lhes:
    «O Filho do homem vai ser entregue às mãos dos homens
    e eles vão matá-l’O;
    mas Ele, três dias depois de morto, ressuscitará».
    Os discípulos não compreendiam aquelas palavras
    e tinham medo de O interrogar.
    Quando chegaram a Cafarnaum e já estavam em casa,
    Jesus perguntou-lhes:
    «Que discutíeis no caminho?»
    Eles ficaram calados,
    porque tinham discutido uns com os outros
    sobre qual deles era o maior.
    Então, Jesus sentou-Se, chamou os Doze e disse-lhes:
    «Quem quiser ser o primeiro será o último de todos
    e o servo de todos».
    E, tomando uma criança, colocou-a no meio deles,
    abraçou-a e disse-lhes:
    «Quem receber uma destas crianças em meu nome
    é a Mim que recebe;
    e quem Me receber
    não Me recebe a Mim, mas Àquele que Me enviou».

     

    CONTEXTO

    Alguns dias antes, nos arredores de Cesareia de Filipe, Jesus já tinha avisado os discípulos de que devia, em breve, dirigir-se para Jerusalém; e que aí seria rejeitado pelas autoridades religiosas, preso, condenado à morte e crucificado (cf. Mc 8,31-32). Pedro tinha reagido mal às indicações de Jesus e tentara demover Jesus desses passos. Os outros discípulos, por sua vez, não tinham dado mostras de ter processado aquilo que Jesus tinha dito: estavam demasiado agarrados a sonhos antigos de grandeza, de poder e de prestígio para que as palavras de Jesus fizessem sentido. Aquela conversa parecia-lhes despropositada e incongruente; ainda acreditavam que Jesus, chegado a Jerusalém, iria entrar na cidade na pele de um Messias político, poderoso e invencível, capaz de libertar Israel, pela força das armas, do domínio romano.

    Entretanto, a viagem pela Galileia continuou. Jesus apercebeu-se, nos dias seguintes, que os discípulos não tinham levado a sério aquele primeiro anúncio sobre o destino de morte que o esperava em Jerusalém. Consciente de que era necessário deixar as coisas bem claras, aproveitou uma altura em que caminhava a sós com os discípulos e voltou a referir-se à sua morte próxima, às mãos das autoridades de Jerusalém. Ele não queria equívocos e não pretendia que os discípulos andassem atrás d’Ele pelas razões erradas. Este é o ponto de partida para o texto do Evangelho que a liturgia nos propõe neste vigésimo quinto domingo comum.

    O evangelista Marcos, pela sua parte, está interessado em dizer aos seus leitores que Jesus é o Messias, o Filho de Deus (cf. Mc 1,1); no entanto, nunca lhes oculta que esse Filho de Deus não veio ao mundo para cumprir um destino de triunfos e de glórias humanas, mas para cumprir a vontade do Pai e oferecer a sua vida em dom de amor aos homens. Ao apresentar, num breve espaço, os três anúncios da paixão de Jesus (cf. Mc 8,31-32; 9,30-31; 10,32-34), Marcos está a preparar-nos para o que vai contar na segunda parte do seu Evangelho; e para que também nós repitamos aquilo que disse o centurião romano destacado junto da cruz onde Jesus entregou a vida nas mãos do Pai: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus” (Mc 15,39).

     

    MENSAGEM

    Na primeira parte do texto, Jesus está a caminhar com os discípulos pela Galileia, descendo de Cesareia de Filipe para Cafarnaum. Desta vez as multidões não estão presentes. Marcos diz mesmo que Jesus quis manter o itinerário que seguiam em segredo, porque pretendia “ensinar” os seus discípulos (vers. 30-31).

    Ora, o primeiro passo desse “ensino” é precisamente sobre aquilo que o espera em Jerusalém: “O Filho do homem vai ser entregue às mãos dos homens e eles vão matá-l’O; mas Ele, três dias depois de morto, ressuscitará”. É a segunda vez que Jesus lhes faz este anúncio. As palavras de Jesus com que Jesus lhes descreve o futuro que o espera denotam tranquilidade e uma serena aceitação desses factos que irão concretizar-se em Jerusalém. Jesus recebeu do Pai a missão de propor aos homens o amor e o dom da vida como caminho de realização plena; e, para isso, Ele dispõe-se a morrer na cruz: ao dar a vida até ao extremo, Ele irá apresentar aos homens, de forma viva e contundente, a proposta de Deus. Nada o afastará do projeto do Pai.

    Em contrapartida, os discípulos não entendiam esta linguagem “e tinham medo de o interrogar” (vers. 32). Porque é que não entendiam? Por falta de clareza de Jesus? Não. As palavras de Jesus são claras; o que não é claro, para a mentalidade desses discípulos, é que o caminho do Messias tenha de passar pelo amor que se dá totalmente, até à última gota de sangue. O “não entendimento” é, aqui, o mesmo que discordância: intimamente, eles discordam do caminho que Jesus escolheu seguir, pois acham que o caminho da cruz – o caminho do amor proposto pelo Pai – é um caminho de fracasso. Ora, eles não contavam com o fracasso; contavam com o triunfo, a glória, o poder, as honras humanas.

    Apesar de discordarem de Jesus, os discípulos ficam calados, não se atrevem a criticá-l’O abertamente. Ainda recordam, com toda a certeza, a dura reação de Jesus quando Pedro quis afastá-lo do cumprimento do plano do Pai (cf. Mc 8,32-33). Mas o medo que sentem também resulta do facto de saberem que a resposta de Jesus será contrária aos projetos que eles próprios alimentam.

    A segunda parte do Evangelho deste domingo situa-nos já em Cafarnaum, “em casa” (esta “casa”, de acordo com a tradição de Marcos, será a casa de Pedro). A cena começa com uma pergunta de Jesus: “Que discutíeis pelo caminho?” (vers. 33). Mais uma vez os discípulos ficaram calados, provavelmente com medo da reação de Jesus. O contexto sugere, no entanto, que Jesus sabe claramente qual tinha sido o tema da discussão. Provavelmente, captou qualquer coisa da conversa e ficou à espera da oportunidade certa – na tranquilidade da “casa” – para esclarecer as coisas e para continuar a instrução dos discípulos.

    Só neste ponto Marcos informa os seus leitores de que os discípulos tinham discutido, pelo caminho, “sobre qual deles era o maior” (vers. 34). O problema da hierarquização dos postos e das pessoas era um problema de importância capital na sociedade palestina de então. Nas assembleias, na sinagoga, nos banquetes, a “ordem” de apresentação das pessoas estava rigorosamente definida e, com frequência, geravam-se conflitos graves por causa de pretensas infrações ao protocolo hierárquico. Os discípulos estavam profundamente imbuídos desta lógica. Uma vez que se aproximava o triunfo do Messias e iam ser distribuídos os postos-chave na cadeia de poder do reino messiânico, convinha ter o quadro hierárquico claro. Apesar do que Jesus lhes tinha dito pouco antes acerca do seu caminho de cruz, os discípulos recusavam-se a abandonar os seus próprios sonhos materiais e a sua lógica humana de ambição e de poder.

    Jesus senta-se, como faziam os “mestres” de Israel quando se preparavam para propor uma lição aos discípulos. Depois, ataca o problema de frente e com toda a clareza, pois o que está em jogo afeta a essência da sua proposta: “quem quiser ser o primeiro será o último de todos e o servo de todos” (vers. 35). Na comunidade de Jesus não há uma cadeia de grandeza, com uns no cimo e outros na base… Na comunidade de Jesus, só é grande aquele que é capaz de servir, de oferecer a vida aos seus irmãos, de amar até ao dom total da própria vida (vers. 35). Dessa forma, Jesus deita por terra qualquer pretensão de poder, de domínio, de grandeza, na comunidade do Reino. O discípulo que raciocinar em termos de poder e de grandeza (isto é, segundo a lógica do mundo) não poderá integrar a comunidade do Reino.

    Jesus completa a instrução aos discípulos com um gesto… Toma uma criança, coloca-a no meio do grupo, abraça-a e convida os discípulos a acolherem as “crianças”, pois quem acolhe uma criança acolhe o próprio Jesus e acolhe o Pai (vers. 36-37). Na sociedade palestina de então, as crianças não tinham direitos e não contavam do ponto de vista legal. Eram, portanto, um símbolo bem expressivo dos débeis, dos pequenos, dos pobres, dos indefesos, dos insignificantes, dos marginalizados. São esses, precisamente, que devem estar no centro da comunidade de Jesus; são esses que a comunidade de Jesus deve abraçar, acolher e amar. Quem se dispuser a pôr a sua vida ao serviço dos mais pequenos, dos mais humildes, dos mais desprezados, daqueles que o mundo desconsidera e põe de lado, esse será o maior, o mais importante. A comunidade de Jesus não é lugar de honras, mas lugar de serviço e de amor. Enquanto não entenderem isto, os discípulos estarão bem longe de entenderem Jesus.

     

    INTERPELAÇÕES

    • O Evangelho deste vigésimo quinto domingo comum põe frente a frente dois sistemas de valores, duas formas radicalmente diferentes de encarar a existência. De um lado está Jesus e a sua forma de viver e de priorizar os valores que dão sentido à vida; do outro lado estão os discípulos, cujos interesses parecem ser opostos aos de Jesus. Jesus vive imbuído dos valores de Deus. Não está preocupado com o seu êxito pessoal; interessa-lhe apenas cumprir o projeto de Deus e mostrar aos homens como o caminho do amor e do serviço conduzem à Vida verdadeira, à felicidade sem fim. Para dizer isso aos homens, Jesus está mesmo disposto a dar a sua vida até ao extremo, até à última gota de sangue, na cruz. Mas os discípulos, escravos da “sabedoria do mundo”, acreditam piamente que a felicidade está nos bens materiais, no poder, nas honras, nos privilégios; e fazem “orelhas moucas” quando Jesus os convida a segui-l’O nesse caminho que Ele vai percorrer, o caminho da vida dada por amor. Neste confronto de caminhos opostos, onde nos situamos?
    • Passaram-se dois mil anos, desde que Jesus andou pelos caminhos da Galileia e da Judeia a apresentar a sua proposta e a convidar os homens a construir um mundo mais justo e mais fraterno; e, mesmo depois desse tempo todo, parece que ainda não nos convencemos de que Jesus tinha razão. A corrida às honras, a priorização dos bens materiais, a luta pelos postos de poder e de influência, a ambição desmedida, a apetência pelos títulos e honrarias, a sobreposição dos interesses pessoais ao bem comum, continuam a marcar o ritmo de vida de muitos homens e mulheres do séc. XXI… Mais: isto não acontece apenas em ambientes “civis”, afastados de Jesus e das suas propostas; mas também acontece em contextos marcadamente cristãos, na comunidade dos discípulos. Que sentido é que isto faz? Poderemos apresentar-nos como discípulos de Jesus se ignoramos o caminho que Ele nos aponta? Uma Igreja que se organiza e estrutura tendo em conta os esquemas do mundo poderá considerar-se a Igreja de Jesus?
    • De acordo com Jesus, a importância de uma pessoa não se mede pelo dinheiro que possui, nem pelo poder que conquistou, nem pela influência social que adquiriu, nem pelo sucesso profissional que obteve, nem pelo estilo com que se veste, nem pelos títulos civis ou canónicos que ostenta, nem pelo seu aspeto físico, mas sim pela forma como serve e como ama os seus irmãos, sobretudo os mais frágeis e desprezados. De acordo com Jesus, a única grandeza é a grandeza de quem, com humildade e simplicidade, faz da própria vida um serviço aos irmãos. É isto que se passa nas nossas comunidades cristãs? Quem são, entre nós, os mais importantes, os que mais consideramos, reverenciamos e admiramos, aqueles a quem sentamos nos lugares mais distintos?
    • Jesus, para ilustrar a sua lição sobre o amor, tomou uma criança – símbolo de fragilidade, de pequenez, de pobreza, de simplicidade – colocou-a no meio dos discípulos e abraçou-a. Quis dizer, com esse gesto, que na sua comunidade são os mais pequenos, os mais pobres, os mais desprezados, os mais desconsiderados, os mais humildes que devem estar no centro; e que todos os outros membros da comunidade devem cuidar deles, abraçá-los, servi-los, ajudá-los, defendê-los. O frágil, o pequeno, o pobre é o próprio Jesus; e quem o acolhe, abraça o próprio Jesus… Como é que as nossas comunidades cristãs acolhem os pobres, os mais humildes, aqueles que o resto da sociedade rejeita e ignora, aqueles que ninguém quer e ninguém ama? Como é que são tratados nas nossas comunidades as pessoas vítimas de doenças incuráveis, os irmãos e irmãs que a moral condena, os refugiados, os sem abrigo, os que a vida feriu irremediavelmente? Há lugar para eles? São tratados com respeito e amor? São cuidados, abraçados e ajudados?
    • Marcos diz-nos que os discípulos “tinham medo de interrogar” Jesus. É verdade: por vezes sentimo-nos pouco cómodos com a frontalidade, a radicalidade, a exigência, a verdade de Jesus. Ele não se contenta com “meias tintas”, com verdades parciais, com escolhas que não são quente nem frio; Ele não se conforma com a nossa preguiça, a nossa acomodação, a nossa cobardia; Ele desafia-nos continuamente a um compromisso firme, à doação total da vida, ao amor até ao extremo, à conversão e à renovação. Seria mais fácil, para nós, refugiarmo-nos nas nossas orações decoradas, nas nossas devoções particulares, nos nossos solenes rituais litúrgicos, na nossa religião vivida como cumprimento de leis… Mas Jesus pede mais: pede que o sigamos no caminho de Jerusalém, no caminho do amor e do dom da vida… A exigência de Jesus deixa-nos pouco à vontade, ou é, para nós, uma decisão assumida e que procuramos viver com coerência e radicalidade? O seguimento de Jesus dá-nos medo, ou é um caminho libertador?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 25.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 25.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.

    Nunca os discípulos teriam ousado discutir diante do seu Mestre para saber quem era o maior. Eis a razão pela qual eles preferem calar-se. Que contraste entre a discussão dos discípulos sobre a sua promoção social e o anúncio de Jesus sobre o seu abaixamento! Como as suas palavras não parecem ser compreendidas pelos seus amigos, Ele vai fazer-lhes sinal através de um gesto: coloca uma criança no meio deles. A criança não conhece o prestígio, é desconsiderada pela sociedade… Jesus identifica-Se com esta criança: “Quem receber uma destas crianças em meu nome é a Mim que recebe”. Jesus não Se identifica com os grandes, mas com os pequenos. Ele vai mais longe, identifica-Se com o seu Pai: “Quem Me receber não Me recebe a Mim, mas Àquele que Me enviou”. O evangelista não descreve as reações dos discípulos, mas, naquele dia, estes compreenderam certamente que, se queriam ser seus discípulos, não deveriam procurar ser maiores que o seu Mestre.

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.

    “Que discutíeis no caminho? Eles ficaram calados, porque tinham discutido uns com os outros sobre qual deles era o maior”. Ser o maior, o primeiro, o melhor, o mais forte… É a terrível tentação do poder! Ela nunca abandonou o próprio Jesus. As suas três tentações, no deserto, andam à volta do poder. Em toda a sua vida, até à cruz, esta tentação vai acompanhá-l’O sempre… Variadas vezes, Jesus repreende os seus discípulos, coloca-os de aviso contra a tentação do poder: “Se alguém quer ser o primeiro, que ele seja o último de todos e o servidor de todos”. Jesus pregou tudo isso com palavras e com atos. Basta recordar o episódio do lava-pés na última ceia. O poder, para Jesus, é serviço ao crescimento do amor e da vida. É preciso reconhecer que, na sua história, a Igreja agiu muitas vezes ao contrário do Evangelho… Apesar dos progressos notáveis, em particular depois do Concílio Vaticano II, há ainda muito caminho a fazer. É preciso intensificar a nossa súplica, para que o Espírito não deixe nenhum membro da Igreja tranquilo, a fim de que todos sejamos interpelados pelo Evangelho. Daí depende a credibilidade do testemunho cristão no mundo!

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    Fazer o ponto da situação… É-nos dada a ocasião, nesta semana, para fazer o ponto sobre os nossos valores, sobre o que é importante para nós na vida: o que conta verdadeiramente para mim? A segunda leitura e o Evangelho podem ajudar-nos a refletir nisso. Tomar o tempo para se questionar simplesmente, em verdade, diante do Senhor: no fundo, o que é que eu procuro, o que espero da vida?

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

  • 26º Domingo do Tempo Comum - Ano B

    26º Domingo do Tempo Comum - Ano B


    29 de Setembro, 2024

    ANO B
    26º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    Tema do 26º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia do 26º Domingo do Tempo Comum apresenta várias sugestões para que os crentes possam purificar a sua opção e integrar, de forma plena e total, a comunidade do Reino. Uma das sugestões mais importantes (que a primeira leitura apresenta e que o Evangelho recupera) é a de que os crentes não pretendam ter o exclusivo do bem e da verdade, mas sejam capazes de reconhecer e aceitar a presença e a acção do Espírito de Deus através de tantas pessoas boas que não pertencem à instituição Igreja, mas que são sinais vivos do amor de Deus no meio do mundo.
    A primeira leitura, recorrendo a um episódio da marcha do Povo de Deus pelo deserto, ensina que o Espírito de Deus sopra onde quer e sobre quem quer, sem estar limitado por regras, por interesses pessoais ou por privilégios de grupo. O verdadeiro crente é aquele que, como Moisés, reconhece a presença de Deus nos gestos proféticos que vê acontecer à sua volta.
    No Evangelho temos uma instrução, através da qual Jesus procura ajudar os discípulos a situarem-se na órbita do Reino. Nesse sentido, convida-os a constituírem uma comunidade que, sem arrogância, sem ciúmes, sem presunção de posse exclusiva do bem e da verdade, procura acolher, apoiar e estimular todos aqueles que actuam em favor da libertação dos irmãos; convida-os também a não excluírem da dinâmica comunitária os pequenos e os pobres; convida-os ainda a arrancarem da própria vida todos os sentimentos e atitudes que são incompatíveis com a opção pelo Reino.
    A segunda leitura convida os crentes a não colocarem a sua confiança e a sua esperança nos bens materiais, pois eles são valores perecíveis e que não asseguram a vida plena para o homem. Mais: as injustiças cometidas por quem faz da acumulação dos bens materiais a finalidade da sua existência afastá-lo-ão da comunidade dos eleitos de Deus.
    LEITURA I - Nm 11,25-29

    Leitura do Livro dos Números

    Naqueles dias,
    o Senhor desceu na nuvem e falou com Moisés.
    Tirou uma parte do Espírito que estava nele
    e fê-lo poisar sobre setenta anciãos do povo.
    Logo que o Espírito poisou sobre eles,
    começaram a profetizar;
    mas não continuaram a fazê-lo.
    Tinham ficado no acampamento dois homens:
    um deles chamava-se Eldad e o outro Medad.
    O Espírito poisou também sobre eles,
    pois contavam-se entre os inscritos,
    embora não tivessem comparecido na tenda;
    e começaram a profetizar no acampamento.
    Um jovem correu a dizê-lo a Moisés:
    «Eldad e Medad estão a profetizar no acampamento».
    Então Josué, filho de Nun,
    que estava ao serviço de Moisés desde a juventude,
    tomou a palavra e disse:
    «Moisés, meu senhor, proíbe-os».
    Moisés, porém, respondeu-lhe:
    «Estás com ciúmes por causa de mim?
    Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta
    e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles!»

    AMBIENTE

    O Livro dos Números (assim chamado na versão grega, pelo facto de o livro começar com uma lista de recenseamento onde são dados os números de membros de cada tribo do Povo de Deus) apresenta um conjunto de tradições - sem grande preocupação de coerência e de lógica - sobre a estadia no deserto dos hebreus libertados do Egipto. São tradições de origem diversa, que os teólogos das escolas jahwista, elohista e sacerdotal utilizaram com fins catequéticos.
    No seu estado actual, o livro está dividido em três partes. A primeira narra os últimos dias da estadia do Povo de Deus no Sinai (cf. Nm 1,1-10,10); a segunda apresenta, em várias etapas, a caminhada do Povo pelo deserto, desde o Sinai à planície de Moab (cf. Nm 10,11-21,35); a terceira apresenta a comunidade dos filhos de Israel instalada na planície de Moab, preparando a sua entrada na Terra Prometida (cf. 11,1-36,13).
    Mais do que uma crónica de viagem do Povo de Deus desde o Sinai, até às portas da Terra Prometida, o Livro dos Números é um livro de catequese. Pretende mostrar que a essência de Israel é ser um Povo reunido à volta de Jahwéh e da Aliança. Com algum idealismo, os autores do Livro dos Números vão descrevendo como, por acção de Jahwéh, esse grupo informe de nómadas libertado do Egipto foi ganhando progressivamente uma consciência nacional e religiosa, até chegar a formar a "assembleia santa de Deus". Ao longo do percurso geográfico pelo deserto, Israel vai fazendo também uma caminhada espiritual, durante a qual se vai libertando da mentalidade de escravo, para adquirir uma cultura de liberdade e de maturidade. O autor mostra como, por acção de Deus (que está sempre presente no meio do Povo), Israel vai progressivamente amadurecendo, renovando-se, transformando-se, alargando os horizontes, tornando-se um Povo mais responsável, mais consciente, mais adulto e mais santo.
    O episódio que hoje nos é proposto acontece pouco depois da partida do Sinai. Num lugar chamado Tabera (cf. Nm 11,3), o Povo revoltou-se por não ter comida em abundância e murmurou contra Jahwéh. Moisés, cansado e desiludido, queixou-se ao Senhor de não conseguir aguentar o fardo da condução deste Povo rebelde (cf. Nm 11,11-15); então, Jahwéh propôs a Moisés escolher setenta anciãos que, depois de ungidos pelo Espírito de Deus, ajudariam Moisés na tarefa de conduzir o Povo pelo deserto (cf. Nm 11,16-24). É precisamente neste ponto que começa o nosso texto.

    MENSAGEM

    Os "anciãos" (em hebraico: "tzequenîm") são uma instituição no universo político e social de Israel. São os "cabeças de família" que formavam, em cada cidade, uma espécie de "conselho" e que presidiam à comunidade. O nosso texto faz remontar a Moisés e ao deserto a instituição dos anciãos. Na perspectiva do catequista bíblico, eles recebem o Espírito de Deus para colaborar na governação do Povo de Deus.
    A forma como o nosso autor descreve o dom do Espírito é a seguinte: Deus tirou "uma parte" do Espírito que estava em Moisés e derramou-o sobre os setenta anciãos. Na perspectiva do autor, a explicação é esta: Moisés possuía a plenitude do Espírito enquanto dirigiu sozinho o Povo de Deus; porém, quando a responsabilidade da governação foi dividida com os setenta anciãos, também o Espírito que repousava em Moisés foi repartido por todos. A descrição, ainda que bizarra, dá a ideia, por um lado, da unidade do Espírito e, por outro, da partilha do mesmo Espírito por todos aqueles que Deus chama a uma missão.
    A presença do Espírito de Deus nos anciãos manifesta-se na capacidade de profetizar. O "profetismo" de que aqui se fala não tem nada a ver com o "profetismo" dos grandes profetas pregadores e escritores que Israel conhecerá mais tarde; mas designa um estado de entusiasmo ou frenesim, de êxtase e delírio colectivo, destinados a criar um clima de fervor e de exaltação religiosa. Nesta altura, manifestações deste tipo são vistas como sinais da presença do Espírito de Deus.
    A história tem, contudo, um epílogo inesperado: Eldad e Medad, dois anciãos que estariam na lista dos setenta escolhidos, mas que não estavam presentes no momento da recepção do Espírito, começaram também a profetizar. Josué crê que se trata de um abuso intolerável, que põe em causa as competências da hierarquia estabelecida e propõe a Moisés que lhe ponha cobro... A resposta de Moisés é a resposta de um homem livre, magnânimo, de espírito aberto, que não está preocupado com o controle dos mecanismos de poder, mas com a vida e a felicidade do seu Povo: "Estás com ciúmes por causa de mim? Quem me dera que todo o Povo fosse profeta e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles" (vers. 29).
    A resposta de Moisés será um anúncio profético do dia do Pentecostes, quando o Espírito de Deus se derramou sobre a totalidade do Povo da Nova Aliança (cf. Act 2,16-21).

    ACTUALIZAÇÃO

    • A comunidade do Povo de Deus é a comunidade do Espírito. O Espírito não é privilégio dos membros da hierarquia; mas está bem vivo e bem presente em todos aqueles que abrem o coração aos dons de Deus e que aceitam comprometer-se com Jesus e com o seu projecto de vida. Mesmo o irmão mais humilde, mais pobre, menos considerado da nossa comunidade possui o Espírito de Deus.

    • O episódio ensina também que o Espírito de Deus é livre e actua onde quer e como quer. Não está limitado por fronteiras, nem por regras, nem por interesses pessoais, nem por privilégios de grupo. Nenhuma Igreja tem o monopólio do Espírito, nenhuma instituição pode controlá-lo ou acorrentá-lo. Por vezes, somos testemunhas da acção do Espírito no mundo através de pessoas que não pertencem à nossa instituição religiosa... Não temos que sentir-nos melindrados ou ciumentos se Deus age no mundo através de pessoas que não pertencem à nossa Igreja; temos é de reconhecer a presença de Deus nos gestos de amor, de paz, de justiça, de solidariedade, de partilha que todos os dias testemunhamos (mesmo naqueles que se dizem ateus) e agradecer ao nosso Deus a sua presença, a sua acção, o seu amor pelos homens e pelo mundo.

    • A certeza de que ninguém tem o exclusivo do Espírito obriga-nos a pôr de lado qualquer atitude de fanatismo, de intransigência ou de intolerância face às perspectivas diferentes com que somos confrontados. Os preconceitos, os esquemas egoístas, as condenações à priori, os julgamentos apressados, podem fazer-nos perder os desafios que o Espírito, pela voz dos irmãos, nos apresenta.

    • Moisés, o líder do processo de libertação que trouxe os hebreus da terra da escravidão para a Terra da liberdade, foi capaz de reconhecer a sua debilidade e a sua incapacidade de "fazer tudo" e aceitou a ajuda da comunidade. Não teve ciúmes, nem inveja, nem medo de perder o controle do processo, nem dificuldade em aceitar a partilha das tarefas que o Senhor lhe confiou. Com o seu exemplo, ele ensina os responsáveis das nossas comunidades a aceitar a ajuda dos irmãos, a partilhar com outros o peso da responsabilidade de conduzir a comunidade do Povo de Deus. Por vezes, temos a convicção de que só nós somos capazes de fazer as coisas bem e evitamos aceitar a ajuda dos outros; por vezes, sentimos que a intervenção de outras pessoas é uma ameaça ao nosso poder e rejeitamos qualquer ajuda; por vezes, queremos controlar o caminho da comunidade, porque não estamos dispostos a renunciar aos nossos sonhos, aos nossos projectos pessoais... Já pensámos que, quando não aceitamos partilhar responsabilidades, estamos a impedir os outros de crescer? Já pensámos que, quando somos nós a conduzir todo o processo, sem nos deixarmos confrontar com perspectivas diferentes, podemos estar a calar os desafios do Espírito?
    SALMO RESPONSORIAL - Salmo 18 (19)

    Refrão: Os preceitos do Senhor alegram o coração.

    A lei do Senhor é perfeita,
    ela reconforta a alma.
    As ordens do Senhor são firmes,
    dão sabedoria aos simples.

    O temor do Senhor é puro
    e permanece eternamente;
    Os juízos do Senhor são verdadeiros,
    todos eles são rectos.

    Embora o vosso servo se deixe guiar por eles
    e os observe com cuidado,
    quem pode, entretanto, reconhecer os seus erros?
    Purificai-me dos que me são ocultos.

    Preservai também do orgulho o vosso servo,
    para que não tenha poder algum sobre mim:
    então serei irrepreensível
    e imune de culpa grave.
    LEITURA II - Tg 5,1-6

    Leitura da Epístola de São Tiago

    Agora, vós, ó ricos, chorai e lamentai-vos,
    por causa das desgraças que vão cair sobre vós.
    As vossas riquezas estão apodrecidas
    e as vossas vestes estão comidas pela traça.
    O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se,
    e a sua ferrugem vai dar testemunho contra vós
    e devorar a vossa carne como fogo.
    Acumulastes tesouros no fim dos tempos.
    Privastes do salário os trabalhadores
    que ceifaram as vossas terras.
    O seu salário clama;
    e os brados dos ceifeiros
    chegaram aos ouvidos do Senhor do Universo.
    Levastes na terra uma vida regalada e libertina,
    cevastes os vossos corações para o dia da matança.
    Condenastes e matastes o justo
    e ele não vos resiste.

    AMBIENTE

    A Carta de Tiago termina com dois blocos de exortações onde o autor recorda aos seus interlocutores alguns dos aspectos que elencou anteriormente e que, na sua perspectiva, devem ser tidos em séria conta por parte de quem está interessado em viver a vida cristã autêntica. Para o autor, o acesso à vida plena depende das opções que o homem faz enquanto caminha nesta terra.
    O primeiro bloco (cf. Tg 4,11-5,6) contém um elenco de atitudes negativas, que os crentes devem evitar a todo o custo: falar mal dos irmãos (cf. Tg 4,11-12), viver no orgulho e na auto-suficiência face a Deus (cf. Tg 4,13-17), viver para os bens materiais e praticar injustiças contra os pobres (cf. Tg 5,1-6). O segundo bloco (cf. Tg 5,7-20) contém uma lista de atitudes positivas que os crentes devem assumir enquanto esperam a vinda do Senhor: paciência, perseverança e firmeza no falar (cf. Tg 5,7-12), oração (cf. Tg 5,1-18) e preocupação em reconduzir ao bom caminho o irmão que anda afastado (cf. Tg 5,19-20).
    O texto que nos é proposto é um grito profético de denúncia dos ricos, do seu orgulho e auto-suficiência, da sua obsessão pelos bens materiais. Este texto deve ser colocado no quadro geral de uma época de profundas desigualdades: ao lado de uma riqueza desmesurada e sem limites, vive e sofre a miséria mais aguda. A exploração do pobre e a violência contra os humildes eram, na época, fenómenos demasiado frequentes e que os cristãos conheciam bem.

    MENSAGEM

    A primeira parte do nosso texto (vers. 1-3) trata do problema da acumulação da riqueza. O autor, como numa visão profética, contempla o final dos tempos e descreve, com violência, a sorte que espera aqueles cujo objectivo principal na vida foi o acumular bens. Será que os bens, o poder, a consideração que eles gozaram neste mundo lhes servirá de alguma coisa, quando chegar o juízo final, o momento em que se joga o destino definitivo do homem?
    Obviamente que não. Esses bens nos quais os ricos depositam agora toda a sua segurança e esperança perderão todo o valor ("as vossas riquezas estão apodrecidas e as vossas vestes estão comidas pela traça. O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se..." - vers. 2-3a); ou, pior ainda, serão uma testemunha de acusação, que denunciará o amor descontrolado dos bens materiais, o orgulho e a auto-suficiência, as injustiças praticadas contra os pobres. O destino final dos bens perecíveis é a destruição; e quem tiver os bens materiais como o seu deus, a sua referência fundamental, não terá acesso à vida plena e eterna (vers. 3b.c).
    Na segunda parte do nosso texto (vers. 4-6), o autor refere-se à origem desses bens acumulados pelos ricos. Para o autor, não há dúvidas nem meios-termos: a riqueza provém sempre da exploração dos pobres. Como exemplo, o autor cita o não pagamento dos salários devidos aos trabalhadores que ceifaram os campos dos ricos (vers. 4). Trata-se de um pecado que a Lei condena de forma veemente e que Deus castigará duramente (cf. Lv 19,13; Dt 24,15). Não pagar o salário ao trabalhador é condená-lo à morte, bem como a toda a sua família (vers. 6). Os luxos e os prazeres dos ricos vivem assim da morte dos pobres.
    Naturalmente, Deus não pode pactuar com a injustiça e, por isso, não ficará indiferente ao sofrimento do pobre e do oprimido. O clamor dos injustiçados sobe da terra até junto de Deus e faz com que Deus actue. Com ironia mordaz, o autor compara o rico ao cevado que, engordando, apressa o dia da sua própria matança (vers. 5): os ricos, vivendo no luxo e nos prazeres à custa do sangue dos pobres, estão a preparar para si próprios um caminho de desgraça e de castigo.
    A linguagem do autor da Carta de Tiago é violenta e colorida, bem ao gosto dos pregadores da época. Para além da veemência das palavras deve ficar, contudo, esta mensagem: quem vive para os bens materiais e coloca neles o sentido da sua existência, dificilmente terá disponibilidade para acolher os dons de Deus e para acolher essa vida plena que Deus quer oferecer aos homens. Por outro lado, Deus não tolera a exploração, a opressão do pobre; e quem conduzir a sua vida por caminhos de injustiça, não poderá fazer parte da família de Deus.

    ACTUALIZAÇÃO

    • O autor da Carta de Tiago critica os ricos, em primeiro lugar porque eles vivem apenas para acumular bens materiais, negligenciando os verdadeiros valores. Fazem do ouro e da prata os seus deuses e centram toda a sua existência em valores caducos e perecíveis. No final da sua existência vão perceber que gastaram a vida a correr atrás de algo que não dá felicidade nem conduz o homem à vida plena; a sua existência terá sido, então, um dramático equívoco. O "aviso" do autor da Carta de Tiago conserva uma espantosa actualidade... A acumulação de bens materiais tornou-se, para tantos homens do nosso tempo, o único objectivo da vida e o critério único para definir uma vida de sucesso. Contudo, aqueles que apostam tudo nos bens perecíveis facilmente constatam como essa opção não responde, em definitivo, à sua sede de felicidade e de vida plena. O ouro, a conta bancária, o carro de luxo, a casa de sonho, dão-nos satisfações imediatas e, talvez, um certo estatuto aos olhos do mundo; mas não saciam a nossa sede de vida eterna. Nós, os cristãos, somos chamados a testemunhar que a vida verdadeira brota dos valores eternos - esses valores que Deus nos propõe.

    • O autor da Carta de Tiago critica os ricos, em segundo lugar, porque frequentemente a riqueza resulta da exploração e da injustiça. Acumular bens à custa da miséria e da exploração dos irmãos é, na perspectiva do autor do nosso texto, um crime abominável e que Deus não deixará impune. Não é cristão quem não paga o salário justo aos seus operários, mesmo que ofereça depois somas chorudas para a construção de uma igreja; não é cristão quem especula com os bens de primeira necessidade, mesmo que vá todos os domingos à missa e pertença a vários grupos paroquiais; não é cristão quem inventa esquemas para não pagar impostos, mesmo que seja muito amigo do padre da paróquia; não é cristão quem se aproveita da ignorância e da miséria para realizar negócios altamente rentáveis, mesmo que pense repartir com Deus os frutos das suas rapinas...

    • Uma coisa deve ficar clara: Deus não apoia nunca quem vive fechado em si próprio, no açambarcamento egoísta desses bens que Deus nos concedeu para serem postos ao serviço de todos os homens; e qualquer crime cometido contra os pobres é um crime contra Deus, que afasta o homem da vida plena da comunhão com Deus.
    ALELUIA - cf. Jo 17,17b.a

    Aleluia. Aleluia.

    A vossa palavra, Senhor, é a verdade;
    santificai-nos na verdade.
    EVANGELHO - Mc 9,38-43.45-47-48

    Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

    Naquele tempo,
    João disse a Jesus:
    «Mestre,
    nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome
    e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco».
    Jesus respondeu:
    «Não o proibais;
    porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome
    e depois dizer mal de Mim.
    Quem não é contra nós é por nós.
    Quem vos der a beber um copo de água, por serdes de Cristo,
    em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa.
    Se alguém escandalizar algum destes pequeninos
    que crêem em Mim,
    melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço
    uma dessas mós movidas pró um jumento
    e o lançassem ao mar.
    Se a tua mão é para ti ocasião de escândalo, corta-a;
    porque é melhor entrar mutilado na vida
    do que ter as duas mãos e ir para a Geena,
    para esse fogo que não se apaga.
    E se o teu pé é para ti ocasião de escândalo, corta-o;
    porque é melhor entrar coxo na vida
    do que ter os dois pés e ser lançado na Geena.
    E se um dos teus olhos é para ti ocasião de escândalo,
    deita-o fora;
    porque é melhor entrar no reino de Deus só com um dos olhos
    do que ter os dois olhos e ser lançado na Geena,
    onde o verme não morre e o fogo não se apaga».

    AMBIENTE

    Estamos ainda em Cafarnaum (cf. Mc 9,33), a cidade de pescadores situada junto do Lago de Tiberíades. Jesus está "em casa" rodeado pelos discípulos. A ida para Jerusalém está próxima e os discípulos estão conscientes de que se aproximam tempos decisivos para esse projecto em que estão envolvidos.
    Apesar da sua opção inequívoca por Jesus, os discípulos continuam a dar mostras de não terem ainda conseguido absorver os valores do Reino. Para eles, o seguimento de Jesus é uma opção que deverá traduzir-se na concretização de determinados sonhos de poder, de grandeza e de prestígio... Por isso, sentem-se inquietos e ciumentos quando encontram algo que possa colocar em causa os seus interesses, a sua autoridade, os seus "privilégios".
    Jesus vai, com paciência, tentando formar os discípulos na lógica do Reino. O texto que a liturgia deste domingo nos propõe como Evangelho é mais uma instrução que Jesus dirige aos discípulos no sentido de lhes mostrar os valores que eles devem interiorizar, se quiserem integrar a comunidade messiânica.
    Marcos juntou aqui uma série de "ditos" de Jesus, inicialmente independentes entre si e pronunciados em contextos diversos. Estes "ditos" apresentam, contudo, exigências várias que os discípulos de Jesus devem considerar e que, em última análise, definem a pertença ou a não pertença à comunidade do Reino.

    MENSAGEM

    Sendo o Evangelho deste domingo constituído por um conjunto de "ditos" de Jesus - originariamente independentes uns dos outros e versando questões diversas - temos vários temas a cruzar o nosso texto. O tema principal (uma vez que é também o tema da primeira leitura) aparece na primeira parte do Evangelho... Refere-se à necessidade de a comunidade cristã ser uma comunidade aberta, acolhedora, tolerante, capaz de aceitar como sinais de Deus os gestos libertadores que acontecem no mundo.
    Nos primeiros versículos deste texto, João (desta vez o porta-voz do grupo) queixa-se pelo facto de terem encontrado alguém a "expulsar demónios" em nome de Jesus, embora não pertencesse ao grupo dos discípulos; considerando um abuso a utilização do nome de Jesus por parte de alguém que não fazia parte da comunidade messiânica, os discípulos procuraram impedi-l'O de actuar (vers. 38-41).
    A atitude dos discípulos mostra, antes de mais, arrogância, sectarismo, intransigência, intolerância, ciúmes, mesquinhez, pretensão de monopolizar Jesus e a sua proposta, presunção de serem os donos exclusivos do bem e da verdade... Mas, por detrás da reacção dos discípulos, deve estar também uma grande preocupação com a concretização dos projectos pessoais de prestígio e grandeza que quase todos eles alimentavam. Pouco tempo antes, eles tinham estado a discutir uns com os outros acerca de quem seria o maior e de quem iria herdar os postos mais importantes no Reino que, com Jesus, ia nascer (cf. Mc 9,33-37); agora, eles estão inquietos e preocupados, porque apareceu alguém de fora do grupo que pretende actuar em nome de Jesus e que pode, num futuro próximo, disputar-lhes os lugares de relevo na estrutura política do Reino.
    Jesus procura levar os discípulos a ultrapassar esta visão sectária e egoísta da missão. Na perspectiva de Jesus, quem luta pela justiça e faz obras em favor do homem, está do lado de Jesus e vive na dinâmica do Reino, mesmo que não esteja formalmente dentro da estrutura eclesial. A comunidade de Jesus não pode ser uma comunidade fechada, exclusivista, monopolizadora, que amua e sente ciúmes quando alguém de fora faz o bem; nem pode sentir-se atingida nos seus privilégios e direitos pelo facto de o Espírito de Deus actuar fora das fronteiras da Igreja... A comunidade de Jesus deve ser uma comunidade que põe, acima dos seus interesses, a preocupação com o bem do homem; e deve ser uma comunidade que sabe acolher, apoiar e estimular todos aqueles que actuam em favor da libertação dos irmãos.
    Na segunda parte do nosso texto (vers. 42-48), temos outros "ditos" de Jesus que abordam outros temas. Constituem também indicações aos discípulos sobre as atitudes a assumir para integrar plenamente a comunidade do Reino. Nesses "ditos", são usadas imagens fortes, expressivas, hiperbólicas, bem ao gosto dos pregadores da época, destinadas a impressionar profundamente os ouvintes. Não são expressões para traduzir à letra; mas são expressões que pretendem marcar a necessidade de fazer escolhas acertadas, de optar com radicalidade pelos valores do Reino.
    O primeiro desses "ditos" é um aviso àqueles que "escandalizam" os "pequeninos" (vers. 42). Na nossa cultura, "escandalizar" é protagonizar um mau exemplo ou um facto revoltante que melindra ou fere a susceptibilidade daqueles que testemunham essa acção. Na linguagem de Marcos, no entanto, "escandalizar" tem um significado um tanto diferente... O verbo grego "scandalidzô" aqui utilizado define, em Marcos, a acção de desistir de seguir Jesus, de não ter coragem para assumir a proposta que Jesus veio fazer (cf. Mc 4,17; 8,35.38). Os "pequeninos" de que Jesus fala são os membros da comunidade que estão numa situação de dependência, de debilidade, de necessidade... Os membros da comunidade do Reino devem, portanto, abster-se de qualquer atitude que possa afastar alguém (especialmente os pequenos, os débeis, os pobres) da adesão a Jesus e ao caminho que Ele veio propor. Fazer algo que afaste uma dessas pessoas de Cristo e da comunidade é algo verdadeiramente inadmissível e impensável (a quem fizer isso, "melhor seria que lhe atassem ao pescoço uma dessas mós movidas por um jumento e o lançassem ao mar" - vers- 42).
    O segundo "dito" de Jesus (vers. 43-48) refere-se à absoluta necessidade de arrancar da própria vida todos os sentimentos e atitudes que são incompatíveis com a opção por Cristo e pela sua proposta. Quando Jesus fala em cortar a mão (a mão é, nesta cultura, o órgão da acção, através do qual se concretizam os desejos que nascem no coração) ou de cortar o pé ou de arrancar o olho que é ocasião de pecado (o olho é, nesta cultura, o órgão que dá entrada aos desejos), está a sublinhar, com toda a veemência, a necessidade de actuar, lá onde as acções más do homem têm origem e eliminar na fonte as raízes do mal. Estando em jogo o destino último do homem, não se pode protelar ou adiar "cortes" importantes nas atitudes de egoísmo e de auto-suficiência que afastam os homens de Deus e da vida plena.
    Há ainda, neste segundo "dito", referências sucessivas a um castigo na "Geena", "onde o verme não morre e o fogo não se apaga", para aqueles que recusarem cortar com as atitudes e os sentimentos incompatíveis com o seguimento de Jesus. A palavra "Geena" vem do hebraico "Ge Hinnon" ("Vale do Hinnon"). Refere-se a um vale situado a sudoeste de Jerusalém, onde eram enterrados os mortos e onde, dia e noite, era queimado o lixo produzido pelos habitantes da cidade. Era considerado, portanto, um lugar maldito, impuro, tenebroso, que convinha evitar. Jesus usa aqui a imagem do "Ge Hinnon", para falar de uma vida perdida, frustrada, destruída, maldita, sem sentido. Quem não for capaz de cortar com o egoísmo, o orgulho, a auto-suficiência, é como se, em lugar de viver num lugar livre e feliz, estivesse condenado a viver no "Ge Hinnon".

    ACTUALIZAÇÃO

    • O Evangelho deste domingo apresenta-nos um grupo de discípulos ainda muito atrasados na aprendizagem do "caminho do Reino". Eles ainda raciocinam em termos de lógica do mundo e têm dificuldade em libertar-se dos seus interesses egoístas, dos seus esquemas pessoais, dos seus preconceitos, dos seus sonhos de grandeza e poder... Eles não querem entender que, para seguir Jesus, é preciso cortar com certos sentimentos e atitudes que são incompatíveis com a radicalidade que a opção pelo Reino exige. As dificuldades que estes discípulos apresentam no sentido de responder a Jesus não nos são estranhas: também fazem parte da nossa vida e do caminho que, dia a dia, percorremos... Assim, a instrução que, neste texto, Jesus dirige aos seus discípulos serve-nos também a nós. As propostas de Jesus destinam-se aos discípulos de todas as épocas; pretendem ajudar-nos a purificar a nossa opção e a integrar, de forma plena, a comunidade do Reino.

    • Antes de mais, Jesus mostra aos discípulos que a comunidade do Reino não pode ser uma seita arrogante, fechada, intolerante, fanática, que se arroga a posse exclusiva de Deus e das suas propostas. Tem de ser uma comunidade que sabe qual o seu papel e a sua missão, mas que reconhece que não tem o exclusivo do bem e da verdade e que é capaz de se alegrar com os gestos de bondade e de esperança que acontecem à sua volta, mesmo quando esses gestos resultam da acção de não crentes ou de pessoas que não pertencem à instituição Igreja. O verdadeiro discípulo não tem inveja do bem que outros fazem, não sente ciúmes se Deus actua através de outras pessoas, não pretende ter o monopólio da verdade nem ter o exclusivo de Jesus. O verdadeiro discípulo esforça-se, cada dia, por testemunhar os valores do Reino e alegra-se com os sinais da presença de Deus em tantos irmãos com outros percursos religiosos, que lutam por construir um mundo mais justo e mais fraterno.

    • Os discípulos de que o Evangelho de hoje nos fala estão preocupados com a acção de alguém que não é do grupo, pois temem ver postos em causa os seus sonhos pessoais de poder e de grandeza. Por detrás dessa preocupação dos discípulos não está o bem do homem (aquilo que, em última análise, devia "mover" os membros da comunidade do Reino), mas a salvaguarda de certos interesses egoístas. Nas nossas comunidades cristãs ou religiosas, há pessoas capazes de gestos incríveis de doação, de entrega, de serviço aos irmãos; mas há também pessoas cuja principal preocupação é proteger o espaço que conquistaram e continuar a manter um estatuto de poder e de prestígio... Quando afastamos (com o pretexto de defender a pureza da fé, os interesses da moralidade, ou tranquilidade da comunidade) aqueles que desafiam a comunidade a purificar-se e a procurar novos caminhos para responder aos desafios de Deus, estaremos a proteger os interesses de Deus ou os nossos projectos, os nossos esquemas interesseiros, as nossas apostas pessoais?

    • No nosso texto, Jesus exige dos discípulos o corte radical com os valores, os sentimentos, as atitudes que são incompatíveis com a opção pelo Reino. O discípulo de Jesus nunca está acomodado, instalado, conformado; mas está sempre atento e vigilante, procurando detectar e eliminar da sua existência tudo aquilo que lhe impede o acesso à vida plena. Naturalmente, a renúncia ao egoísmo, ao comodismo, ao orgulho, aos esquemas pessoais, à vontade de poder e de domínio, ao apelo do êxito, ao aplauso das multidões, é um processo difícil e doloroso; mas é também um processo libertador e gerador de vida nova. O que é que eu necessito, prioritariamente, de "cortar" da minha vida, para me identificar mais com Jesus, para merecer integrar a comunidade do Reino, para ser mais livre e mais feliz?

    • O apelo de Jesus à sua comunidade no sentido de não "escandalizar" (afastar da comunidade do Reino) os pequenos, faz-nos pensar na forma como lidamos, enquanto pessoas e enquanto comunidades, com os pobres, os que falharam, os que têm atitudes moralmente reprováveis, aqueles que têm uma fé pouco consistente, aqueles que a vida marcou negativamente, aqueles que a sociedade marginaliza e rejeita... Eles encontram em nós a proposta libertadora que Cristo lhes faz, ou encontram em nós rejeição, injustiça, marginalização, mau exemplo? Quem vê o nosso testemunho tem razões para aderir a Cristo, ou para se afastar de Cristo?
    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 26º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas de "Signes d'aujourd'hui")

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
    Ao longo dos dias da semana anterior ao 26º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo... Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa... Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.
    Quando Jesus chama, pede para deixar tudo para O seguir. Quando Jesus fala do Reino, anuncia um mundo totalmente novo. Quando Jesus pede para amar, propõe um regresso radical. Mas será necessário tempo aos seus discípulos para compreender tudo isso, e sobretudo para vivê-lo. Eles conhecerão hesitações, procurarão compromissos, porão condições. Ora, para Jesus, nada deve ser obstáculo à entrada no Reino de Deus. Jesus coloca o homem face à sua liberdade, ele deve escolher. Se ele escolheu o Reino, deve aceitar as suas exigências, que se resumem numa única palavra AMAR. O homem é convidado a amar com todo o seu ser: as suas mãos para partilhar, os seus pés para reencontrar, os seus olhos para olhar. Cabe ao homem fazer com que todo o seu ser responda à sua vontade de amar.

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.
    "Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco»". João quer delimitar as fronteiras do grupo dos discípulos, pôr em ordem, classificar os bons de um lado, os maus de outro, separar aqueles que estão "em regra" daqueles que estão à margem. Esta tentação de erguer barreiras entre os homens em nome de Deus é uma tentação mortal. É a tentação de todos aqueles que pretendem agir em nome de Deus, que se declaram, eles e apenas eles, detentores da Verdade e reivindicam serem eles os únicos verdadeiros fiéis de Deus. Todos os outros, que não pensam, que não agem como eles devem ser rejeitados, condenados. Essa tentação gera o fanatismo. Isso não é em vista do espírito! É uma realidade bem concreta no nosso mundo e também na história, antiga e actual, de praticamente todas as religiões. Mas Jesus conduz-nos para além disso. Sem dúvida diz Ele: "Eu sou a Verdade", mas não reivindica qualquer poder. Recusa entrar no jogo de João: "Não impeçais este homem de expulsar os demónios em meu nome". Porquê? Porque Jesus veio para reunir na unidade os filhos de Deus dispersos e, como dirá São Paulo, para destruir a barreira que separava os Judeus e os pagãos, para fazer a paz e reconciliar todos os homens com Deus e entre eles.

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE...
    Com Maria, humilde serva... Para nos ajudar a amar sem orgulho, em quase início de mês de Outubro, mês do Rosário: peçamos o apoio e a intercessão de Maria. Ela que foi a humilde serva do Senhor, pode ensinar-nos a humildade, o serviço, a disponibilidade, o amor.

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA NAS COMUNIDADES DEHONIANAS
    Grupo Dinamizador:
    P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 - 1800-129 LISBOA - Portugal
    Tel. 218540900 - Fax: 218540909
    portugal@dehonianos.org - www.dehonianos.org

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