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  • Tempo Comum - Anos Ímpares - IV Semana - Quarta-feira

    Tempo Comum - Anos Ímpares - IV Semana - Quarta-feira


    1 de Fevereiro, 2023

    Tempo Comum - Anos Ímpares - IV Semana - Quarta-feira

    Lectio

    Primeira leitura: Hebreus 12, 4-7.11-15

    Irmãos: Ainda não resististes até ao sangue na luta contra o pecado. 5Esquecestes a exortação que vos é dirigida como a filhos:Meu filho, não desprezes a correcção do Senhor, e não desanimes quando és repreendido por Ele, 6porque o Senhor corrige os que ama e castiga todo o que reconhece como filho. 7É para vossa correcção que sofreis. Deus trata-vos como filhos; e qual é o filho a quem o pai não corrige? 11É certo que toda a correcção, no momento em que é aplicada, não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; mais tarde, porém, produz um fruto de paz e de justiça nos que foram exercitados por ela. 12Por isso, levantai as vossas mãos fatigadas e os vossos joelhos enfraquecidos, 13fazei caminhos rectos para os vossos pés, para que o coxo não coxeie mais, mas seja curado. 14Procurai a paz com todos e a santidade, sem a qual ninguém verá o Senhor. 15Vigiai, para que ninguém venha a estar privado da graça de Deus, nem alguma raiz amarga, crescendo, vos cause dano e, por meio dela, muitos venham a ser contaminados.

    O autor da Carta aos Hebreus continua a encorajar na fé os seus destinatários. Sofrimento pelo sofrimento? Não! Seria um absurdo, pois é sempre uma privação, algo de negativo. Por isso, o nosso autor, que já ilustrou a dimensão teológica do sofrimento, vai agora tratar do seu aspecto mais imediato, que é o pedagógico. A provação pode parecer dura, pesada. Mas há uma chave de leitura que nos permite descobri-la como positiva: a provação é fruto de amor. Se o Senhor permite provações, é para nos fazer crescer na dimensão filial. Por isso é que Jesus veio falar-nos do coração de Deus e revelar-nos o rosto do Pai. A relação de Deus connosco é sempre a relação de um Pai bom para com os seus filhos. Se corrige, é para nos educar. É um sinal de amor de Alguém que Se inclina sobre o filho vacilante para o tornar estável e forte. Só quem ama é capaz de intervir em prol do nosso verdadeiro bem, mesmo que nos faça sofrer. O sofrimento momentâneo é prelúdio de uma grande alegria.

    Evangelho: Mc 6, 1-6

    Naquele tempo, Jesus foi para a sua terra, e os discípulos seguiam-no. 2Chegado o sábado, começou a ensinar na sinagoga. Os numerosos ouvintes enchiam-se de espanto e diziam: «De onde é que isto lhe vem e que sabedoria é esta que lhe foi dada? Como se operam tão grandes milagres por suas mãos? 3Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?» E isto parecia-lhes escandaloso. 4Jesus disse-lhes: «Um profeta só é desprezado na sua pátria, entre os seus parentes e em sua casa.» 5E não pôde fazer ali milagre algum. Apenas curou alguns enfermos, impondo-lhes as mãos. 6Estava admirado com a falta de fé daquela gente.

    Depois de apresentar alguns milagres de Jesus, Marcos abre uma nova secção do seu evangelho para falar de uma série de viagens, dentro e fora da Galileia. Começa por ir à «sua terra», a Nazaré e, em dia de sábado, entra na sinagoga. Usa o direito de comentar a Escritura na sinagoga, que era reconhecido a qualquer homem adulto. Mas a sua doutrina é diferente da dos outros rabis. Marcos não cita, ao contrário de Lucas (4, 17ss.) os versículos de Isaías lidos por Jesus. Mas regista o espanto de quantos o ouviram. Esse espanto era motivado pela origem das palavras pronunciadas por Jesus, pela sabedoria que demonstrava e pelos prodígios que fazia. Tudo parecia estar em contradição com o conhecimento que tinham dele e da sua família. Mas é nesta contradição que se revela a verdadeira identidade de Jesus (v. 3). Também os profetas foram muitas vezes perseguidos por aqueles que tinham maior obrigação de os compreender (v. 4). A falta de fé dos seus conterrâneos impede Jesus de fazer entre eles milagres e prodígios, como tinha feito noutras terras.

    Meditatio

    A fé é condição necessária para que Jesus possa actuar e conceder as suas graças. Por isso é que Jesus não pôde realizar prodígios entre os seus conterrâneos: «Não pôde fazer ali milagre algum... Estava admirado com a falta de fé daquela gente» (vv. 5-6).
    A primeira leitura lembra que, também nós, podemos deter-nos nas aparências contrárias e não reconhecer as intervenções de Deus na nossa vida e na vida do mundo. Quando nos encontramos no meio de provações, que nos parecem incompreensíveis e mesmo absurdas, ficamos inquietos e facilmente sucumbimos à tentação contra a fé. A Palavra de Deus, hoje, ajuda-nos a permanecer firmes. Não nos dá respostas directas para cada caso de sofrimento, mas convida-nos a reencontrar aquela atitude filial que, nos momentos de dor, nos permite reconhecer a mão de um Deus que é, acima de tudo, Pai. O homem é homem pelo mistério da sua liberdade. Deus jamais lhe retira esse dom, mas ajuda-o a crescer numa atitude de confiança e de abandono n´Ele, mesmo quando nos vemos em situações de lágrimas e sangue. Nem Jesus, o Filho predilecto, santo e inocente foi poupado: «O castigo que nos salva caiu sobre ele, fomos curados pelas suas chagas» (Is 53, 5).
    Não há provação tão dolorosa que não nos permita lançar sobre Ele o nosso olhar para reencontrarmos nas suas lágrimas de compaixão a certeza de que o sofrimento, a dor, os sofrimentos não são maldição, mas caminho que o próprio Amor nos faz percorrer, no seu abraço sem fim. Não podemos compreender! Deus é Deus e, diante d´Ele, diante dos seus insondáveis caminhos, há apenas que assumir uma atitude de adoração e de fé. O maior escândalo para o nosso coração consiste em que, não só o sofrimento não nos seja retirado, mas que o próprio Deus tenha vindo para meio de nós em pobreza, insignificância, a derramar as suas lágrimas humanas de Filho. A Carta aos Hebreus já nos disse como Jesus quis aprender a obediência pelas coisas que sofreu, quis conhecer aquela educação dolorosa que nos é necessária. Quando, por nosso lado, vivemos estes momentos de dolorosa educação, estamos unidos a Ele de modo especial e podemos crescer muito no seu amor.

    Oratio

    Senhor, faz-me compreender que as provações são razões de esperança, são meios para amar. Que, nas pequenas e grandes dificuldades eu tenha presentes estas perspectivas, para alimentar a minha coragem e a minha fé. Tu não me revelas os modos como queres comunicar-me os teus dons e fazer-me crescer na fé e no amor. Por isso, abre-me os olhos para que saiba ver em tudo a tua presença e a tua fraterna atenção para comigo. Amen.

    Contemplatio

    Certa ocasião Nosso Senhor apresentou-se a Margarida Maria,
    levando numa mão o quadro de uma vida cheia de paz e de consolação interior e exterior, com a estima dos outros; na outra mão, o quadro de uma vida abjecta, crucificada, desprezada, contradita, e sempre sofredora quanto ao corpo e ao espírito, e disse-lhe para escolher aquele que lhe agradasse mais, que lhe daria as mesmas graças na escolha de um como na escolha de outro. Prostrando-se aos seus pés, respondeu: «Ó meu Senhor, só vos quero a vós e a escolha que fizerdes para mim». Pressionada a escolher, disse: «Sois para mim suficiente, ó meu Deus, fazei para mim o que mais vos glorificar, sem terdes consideração aos seus interesses e consolações. Contentai-vos e isso me basta». «Então o Salvador apresentou-lhe o quadro da crucifixão dizendo-lhe: «Eis o que me agrada mais, tanto para o cumprimento dos meus desígnios como para te tornar conforme a mim». - «Aceitei o quadro, diz Margarida Maria, beijando a mão que mo apresentava, embora a natureza tremesse; abracei-o com todo o afecto da minha alma, e apertando-o contra o meu peito, senti-o tão fortemente impresso em mim, que me parecia já não ser mais do que um composto de tudo o que já tinha visto nele representado». Para nós, Nosso Senhor pede-nos sobretudo que levemos a cruz da regra, da vigilância, da fidelidade a todas as nossas resoluções. (Leão Dehon, OSP 4, p. 373).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Ainda não resististes até ao sangue na luta contra o pecado» (Heb 12, 4).

  • Tempo Comum - Anos Ímpares - IV Semana - Quinta-feira

    Tempo Comum - Anos Ímpares - IV Semana - Quinta-feira


    2 de Fevereiro, 2023

    Tempo Comum - Anos Ímpares - IV Semana - Quinta-feira

    Lectio

    Primeira leitura: Hebreus 12, 18-19.21-24

    Irmãos: Na verdade, não vos aproximastes de uma realidade palpável, de fogo ardente, das trevas, da obscuridade ou da tempestade, 19nem do som da trombeta ou do ruído das palavras, cujos ouvintes pediam que não se lhes falasse mais; 20de facto, não podiam suportar o que fora ordenado: Até um animal, se tocar a montanha, será apedrejado. 21E o espectáculo era tão terrível, que Moisés disse: Estou apavorado e a tremer. 22Vós, porém, aproximastes-vos do monte Sião e da cidade do Deus vivo, da Jerusalém celeste, de miríades de anjos, da reunião festiva, 23da assembleia dos primogénitos inscritos nos céus, do juiz que é o Deus de todos, dos espíritos dos justos que atingiram a perfeição, 24de Jesus, o Mediador da Nova Aliança, e de um sangue de aspersão que fala melhor que o de Abel.

    O cristão deve estar consciente do seu estado. Para o ajudar, o autor da Carta aos Hebreus propõe-nos uma última oposição entre a antiga e a nova aliança servindo-se de dois lugares simbólicos: o monte Sinai e o monte Sião. Os dois montes expressam dois modos diferentes de se aproximar de Deus.
    A primeira teofania aconteceu num lugar impressionante, a montanha do Sinai, com os seus granitos vermelhos, as suas nuvens de tempestade, a queda dos raios, o fulgor dos relâmpagos e o fragor dos trovões impressionaram vivamente o povo habituado às calmas planícies do Egipto. O próprio Moisés se encheu de temor e tremor (cf. Dt 4, 11 e 5, 22 LXX; Ex 19, 16 e 20, 18).
    A experiência dos cristãos é muito diferente. Eles aproximaram-se de outro monte, o Sião, alegria de toda a terra (cf. Sl 48, 2-4), da santa Jerusalém (cf. Sl 122), para o qual, desde sempre, Deus queria conduzir o seu povo para fazer comunhão com ele, no encontro festivo dos anjos e dos santos. Os cristãos podem ser admitidos nesse lugar "celeste", graças à conversão e ao baptismo que nos introduziram na morte e na ressurreição do único «Mediador da nova aliança», Jesus Cristo. O seu sangue inocente torna-nos também a nós "perfeitos", isto é, agradáveis ao Pai na obediência e no amor.

    Evangelho: Mc 6, 7-13

    Naquele Tempo, Jesus chamou os Doze e começou a enviá-los dois a dois e deu-lhes poder sobre os espíritos malignos. 8Ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser um cajado: nem pão, nem alforge, nem dinheiro no cinto; 9que fossem calçados com sandálias e não levassem duas túnicas. 10E disse-lhes também: «Em qualquer casa em que entrardes, ficai nela até partirdes dali. 11E se não fordes recebidos numa localidade, se os seus habitantes não vos ouvirem, ao sair de lá, sacudi o pó dos vossos pés, em testemunho contra eles.» 12Eles partiram e pregavam o arrependimento, 13expulsavam numerosos demónios, ungiam com óleo muitos doentes e curavam-nos.

    A proclamação do reino não se faz de modo ocasional. Jesus cria uma «instituição» que põe em movimento e planifica o anúncio da Boa Nova. São os Doze que, depois da visita a Nazaré, Jesus envia em missão, dando-lhes os seus próprios poderes (cf. v. 7).
    Distinguimos no texto três momentos: no primeiro, Jesus dá orientações quanto ao estilo de vida dos missionários: não devem levar provisões, mas confiar na generosidade daqueles a quem se dirigem; no segundo, define o método de pregação: deter-se em casa de quem os acolhe, mas abandonar sem lamentações as daqueles que os não recebam; o terceiro momento é o da execução: os discípulos partem, pregam a conversão, fazem exorcismos e curas com sucesso (vv. 12s.).
    Contentar-se com o essencial da vida, que se apoia na absoluta confiança no Senhor, é condição indispensável para estar ao serviço da Palavra. Isto tem a ver com cada um dos missionários, mas também com a própria Igreja que, não só há-de ser Igreja dos pobres, mas também Igreja pobre.

    Meditatio

    O autor da Carta aos Hebreus insiste no privilégio de termos entrado na intimidade divina: «Vós, porém, aproximastes-vos do monte Sião e da cidade do Deus vivo, da Jerusalém celeste, de miríades de anjos, da reunião festiva, da assembleia dos primogénitos inscritos nos céus, do juiz que é o Deus de todos, dos espíritos dos justos que atingiram a perfeição, de Jesus, o Mediador da Nova Aliança» (vv. 22-24a). A tomada de consciência desta situação há-de encher-nos de alegria. O Mediador da nova aliança, Jesus, possibilitou-nos esta comunhão, esta paz, este amor luminoso. É, sobretudo, na celebração da Eucaristia que vivemos este mistério, aproveitando a presença do Mediador para entrarmos cada vez mais profundamente nele e lhe saborearmos os frutos.
    Mas não podemos deter-nos, sempre e só, na intimidade divina. Os Doze, depois de permanecerem com Jesus, foram enviados dois a dois em missão. Para que a nossa vida e o nosso ministério sejam autênticos, precisamos de momentos de intimidade com o Senhor. Mas depois temos de partir ao encontro dos outros para lhes anunciarmos o Evangelho e prestarmos os serviços de que precisam: «enviou-os a proclamar o Reino de Deus e a curar os doentes» (Lc 9, 2). A vida de amor, que é a vida cristã, tem de ter o mesmo dinamismo da de Cristo: ser um movimento de amor para Deus e para os irmãos. Aquilo que Cristo é e vive determina aquilo que nós devemos ser e viver: «com Cristo e como Cristo» (Cst 21). Este é o modo dehoniano de nos aproximarmos do «mistério de Cristo» (Cst 16). Nas novas Cst, são numerosas e significativas as expressões desta abordagem existencial de Cristo (cf. n. 16). Já encontramos algumas nos nn. 2.6.9. Mas queremos dar especial atenção a duas pequenas fórmulas que lemos no n. 17: «Pelo Pai» e «pelos homens» ou, com maior exactidão teológica: «Ao Pai pelos homens». Nestas duas atitudes de Cristo, contempladas e vividas, descobrimos o caminho para chegar a «uma abordagem comum do mistério de Cristo, sob a guia do Espírito». Consideramo-las com «especial atenção» (Cst 16), para penetrar «na inesgotável riqueza do mistério», segundo a experiência que fizeram o P. Dehon e os primeiros membros da congregação (cf. Cst 16). Da intimidade com o Senhor partimos para a evangelização do mundo: A escuta da Palavra, a oração, a Eucaristia celebrada, comungada e adorada alimentam a nossa intimidade com o Senhor, consagram-nos a Deus, mas também nos lançam incessantemente pelos caminhos do mundo ao serviço do Evangelho.

    Oratio
    Nós te louvamos e bendizemos, Senhor Jesus Cristo, autor e consumador da nossa fé, Mediador da Nova Alanca, porque quiseste renovar em Ti todas as coisas. Derrama sobre nós o teu Espírito para que continue a renovar-nos sem cessar. Aceita a contrição sincera das nossas culpas e dá-nos a graça da reconciliação perfeita com o Pai, Contigo e com a tua Igreja. Faz-nos teus colaboradores na renovação do mundo segundo a justiça, a caridade e a paz. Amen.

    Contemplatio

    A cruz pelo reino do Sagrado Coração. - Noutra circunstância, Nosso Senhor pôs ainda à prova a generosidade da sua piedosa serva e ela mostrou a mesma dedicação. Nosso Senhor apresentou-lhe vários corações infiéis e disse-lhe: «Carrega este fardo e participa nas amarguras do meu Coração; derrama lágrimas de dor sobre a insensibilidade destes corações que tinha escolhido para os consagrar ao meu amor, ou então deixa-os abismarem-se na sua perda, e vem gozar as minhas delícias». - «Deixando todas as doçuras, diz, dei largas ao curso das minhas lágrimas, sentindo-me carregada com estes corações que iam ser privados de amor. Escutando continuamente que me convidavam para ir gozar o santo amor, prostrei-me diante da divina bondade apresentando-lhe estes corações para os penetrasse com o seu divino amor; mas foi necessário sofrer muito antes que isso acontecesse». Pressionada a sofrer para fazer reinar o Sagrado Coração, escreve ainda Margarida Maria: «foi-me mostrada a felicidade dos Serafins e foi-me dito: «Não gostarias mais de gozar com eles, do que de sofrer torturas, humilhações, desprezos, para contribuir para o estabelecimento do meu reino nas almas?» - «Abracei avidamente a cruz eriçada de espinhos que me era apresentada, e fiz dela a minha feliz escolha». A nós, são imolações mais modestas que Nosso Senhor nos pede; pequenos sacrifícios, uma vida segundo a regra, recolhimento, trabalho e a aceitação de pequenas penas que se apresentam cada dia. (Leão Dehon, OSP 4, p. 373s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Jesus é o Mediador da Nova Aliança» (Heb 12, 24).

  • Tempo Comum - Anos Ímpares - IV Semana - Sexta-feira

    Tempo Comum - Anos Ímpares - IV Semana - Sexta-feira


    3 de Fevereiro, 2023

    Tempo Comum - Anos Ímpares - IV Semana - Sexta-feira

    Lectio

    Primeira leitura: Hebreus 13, 1-8

    Irmãos: Permanecei na caridade fraterna. 2Não vos esqueçais da hospitalidade, pois, graças a ela, alguns, sem o saberem, hospedaram anjos. 3Lembrai-vos dos presos, como se estivésseis presos com eles, e dos que são maltratados, porque também vós tendes um corpo. 4Seja o matrimónio honrado por todos e imaculado o leito conjugal, pois Deus julgará os impuros e os adúlteros. 5Vivei sem avareza, contentando-vos com o que possuís, porque o próprio Deus disse: Não te deixarei nem te abandonarei. 6Assim, podemos dizer confiadamente:O Senhor é o meu auxílio; não temerei; que poderá fazer-me um homem? 7Recordai-vos dos vossos guias, que vos pregaram a palavra de Deus; observai o êxito da sua conduta e imitai a sua fé. 8Jesus Cristo é o mesmo, ontem, hoje e pelos séculos.

    Estamos a chegar ao fim da Carta aos Hebreus. O seu autor dá orientações concretas para a vida dos cristãos: perseverança no amor fraterno, hospitalidade, ajuda aos presos e a outros que estão em situação de sofrimento. Todos formam connosco um só corpo. Depois, trata da santidade com que o matrimónio há-de ser vivido. Ele é, de facto, um caminho de santidade. Prossegue alertando para a tentação de nos deixarmos envolver pela avareza. Jesus é a nossa verdadeira riqueza. O Pai sabe do que precisamos.
    Finalmente, há que recordar aqueles que nos pregaram o Evangelho e a heroicidade do seu testemunho. A fé em Jesus morto e ressuscitado por nós muda a nossa vida e as relações, dando plenitude à história humana: «Jesus Cristo é o mesmo, ontem, hoje e pelos séculos» (v. 8).

    Evangelho: Mc 6, 14-29

    Naquele tempo, o rei Herodes ouviu falar de Jesus, pois o seu nome se tornara célebre; e dizia-se: «Este é João Baptista, que ressuscitou de entre os mortos e, por isso, manifesta-se nele o poder de fazer milagres»; 15outros diziam: «É Elias»; outros afirmavam: «É um profeta como um dos outros profetas.» 16Mas Herodes, ouvindo isto, dizia: «É João, a quem eu degolei, que ressuscitou.» 17Na verdade, tinha sido Herodes quem mandara prender João e pô-lo a ferros na prisão, por causa de Herodíade, mulher de Filipe, seu irmão, que ele desposara. 18Porque João dizia a Herodes: «Não te é lícito ter contigo a mulher do teu irmão.» 19Herodíade tinha-lhe rancor e queria dar-lhe a morte, mas não podia, 20porque Herodes temia João e, sabendo que era homem justo e santo, protegia-o; quando o ouvia, ficava muito perplexo, mas escutava-o com agrado. 21Mas chegou o dia oportuno, quando Herodes, pelo seu aniversário, ofereceu um banquete aos grandes da corte, aos oficiais e aos principais da Galileia. 22Tendo entrado e dançado, a filha de Herodíade agradou a Herodes e aos convidados. O rei disse à jovem: «Pede-me o que quiseres e eu to darei.» 23E acrescentou, jurando: «Dar-te-ei tudo o que me pedires, nem que seja metade do meu reino.» 24Ela saiu e perguntou à mãe: «Que hei-de pedir?» A mãe respondeu: «A cabeça de João Baptista.» 25Voltando a entrar apressadamente, fez o seu pedido ao rei, dizendo: «Quero que me dês imediatamente, num prato, a cabeça de João Baptista.» 26O rei ficou desolado; mas, por causa do juramento e dos convidados, não quis recusar. 27Sem demora, mandou um guarda com a ordem de trazer a cabeça de João. O guarda foi e decapitou-o na prisão; 28depois, trouxe a cabeça num prato e entregou-a à jovem, que a deu à mãe. 29Tendo conhecimento disto, os discípulos de João foram buscar o seu corpo e depositaram-no num sepulcro.

    Flávio José diz-nos que Herodes Antipas, temendo possíveis desordens políticas desencadeadas pelo movimento de João Baptista, prendeu o profeta em Maqueronte, onde o mandou executar. O relato de Marcos, mais subjectivo, e menos exacto, levou a ver João Baptista apenas como vítima da vingança de uma mulher irritada.
    O segundo evangelho apresenta-nos Herodes que, atormentado pelos remorsos, julga reconhecer em Jesus o profeta que mandara matar (v. 16). E assim começa a narrativa do martírio de João, mais longa que a de Mateus ou a de Lucas: prisão, acusação, denúncia corajosa do rei pelo profeta (vv. 18-20), trama de Herodíades que usa Salomé, fraqueza de Herodes, sentença de morte e execução da mesma (vv. 26-28). Mas o remorso persegue o rei. O relato termina com um toque de piedade: o corpo do profeta é entregue aos discípulos que lhe dão sepultura (v. 29).
    Esta narrativa popular realça a atitude ridícula de Herodes, por um lado, escravo das suas paixões, e, por outro, interessado na figura austera de João Baptista. Para Marcos, o martírio de João, e a liquidação do seu movimento, indica que a comunidade cristã, criada por Jesus, era completamente nova, ainda que conservasse a memória veneranda do maior de todos os profetas.

    Meditatio

    Quase a concluir a Carta aos Hebreus, o seu autor exorta aqueles a quem se dirige a viverem na caridade, na castidade, na pobreza e na obediência. É o ideal de uma vida realmente cristã, a que todos os baptizados são chamados. Os religiosos apenas radicalizam a vivência desse ideal.
    Em primeiro lugar, a caridade: «Permanecei na caridade fraterna» (v. 1). E o nosso autor concretiza: «Não vos esqueçais da hospitalidade» (v. 2), «lembrai-vos dos presos» (v. 3). A caridade é expressão do amor divino recebido e comunicado, um amor generosos, participativo, constante.
    A castidade: «Seja o matrimónio honrado por todos e imaculado o leito conjugal, pois Deus julgará os impuros e os adúlteros» (v. 5). O autor fala da castidade dos casados. A castidade dos casados estimula a dos religiosos. Mas a castidade dos religiosos, por sua vez, é sinal, ajuda, força para os outros.
    A pobreza: «Vivei sem avareza, contentando-vos com o que possuís» (v. 5). O espírito de pobreza, próprio de todos os cristãos, e a pobreza dos religiosos, vivida coerentemente, manifestam a nossa confiança em Deus: «Assim, podemos dizer confiadamente:O Senhor é o meu auxílio; não temerei...» (v. 6).
    A obediência: «Recordai-vos dos vossos guias» (v. 7), dos vossos chefes. Mas adiante lê-se: «Sede submissos e obedecei aos que vos guiam... que eles o façam com alegria e não com gemidos, o que não seria vantajoso para vós» (v. 17).
    Na caridade, na castidade, na pobreza e na obediência, vividas segundo a graça e a vocação de cada um, todos os discípulos de Cristo hão-de tornar-se dom total a Deus e aos irmãos, tal como Jesus. De qualquer modo, cada um de nós é chamado a morrer a si mesmo, ao homem velho, ao egoísmo e ao orgulho que nos impede de viver com a disposição e a atitude de João Baptista que dizia: «Ele é que deve crescer, e eu diminuir» (Jo 3, 30). Porque Jesus é sempre o mesmo ontem, hoje e sempre, quanto mais nos perdermos n&a
    cute;Ele, que é o Amor, mais saborearemos a verdadeira vida.

    Oratio

    Senhor, dá-nos a graça de viver em plenitude o belo ideal de vida cristã que hoje nos apresentas, e de ajudar aqueles que se aproximam de nós a vivê-lo também, com alegria e coragem. Que todos vivamos Contigo e em Ti, entregues ao projecto de salvação que o Pai concebeu para reconduzir todos os homens à verdadeira liberdade dos filhos de Deus. Que nada anteponhamos ao teu amor. Sê a nossa vida, a nossa santificação e nossa alegria inefável. Que, a exemplo dos Santos, tudo saibamos oferecer por amor da tua glória e bem dos irmãos. Amen.

    Contemplatio

    A caridade é o dom dos dons. - A caridade é como o único fruto do Espírito Santo. S. Paulo diz aos Gálatas: «O fruto do Espírito é a caridade, a paz, a alegria, etc.». Enumerando os doze frutos, reúne-os num só, porque não diz «os frutos do Espírito Santo são...», mas: «O fruto do Espírito Santo é a caridade, etc.». Ora eis o mistério deste modo de falar: «A caridade de Deus foi espalhada nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado» (Rm 5, 5). A caridade é como o fruto único, que tem uma infinidade de excelentes propriedades, que podem enumerar-se em seguida. S. Paulo não quer, portanto, dizer outra coisa senão que o fruto do Espírito Santo é a caridade, a qual é alegre, pacífica, paciente, benigna, boa, longânime, doce, fiel, modesta, continente, casta; isto é, que o divino amor nos dá uma alegria interior com uma grande paz do coração, que se conserva no meio das adversidades pela paciência, e que nos torna graciosos e benignos em socorrer o próximo por uma bondade cordial para com ele, bondade que não é variável e inconstante, mas longânime e sempre leal, e que é acompanhada de simplicidade, de modéstia, de uma continência oposta a todos os excessos e de uma cuidadosa castidade. Não é o mesmo dom de caridade, tão fecundo em frutos, que S. Paulo exalta ainda quando diz aos Coríntios (1Cor 13): «A caridade é paciente, é benigna; não é invejosa, malévola, orgulhosa, egoísta, irascível, isto é, ainda que é pacífica, doce, paciente e boa». Sim, ela é bem o fruto por excelência do Espírito Santo. (Leão Dehon, OSP 3, p. 571s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Permanecei na caridade fraterna» (Heb 13, 1).

  • Tempo Comum - Anos Ímpares - IV Semana - Sábado

    Tempo Comum - Anos Ímpares - IV Semana - Sábado


    4 de Fevereiro, 2023

    Tempo Comum - Anos Ímpares - IV Semana - Sábado

    Lectio

    Primeira leitura: Hebreus 13, 15-17.20-21

    Irmãos: Ofereçamos por meio dele, continuamente a Deus um sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos lábios que confessam o seu nome. 16Não vos esqueçais de fazer o bem e de repartir com os outros, pois são esses os sacrifícios que agradam a Deus. 17Sede submissos e obedecei aos que vos guiam, pois eles velam pelas vossas almas, das quais terão de prestar contas; que eles o façam com alegria e não com gemidos, o que não seria vantajoso para vós. 18Rezai por nós, pois estamos convencidos de ter uma boa consciência e desejamos comportar-nos bem em tudo. 19Exorto-vos com maior insistência a que o façais, para que eu vos seja restituído mais depressa. 20O Deus da paz, que ressuscitou dos mortos o grande Pastor das ovelhas, Jesus, Senhor nosso, pelo sangue da Aliança eterna, 21vos torne aptos para todo o bem, a fim de que façais a sua vontade. Que Ele realize em nós o que lhe é agradável, por meio de Jesus Cristo, ao qual seja dada glória pelos séculos dos séculos. Ámen.

    Ao concluir a sua carta, o autor alterna a catequese (vv. 12-15) com a exortação (vv. 16s.) e a oração (vv. 20s.). Mas o centro unificador destes versículos é o mistério pascal de Cristo: «o grande Pastor das ovelhas» (v. 20). É Ele o Messias esperado que, pelo seu sangue, se tornou mediador de uma aliança eterna de vida e de paz entre nós e Deus. É desta realidade que brota a novidade fundamental do culto cristão de que trata a carta. Por Jesus, toda a vida do crente se pode tornar oferta agradável a Deus, conforme recomenda Paulo na Carta aos Romanos: «Exorto-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus» (12, 1). O sacrifício de louvor prolonga-se e autentica o sacrifício da caridade e da submissão a quem guia a comunidade nos caminhos do Senhor. Esta existência pascal é um dom a pedir e um compromisso a assumir com responsabilidade. É por isso que o autor confia ao Pai os destinatários da sua carta. Só Ele pode dispor os corações a acolher o dom e a colaborar com a graça. A aliança selada na morte e ressurreição de Cristo é premissa e garantia de que o Pai atenderá esta oração. Tal como Deus realizou a nova aliança por meio de Cristo, assim também nos tornará «aptos para todo o bem» (v. 21). A obra começada será completada.

    Evangelho: Mc 6, 30-34

    Naquele tempo, os Apóstolos reuniram-se a Jesus e contaram-lhe tudo o que tinham feito e ensinado. 31Disse-lhes, então: «Vinde, retiremo-nos para um lugar deserto e descansai um pouco.» Porque eram tantos os que iam e vinham, que nem tinham tempo para comer. 32Foram, pois, no barco, para um lugar isolado, sem mais ninguém. 33Ao vê-los afastar, muitos perceberam para onde iam; e de todas as cidades acorreram, a pé, àquele lugar, e chegaram primeiro que eles. 34Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, então, a ensinar-lhes muitas coisas.

    Na segunda parte do seu evangelho (6, 30-10), Marcos diz-nos que Jesus, apesar de galileu, é profundamente universal: dirige-se aos outros, aos afastados, aos gentios; mas não esquece os clássicos, os eleitos.
    O texto que escutamos lembra-nos uma visita «ad limina»: os Apóstolos vêm dos seus lugares de trabalho e contam a Jesus o que fizeram. Jesus escuta-os, mas não quer vê-los cair no triunfalismo do muito que fizeram e fazem, nem no activismo de quem se entrega às coisas do Senhor, esquecendo o próprio Senhor. Por isso, lhes diz: «Vinde, retiremo-nos para um lugar deserto e descansai um pouco». É um momento de intimidade entre Jesus e os seus, um convite ao repouso e ao recolhimento. A comunidade dos Doze, com Jesus no barco, recompõe-se e renova-se em vista da secção dos milagres e da dupla multiplicação dos pães. Estes milagres são preanunciado e introduzidos com a referência à necessidade de alimento, material e simbólico: os discípulos «não tinham tempo para comer» (v. 31); as multidões «eram como ovelhas sem pastor» (v. 34).
    É uma pena que a tradição os retiros e exercícios espirituais se tenham convertido em outras coisas que nem sempre contribuem para o bem dos homens e para o bem da Igreja.

    Meditatio

    Ao concluir a Carta aos Hebreus, o seu autor dá-nos um ensinamento muito importante: «Ofereçamos por meio dele, continuamente a Deus um sacrifício de louvor» (v. 15). Um cristão há-de viver sempre em atitude de louvor e de acção de graças. Para isso, havemos de estar conscientes dos grandes dons que Deus nos faz por meio de Cristo. Se estivermos convencidos disso, a gratidão levar-nos-á a realizar com alegria outros sacrifícios que o autor da carta aconselha: «Não vos esqueçais de fazer o bem e de repartir com os outros, pois são esses os sacrifícios que agradam a Deus» (v. 16). É o sacrifício da caridade fraterna, que nos permite continuar a oferta de Cristo ou, melhor dizendo, Lhe permite continuar em nós a sua oblação.
    «Obedecei aos que vos guiam» (v. 17). Nem sempre é fácil obedecer. Mas o caminho da caridade e da unidade passa pela submissão e pela obediência aos chefes por Ele escolhidos.
    Se vivermos assim, o Deus da paz poderá tornar-nos perfeitos em todo o bem por meio de Jesus Cristo, Nosso Senhor, realizando em nós a sua vontade.
    O evangelho fala-nos da ternura de Jesus pelas pessoas que O procuravam e seguiam. Essa ternura é também por nós, hoje. Talvez andemos preocupados em testemunhar o Evangelho e precisemos de repousar o espírito na sua presença. Talvez nos reconheçamos naquelas «ovelhas sem pastor» sem rumo nem segurança. Jesus é «o grande Pastor das ovelhas» (v. 20), guia dos pastores e das ovelhas sem pastor. Para abrir a todos –também a mim - um caminho seguro para o redil do Pai, deu a sua vida. Ele mesmo é «o Caminho, a Verdade e a Vida».

    Oratio

    Ó Jesus, Tu revelas-nos o rosto amoroso do Pai. Vimos ao teu encontro como ovelhas sem pastor. Guia-nos Tu com força e doçura para descobrirmos o caminho da vida na oferta total de nós mesmos a Deus. Transforma os nossos dias em incessantes sacrifícios de louvor ao Pai e de caridade aos irmãos. Faz-nos participar na tua páscoa pela morte ao egoísmo e à presunção, para vivermos em Ti como filhos obedientes, que cumprem a vontade do Pai. A Ele, fonte de misericórdia, confiamos, por Ti, a nossa fraqueza e a nossa miséria, para que faça de nós o que quiser para sua glória e bem dos irmãos. Amen.

    Contemplatio

    «Desde o instante da sua conversão, Santo Agostinho nunca deixou de louvar a Deus em todas as suas acções, de dia, de noite, bebendo, comendo, falando, escrevendo, cantando os louvores da sua misericórdia e da sua graça. Era tão devoto a esta gra&c
    cedil;a divina, diz S. Francisco de Sales, que não podia saciar-se, não somente de a louvar, mas também de falar e de escrever em seu louvor. Vedes, portanto, como este santo dizia muito justamente, depois da sua conversão, estas palavras do salmista: «Rompestes os meus laços, ó meu Deus, oferecer-vos-ei um sacrifício de louvor», e chamarei todas as criaturas a vos louvar em reconhecimento das misericórdias que me fizestes». (Leão Dehon, OSP 4, p. 196s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Ofereçamos continuamente a Deus um sacrifício de louvor» (Heb 13, 4).

  • Tempo Comum - Anos Ímpares - V Semana - Segunda-feira

    Tempo Comum - Anos Ímpares - V Semana - Segunda-feira


    6 de Fevereiro, 2023

    Lectio

    Primeira leitura: Génesis 1, 1-19

    No princípio, quando Deus criou os céus e a terra, 2a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas. 3Deus disse: «Faça-se a luz.» E a luz foi feita. 4Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. 5Deus chamou dia à luz, e às trevas, noite. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o primeiro dia. 6Deus disse: «Haja um firmamento entre as águas, para as manter separadas umas das outras.» E assim aconteceu. 7Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam sob o firmamento das que estavam por cima do firmamento. 8Deus chamou céus ao firmamento. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o segundo dia. 9Deus disse: «Reúnam-se as águas que estão debaixo dos céus, num único lugar, a fim de aparecer a terra seca.» E assim aconteceu. 10Deus chamou terra à parte sólida, e mar, ao conjunto das águas. E Deus viu que isto era bom. 11Deus disse: «Que a terra produza verdura, erva com semente, árvores frutíferas que dêem fruto sobre a terra, segundo as suas espécies, e contendo semente.» E assim aconteceu. 12A terra produziu verdura, erva com semente, segundo a sua espécie, e árvores de fruto, segundo as suas espécies, com a respectiva semente. Deus viu que isto era bom. 13Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o terceiro dia.
    14Deus disse: «Haja luzeiros no firmamento dos céus, para separar o dia da noite e servirem de sinais, determinando as estações, os dias e os anos; 15servirão também de luzeiros no firmamento dos céus, para iluminarem a Terra.» E assim aconteceu. 16Deus fez dois grandes luzeiros: o maior para presidir ao dia, e o menor para presidir à noite; fez também as estrelas. 17Deus colocou-os no firmamento dos céus para iluminarem a Terra, 18para presidirem ao dia e à noite, e para separarem a luz das trevas. E Deus viu que isto era bom. 19Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o quarto dia.

    Os relatos da criação descrevem acções divinas que se situam, não na história, mas num "princípio" que ninguém pode conhecer. Daí o uso da linguagem dos "mitos". De facto, ninguém assistiu à criação do mundo para no-la poder narrar: «Onde estavas, quando lancei os fundamentos da terra?» - pergunta Deus a Job (Jb 38, 4). Portanto, o carácter destes relatos não é científico, embora o autor se sirva da noção experimental do mundo corrente no seu tempo; nem é histórico, embora as apresente em movimento e num processo análogo ao da história. Estas afirmações são teológicas: falam de Deus enquanto revelam acção e desígnio no mundo, e enquanto este encontra a plenitude do seu ser na referência a Deus. São teologia de linguagem medida e refinada, e são também mensagem para determinados destinatários, como os pagãos que adoravam o Sol, a Lua e outras criaturas.
    No primeiro relato, o autor sagrado refere que Deus tudo criou pela sua palavra e baseia a estrutura da sua narrativa nos sete dias da semana, com os seis dias de trabalho e mais um de repouso, o «sétimo dia» para o qual converge toda a acção semanal, que nele encontra plena realização. Esta estrutura é propositadamente usada, tanto mais que as acções de Deus são mais de sete: a luz, a abóbada celeste, a terra enxuta, a vegetação, os luzeiros, os peixes, as aves, o gado, os répteis, o homem (macho e fêmea). O relato de Gn 1 quer dizer-nos que a criação foi organizada em vista de um fim muito concreto que se resume no sábado, que é dia de repouso para o homem e o dia de louvor para Deus.
    Ao terminar esta página lemos: «Concluída, no sétimo dia, toda a obra que tinha feito, Deus repousou, no sétimo dia, de todo o trabalho por Ele realizado» (Gn 2, 2). Como pôde concluir a criação se, no mesmo dia cessou toda a actividade? Faltava uma coisa essencial no mundo: o tempo e o espaço para a oração. O sábado vem colmatar essa falta, concluir a obra, porque permite viver, com a periodicidade de uma semana, o tempo todo de Deus criador e salvador, e celebrar de antemão a criação terminada. É uma imagem da meta posta à vista, para iluminar o caminho e assegurar que por ele se chega à realização total e ao repouso de Deus.

    Evangelho: Marcos 6, 53-56

    Naquele tempo, Jesus e os seus discípulos fizeram a travessia do lago e vieram para a terra de Genesaré, onde aportaram. 54Assim que saíram do barco, reconheceram-no. 55Acorreram de toda aquela região e começaram a levar os doentes nos catres para o lugar onde sabiam que Ele se encontrava. 56Nas aldeias, cidades ou campos, onde quer que entrasse, colocavam os doentes nas praças e rogavam-lhe que os deixasse tocar pelo menos as franjas das suas vestes. E quantos o tocavam ficavam curados.

    Jesus acaba de atravessar o lago de Genesaré, unindo a margem leste, onde habitam os pagãos, com a margem oeste, onde habitam os hebreus. A descrição de Marcos lembra-nos as promessas messiânicas: «Acorrerão ao monte do Senhor todas as gentes, virão muitos povos e dirão... Ele nos ensinará os seus caminhos» (cf. Is 2, 2-3); «Virão povos e habitantes de grandes cidades. E os habitantes de uma cidade irão para outra, dizendo: 'Vamos implorar a face do Senhor!» (Zc 8, 21). Todos os que se reconhecem carecidos de salvação dirigem-se a Jesus. Diante dele são expostas todas as misérias humanas. As pessoas não se deixam dominar pela vergonha, mas agem com confiança: basta que os Senhor lhes toque apenas com «as franjas das suas vestes». Assim se cumpre a palavra do profeta: «Assim fala o Senhor do universo: Naqueles dias, dez homens de todas as línguas das nações tomarão um judeu pela dobra do seu manto e dirão: 'Nós queremos ir convosco, porque soubemos que Deus está convosco'» (Zc 8, 23). Não precisamos de nos esforçar para demonstrar que, no Evangelho, se tratava sempre de verdadeiros milagres, e não de casos idênticos àqueles de que fala hoje a parapsicologia. Uma correcta cristologia não exige que Jesus fosse um super-homem. Marcos não usa métodos racionalistas para demonstrar a divindade de Jesus. Aliás, para ele, a fé é um dom gratuito de Deus que geralmente precede os «milagres». O interessante é que as pessoas perceberam que a mensagem do Evangelho não era algo de abstracto de puramente filosófico, mas que implicava a melhoria da sua situação. Se, intuindo que Deus estava com Jesus, acorriam a Ele, depois de estarem com Ele, partiam gritando: Deus está connosco e a nossa favor... em Jesus.

    Meditatio

    As páginas do Génesis, que nos falam de Deus Criador, suscitam em nós sentimentos de admiração e de grandeza. É pela sua palavra que Deus cria o mundo. Dá uma ordem, e tudo acontece: «Deus disse: «Faça-se», e «assim se fez
    ». E não falta uma avaliação da obra feita: «E Deus viu que isto era bom» (cf. Gn 1, 25). Deus aprecia as obrs que realiza. Compraz-se nelas.
    Sabemos que a Bíblia não pretende explicar cientificamente a criação do mundo. Os relatos do Génesis são uma história religiosa que fala de todas as criaturas, que afirma que todas têm origem em Deus e na sua palavra criadora. O escritor bíblico está claramente cheio de admiração pelas obras de Deus. A nossa admiração, a milénios de distância, há-de ser ainda maior, porque hoje, graças à investigação científica, compreendemos muito melhor a grandeza do universo. O autor bíblico não conhecia a distância da Terra à Lua, nem as quase inimagináveis distâncias medidas em anos luz entre os astros. Continuam a ser descobertas estrelas, vias lácteas, galácias... Nós, agora, temos conhecimento de tudo isso, que não é suficiente, mas é importante, como revelação de Deus. Deus revela-se na criação. É bom e útil para nós deter-nos a contemplar a grandeza e as maravilhas de Deus nas suas obras pequenas e grandes. Os santos comoviam-se profundamente diante da grandeza do universo, mas também diante da simplicidade e da beleza de uma pequena flor. Em tudo descobriam a presença da sabedoria, do poder, do amor de Deus. «Louvai o Senhor porque Ele é bom, porque é eterna a sua misericórdia», convida-nos o salmo (2 Cr 7, 3).
    O cristão cultiva, diante da criação, um olhar de grande optimismo e de respeito. Optimsmo porque, apesar do mal que há no mundo, o conjunto das obras de Deus é bom; de respeito, porque, se tudo foi feito para o homem, ele deve usá-lo na medida das suas reais necessidades, sem destruir nem desperdiçar o que quer que seja.
    O encontro com Deus feito homem, com Jesus, possiblita-nos uma cura que nos permite ver a verdade da criação, e a nossa própria verdade.

    Oratio

    Obrigado, Senhor, pela obra maravilhosa da criação. Louvado sejas por todas as tuas criaturas: o Sol, a Lua, as estrelas, o ar, as águas, o fogo e a mãe Terra, com tudo o que a enche, nos sustenta e governa.Obrigado por teres feito o homem como obra-prima da criação. Que ele saiba usá-la com respeito, com amor, com gratidão. Que jamais se limite a perguntar: «Para que serve?»; «Quanto rende?». Mas que tenha consciência de que, o que existe na Terra, é para os que vivem hoje, e hão-de viver no futuro. Amen.

    Contemplatio

    Chegou o momento de imaginarmos as piedosas conversas de Jesus e de seus pais. Regressavam os três a Nazaré, tão felizes por estarem de novo reunidos. «Desceu com eles», diz-nos S. Lucas, como para nos dizer: meditai sobre as suas conversas. Com que é que Jesus podia entreter-se com os seus pais, senão com a sua missão messiânica e com todos os desígnios de misericórdia que enchiam o seu Coração. Aí conduzia docemente o seu pensamento: «Mãe, dizia, os homens passam mal os dias da sua peregrinação na terra. Deixam-se absorver pelo cuidado dos interesses temporais. E, no entanto, os milagres da criação estão por toda a parte semeados sobre os seus caminhos, mas não se dignam olhá-los. Não consideram quem é que fez crescer e reverdejar esta árvore, quem, com tantos matizes, coloriu este bando alado de graciosas aves, nem quem o alimentou sem que ele se inquiete. Certamente, estes pássaros folgazões não semeiam nem recolhem. - Contemplai, ó minha mãe, ó meu lírio, a vossa irmã, aquela flor ali, branca como a neve. Na verdade, nem a esposa de um rei, nem Salomão mesmo na sua glória foram adornados tão magnificamente. E no entanto não passa de uma flor. (Leão Dehon, OSP3, p. 162s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Obras do Senhor, bendizei todas o Senhor» (Sl 136, 57).

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    Subsídio Litúrgico a cargo de Fernando Fonseca, scj

  • Tempo Comum - Anos Ímpares - V Semana - Terça-feira

    Tempo Comum - Anos Ímpares - V Semana - Terça-feira


    7 de Fevereiro, 2023

    Lectio

    Primeira leitura: Génesis 1, 20-2, 4a

    Deus disse: «Que as águas sejam povoadas de inúmeros seres vivos, e que por cima da terra voem aves, sob o firmamento dos céus.» 21Deus criou, segundo as suas espécies, os monstros marinhos e todos os seres vivos que se movem nas águas, e todas as aves aladas, segundo as suas espécies. E Deus viu que isto era bom. 22Deus abençoou-os, dizendo: «Crescei e multiplicai-vos e enchei as águas do mar e multipliquem-se as aves sobre a terra.» 23Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o quinto dia. 24Deus disse: «Que a terra produza seres vivos, segundo as suas espécies, animais domésticos, répteis e animais ferozes, segundo as suas espécies.» E assim aconteceu. 25Deus fez os animais ferozes, segundo as suas espécies, os animais domésticos, segundo as suas espécies, e todos os répteis da terra, segundo as suas espécies. E Deus viu que isto era bom. 26Depois, Deus disse: «Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra.» 27Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. 28Abençoando-os, Deus disse-lhes: «Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra.» 29Deus disse: «Também vos dou todas as ervas com semente que existem à superfície da terra, assim como todas as árvores de fruto com semente, para que vos sirvam de alimento. 30E a todos os animais da terra, a todas as aves dos céus e a todos os seres vivos que existem e se movem sobre a terra, igualmente dou por alimento toda a erva verde que a terra produzir.» E assim aconteceu. 31Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o sexto dia. 1Foram assim terminados os céus e a Terra e todo o seu conjunto. 2Concluída, no sétimo dia, toda a obra que tinha feito, Deus repousou, no sétimo dia, de todo o trabalho por Ele realizado. 3Deus abençoou o sétimo dia e santificou-o, visto ter sido nesse dia que Ele repousou de toda a obra da criação. 4Esta é a origem da criação dos céus e da Terra.

    O homem macho e fêmea, homem-mulher, foi criado «à imagem de Deus» (v. 26). Mas, o homem «imagem de Deus», não é qualquer um. À luz da cultura do tempo em que foi escrito o nosso texto, é homem «à imagem de Deus» aquele que está acima de todos os outros, isto é, o rei. A página de Gn 1 foi escrita na Babilónia, onde encontramos um texto bastante eloquente: «A sombra de Deus é o Homem e os homens são sombra do Homem; o Homem é o rei, igual à imagem da divindade». O autor sagrado, é certo, estendeu a todos os homens e mulheres a prerrogativa serem imagem de Deus. Com efeito, a ordem de 'dominar sobre a terra» e sobre os outros seres vivos é dada indistintamente a todos os homens. Mas, insistimos na pergunta: qual é o homem que realiza plenamente esta missão real no interior da criação? Os Padres orientais tentaram responder a esta questão introduzindo uma distinção entre «imagem» e «semelhança». Todos os homens levam em si a imagem divina. Mas, para reinar verdadeiramente, é preciso conseguir também uma certa semelhança com o verdadeiro rei do mundo, que é o Filho, perfeita «imagem de Deus invisível» (Cl 1, 15), assumir as suas opções, entrar nos seus pensamentos. Esta perspectiva patrística, com fundamento bíblico, corresponde à afirmação paulina: «E assim como trouxemos a imagem do homem da terra, assim levaremos também a imagem do homem celeste» (1 Cor 15, 49).

    Evangelho: Marcos 7, 1-13

    Naquele tempo, reuniram-se à volta de Jesus os fariseus e alguns doutores da Lei vindos de Jerusalém, 2e viram que vários dos seus discípulos comiam pão com as mãos impuras, isto é, por lavar. 3É que os fariseus e todos os judeus em geral não comem sem ter lavado e esfregado bem as mãos, conforme a tradição dos antigos; 4ao voltar da praça pública, não comem sem se lavar; e há muitos outros costumes que seguem, por tradição: lavagem das taças, dos jarros e das vasilhas de cobre. 5Perguntaram-lhe, pois, os fariseus e doutores da Lei: «Porque é que os teus discípulos não obedecem à tradição dos antigos e tomam alimento com as mãos impuras?» 6Respondeu: «Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, quando escreveu:Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. 7Vazio é o culto que me prestam e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos. 8Descurais o mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens.» 9E acrescentou: «Anulais a vosso bel-prazer o mandamento de Deus, para observardes a vossa tradição. 10Pois Moisés disse: Honra teu pai e tua mãe; e ainda: Quem amaldiçoar o pai ou a mãe seja punido de morte. 11Vós, porém, dizeis: "Se alguém afirmar ao pai ou à mãe: 'Declaro Qorban' - isto é, oferta ao Senhor - aquilo que poderias receber de mim...", 12nada mais lhe deixais fazer por seu pai ou por sua mãe, 13anulando a palavra de Deus com a tradição que tendes transmitido. E fazeis muitas outras coisas do mesmo género.»

    O texto que hoje escutamos parece dar-nos a perceber que Marcos escreve para uma comunidade judeo-cristã que procurava ultrapassar certos dados da sua origem. Provavelmente tratava-se de judeo-cristãos de cultura helenista, isto é, de judeus da dispersão, cujas formas e costumes tinham sido influenciados pela cultura grega. Marcos procura mostrar-lhes que a nova relação entre os discípulos e Jesus de Nazaré também implicava uma nova relação entre os eles e as regras estabelecidas pelos homens para o encontro com Deus, nomeadamente no que se refere à pureza ritual: «Porque é que os teus discípulos não obedecem à tradição dos antigos e tomam alimento com as mãos impuras?» (v. 5). Mais do que nas suas palavras, é na sua Pessoa que encontramos a resposta à questão que Lhe é posta. Ao revelar-se como o Filho de Deus, o Mediador entre Deus e os homens, Jesus relativiza as regras e preceitos humanos. Não os anula, mas mostra que são válidos se estiverem relacionados com Ele. Ele é a norma, Ele é a incarnação do mandamento de Deus, a Palavra viva.

    Meditatio

    O livro do Génesis dá-nos uma esplêndida imagem do homem. Criado por Deus, à sua imagem e semelhança, o homem é chamado a dominar a terra, a ser seu senhor, a povoá-la: «Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra... » (v. 28). Verdadeiramente, o homem é a obra-prima de Deus: «Quase fizeste dele um ser di
    vino; de glória e de honra o coroaste. Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos, tudo submeteste a seus pés» (Sl 8, 7-8). À luz da Palavra de Deus, o homem é realmente grande, e há que resistir à tentação de, por qualquer modo, o diminuir. Deus quer o homem grande e glorioso. Deus não é um senhor mesquinho e invejoso. Deus é amor que Se dá, e Se dá com generosidade: «Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança» (v. 26). Deus é amor oblativo, sempre em expansão: dá generosamente e quer dar sempre mais. Tem grandes ambições para o homem, e não quer que ele se perca em ninharias. Como vemos no evangelho, nem sequer agrada a Deus que o homem se diminua numa religião feita de formalismos, de legalismo tacanho, que dá importância ao que o não merece. É certo que Jesus não ab-rogou a Lei nem os Profetas, mas reconduziu-os às suas intenções originárias, àqueles dados escritos que precedem todas as reelaborações da tradição. Ao fazer isso, recorda a hebreus e a cristãos que a prática da Lei e a obediência à Palavra escrita, é imitação de Deus que restabelece no homem a imagem do mesmo Deus, e a plena semelhança com o seu Criador. Em qualquer dos casos, torna-se claro que a honra que o homem dá a Deus consiste essencialmente em viver a sua vocação original: ser «imagem e semelhança» do Criador. É um enorme desafio que nos é posto. Há que optar e vivê-lo com todas as suas consequências.

    Oratio

    Senhor, torna-me cada vez mais consciente da minha vocação humana, de modo que me orgulhe e encha de alegria por causa dela. Faz-me compreender a grandeza com que me criaste e a enorme ambição que tens em meu favor. Obrigado, Senhor! Obrigado! Quem sou eu, para que te lembres de mim? Mas o teu imenso amor fez com que me criasses pouco inferior aos anjos e ambiciones tornar-me maior do que eles, porque participante da tua natureza divina. Obrigado, Senhor! Que eu saiba corresponder ao ter amor e tornar-me alegria para os teus olhos. Amen.

    Contemplatio

    Na criação. Deus tinha principalmente em vista o Coração de Jesus. Deus é amor. Criava o mundo para ser amado. Tinha, portanto, necessariamente como objectivo principal o Coração de Jesus: a fornalha ardente de caridade, o rei e o centro de todos os corações, no qual o Pai colocou todas as suas complacências, o desejado das colinas eternas... Deus criador contempla o Coração de Jesus, tudo o resto é acessório. As outras criaturas serão boas, se reflectirem o Coração de Jesus. Deus cria o céu, a terra, o sol, o oceano, as plantas, os animais, e vê que tudo isso é bom, porque tudo isso é feito sobre um tema único, o Coração de Jesus. O céu e o sol vivificante, isso é uma imitação do Coração de Jesus. Os físicos, diz Macróbio, chamam o sol o coração do mundo; a terra e as suas fontes fecundantes, isso é ainda uma imitação do Coração de Jesus; a planta e a seiva que a anima, aí está a imagem do Coração de Jesus e da sua graça santificante. Deus viu que isso é bom. O Coração de Jesus é o coração de Deus sobre a terra, como o Espírito Santo é o coração de Deus no céu. Também o Coração de Jesus é concebido do Espírito Santo. Ele é a obra do Espírito Santo, é animado pelo Espírito Santo, é como a continuação do Espírito Santo. Jesus tem como que três corações: um coração divino, que é o Espírito Santo, amor infinito do Filho pelo seu Pai; um Coração espiritual, que é a parte superior da sua alma santa e que compreende a sua memória, o seu entendimento e a sua vontade e que é particularmente deificada pela sua união hipostática; um coração corporal, que é igualmente deificado pela união hipostática. Eis o tríplice objecto das complacências do Pai. - Ele ama o coração espiritual e o coração corporal do seu Filho, porque são feitos à imagem de Deus: «Façamos o homem à nossa imagem». Ele ama os homens e todas as criaturas, porque aí encontra a mesma imagem e semelhança. (Leão Dehon, OSP4, p. 514).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Façamos o homem à nossa imagem e semelhança» (Gn 1, 26).

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    Subsídio litúrgico a cargo de Fernando Fonseca, scj

  • Tempo Comum - Anos Ímpares - V Semana - Quarta-feira

    Tempo Comum - Anos Ímpares - V Semana - Quarta-feira


    8 de Fevereiro, 2023

    Lectio

    Primeira leitura: Génesis 2, 4b-9, 15-17

    Quando o Senhor Deus fez a Terra e os céus, 5e ainda não havia arbusto algum pelos campos, nem sequer uma planta germinara ainda, porque o Senhor Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e não havia homem para a cultivar, 6e da terra brotava uma nascente que regava toda a superfície, 7então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo. 8Depois, o Senhor Deus plantou um jardim no Éden, ao oriente, e nele colocou o homem que tinha formado. 9O Senhor Deus fez brotar da terra toda a espécie de árvores agradáveis à vista e de saborosos frutos para comer; a árvore da Vida estava no meio do jardim, assim como a árvore do conhecimento do bem e do mal. 15O Senhor Deus levou o homem e colocou-o no jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o guardar. 16E o Senhor Deus deu esta ordem ao homem: «Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; 17mas não comas o da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás.»

    Havia alguma coisa, quando ainda não existia nada? Esta pergunta não é tão ingénua como possa parecer. De facto, não podemos falar das origens do mundo sem ser por paradoxos. O autor de Gn 2 responde assim: havia a terra e o céu, mas não havia o homem para trabalhar a terra. Gn 2 esta centrado na criação do homem, da mulher e dos animais, e não do cosmos, como Gn 1, onde o homem foi criado em vista do serviço litúrgico, do louvor sabático. Gn 1 é um relato "sacerdotal". Em Gn 2, o homem é tirado do pó humedecido, da terra, adamáh, «a avermelhada». Daí o seu nome de Adão. Nascido da terra, para à terra voltar, o homem é destinado ao trabalho agrícola, indispensável para a vida do mundo. É uma perspectiva aparentemente mais «leiga». Mas em hebraico "serviço litúrgico" e «trabalho agrícola» expressam-se com o mesmo termo. Não são duas coisas opostas e inconciliáveis. Para cultivar a terra, o homem é colocado «num jardim», ou «paraíso» como também costumamos dizer. A palavra hebraica gan indica um oásis na estepe (edin). O termo hebraico gan tem um sinónimo pardés, termo com origem na palavra persa pardeiza, que significa propriedade vedada, jardim, pomar. Pardeiza, em grego deu parádeisos, e em latim paradisum, que está na origem do português paraíso. No paraíso, o homem podia dispor de todos os frutos das árvores, excepto do da árvore do «conhecimento do bem e do mal» (v. 17). Porque terá Deus proibido ao homem distinguir o bem do mal? Os exegetas tentam actualmente uma explicação: o bem e o mal são opostos. Com frequência, na linguagem bíblica, usam-se opostos para indicar a totalidade. Assim, por exemplo, «entrar e sair» significa viver. Conhecer o bem e o mal quereria dizer, pouco mais ou menos, conhecer tudo o que é cognoscível. Mas, conhecer tudo é uma prerrogativa divina e não humana. O homem que aspira à omnisciência pretende ocupar o lugar que só a Deus pertence. Daí que lhe seja proibido comer daquela árvore.

    Evangelho: Marcos 7, 14-23

    Naquele tempo, Jesus chamou de novo a multidão e disse-lhes: «Ouvi-me todos e procurai entender. 15Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa tornar impuro. Mas o que sai do homem, isso é que o torna impuro. 16Se alguém tem ouvidos para ouvir, oiça.» 17Quando, ao deixar a multidão, regressou a casa, os discípulos interrogaram-no acerca da parábola. 18Ele respondeu: «Também vós não compreendeis? Não percebeis que nada do que, de fora, entra no homem o pode tornar impuro, 19porque não penetra no coração mas sim no ventre, e depois é expelido em lugar próprio?» Assim, declarava puros todos os alimentos. 20E disse: «O que sai do homem, isso é que torna o homem impuro. 21Porque é do interior do coração dos homens que saem os maus pensamentos, as prostituições, roubos, assassínios, 22adultérios, ambições, perversidade, má fé, devassidão, inveja, maledicência, orgulho, desvarios. 23Todas estas maldades saem de dentro e tornam o homem impuro.»

    Jesus dirige-se agora ao povo simples e, num segundo momento, apenas aos discípulos. Enfrenta questões legais delicadas para a mentalidade dos judeus piedosos e observantes. Jesus difere dos profetas e dos judeus de cultura helenista. Não se pode distinguir a esfera religiosa, divina, e a vida, como esfera quotidiana, que não pertence a Deus. As coisas do mundo não são «impuras» em si mesmas. São os homens que as podem tornar impuras. A comunidade de Jesus acredita na bondade da criação.
    Podemos distinguir no texto três momentos: o ensinamento de Jesus à multidão (vv. 14-16); a sentença de Jesus (v. 15); o ensinamento aos discípulos (vv. 17-23); a verdadeira impureza, o coração, o catálogo dos vícios. Mas o mais importante é o comportamento dos homens diante das exigências do reino de Deus. A pureza ou a impureza das coisas depende do coração do homem. É a atitude do homem perante elas, é o uso que faz delas que as pode tornar impuras. Não há nada sagrado ou profano, puro ou impuro em si. A criação é «secular»: pode ser profana e pode ser sagrada. A sacralidade e a pureza vêm ao homem e ao mundo, não de modo automático pelo contacto com determinadas coisas, lugares ou pessoas, mas unicamente através do canal do diálogo entre Deus e o homem.

    Meditatio

    Mais uma vez, Jesus fala por enigmas: «Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa tornar impuro. Mas o que sai do homem, isso é que o torna impuro» (v. 15). Como qualquer enigma, também este não é de fácil compreensão. Por isso é que Jesus começou por dizer: «Ouvi-me todos e procurai entender» (v. 14).
    Estas palavras podem ser entendidas em sentido físico. Segundo a lei de Moisés, havia impurezas rituais concernentes aos alimentos e ao comer sem ter lavado as mãos. No evangelho de hoje a discussão partiu exactamente do facto dos Apóstolos comerem sem antes lavar as mãos. Mas havia outras impurezas ligadas aos que «sai do homem», tal como perdas de sangue e outras. A mulher do Evangelho, que tinha perdas de sangue, escondia-se para não tocar outras pessoas e torná-las impuras. Quem fosse tocado por ela, teria de lavar-se e aguardar algum tempo antes de poder participar no culto.
    O enigma de Jesus poderia ser entendido no sentido em que Ele dava mais importância ao que sai do homem do que ao que ele come e bebe. Mas não era essa a intenção de Jesus: Ele distinguia o exterior e o interior no sentido do físico e do moral ou espiritual. Queria dizer que as coisas materiais têm menos importância para a pureza religiosa. E isto era uma verdadeira revolução religiosa, uma dessacralização. É certo que,
    para Jesus, todas as coisas têm relação com Deus e devem ser santificadas. Mas não devem ser sacralizadas, não se lhes deve dar uma importância desproporcionada. O alimento, o lavar as mãos, têm importância. Mas não devem ser entendidos como realidades sagradas. Uma coisa é a higiene; outra é a pureza religiosa. Há relação entre a limpeza do corpo e o respeito devido a Deus. Mas não se pode considerá-los tão importantes, que permitam esquecer outros aspectos bem mais importantes, e que não são tão facilmente alcançáveis. Purificar o coração é mais difícil do que lavar as mãos!
    Jesus revela que a pureza religiosa não é exterior, mas interior. É preciso purificar o coração, o nosso íntimo, o nosso «eu profundo», onde realmente se dá o encontro com Deus, mais do que as mãos. Há que purificar as intenções, os desejos, os actos da vontade e da inteligência, pois é deles que nasce tudo o que é mau: «as prostituições, roubos, assassínios, adultérios, ambições, perversidade, má fé, devassidão, inveja, maledicência, orgulho, desvarios. Todas estas maldades saem de dentro e tornam o homem impuro» (v. 21-23).

    Oratio

    Obrigado, Senhor Jesus, pela luz que trouxeste aos teus discípulos, libertando-os da opressão de práticas religiosas vãs, com a efusão do teu Espírito. Continua a derramar sobre nós esse mesmo Espírito: «Manda, Senhor, o teu Espírito, e tudo é criado», pediam os justos do Antigo Testamento, quando rezavam pela primeira criação. «Manda, Senhor, o teu Espírito, e tudo é criado», rezamos nós, agora, pensando na nova criação, a criação do homem novo, à imagem e semelhança de Deus. Amen.

    Contemplatio

    Escutemos o grande apóstolo, Paulo: «Desde que pertencemos a Jesus Cristo, tornamo-nos uma nova criatura: o passado já não existe; tudo é renovado. Ora, tudo isto vem de Deus, que nos reconciliou consigo pelo Cristo e foi a nós que Ele confiou o ministério da reconciliação. Sim, foi Deus quem reconciliou os homens consigo em Jesus Cristo, não lhes imputando os seus pecados, e foi em nós que Ele colocou a palavra da reconciliação. Nós desempenhamos, portanto, as funções de embaixadores de Cristo, como se Deus mesmo vos exortasse pela nossa boca. Oh! Conjuramo-vos, em nome de Cristo, reconciliai-vos com Deus! Por nosso amor, fez pecado (ou vítima do pecado) aquele que não conhecia o pecado, a fim de que nos tornássemos a justiça (ou os justificados) de Deus» (2Cor 5, 17). Senhor, exercei a vossa misericórdia sobre a minha pobre alma. (Leão Dehon, OSP4, p. 222).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Nada há fora do homem que o possa tornar impuro» (cf. Mc 7, 15).

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    Subsídio litúrgico a cargo de Fernando Fonseca, scj

  • Tempo Comum - Anos Ímpares - V Semana - Quinta-feira

    Tempo Comum - Anos Ímpares - V Semana - Quinta-feira


    9 de Fevereiro, 2023

    Lectio

    Primeira leitura: Génesis 2, 18-25

    O Senhor Deus disse: «Não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele.» 19Então, o Senhor Deus, após ter formado da terra todos os animais dos campos e todas as aves dos céus, conduziu-os até junto do homem, a fim de verificar como ele os chamaria, para que todos os seres vivos fossem conhecidos pelos nomes que o homem lhes desse. 20O homem designou com nomes todos os animais domésticos, todas as aves dos céus e todos os animais ferozes; contudo, não encontrou auxiliar semelhante a ele. 21Então, o Senhor Deus fez cair sobre o homem um sono profundo; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das suas costelas, cujo lugar preencheu de carne. 22Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. 23Então, o homem exclamou: «Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem!» 24Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne. 25Estavam ambos nus, tanto o homem como a mulher, mas não sentiam vergonha.

    O homem só, sem companhia nem ajuda, não é homem, nem pode viver como tal. A primeira ajuda vem-lhe dos animais domésticos. O homem adamita é domesticador de animais e cultivador da terra. É o tipo de homem posterior ao neolítico. O homem é superior aos animais, pois é capaz de lhes dar nomes e de lhes destinar um lugar no âmbito dos seus domínios. Mas não é no âmbito do domínio que o homem encontra a ajuda adequada, mas no diálogo com o tu semelhante, não dominado mas igual. O javista situa nesse lugar a mulher, que no caso representa todos os humanos. O sono profundo não permite ao homem assistir ao nascimento do seu semelhante. Encontrá-lo-á já diante de si, como ele, na mesma condição. Só tem que acolhê-lo, aceitá-lo.
    O homem só é uma criatura incompleta. Em Gn 1, depois de ter criado o homem macho e fêmea, Deus considerou que tudo «era muito bom» (Gn 1, 31). Em Gn 2, o homem macho, só, não é bom (cf. Gn 2, 18). A solidão do homem não é boa porque ele não é Deus. Só Deus é grande. A solidão implica grandeza, auto-suficiência. O homem é pequeno, deve crescer e multiplicar-se. Deve percorrer um caminho, não pode permanecer só. Para ter uma história, precisa de um partner. A mulher é «uma auxiliar semelhante a ele» (v. 18.20). Uma tradução mais exacta diria: é um auxiliar contra ele, porque lhe resiste, se lhe opõe, rompe a sua solidão, a sua auto-suficiência. É uma ajuda porque o limita no seu desejo de omnipotência, porque o força a sair do seu isolamento. O autor do Génesis é muito realista ao falar da relação homem-mulher. Essa relação pode tornar-se conflituosa, como veremos em Gn 3, 16. Mas é abençoada porque arranca o homem, e arranca a mulher, da sua solidão. É por isso que o primeiro encontro entre um homem e uma mulher tem sempre algo de fascinante.

    Evangelho: Marcos 7, 24-30

    Naquele tempo, Jesus partindo dali, foi para a região de Tiro e de Sídon. Entrou numa casa e não queria que ninguém o soubesse, mas não pôde passar despercebido, 25porque logo uma mulher que tinha uma filha possessa de um espírito maligno, ouvindo falar dele, veio lançar-se a seus pés. 26Era gentia, siro-fenícia de origem, e pedia-lhe que expulsasse da filha o demónio. 27Ele respondeu: «Deixa que os filhos comam primeiro, pois não está bem tomar o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos.» 28Mas ela replicou: «Dizes bem, Senhor; mas até os cachorrinhos comem debaixo da mesa as migalhas dos filhos.» 29Jesus disse: «Em atenção a essa palavra, vai; o demónio saiu de tua filha.» 30Ela voltou para casa e encontrou a menina recostada na cama. O demónio tinha-a deixado.

    Depois de ter curado muitos doentes e discutido com os fariseus em Genesaré, Jesus prossegue a sua viagens por Tiro, Sídon e Decápole, terras pagãs. E também aí realiza milagres: a cura da filha da mulher cananeia, que escutamos hoje, e a do surdo-mudo, que escutaremos amanhã.
    No diálogo com a mulher cananeia emerge a tensão entre o papel proeminente de Israel na história da salvação e o universalismo da mesma salvação. Não só os «filhos», os judeus, mas também os «cães», os pagãos, segundo a metáfora, são chamados à salvação. A única condição é escutar a Boa Nova e acolher Jesus como Senhor: «Dizes bem, Senhor...», exclama a mulher. «Em atenção a essa palavra, - diz-lhe Jesus - vai; o demónio saiu de tua filha» (v. 30). A fé da cananeia dissolveu a tensão e alcançou-lhe o milagre. A filha foi libertada do demónio.
    No diálogo entre Jesus e a mulher aparecem as expressões «pão dos filhos» e «migalhas dos cachorrinhos» (v. 28). É já um anúncio do milagre da multiplicação dos pães, que Marcos narrará pouco depois (cf. Mc 8, 1-10).
    Jesus também continua a rebater, com palavras e acções, o legalismo dos judeus, dando atenção ao mundo e à cultura grega. Não esqueçamos que Marcos escreve para uma comunidade cristã grega.
    Meditatio

    As diferenças entre o homem e a mulher sempre suscitaram diversos sentimentos que podem ir desde a irritação, por se ter necessidade de alguém diferente de nós mesmos, até à tentação de desprezar o que é diferente. O desprezo da mulher pelo homem, a misoginia, bem como o desprezo do homem pela mulher, a misantropia, são tentações tão velhas como a humanidade. No nosso tempo, assistimos a algumas tentativas, no mínimo ridículas, para disfarçar as diferenças entre homem e mulher. A Bíblia já reagiu para demonstrar que as diferenças entre o homem e a mulher têm em vista a sua complementaridade e a vocação ao amor na unidade.
    O relato bíblico insiste na fundamental igualdade e na profunda unidade entre o homem e a mulher. Deus verifica que o homem precisa de um auxiliar e procura-lho. O homem tem que aceitar serenamente a ideia de não ser completo em si mesmo, de precisar de um auxiliar que lhe seja igual. Neste momento que o autor sagrado insere a criação dos animais. O homem não encontra entre eles um que lhe seja semelhante (cf. v 20). Isto quer dizer que a mulher não é um animal. É certo que em muitas civilizações ela foi, e ainda continua a ser tratada como besta de carga. Mas o relato bíblico mostra que os animais são diferentes do homem, estão a outro nível, onde o homem não encontra, nem pode encontrar, o auxiliar de que precisa. Então, Deus intervém para lhe dar a ajuda de que precisa: «Então, o Senhor Deus fez cair sobre o homem um sono profundo; e, enquanto ele dormi
    a, tirou-lhe uma das suas costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem» (v. 21-22). É um modo imaginativo de dizer a profunda unidade entre o homem e a mulher. É esta unidade que o homem reconhece quando afirma: «Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher (em hebraico: ishsha), visto ter sido tirada do homem (em hebraico: ish)!» (v. 23). O homem reconhece que a mulher é o auxiliar de que precisava. "Precisar" é sempre, em certo sentido, ser inferior. A mulher, por sua vez, tem de reconhecer que foi feita para ajudar o homem. Esta é a perspectiva do Antigo Testamento. Com Cristo, algo mudou na relação homem-mulher. S. Paulo afirma que, em Cristo, já não há homem nem mulher, e que a igualdade se tornou muito mais fundamental. Já não há Judeu ou pagão, homem livre ou escravo. Todos são um em Cristo. A unidade em Cristo relativiza qualquer diferença. Noutro passo, o Apóstolo diz que não há homem sem mulher, nem mulher sem homem, no Senhor. A mulher não existe sem o homem. O homem nasce da mulher e tudo isso vem de Deus. Homens e mulheres havemos de estar conscientes de que, a diferença e a complementaridade são necessárias para caminharmos no amor, saindo de nós mesmos e acolhendo o outro. Podemos ser tentados a procurar alguém idêntico a nós, a procurar a nossa imagem noutro. Mas isso pode ser uma forma de narcisismo. Aceitar alguém diferente de si mesmo é sair de si, e dar passos no amor, que é sempre saída de si mesmo. Homens e mulheres, precisamos de ajuda para caminhar no amor.
    Os Padres da Igreja viram no relato da criação da mulher, a partir de uma costela de Adão, o nascimento da Igreja do Lado de Cristo, morto na Cruz. As nossas Constituições fazem eco dessa perspectiva, citando um texto do Pe. Dehon: «Do Coração de Cristo, aberto na cruz, nasce o homem de coração novo, animado pelo Espírito e unido aos seus irmãos na comunidade de amor, que é a Igreja (Cst 3; cf. Études sur le Sacré-Coeur, I, p. 114)».

    Oratio

    Senhor, Tu afirmaste, referindo-te ao homem: «Vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele» (Gn 2, 18). Assim querias ensinar que nem tudo depende exclusivamente dos homens, que as mulheres não são desprezíveis e que a discriminação entre homens e mulheres, que prevalece em muitas mentes e em numerosas sociedades, não tem qualquer sentido. Quiseste evitar que o homem assumisse atitudes de presunção e de superioridade em relação à mulher por ter sido criado antes dela e por ela ter sido formada por meio dele. Quiseste mostrar que as coisas do mundo precisam da mulher não menos que do homem. Ajuda, pois, todos os homens a vencerem a auto-suficiência e o orgulho masculino, que os impedem de olhar a mulher como igual em dignidade, e como companheira e ajuda no caminho para Ti. Amen.

    Contemplatio

    S. Paulo teve a missão de nos explicar o sentido místico do matrimónio e a superioridade da virgindade. «O matrimónio, diz, é um grande sacramento ou um grande mistério em Cristo e na Igreja» (Ef 5, 13). O matrimónio foi elevado a esta dignidade, de representar, de figurar a união de Cristo com a Igreja, e participa nas graças que representa. O esposo é o chefe da mulher, como Cristo é o chefe da Igreja. Entre eles deve reinar uma união de afecto, de confiança e de respeito. A mulher honra Cristo no seu esposo. É-lhe submissa em tudo o que é segundo Deus. Honra nele o chefe e o protector da família. O esposo ama a sua esposa como Cristo ama a Igreja. Dedica-se por ela. Deve ajudá-la em tudo e sobretudo na sua santificação. O matrimónio é, portanto, a nobre imagem da união de Cristo e da Igreja. (Leão Dehon, OSP4, p. 278).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Aquele que tem uma mulher possui o primeiro dos bens,
    uma ajuda condizente e uma coluna de apoio» (Sir 36, 24)».

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    Subsídio litúrgico a cargo de Fernando Fonseca, scj

  • Tempo Comum – Anos Ímpares – V Semana – Sexta-feira

    Tempo Comum – Anos Ímpares – V Semana – Sexta-feira


    10 de Fevereiro, 2023

    Lectio

    Primeira leitura: Génesis 3, 1-8

    A serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus fizera; e disse à mulher: «É verdade ter-vos Deus proibido comer o fruto de alguma árvore do jardim?» 2A mulher respondeu-lhe: «Podemos comer o fruto das árvores do jardim; 3mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Nunca o deveis comer, nem sequer tocar nele, pois, se o fizerdes, morrereis.’ 4A serpente retorquiu à mulher: ‘Não, não morrereis; 5porque Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal’.» 6Vendo a mulher que o fruto da árvore devia ser bom para comer, pois era de atraente aspecto e precioso para esclarecer a inteligência, agarrou do fruto, comeu, deu dele também a seu marido, que estava junto dela, e ele também comeu. 7Então, abriram-se os olhos aos dois e, reconhecendo que estavam nus, coseram folhas de figueira umas às outras e colocaram-nas, como se fossem cinturas, à volta dos rins.

    Segundo o javista, o homem, desde as suas origens, aspira ao paraíso. Mas também se deixa envolver pelo mal, como verificamos neste relato, onde aparece uma personagem astuta e inquietante: a serpente. Na tradição sucessiva, tanto hebraica como cristã, a serpente do Génesis tornar-se-á figura do diabo, do maligno. Mas no antigo Oriente, a serpente era, sobretudo, símbolo da fertilidade sexual e da saúde. Anda hoje, entre nós, a serpente é símbolo da farmacêutica. A Bíblia desmitiza completamente a serpente ao apresentá-la como «animal selvagem», semelhante aos outros. Na verdade, a serpente não pode fazer o bem nem o mal. Só o homem e a mulher os podem fazer. Portanto, a serpente no «paraíso» não explica a origem do mal. É mais um recurso literário para introduzir a dinâmica sedutora que está na origem do pecado humano. É o homem e é a mulher que pecam. O animal que fala, seja a serpente, seja a burra de Balaão, é um recurso narrativo para descrever o que se passa na mente dos protagonistas da história. O homem e a mulher dialogam no íntimo de si mesmos sobre o teor da proibição divina e sobre a sua verdadeira motivação (vv. 2s.). Com grande perspicácia psicológica, o autor bíblico diz-nos que o pecado, antes de ser um gesto, um acto, acontece na consciência, por meio de uma dúvida que nela se insinua acerca da bondade do Criador. Não se trata, portanto, de explicar a origem do mal no mundo, mas a origem e a dinâmica do pecado humano, como um processo subtil e progressivo de desobediência à palavra de Deus. É verdade que, neste processo, podem intervir factores externos e causas sobre-humanas. Mas o autor quer acentuar, sobretudo, a responsabilidade do homem-mulher. Falamos de “pecado original” porque ele nos descreve a origem de todo o pecado.

    Evangelho: Marcos 7, 31-37

    Naquele tempo, Jesus deixou de novo a região de Tiro, veio por Sídon para o mar da Galileia, atravessando o território da Decápole. 32Trouxeram-lhe um surdo tartamudo e rogaram-lhe que impusesse as mãos sobre ele. 33Afastando-se com ele da multidão, Jesus meteu-lhe os dedos nos ouvidos e fez saliva com que lhe tocou a língua. 34Erguendo depois os olhos ao céu, suspirou dizendo: «Effathá», que quer dizer «abre-te.» 35Logo os ouvidos se lhe abriram, soltou-se a prisão da língua e falava correctamente. 36Jesus mandou-lhes que a ninguém revelassem o sucedido; mas quanto mais lho recomendava, mais eles o apregoavam. 37No auge do assombro, diziam: «Faz tudo bem feito: faz ouvir os surdos e falar os mudos.»

    Desta vez, Jesus cura um surdo tartamudo, cuja capacidade intelectual estava condicionada pela sua deficiência. Por isso, ao tocar-lhe os órgãos doentes com saliva, Jesus não quer fazer magia à maneira dos taumaturgos da época, mas apenas dirigir-se à consciência daquele que ia ser objecto do prodígio. Noutros casos bastavam as palavras. Aqui, tratando-se de um surdo tartamudo, são precisos gestos. E Jesus fá-los.
    É o segundo milagre que Jesus faz em território pagão e este texto, exclusivo de Marcos, pretende continuar a descrição da actividade missionária da primeira comunidade cristã e assinalar a abertura dos pagãos à fé em Jesus Cristo.
    O assombro dos que presenciam os milagres de Jesus lembra-nos Gn 1: «E Deus viu que tudo era bom», mas também Isaías: «O mudo gritará de alegria» (Is 35, 6). Em Jesus realizam-se as promessas de salvação. Não se trata, pois, de triunfalismo político-messiânico, mas de um reconhecimento gozoso da eficácia desalienante da presença do reino de Deus.

    Meditatio

    O desconhecimento de Deus está na base da tentação. A serpente tentadora sabe disso e, portanto, começa por insinuar uma falsa ideia de Deus: Deus é ciumento, é inimigo da liberdade, é inimigo do conhecimento. Numa palavra: Deus limita o nosso bem o mais que pode. A verdade é bem outra: Deus criou o homem à sua imagem e quer que se assemelhe o mais possível a Ele, defendendo-o de toda a tentação que impeça ou reduza essa semelhança.
    Como criatura, o homem sempre se deu conta de que há uma diferença irredutível entre ele e Deus e que, portanto, há limites que não pode ultrapassar. Enquanto permanecer nesses limites, o homem pode ser feliz e gozar dos bens da criação. Mas o inimigo tenta e consegue impingir-lhe uma falsa imagem de Deus. Assim acontece o pecado original, que consiste nesta ultrapassagem dos limites fixados, com a pretensão de ser ilimitado como Deus.
    A sedução da serpente ou, se quisermos, a sedução do pecado leva a uma tripla transgressão dos nossos limites de criaturas: arrogar-nos prerrogativas divinas, como a imortalidade («Não morrereis»), a omnisciência («Abrir-se-ão os vossos olhos»), a omnipotência («Sereis como Deus»).
    Vamos limitar-nos a uma breve reflexão sobre a segunda pretensão, a da omnisciência («Abrir-se-ão os vossos olhos»). Trata-se da sedução intelectual, do desejo de conhecer tudo. Este desejo exacerbado acaba por levar à percepção da própria nudez, da própria pobreza: «reconhecendo que estavam nus, coseram folhas de figueira umas às outras e colocaram-nas, como se fossem cinturas, à volta dos rins» (v. 7).
    O episódio evangélico da abertura dos ouvidos do surdo, realizada por Jesus, contrasta com a ilusória abertura dos olhos prometida pela serpente. O homem, para ser feliz, para se tornar como Deus, mais do que ver e do que conhecer, precisa de ouvir, de escutar e de obedecer. Só a Palavra de Deus lhe abre horizontes de vida. A palavra do egoísmo e da auto-suficiência fecha o homem e arrasta-o para onde não quer. É uma palavra enganosa, que o leva a ler de modo errado a sua própria realidade, a realidade do mundo e a realidade de Deus. E, assim, acaba por descobrir a sua vulnerabilidade. A Palavra de Deus, pelo contrário, i
    nsere-o na realidade, suscita nele sentimentos de espanto, leva-o a entoar hinos de louvor e de alegria. É uma alegria escutar a palavra do Senhor «abre-te!». Abertos a essa palavra, vemos a maravilhosa vocação a que somos chamados, abrimo-nos ao mundo com um novo olhar, ao amor com novo entusiasmo, ao conhecimento de Deus que é amor e luz, onde não há trevas.

    Oratio

    Senhor Jesus, faz-me compreender o amor do Pai, que não me impede de crescer, de me abrir, mas que pela tua obra redentora me abriu para horizontes de realização e felicidade insuspeitos. Ao contrário do que insinua o tentador, o Pai não teme que o homem e a mulher abram os olhos. «Effathá»! Abre-te!» foi a palavra que ouvi no dia do meu baptismo. Por Ti, o Pai libertou-me, permitiu-me progredir na vida, entrar em comunicação e em comunhão com Ele. Obrigado, Senhor! Obrigado por me teres tornado capaz de escutar a Palavra, que me enche de alegria, me aponta a vocação, me abre ao mundo, ao conhecimento de Deus-amor, à luz da verdade. Amen.

    Contemplatio

    Maria, Mãe de Deus – É justo que, ao menos uma vez, meditemos especialmente sobre a maternidade de Maria, relativamente a Jesus e, por extensão, relativamente a nós? «Tendo fixado o desígnio da Incarnação, diz S. Francisco de Sales, Deus podia produzir de várias maneiras a humanidade do seu Filho, como, por exemplo, criando-a do nada, ou então formando o seu corpo da terra como fez com Adão; mas preferiu dar-lhe uma mãe, para manifestar melhor a sua bondade e a sua infinita sabedoria». Deus mostra-nos a sua bondade elevando Maria, uma simples criatura tomada de entre nós, à dignidade sublime de Mãe de Deus. Manifesta-nos a sua sabedoria opondo à obra fatal da nossa primeira mãe, a obra reparadora de Maria. «A obra da nossa conceição começa por Eva, diz Bossuet, a obra da reparação por Maria; a palavra de morte é levada a Eva, a palavra de vida à santíssima Virgem… O anjo de trevas quer elevar Eva à falsa grandeza; Vós sereis como Deus! O anjo de luz estabelece Maria na verdadeira grandeza por uma sociedade com Deus: O Senhor está convosco…». Maria é a Mãe de Deus, e é este privilégio incomparável da maternidade divina, que faz de Maria a Rainha de todas as criaturas, e que é a fonte e a causa de todas as suas grandezas, de todas as suas graças, do seu poder e da sua glória. Ó Maria, quando contemplo em vós esta eminente dignidade de Mãe de Deus, a minha veneração, a minha confiança e o meu amor por vós não têm limites e sinto-me impotente para vo-los manifestar. (Leão Dehon, OSP3, p. 104).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «O mudo gritará de alegria!» (Is 35, 6).

     

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    Subsídio litúrgico a cargo de Fernando Fonseca, scj

  • Tempo Comum - Anos Ímpares - V Semana - Sábado

    Tempo Comum - Anos Ímpares - V Semana - Sábado


    11 de Fevereiro, 2023

    Lectio

    Primeira leitura: Génesis 3, 9-24

    O Senhor Deus chamou o homem e disse-lhe: «Onde estás?» 10Ele respondeu: «Ouvi a tua voz no jardim e, cheio de medo, escondi-me porque estou nu.» 11O Senhor Deus perguntou: «Quem te disse que estás nu? Comeste, porventura, da árvore da qual te proibi comer?» 12O homem respondeu: «Foi a mulher que trouxeste para junto de mim que me ofereceu da árvore e eu comi.» 13O Senhor Deus perguntou à mulher: «Por que fizeste isso?» A mulher respondeu: «A serpente enganou-me e eu comi.» 14Então, o Senhor Deus disse à serpente: «Por teres feito isto, serás maldita entre todos os animais domésticos e entre os animais selvagens. Rastejarás sobre o teu ventre, alimentar-te-ás de terra todos os dias da tua vida. 15Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta esmagar-te-á a cabeça e tu tentarás mordê-la no calcanhar.» 16Depois, disse à mulher: «Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, entre dores darás à luz os filhos. Procurarás apaixonadamente o teu marido, mas ele te dominará.» 17A seguir, disse ao homem: «Porque atendeste à voz da tua mulher e comeste o fruto da árvore, a respeito da qual Eu te tinha ordenado: 'Não comas dela', maldita seja a terra por tua causa. E dela só arrancarás alimento à custa de penoso trabalho, todos os dias da tua vida. 18Produzir-te-á espinhos e abrolhos, e comerás a erva dos campos. 19Comerás o pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de onde foste tirado; porque tu és pó e ao pó voltarás.» 20Adão pôs à sua mulher o nome de Eva, porque ela seria mãe de todos os viventes. 21O Senhor Deus fez a Adão e à sua mulher túnicas de peles e vestiu-os. 22O Senhor Deus disse: «Eis que o homem, quanto ao conhecimento do bem e do mal, se tornou como um de nós. Agora é preciso que ele não estenda a mão para se apoderar também do fruto da árvore da Vida e, comendo dele, viva para sempre.» 23O Senhor Deus expulsou-o do jardim do Éden, a fim de cultivar a terra, da qual fora tirado. 24Depois de ter expulsado o homem, colocou, a oriente do jardim do Éden, os querubins com a espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da Vida.

    O Senhor Deus deu esta ordem ao homem: «Não comas o da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás.» (v. 17). Não se trata de uma ameaça de Deus, mas de um aviso: fica a saber que, se fizeres isso, te acontecerá isto e aquilo. Deus revela um nexo de causa e efeito: o pecado produz a morte (cf. Gn 1, 15).
    Mas a mulher, quando refere à serpente a palavra de Deus, introduz algumas ligeiras alterações que a mudam: «Deus disse: 'Nunca o deveis comer, nem sequer tocar nele, pois, se o fizerdes, morrereis´.» Nestas palavras pressente-se a ameaça de um castigo. Por isso é que a mulher nem sequer ousa tocar na árvore.
    É significativo que também nós, hoje, chamemos "interrogatório" ao diálogo entre Deus e o homem, como se se tratasse de um acto judicial. Na realidade, trata-se de um puro acto de misericórdia. Deus procura o homem - «onde estás?» - para lhe dizer que não o abandona, apesar do pecado. Não se trata de perguntas intimidatórias, mas pedagógicas. Deus dirige-se a Adão e Eva como se não soubesse de nada, para os ajudar a tomar consciência do seu pecado. As consequências do pecado são temperadas pela misericórdia. O homem não morre, como estava previsto. A sua vida terrena será penosa, como continuamos a verificar em nós mesmos, mas não é posta sob o signo do castigo e da maldição. A serpente é amaldiçoada. O homem e a mulher, não.

    Evangelho: Marcos 8, 1-10

    Naqueles dias, havia outra vez uma grande multidão e não tinham que comer. Jesus chamou os discípulos e disse: 2«Tenho compaixão desta multidão. Há já três dias que permanecem junto de mim e não têm que comer. 3Se os mandar embora em jejum para suas casas, desfalecerão no caminho, e alguns vieram de longe.» 4Os discípulos responderam-lhe: «Como poderá alguém saciá-los de pão, aqui no deserto?» 5Mas Ele perguntou: «Quantos pães tendes?» Disseram: «Sete.» 6Ordenou que a multidão se sentasse no chão e, tomando os sete pães, deu graças, partiu-os e dava-os aos seus discípulos para eles os distribuírem à multidão. 7Havia também alguns peixinhos. Jesus abençoou-os e mandou que os distribuíssem igualmente. 8Comeram até ficarem satisfeitos, e houve sete cestos de sobras. 9Ora, eram cerca de quatro mil. Despediu-os 10e, subindo logo para o barco com os discípulos, foi para os lados de Dalmanuta.

    A crítica interroga-se se esta multiplicação dos pães é, de facto, um novo milagre ou se é uma segunda versão do que foi narrado em Mc 6, 34-44. Mas, mais importante que saber se se trata de um ou de dois prodígios diferentes, é conhecer as intenções querigmáticas do evangelista.
    Toda esta secção parece orientada para realçar a finalidade da evangelização, incluindo o seu aspecto taumatúrgico, a saber: libertar o homem da alienação e de tudo o que ameaça a sua existência, não só no limite extremo entre a vida e a morte, mas também na sua acção de cada dia. Nos dois relatos facilmente se pode ver uma alusão à refeição eucarística, tal como era celebrada pela comunidade judeo-helenista de Cesareia, em cujo seio nasceu o evangelho de Marcos. O evangelista parece querer realçar a multiplicação dos pães como prefiguração da eucaristia cristã e das suas implicações a favor dos pagãos. De facto, anota: «alguns vieram de longe» (v. 3b). Além disso, a compaixão de Jesus é suscitada pela miséria física daquela gente que andava com Ele havia três dias. É este sentimento de compaixão que provoca o milagre. É esse mesmo sentimento que há-de levar à partilha na comunidade, em favor dos carenciados.

    Meditatio

    «Arrancarás alimento à custa de penoso trabalho», lemos na primeira leitura (v. 17). O evangelho, ao referir a milagrosa multiplicação dos pães, parece contradizer a palavra de Deus aos nossos primeiros pais. Que significa este contraste entre a primeira leitura e o evangelho? Significa que Jesus vai reparar completamente os pecados do homem, dando-lhe acesso à verdadeira prosperidade.
    O relato do Génesis mostra-nos as consequências do pecado. O pecado separa-nos de Deus. Mas também dos nossos semelhantes: «Foi a mulher que trouxeste para junto de mim que me ofereceu da árvore e eu comi» (v. 12). Adão acusa a Deus e acusa a mulher! A mulher, por sua vez, também atira a culpa para a serpente: «A serpente enganou-me e eu comi» (v. 12).
    O comportamento de Adão e de Eva é infantil. Não assumem as próprias responsabilidades e procuram atribuí-las a outros. Se pensarmos bem, também nós, por vezes, fazemos esse triste papel, criando separações entre nós. O sofrimento vivido na vontade de Deus une; a alegria vivida fora da vontade de Deus separa. A unidade e a comunhão encontram-se na vontade de Deus ou, se preferirmos, no amor de Deus manifestado na sua vontade, que acolhemos e realizamos.
    Mas a primeira leitura, além de situações deploráveis, também contém promessas. Logo que o homem pecou, Deus concebeu um projecto para reparar o pecado do homem e restabelecê-lo na comunhão Consigo e com os outros homens: «Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta esmagar-te-á a cabeça », diz Deus à serpente (v. 15). Esta promessa realizou-se na história de Maria, Mãe de Jesus, e na história do próprio Jesus. Segundo a Bíblia hebraica, é a «descendência» da mulher que esmaga a cabeça da serpente; na Vulgata é a própria mulher que esmaga essa cabeça. As duas afirmações estão correctas. No Calvário, Maria foi solidária com Cristo na obra da nossa redenção, e foi solidária connosco, porque não se separou dos pecadores. Aceitou o sofrimento de Cristo, e uniu-se a ele, para redenção dos pecadores. Ofereceu-se com Cristo para glória de Deus e salvação dos homens.

    Oratio

    Senhor, ensina-nos que não podemos viver pelo nosso conhecimento, mas somente pela tua misericórdia. No jardim do Paraíso, o homem e a mulher podem comer de todas as árvores: tudo é dom! Duma só árvore não podem comer. Mas a dinâmica do pecado faz-lhes pensar que o secundário é principal, e que, faltando uma árvore, faltavam todas. Esquecem a tua misericórdia por causa de algo que, eles próprios, queriam alcançar. Mas, só Tu, podes saciar a nossa fome, também aquela que nem ousamos confessar. Sacias-nos abundantemente, gratuitamente, como sinal do teu amor. Que saibamos aceitar e comer agradecidos o alimento que nos dás. Amen.

    Contemplatio

    O reino dos céus, diz Nosso Senhor (Mt 13), é semelhante a uma pedra preciosa que um negociante descobre. Vende tudo o que tem para a conseguir. Nós temos no tabernáculo o Rei dos reis. Está à nossa disposição com o seu reino que é a sua graça sobre a terra aguardando a sua glória no céu. Não deveríamos deixar tudo e tudo sacrificar por este reino? Infelizmente deixei muitas vezes a Eucaristia e o Coração de Jesus pelas criaturas, como o povo de Israel que sacrificava o serviço de Deus por um bocado de pão (Ez 13, 19). Mas a pedra preciosa não está longe. Ainda é tempo. Posso encontrá-la e comprá-la, se faço os sacrifícios necessários. A Eucaristia está lá, o Coração de Jesus está lá no tabernáculo. Mas Nosso Senhor fixa-me um preço de resgate, é o tal sacrifício que é preciso fazer, é o tal apego que é preciso romper. Conheço este preço pelo meu exame particular, conheço-o pelas minhas confissões habituais. Sei o que é preciso sacrificar, mas a coragem falta-me. Senhor, ajudai-me, peço-vos pela bondade do vosso coração e pela intercessão de Maria. Eis a árvore da vida, continuarei a abandoná-la para correr ao fruto proibido? Eis a fonte de vida, irei ainda beber ao riacho envenenado? Eis a jóia de um preço infinito, vou desdenhá-la /633 por um prazer sensual? Não, quero hoje voltar às minhas resoluções salutares. Hei-de ir buscar a minha força junto do sacrário. (Leão Dehon, OSP3, p. 632s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela» (Gn 3, 15).

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    Subsídio litúrgico a cargo de Fernando Fonseca, scj

  • Tempo Comum - Anos Ímpares - VI Semana - Segunda-feira

    Tempo Comum - Anos Ímpares - VI Semana - Segunda-feira


    13 de Fevereiro, 2023

    Lectio

    Primeira leitura: Génesis 4, 1-15.25

    Adão conheceu Eva, sua mulher. Ela concebeu e deu à luz Caim, e disse: «Gerei um homem com o auxílio do Senhor.» 2Depois, deu também à luz Abel, irmão de Caim. Abel foi pastor, e Caim, lavrador. 3Ao fim de algum tempo, Caim apresentou ao Senhor uma oferta de frutos da terra. 4Por seu lado, Abel ofereceu primogénitos do seu rebanho e as suas gorduras. O Senhor olhou com agrado para Abel e para a sua oferta, 5mas não olhou com agrado para Caim nem para a sua oferta. Caim ficou muito irritado e andava de rosto abatido. 6O Senhor disse a Caim: «Porque estás zangado e de rosto abatido? 7Se procederes bem, certamente voltarás a erguer o rosto; se procederes mal, o pecado deitar-se-á à tua porta e andará a espreitar-te. Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas deves dominá-lo.» 8Entretanto, Caim disse a Abel, seu irmão: «Vamos ao campo.» Porém, logo que chegaram ao campo, Caim lançou-se sobre o irmão e matou-o. 9O Senhor disse a Caim: «Onde está o teu irmão Abel?» Caim respondeu: «Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?» 10O Senhor replicou: «Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até mim. 11De futuro, serás amaldiçoado pela terra, que, por causa de ti, abriu a boca para beber o sangue do teu irmão. 12Quando a cultivares, não voltará a dar-te os seus frutos. Serás vagabundo e fugitivo sobre a terra.» 13Caim disse ao Senhor: «A minha culpa é excessivamente grande para ser suportada. 14Expulsas-me hoje desta terra; obrigado a ocultar-me longe da tua face, terei de andar fugitivo e vagabundo pela terra, e o primeiro a encontrar-me matar-me-á.» 15O Senhor respondeu: «Não! Se alguém matar Caim, será castigado sete vezes mais.» E o Senhor marcou-o com um sinal, a fim de nunca ser morto por quem o viesse a encontrar. 25Adão conheceu de novo a sua mulher, que teve um filho, e deu-lhe o nome de Set, dizendo: «Porque Deus concedeu-me outro no lugar de Abel, morto por Caim.»

    Porque terá Deus ficado agradado com a oferenda de Abel e não com a de Caim? Não sabemos. Caim era o irmão mais velho. Abel, o mais novo. Geralmente a Sagrada Escritura revela preferência pelo irmão mais novo, mais fraco, menos avantajado. Basta pensar em Isaac, em Jacob, em José, em Benjamim. Caim era agricultor, enquanto Abel era pastor. O nosso texto pode também reflectir o conflito entre agricultores e pastores. Na verdade, o texto nada diz sobre as razões do agrado ou do desagrado de Deus, nem sobre as razões do conflito entre os dois irmãos. O que fica claro é que Deus pode ter preferências, pode escolher um e não outro. O amor, por vezes, faz mesmo opções que não é fácil motivar. O conflito entre os dois irmãos, que leva ao primeiro homicídio da história, quer explicar o ódio fratricida como efeito do ciúme e da inveja motivados por uma predilecção de Deus. Serão também o ciúme e a inveja que hão-de levar à venda de José pelos irmãos (cf. Gn 37, 26s.). Jesus será entregue a Pilatos por causa da inveja dos chefes dos judeus (cf. Mc 15, 10).
    Não é, pois, fácil descobrir os motivos da predilecção divina. As escolhas divinas são gratuitas e incontestáveis. Mas é fácil dar-nos conta das motivações da aversão por este ou por aquele irmão ou irmã. Muitas vezes é o ciúme motivado pelos dons que descobrimos nos outros e não vemos em nós, o que nos parece injusto. A história do fratricídio tem um valor paradigmático.

    Evangelho: Marcos 8, 11-13

    Naquele tempo, apareceram alguns fariseus e começaram a discutir com Ele, pedindo-lhe um sinal do céu para o pôr à prova. 12Jesus, suspirando profundamente, disse: «Porque pede esta geração um sinal? Em verdade vos digo: sinal algum será concedido a esta geração.» 13E, deixando-os, embarcou de novo e foi para a outra margem.

    A perícopa que hoje escutamos situa-se na no contexto da «secção dos pães» (Mc 6, 30-8,26) e mais precisamente na reacção dos fariseus (8, 11-13) e dos discípulos (8, 14-21) à revelação cristológica. Os fariseus não reconhecem o valor do milagre da multiplicação dos pães realizado por Jesus. Daí a provocação: dá-nos «um sinal do céu» (v. 11). Jesus apercebe-se imediatamente da intenção dos fariseus e responde-lhes categoricamente: «sinal algum será concedido a esta geração» (v. 12). Não há prodígio (dýnamis) nem sinal (semêion), - aqui Marcos usa o termo sinal -, capaz de convencer quem não quer deixar-se convencer.
    A expressão «esta geração» (v. 12), na literatura profética, indica o povo de Israel infiel à Aliança, que exige sempre de Deus novas manifestações do seu poder. A expressão aparece por vezes seguida de adjectivos como «adúltera e pecadora» (8, 38; Mt 12, 39.45;16,4) ou «infiel e perversa» (9, 19; cf. Mt 17, 17). Nesta perícopa a expressão «esta geração» parece indicar, não só os fariseus, mas também todos aqueles que procuram sempre novos sinais para acreditar.

    Meditatio

    A primeira leitura, que nos fala do sacrifício de Abel, prepara-nos para compreendermos o sacrifício de Jesus, que já entrevemos na hostilidade dos fariseus de que nos fala o evangelho.
    Segundo os exegetas, Abel, em hebraico, significa "sopro", "vapor", "vaidade". É um nome que indica a precariedade, a fragilidade da existência humana. O Filho de Deus também assumiu essa fragilidade. Abel é a primeira vítima inocente da história. O seu sangue derramado grita por vingança diante de Deus. Segundo a Lei, a morte do inocente só pode ser espiada com a morte do homicida: «o sangue mancha a terra e a terra só pode ser lavada dessa mancha com o sangue daquele que o tiver derramado» (Nm 35, 33). Jesus também é uma vítima inocente. O seu sangue foi derramado, como o de Abel, por causa do ódio dos seus irmãos. Judas reconhece a inocência de Jesus: «Atraiçoei sangue inocente» (Mt 27, 4). Há pois certa semelhança entre o sacrifício de Abel e o de Jesus. Segundo o Cânon romano, o sacrifício de Abel é uma prefiguração do sacrifício de Jesus. Mas a Carta aos Hebreus realça a diferença que também existe entre os dois, entre o sangue de Jesus e o sangue de Abel. O sangue de Abel grita vingança. Caim será expulso da terra que bebeu o sangue do seu irmão. Mas não será morto. Quem o poderia fazer? Andará fugitivo e vagabundo toda a vida, mas com um sinal da protecção de Deus. O sangue de Jesus é «mais eloquente que o sangue de Abel» (Heb 12, 24). Porquê? Porque o sangue de Jesus não se limita a clamar por vingança, por justiça, mas oferece a todos o pe
    rdão e a salvação.
    S. João, na sua primeira carta, escreve: «Caim, que era do Maligno, assassinou o seu irmão. E porque o assassinou? Porque as suas obras eram más, ao passo que as do irmão eram boas.» (1 Jo 3, 12). O motivo que levou Caim a assassinar o seu irmão foi a malícia, a maldade. O inocente é morto pelo malvado porque faz o bem. Assim aconteceu com Jesus. Assim pode acontecer também com os discípulos de Jesus, que não devem espantar-se com o ódio do mundo.
    O autor da Carta aos Hebreus também mostra que Abel, já morto, continua a ser figura de Cristo ressuscitado: «A voz do sangue do teu irmão clama da terra até mim» (v. 10). Portanto, de algum modo, continua vivo. Quando se fala de Cristo, a voz do seu sangue é anda mais forte, «mais eloquente». O sangue de Jesus grita a sua ressurreição. Grita amor e misericórdia.
    O episódio do sacrifício de Abel termina com o nascimento de Set. «Deus concedeu-me outro no lugar de Abel, morto por Caim» - exclama Adão. Os Padres da Igreja vêem nestas palavras uma alusão a Cristo Ressuscitado. Deus, já desde o princípo, entrevê o seu projecto de salvação, a vitória sobre a morte e sobre o mal, que será oferecida ao homem por Jesus morto e ressuscitado.

    Oratio

    Senhor, nosso Deus, olhai com benevolência e agrado para a oferenda de nós mesmos, do que somos, temos, fazemos e sofremos e que, hoje, unidos a Cristo vosso Filho, humildemente vos apresentamos. Dignai-vos aceitá-la como aceitastes os dons do justo Abel, vosso servo, o sacrifício de Abraão, nosso pai na fé, e a oblação pura e santa do sumo sacerdote Melquisedec. Amen. (cf. Cânon romano).

    Contemplatio

    O sangue do Coração de Jesus, diz S. Paulo, fala mais alto do que o sangue de Abel. O sangue divino convida-nos à penitência. É um grito de guerra contra a sensualidade, a preguiça, a gulodice, a volúpia... Convida-nos à valentia: doravante iremos a Deus por Jesus Cristo; a Jesus Cristo pelo sacrifício; ao sacrifício pelo amor: amemos muito e o sacrifício nos custará pouco... Convida-nos à confiança: estas poucas gotas de sangue teriam bastado já para nos salvar e nos merecer todas as graças e todos os dons de Deus, se Nosso Senhor não nos tivesse querido mostrar a superabundância do seu amor pela efusão de todo seu sangue. Que força e que virtude a do sangue divino! Por ele, os pecadores são purificados; cura-os das suas chagas, ressuscita-os para a vida. Por ele os tíbios são reanimados, os fervorosos são fortalecidos. Por ele, os humildes são encorajados a segui-lo nos caminhos modestos da vida escondida, escapam à fascinação do século e da bagatela. Por ele, as almas castas frustram as maquinações de Satanás e passam intactos na fornalha do mundo, como os três jovens Hebreus na de Babilónia. Por ele, os fortes, embriagados no cálice da vida, não sentem sequer as suas torturas, como diz Santo Agostinho. (Leão Dehon, OSP3, p. 20).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «O sangue de Cristo nos purificará» (cf. Heb 9, 14).

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    Comentários litúrgicos a cargo de Fernando Fonseca, scj

  • Tempo Comum - Anos Ímpares - VI Semana - Terça-feira

    Tempo Comum - Anos Ímpares - VI Semana - Terça-feira


    14 de Fevereiro, 2023

    Lectio

    Primeira leitura: Génesis 6, 5-8; 7, 1-5.10

    O Senhor reconheceu que a maldade dos homens era grande na Terra, que todos os seus pensamentos e desejos tendiam sempre e unicamente para o mal. 6O Senhor arrependeu-se de ter criado o homem sobre a Terra, e o seu coração sofreu amargamente. 7E o Senhor disse: «Eliminarei da face da Terra o homem que Eu criei, e, juntamente com o homem, os animais domésticos, os répteis e as aves dos céus, pois estou arrependido de os ter feito.» 8Noé, porém, era agradável aos olhos do Senhor. 1O Senhor disse, depois, a Noé: «Entra na arca, tu e toda a tua família, porque só a ti reconheci como justo nesta geração. 2De todos os animais puros levarás contigo sete pares, o macho e a fêmea; dos animais que não são puros levarás um par, o macho e a sua fêmea; 3das aves do céu, também sete pares, macho e fêmea, a fim de conservares a sua raça viva sobre a Terra. 4Porque dentro de sete dias, vou mandar chuva sobre a Terra, durante quarenta dias e quarenta noites, e exterminarei na superfície de toda a Terra todos os seres que Eu criei.» 5E Noé cumpriu tudo quanto o Senhor lhe ordenara. 10Ao cabo de sete dias, as águas do dilúvio submergiram a Terra.

    O pecado começa a alastrar no mundo e parece comprometer a bondade da criação realizada por Deus. Depois do pecado de Adão e Eva, vem o de Caim e os dos «filhos de Deus», provavelmente outros seres humanos e não anjos. E Deus chega a uma dolorosa conclusão: «arrependeu-se de ter criado o homem sobre a Terra» (v. 6). Deus não se arrepende da criação em si mesma, mas do pecado dos homens que a inquina e corrompe. O "arrependimento" de Deus corresponde à atitude que os homens deveriam manifestar depois dos seus pecados, mas não manifestam. O "arrependimento" de Deus, se assim se pode dizer, leva-o a pensar no único remédio possível para tão grave situação criada pelos homens rebeldes: destruir, de-criar para re-criar, começar tudo de novo.
    O mito do dilúvio é velho como o mundo. Encontramos paralelos literários na antiga Mesopotâmia e versões orais em quase todas as culturas primitivas. O autor bíblico reelabora-o e utiliza-o como única solução para a maldade do homem. Mas não se trata de um castigo indiscriminado de inocentes e culpados. A intenção divina é, sobretudo, de recriar o mundo, de renovar a face da terra. Os que sobrevivem ao dilúvio representam toda a humanidade salva das águas, os pais da nova família humana. Noé é como que um novo Adão, com quem a vida humana recomeça. Na tradição cristã, Noé torna-se figura de Jesus; o dilúvio, esboço do baptismo que nos salva; a arca, onde sobrevivem homens e animais, imagem da "barca eclesial".
    O epílogo do dilúvio, com o sacrifício agradável a Deus oferecido por Noé, como veremos amanhã, encerra a perspectiva do aniquilamento da humanidade pecadora e abre a uma promessa de Deus sobre a estabilidade da ordem natural. O Deus de face irada dá lugar ao Deus princípio de vida: a graça sobrepõe-se ao juízo, a bênção suplanta a maldição.

    Evangelho: Marcos 8, 14-21

    Naquele tempo, 14os discípulos tinham-se esquecido de levar pães e só traziam um pão no barco. 15Jesus começou a avisá-los, dizendo: «Olhai: tomai cuidado com o fermento dos fariseus e com o fermento de Herodes.» 16E eles discorriam entre si: «Não temos pão.» 17Mas Ele, percebendo-o, disse: «Porque estais a discorrer que não tendes pão? Ainda não entendestes nem compreendestes? Tendes o vosso coração endurecido? 18Tendes olhos e não vedes, tendes ouvidos e não ouvis? E não vos lembrais 19de quantos cestos cheios de pedaços recolhestes, quando parti os cinco pães para aqueles cinco mil?» Responderam: «Doze.» 20«E quando parti os sete pães para os quatro mil, quantos cestos cheios de bocados recolhestes?» Responderam: «Sete.» 21Disse-lhes então: «Ainda não compreendeis?»

    Continuamos na mesma «secção dos pães» e, agora, mais concretamente, no contexto da reacção dos discípulos à revelação cristológica (8, 14-21)
    Jesus pergunta aos discípulos: «Tendes o vosso coração endurecido?» (v. 17). O tema do coração endurecido, tão dramático e complexo nos Profetas e, de modo geral, no Antigo Testamento, aparece nos Evangelhos a propósito da compreensão e da aceitação do mistério do Reino proposto em parábolas (Mc 4, 10-12; Mt 13, 10-14; Lc 8, 9s.; cf. Jo 12, 37-41). O Reino era novidade com que Deus surpreendia a todos. Só os corações simples, abertos e disponíveis o podiam acolher. Por isso, era necessário não se deixar contaminar «com o fermento dos fariseus e com o fermento de Herodes» (v. 15), isto é, com o orgulho e com a soberba dos fariseus e de Herodes. Os fariseus provavelmente esperavam um Messias triunfador que, com prodígios grandiosos, submetesse o mundo ao poder de Israel. Mas não era essa a lógica de Jesus. A salvação que nos oferece será realizada na partilha que multiplica o pão, e na carne «mastigada», que se torna fonte de vida eterna, isto é, na sua passagem pela morte. Será também esse o caminho dos discípulos e da Igreja, se quiserem ser fiéis aos ensinamentos e ao exemplo de Jesus.
    Meditatio

    O coração é o lugar onde se formam os pensamentos e se concebem as acções. Ao iniciar o relato do dilúvio, o autor sagrado avança logo a causa de tal desgraça: «O Senhor reconheceu que a maldade dos homens era grande na Terra, que todos os seus pensamentos e desejos tendiam sempre e unicamente para o mal.» (v. 5). Literalmente o texto de Gn 6, 5 diz: «Toda a formação dos pensamentos do seu coração era somente mal todo o dia». A maldade do coração do homem provoca o desencanto e o sofrimento no coração de Deus: «O Senhor arrependeu-se de ter criado o homem sobre a Terra, e o seu coração sofreu amargamente.» (v. 6). O Senhor decide eliminar o homem, e todos os seres vivos, da face da terra. Mas o seu coração não Lhe permite executar completamente uma decisão tão radical e encontra logo um remédio para salvar a humanidade: «Noé, porém, era agradável aos olhos do Senhor» (v. 8). E Deus encarrega-o de construir a arca da salvação.
    A história de Noé prefigura a história de Jesus e revela, desde o princípio, a táctica divina, que se compraz em usar instrumentos humildes e quase insignificantes, como Noé e a barca, para salvar a humanidade. Assim acontecerá com a eleição do povo de Israel, pequeno e fraco no meio das nações, mas escolhido por Deus para mediar a salvação do mundo. Quando Israel falha na sua vocação e missão, Deus abandona-o, reservando
    apenas uma pequena parte desse povo, o reino de Judá. Quando também Judá se torna infiel, Deus entrega-o ao saque dos Assírios e deixa-o ser levado cativo pelos Babilónios. Mas, ainda assim, o Senhor consegue encontrar no meio desse povo alguns justos, que serão o começo de um povo novo, humilde e berço da salvação. É dessas poucas pessoas que permaneceram fiéis que Deus fará nascer o seu Filho. E a táctica de Deus continua até ao fim. Quando, na paixão de Jesus, tudo se tornou mau, e o próprio Jesus está como que submerso pelo pecado de todos, o seu Coração permanece aquele «pequeno resto» fiel por meio do qual Deus salva o mundo. Esse Coração, morto e e trespassado na cruz, ressuscita ao terceiro dia, manifestando a nossa salvação: Jesus, o único justo, salva o mundo inteiro! É a táctica de Deus!
    Essa mesma táctica se manifesta no evangelho. Aos inquietos discípulos com a falta de mantimentos, Jesus lembra a multiplicação dos pães: «Não vos lembrais de quantos cestos cheios de pedaços recolhestes, quando parti os cinco pães para aqueles cinco mil?» (vv. 18-19). Importante, importante não é ter muitas coisas, mas ter «o pão de Deus», isto é, Jesus!

    Oratio

    Senhor Jesus, ao contemplar o teu Coração, manso e humilde, trespassado na cruz, compreendo a estratégia do Pai que se compraz em fazer grandes coisas, usando instrumentos simples e fracos. É o que já tinha verificado ao reler o Antigo Testamento, desde Noé a João Baptista, e ao pequeno grupo de pobres no meio quais quiseste nascer e crescer. É o que vejo também agora em Ti, servo pobre de Deus e dos homens, meu Salvador. É o que descubro na tua Igreja, ao longo de dois mil anos de história. Na verdade, todas as grandes obras, que efectivamente contribuem para o bem da humanidade, começam na humildade e na insignificância, aos olhos do mundo. Mas Tu tiras delas grandes frutos para todos, quando permanecemos unidos a Ti, único «pão descido do céu» para nossa salvação. Que eu esteja em Ti, e Tu em mim, sempre. Amen.

    Contemplatio

    A Igreja inspira-se nas virtudes de Nosso Senhor. Estuda-as, medita-as e aplica-se a imitá-las. Mas sob o reino do Sagrado Coração, os fiéis devem remontar mais habitualmente à nascente destas virtudes, aos sentimentos íntimos e profundos do Coração de Jesus. Compreendem agora melhor o conselho de S. Paulo: «Formai em vós os sentimentos do Coração de Jesus» (Fil 2,5). Penetram o Coração de Jesus em todos os seus mistérios. E, em primeiro lugar, nos mistérios da sua vida escondida, que lemos no seu Coração? Aí lemos o aniquilamento, a humildade, o silêncio, a imolação e o amor. O aniquilamento: «Ele que era de condição divina, diz S. Paulo, tomou a forma de um escravo» (Fil 2,6). Aniquilou-se, humilhou-se e fez-se obediente até à morte de cruz.
    O exemplo de Jesus ensina-nos o silêncio e a imolação: «Façamos práticas de silêncio interior e exterior, afastando os pensamentos, as leituras, as conversas inúteis». Imolemo-nos à vontade divina manifestada pelos nossos Superiores, pelas nossas regras, pelas inspirações da graça. O amor: apenas isto havemos de encontrar no Coração de Jesus. Fez tudo por amor pelo seu Pai e por nós. Façamos tudo por amor para com ele. (Leão Dehon, OSP3, p. 55s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Deus escolheu o que é fraco para no mundo confundir o que é forte.» (cf. 1 Cor 1, 27).

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    Comentários litúrgicos a cargo de Fernando Fonseca, scj

  • Tempo Comum - Anos Ímpares - VI Semana - Quarta-feira

    Tempo Comum - Anos Ímpares - VI Semana - Quarta-feira


    15 de Fevereiro, 2023

    Lectio

    Primeira leitura: Génesis 8, 6-13.20-22

    Decorridos quarenta dias, Noé abriu a janela que havia feito na arca 7e soltou o corvo, que saiu repetidas vezes, enquanto iam secando as águas sobre a terra. 8Depois, soltou a pomba, a fim de verificar se as águas tinham diminuído à superfície da terra. 9Mas, não tendo encontrado sítio para poisar, a pomba regressou à arca, para junto dele, pois as águas cobriam ainda a superfície da terra. Estendeu a mão, agarrou a pomba e meteu-a na arca. 10Aguardou mais sete dias; depois soltou novamente a pomba, 11que voltou para junto dele, à tarde, trazendo no bico uma folha verde de oliveira. Noé soube, então, que as águas sobre a terra tinham baixado. 12Aguardou ainda outros sete dias; depois tornou a soltar a pomba, mas, desta vez, ela não regressou mais para junto dele.13No ano seiscentos e um, no primeiro dia do primeiro mês, as águas começaram a secar sobre a terra. Noé abriu o tecto da arca e viu que a superfície da terra estava seca. 20Noé construiu um altar ao Senhor e, de todos os animais puros e de todas as aves puras, ofereceu holocaustos no altar. 21O Senhor sentiu o agradável odor e disse no seu coração:«De futuro, não amaldiçoarei mais a terra por causa do homem, pois as tendências do coração humano são más, desde a juventude, e não voltarei a castigar os seres vivos, como fiz. 22Enquanto subsistir a terra, haverá sempre a sementeira e a colheita, o frio e o calor, o Verão e o Inverno, o dia e a noite.»

    O livro do Génesis apresenta-nos dois relatos do dilúvio, tal como apresentara dois relatos da criação. Só que, enquanto estes estão separados um do outro em Gn 1 e Gn 2, os dois relatos do dilúvio estão embutidos um no outro. Mas é possível distingui-los. Enquanto, para um, o dilúvio dura quarenta dias, número aproximativo para um período bastante longo, para outro dura doze meses lunares com mais onze dias, o que perfaz 365 dias, isto é, um ano solar (cf. Gn 7, 11; 8, 13s.). O importante é que o dilúvio, ainda que tendo durado muito, também teve um termo. As águas acabaram por se retirar. Este facto ilumina-nos sobre o modo de agir de Deus.
    Outra diferença que notamos entre os dois relatos é que, enquanto num os animais puros reunidos na arca são sete, ou sete pares por espécie, no outro são apenas dois: um macho e uma fêmea. Eram mesmo precisos sete pares de animais? Não chegavam dois por cada espécie? O problema está no sacrifício de animais e pássaros com que termina o relato. Tal não seria possível se só houvesse um par por cada espécie... Ao sentir o odor deste sacrifício, Deus reconcilia-se com a criação e promete jamais voltar a amaldiçoar a terra por causa do homem. Esta imagem de Deus pode fazer-nos sorrir. Mas é menos primitiva que a do relato paralelo da Mesopotâmia, onde os deuses, ao sentirem o odor do sacrifício, se aproximam como um enxame de moscas.
    Depois do dilúvio, e do sacrifício, Deus decide não voltar a amaldiçoar a terra por causa do homem, «pois as tendências do coração humano são más, desde a juventude» (v. 21). A maldade do coração humano esteve na origem do dilúvio, e está no seu termo. Deus apercebe-se de que o remédio tentado não foi eficaz, e desiste de voltar a usá-lo. Assim verificamos que, em Deus, castigo e misericórdia quase se identificam. Nascem da mesma motivação.

    Evangelho: Marcos 8, 22-26

    Naquele tempo, Jesus e os seus discípulos chegaram a Betsaida e trouxeram-lhe um cego, pedindo-lhe que o tocasse. 23Jesus tomou-o pela mão e conduziu-o para fora da aldeia. Deitou-lhe saliva nos olhos, impôs-lhe as mãos e perguntou: «Vês alguma coisa?» 24Ele ergueu os olhos e respondeu: «Vejo os homens; vejo-os como árvores a andar.» 25Em seguida, Jesus impôs-lhe outra vez as mãos sobre os olhos e ele viu perfeitamente; ficou restabelecido e distinguia tudo com nitidez. 26Jesus mandou-o para casa, dizendo: «Nem sequer entres na aldeia.»

    A cura do cego de Betsaida, propositadamente colocada por Marcos num contexto onde se fala da cegueira dos fariseus e dos discípulos, encerra a «secção dos pães».
    Jesus, mais uma vez, usa a linguagem táctil, não à maneira dos magos, mas para que a pessoa, que recebe o prodígio, esteja consciente do que se passa. O milagre realiza-se em dois tempos: primeiro o cego vê confusamente: «Vejo os homens; vejo-os como árvores a andar» (v. 24); depois, quando a cura está completa, vê claramente: «ficou restabelecido e distinguia tudo com nitidez» (v. 25).
    Jesus não quer atitudes triunfalistas. Por isso, ao despedir o cego curado, recomenda-lhe que não entre na aldeia (v. 26). O verdadeiro crente crê nos milagres, e não por causa dos milagres. Os milagres vêm depois da fé, de tal modo que, se não há fé, ou se ela é fraca, nem sequer acontecem milagres. Além disso, os milagres nunca são enquadrados numa cristologia ou eclesiologia triunfalista. São testemunhos da vinda do Messias que hão-de ser contados de modo discreto por aqueles que os receberam. De qualquer modo, Marcos insiste na «reserva messiânica».
    Os crentes não têm que medir forças com os não-crentes. Por um lado, podem perfeitamente admitir que muitos «prodígios» foram efeitos de simples forças naturais desconhecidas pela razão humana; por outro lado, estão conscientes de que a sua fé não vem dos milagres, mas que os milagres a pressupõem. Mas também têm todo o direito a pressupor que certos acontecimentos são verdadeiros «prodígios», pois crêem na força «sobrenatural» de Deus, embora não a possam demonstrar racionalmente.

    Meditatio

    O dilúvio termina gradualmente, à medida que as águas vão secando. Noé procura conhecer a situação da terra, soltando repetidas vezes uma pomba. Quando ela volta trazendo no bico um raminho de oliveira, compreende, e nós também compreendemos, que a misericórdia prevaleceu sobre o juízo, e que a terra é de novo habitável. A pomba, com o ramo de oliveira no bico, torna-se um símbolo de paz.
    Causa-nos espanto a simplicidade com que Deus muda a sua decisão: «De futuro, não amaldiçoarei mais a terra... e não voltarei a castigar os seres vivos, como fiz» (v. 21). Noutro passo da Escrituras diz-se que Deus nunca se arrepende, que não é um homem, para mudar de opinião. Os filósofos insistem nesta imutabilidade de Deus: sendo perfeição absoluta, Deus não pode mudar. Esta contradição não deriva das limitações de Deus, mas das nossas. Não somos capazes de compreender a Deus. Se o compreendermos, deixará de ser Deus, como diz Santo Agostinho. Precisamos até de juntar coisas contraditoras para fazermos uma ideia menos imperfeita de Deus. Insistir na imutabilidade de Deus, como os filósofos, leva-nos a uma ideia m
    ais empobrecida de Deus, que seria, para nós, semelhante a um monte de pedras, que não se move, não tem sentimentos, não vive. Se lermos com simplicidade a Bíblia, vemos que Deus pensa, tem sentimentos, ama profundamente, ira-se com os pecados do povo, muda as suas decisões... E ficamos com a ideia de um ser vivo, cheio de movimento e de riqueza, o que é mais verdadeiro do que a ideia dos filósofos. A Bíblia, por vezes, também fala de Deus como imutável. Mas geralmente mostra-nos um Deus semelhante a nós. A perfeição divina é plenitude e não imobilidade. A imobilidade de Deus encerra todos os movimentos. Deus não tem emoções humanas, mas está acima delas. Não ama como nós, mas ama mais do que nós. Ama de um modo que não podemos compreender.
    A humanidade de Jesus revela-nos plenamente o modo de ser e de reagir de Deus. Revela-nos o Coração de Jesus. Jesus, verdadeiro homem, sofreu, amou, reflectiu, fez projectos de vida, foi enganado e traído. Actuou com a simplicidade e a humildade que nos mostra o evangelho de hoje, na cura do cego de Betsaida. Jesus leva-o para fora da cidade, põe-lhe saliva nos olhos, impõe-lhe as mãos e pergunta-lhe: «Vês alguma coisa?» (v. 23). Parece que o milagre ficou a meio, pois o homem afirma: «Vejo os homens; vejo-os como árvores a andar» (v. 24). Então, impõe-lhe as mãos e o milagre completa-se. O cego «distinguia tudo com nitidez» (v. 25).
    O modo humilde e progressivo como Jesus cura o cego de Betsaida ensina-nos que, na vida espiritual, precisamos de muita paciência. Não podemos estar à espera de resultados imediatos. A nossa compreensão da misericórdia divina avança ao ritmo da nossa cura, que Ele mesmo realiza, com muita paciência.

    Oratio

    Senhor Jesus, abre os meus olhos para que possa ter de Deus, não uma ideia errada e pobre, mas uma ideia verdadeira e rica, uma ideia que suscite em mim o sentido da adoração, da admiração, da gratidão. Compreender alguma coisa do Pai é verdadeira felicidade, porque me coloca, na fé, perante o seu profundo mistério. Toca-me, unge-me com o teu Espírito, cura-me. Iluminado por Ti, avançarei confiante e sereno pelo caminho da fé e da santidade, aberto a todas as surpresas, e seguro mesmo sem compreender. Amen.

    Contemplatio

    Encontramos, na Sagrada Escritura e nas coisas da criação, admiráveis figuras das relações que deviam existir entre estas três augustas pessoas de Jesus, Maria e José. Se Jesus é a árvore da vida, Maria é o paraíso terrestre regado pelas águas da graça, no meio do qual está plantado, e José o querubim guardião do paraíso e da árvore. Se Maria é a pomba mística, Jesus não é senão o ramo de oliveira que ela leva e o sinal da paz; e José o verdadeiro Noé que introduz em sua casa a pomba e dela recebe o autor da reconciliação entre Deus e os homens? Se Jesus é a arca do Novo Testamento, Maria não é senão o Santo dos santos, onde esta arca está escondida, e José o véu que cobre aos olhos dos Judeus os mistérios que um e outro encerram? Se Jesus é o propiciatório da lei evangélica, Maria e José não são senão os dois querubins que estendem as asas do seu afecto e se olham mutuamente adorando o Salvador? Eis belas figuras da união que existia entre estes três santos Corações, modelo da caridade que deve reinar na comunidades e nas famílias cristãs. Almas piedosas, pronunciai muitas vezes com confiança estes nomes sagrados: Jesus, Maria, José; nomes de paz e de amor, nomes de salvação e de bênção, nomes de majestade e de glória, nomes agradáveis aos anjos, vantajosos para os homens e terríveis para os demónios. Mas não vos contenteis em contemplar. Passai à imitação. (Leão Dehon, OSP3, p. 87).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Felizes vós, que vistes e ouvistes» (Mt 13, 16).

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    Comentários litúrgicos a cargo de Fernando Fonseca, scj

  • Tempo Comum - Anos Ímpares - VI Semana - Quinta-feira

    Tempo Comum - Anos Ímpares - VI Semana - Quinta-feira


    16 de Fevereiro, 2023

    Lectio

    Primeira leitura: Génesis 9, 1-13

    Deus abençoou Noé e os seus filhos, e disse-lhes: «Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra. 2Sereis temidos e respeitados por todos os animais da terra, por todas as aves do céu, por tudo quanto rasteja sobre a terra e por todos os peixes do mar; ponho-os à vossa disposição. 3Tudo o que se move e tem vida servir-vos-á de alimento; dou-vos tudo isso como já vos tinha dado as plantas verdes. 4Porém, não comereis a carne com a sua vida, o sangue. 5Ficai também a saber que pedirei contas do vosso sangue a todos os animais, por causa das vossas vidas; e ao homem, igualmente, pedirei contas da vida do homem, seu irmão. 6A quem derramar o sangue do homem, pela mão do homem será derramado o seu, porque Deus fez o homem à sua imagem. 7Quanto a vós, sede fecundos e multiplicai-vos; espalhai-vos pela Terra e multiplicai-vos sobre ela.» 8A seguir, Deus disse a Noé e a seus filhos: 9«Vou estabelecer a minha aliança convosco, com a vossa descendência futura 10e com os demais seres vivos que vos rodeiam: as aves, os animais domésticos, todos os animais selvagens que estão convosco, todos aqueles que saíram da arca. 11Estabeleço convosco esta aliança: não mais criatura alguma será exterminada pelas águas do dilúvio e não haverá jamais outro dilúvio para destruir a Terra.» 12E Deus acrescentou: «Este é o sinal da aliança que faço convosco, com todos os seres vivos que vos rodeiam e com as demais gerações futuras: 13coloquei o meu arco nas nuvens, para que seja o sinal da aliança entre mim e a Terra.

    Para o javista, apesar da maldade do homem, a vida e o ritmo da natureza mantêm-se por vontade de Deus. É nessa mesma ordem de ideias que o teólogo sacerdotal insere a aliança de Deus com Noé e com os seus filhos, isto é, com a humanidade pós-diluviana, mas também com todos os seres vivos. Deus promete que não haverá outro dilúvio que destrua a terra ou a vida em qualquer das suas formas. Deus compromete-se; mas também Noé assume compromissos, como é próprio numa aliança. Cada um dos contraentes se compromete em algo a favor do outro, ainda que o objecto ou objectos do compromisso não sejam iguais. Deus depõe o seu arco de guerra sobre as nuvens (v. 13), como sinal de que não quer voltar a pelejar com os homens. O arco-íris que vemos nas nuvens, depois das chuvas, há-de lembrar-nos que o nosso Deus não é um deus de guerra, mas um Deus de paz.
    Por nosso lado, a paz que Deus nos oferece há-de levar-nos a respeitar a vida em todas as suas formas, humana e animal, a criar em nós um verdadeiro espírito ecológico. Mais ainda: a vida é sagrada! Mais sagrado ainda é o sangue! Por isso, não se pode derramar o sangue do homem, nem alimentar-se com o sangue dos animais. Segundo o Concílio de Jerusalém (cf. Act 15), este respeito faz parte das coisas necessárias, também para os cristãos provindos do paganismo, que não estão obrigados à observância das leis mosaicas: «O Espírito Santo e nós próprios resolvemos não vos impor outras obrigações além destas, que são indispensáveis: abster-vos de carnes imoladas a ídolos, do sangue, de carnes sufocadas» (Act 15, 25-26).

    Evangelho: Marcos 8, 27-33

    Naquele tempo, Jesus partiu com os discípulos para as aldeias de Cesareia de Filipe. No caminho, fez aos discípulos esta pergunta: «Quem dizem os homens que Eu sou?» 28Disseram-lhe: «João Baptista; outros, Elias; e outros, que és um dos profetas.» 29«E vós, quem dizeis que Eu sou?» - perguntou-lhes. Pedro tomou a palavra, e disse: «Tu és o Messias.» 30Ordenou-lhes, então, que não dissessem isto a ninguém. 31Começou, depois, a ensinar-lhes que o Filho do Homem tinha de sofrer muito e ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos doutores da Lei, e ser morto e ressuscitar depois de três dias. 32E dizia claramente estas coisas. Pedro, desviando-se com Ele um pouco, começou a repreendê-lo. 33Mas Jesus, voltando-se e olhando para os discípulos, repreendeu Pedro, dizendo-lhe: «Vai-te da minha frente, Satanás, porque os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens.»

    O texto que escutamos é central na teologia do segundo evangelho. Aqui se opõe claramente uma cristologia do filho do homem a uma cristologia e a uma eclesiologia triunfalista, inspirada no conceito político-imperialista do Messias. O povo interrogava-se: «Quem é este?». Agora é o próprio Jesus que pergunta aos discípulos o que é que se diz sobre Ele. Em síntese, os discípulos informam que o povo O vê, não só como um profeta, mas como maior dos profetas, o precursor dos tempos messiânicos. Mas Jesus quer ir mais longe, e interpela directamente os discípulos: «E vós, quem dizeis que Eu sou?» (v. 29). Pedro responde em nome da comunidade: «Tu és o Messias» (v. 29). Mas Jesus impõe-lhes novamente o chamado «segredo messiânico» e começa a falar-lhes do mistério da cruz, que está no centro da sua messianidade: Ele é o Servo sofredor que veio carregar sobre si os nossos pecados para nos fazer passar da morte à vida. E quem quiser ser seu discípulo tem de seguir o mesmo caminho da cruz. Pedro parece perceber tudo muito bem, e é o primeiro a reagir ao escândalo da cruz. Mas Jesus chama-o à ordem: «Vai-te da minha frente» (v. 33), isto é, põe-te atrás de Mim se segue-Me.
    Pôr-se atrás de Jesus, e segui-Lo como discípulos, é a posição correcta que havemos de tomar para sermos salvos.

    Meditatio

    O texto do Génesis, que hoje escutamos, lembra-nos a aliança universal estabelecida por Deus com Noé e com toda a humanidade depois do dilúvio. O arco-íris é o sinal dessa aliança. A segunda aliança é celebrada com Abraão e os seus descendentes, os israelitas, os ismaelitas, os edomitas, e outras famílias descendentes do patriarca. A circuncisão é o sinal dessa aliança (cf. Gn 17). Mas o círculo vai-se apertando. No Sinai, a aliança é celebrada com o povo de Israel, e tem como sinal o sábado (cf. Ex 31). São passos progressivos, um depois do outro, que não invalidam os anteriores. Finalmente a aliança concentra-se num só homem, um filho de Israel de quem depende a fidelidade de Deus a todas as outras alianças: é a aliança divídica-messiânica que, para nós cristãos tem como sinal a cruz de Jesus. Quando, como Pedro, dizemos: «Tu és o Messias» (v. 29), havemos de ter em conta a extrema particularidade da figura messiânica e, simultaneamente, da sua máxima universalidade, por ser o ponto de convergência da aliança de Deus com Israel, mas também com toda a humanidade. Graças a Jesus, e à sua cruz, a aliança de Deus com todos os homens permanece e renova-se. Por isso, reconheçamos, por palavras e obras, que Jesus é o arco-íris luminoso e definitiv
    o, erguido na cruz, no qual o céu e a terra, e tudo quanto existe, é reconciliado.
    A nossa resposta ao amor criador e re-criador de Deus, a resposta à aliança consumada em Jesus, na sua cruz e ressurreição, a resposta ao "amor do Coração de Jesus" (Cst 1956 I, 2, parágrafo 2) há-de concretizar no exercício do carisma profético do amor e da reconciliação: "profetas do amor... servidores da reconciliação" (Cst. 7).

    Oratio

    Senhor Jesus, nós Te bendizemos, porque pela tua páscoa remiste o mundo. Hoje, mais uma vez, com toda a tua Igreja, reunida em teu nome, queremos confessar que és o Senhor, o vencedor do pecado e da morte, fonte de vida no Espírito. Unidos ao teu amor redentor, saboreamos o dom da Eucaristia. Que ela alimente a nossa oração, o nosso serviço apostólico e a nossa comunhão fraterna, para que em Ti nos tornemos oferenda agradável a Deus. Torna-nos profetas do amor e humildes servidores da reconciliação, na caminhada para a páscoa eterna do teu Reino. Amen.

    Contemplatio

    Depois de ter rezado, Jesus disse aos seus discípulos: Que diz este povo acerca do Filho do homem? Sabia bem o que pensavam e o que diziam, mas queria preparar S. Pedro para confessar a sua fé. Designa-se humildemente como o Filho do homem. Os apóstolos responderam: «Esta gente toma-vos por João Baptista ou por Elias ou por algum profeta». O povo via muito bem que Jesus tinha um poder sobre-humano, mas enganado pelos Fariseus e cego pelo preconceito geral, esperava um Messias conquistador e não queria reconhecer o Salvador do mundo num humilde filho do carpinteiro. A visão de Deus é bem diferente da dos homens. (Leão Dehon, OSP4, p. 291s.)

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Tu és o Messias» (Mc 8, 29).

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    Comentários litúrgicos a cargo de Fernando Fonseca, scj

  • Tempo Comum - Anos Ímpares - VI Semana - Sexta-feira

    Tempo Comum - Anos Ímpares - VI Semana - Sexta-feira


    17 de Fevereiro, 2023

    Lectio

    Primeira leitura: Génesis 11, 1-9

    Em toda a Terra, havia somente uma língua, e empregavam-se as mesmas palavras. 2Emigrando do oriente, os homens encontraram uma planície na terra de Chinear e nela se fixaram. 3Disseram uns para os outros: «Vamos fazer tijolos, e cozamo-los ao fogo.» Utilizaram o tijolo em vez da pedra, e o betume serviu-lhes de argamassa. 4Depois disseram: «Vamos construir uma cidade e uma torre, cujo cimo atinja os céus. Assim, havemos de tornar-nos famosos para evitar que nos dispersemos por toda a superfície da Terra.» 5O Senhor, porém, desceu, a fim de ver a cidade e a torre que os homens estavam a edificar. 6E o Senhor disse: «Eles constituem apenas um povo e falam uma única língua. Se principiaram desta maneira, coisa nenhuma os impedirá, de futuro, de realizarem todos os seus projectos. 7Vamos, pois, descer e confundir de tal modo a linguagem deles que não consigam compreender-se uns aos outros.» 8E o Senhor dispersou-os dali por toda a superfície da Terra, e suspenderam a construção da cidade. 9Por isso, lhe foi dado o nome de Babel, visto ter sido lá que o Senhor confundiu a linguagem de todos os habitantes da Terra, e foi também dali que o Senhor os dispersou por toda a Terra.

    O javista, tal como o P, faz proceder dos três filhos de Noé todos os povos conhecidos. Assim expressa a sua convicção sobre a unidade humana, apesar da diversidade com que se apresenta. Esta unidade na diversidade faz parte do desígnio ordenado à edificação do reino de Deus na história. Deus quer a diversidade e a dispersão das nações sobre a terra. O episódio da cidade e da torre de Babel, por sua vez, representa a tentação humana, sempre recorrente, de fugir ao desígnio original de Deus, ao criar o mundo e o homem. Os homens temem a dispersão. Por isso, querem ter uma cidade e uma torre, um nome e uma fama, uma unidade linguística e política, que evitem ou dificultem a dispersão, e façam deles um "império".
    A descida de Deus para lhes confundir a linguagem não é um gesto punitivo, mas um acto de pura condescendência. Deus quer repor o seu projecto original, porque isso é importante para os homens, mesmo que o não compreendam já. A variedade dos povos sobre a terra não é fruto de uma condenação imposta por Deus. É fruto da sua condescendência e benevolência em relação ao homem.

    Evangelho: Marcos 8, 34 - 9, 1

    Naquele tempo, Jesus, chamando a si a multidão, juntamente com os discípulos, disse-lhes: «Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. 35Na verdade, quem quiser salvar a sua vida, há-de perdê-la; mas, quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, há-de salvá-la. 36Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida? 37Ou que pode o homem dar em troca da sua vida? 38Pois quem se envergonhar de mim e das minhas palavras entre esta geração adúltera e pecadora, também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai, com os santos anjos.» 1Disse-lhes também: «Em verdade vos digo que alguns dos aqui presentes não experimentarão a morte sem terem visto o Reino de Deus chegar em todo o seu poder.»

    Jesus quer afastar definitivamente a tentação de uma cristologia e de uma eclesiologia «satânicas», isto é, de uma cristologia e de uma eclesiologia que não aceitassem Jesus como filho do homem, que pretendessem «salvar a vida» por outros caminhos que não o da cruz. Por isso, chama, não só os «discípulos», mas também «a multidão» (v. 34). Estando Jesus nas imediações de Cesareia de Filipe, esta multidão era formada sobretudo por pagãos. Parece, pois, que Jesus queria deixar bem claro, para todos, o futuro que os esperava como discípulos. Quem quiser seguir Jesus não pode pretender para si o lugar central, mas há-de cedê-lo a Jesus, dando-Lhe o primado em tudo, também sobre a própria vida. Há que tomar a cruz e, seguindo os passos de Jesus, sair com Ele da cidade, rumo ao suplício. Só ganha a Vida - que é Jesus - quem estiver disposto a renunciar a si mesmo. E para que serve ter tudo, se não se ganha a Vida?
    É agora, durante a nossa vida terrena, «entre esta geração adúltera e pecadora» (v. 37), que somos chamados a dar testemunho de Cristo. Se não nos envergonharmos dele, nem das suas palavras, também Ele não se envergonhará de nós e nos reconhecerá como seus.

    Meditatio

    Os homens, reunidos no vale de Chinear, querem construir uma cidade e uma torre. Provavelmente não querem desafiar a Deus, chegar ao céu. Querem evitar, a todo o custo, a dispersão, porque temem o novo, o diferente, o original. Querem refugiar-se no que lhes é familiar, sempre igual, seguro. Tem medo que a dispersão lhes traga a morte. Querem «tornar-se famosos» para fugirem à morte, para salvarem a própria vida. Deixam-se levar pelo instinto da sobrevivência, pelo instinto do domínio sobre os outros. Querem «salvar a própria vida», como dirá Jesus. Mas é mesmo a dispersão, o dar a vida, que entram no projecto salvífico de Deus. A fama e o poder não passam de um mísero antídoto contra a morte. Não só a não evita, mas aumenta-lhe as dimensões, tornando-as cada vez mais assustadoras. A grandeza do «nome», a fama, apenas aumenta o poder da morte. Jesus ensina aos discípulos esta verdade paradoxal: «Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida?» (Mc 8, 36). Que benefícios trazem para os homens as grandes realizações, as empresas gigantescas, as torres de Babel de todas as gerações, se o preço a pagar por elas é a perda da integridade pessoal, e a total desorientação diante da morte? A vocação original do homem está em fazer comunhão na diferença, no fecundo abandono ao projecto inicial de Deus. Por isso é que Deus não pode aceitar iniciativas como as de Babel. Quando o homem quer salvar a sua vida, perde-a. Quando é capaz de a dar, de renegar a si mesmo, salva-a.
    Todos queremos afirmar-nos diante dos outros. Por isso, temos dificuldade em aceitar que a verdadeira afirmação passa por se perder, por se entregar por amor. Entregar-se por amor, implica, muitas vezes renegar a si mesmo, Não é conquistá-lo, dominá-lo, mas acolhê-lo com humildade, tal como é.
    Perante a reacção dos outros dez apóstolos contra os dois irmãos, para quem a mulher de Zebedeu pedia privilégios, Jesus esclarece que a verdadeira grandeza está em servir, que a Sua missão e a deles é uma missão de entrega, de serviço desinteressado: «Quem quiser ser grande entre vós faça-se vosso servo, e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se escravo de todos. Porque o Filho do Homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por todos» (Mc 10, 43-45).

    Oratio

    Senhor Jesus, que no
    s abriste o mistério da salvação encerrado no teu Coração quando disseste: quem tem sede venha a mim e beba, porque do meu Coração brotarão rios de água viva (Cf. Jo 7, 3-38) - nós Te reconhecemos como nosso Redentor e única fonte de vida para a humanidade submetida ao poder da morte. Do teu Coração trespassado na cruz nasceu o homem de coração novo, animado pelo teu Espírito e liberto da escravidão do pecado. Redimidos como todos os homens, fazemos profissão de tender à caridade perfeita, consagrando-nos inteiramente ao amor do Pai e dos irmãos. Queremos estar disponíveis para servir o teu Reino, onde e como o Pai dispuser. Por isso, novamente nos entregamos a Ti, em espírito de amor, de imolação e de serviço, segundo a nossa vocação. Amen.

    Contemplatio

    S. Francisco Xavier estava em perigo de se perder. Tinha tido sucessos nos seus estudos. Ensinava brilhantemente. A ambição tomava conta dele. Escutava jovens alemães, que faziam propaganda em Paris das doutrinas novas de Lutero. Queria conciliar a vã glória e o amor do mundo com o cristianismo. Mas Santo Inácio ganhou a sua afeição e repetiu-lhe muitas vezes esta palavra: «Que serve ao homem ganhar o mundo inteiro, se vem depois a perder a sua alma?». Depois de violentos combates interiores, Xavier rendeu-se às impressões da graça e deixou-se guiar por Santo Inácio, que o conduzia à vida de oração e ao desapego do mundo. Fizeram o voto em Montmartre de irem colocar-se ao serviço do Papa para todas as obras que ele achasse por bem confiar-lhes. Em Veneza, Xavier colocado no hospício dos incuráveis, passava as noites em orações, depois de ter empregado o dia a prestar aos doentes os serviços mais humilhantes. Ligava-se de preferência aos que tinham doenças contagiosas. Que abnegação! Que generosidade! Que contraste com a sua vida mundana! Pratiquemos o desprezo pelo mundo segundo a nossa vocação. É assim que conseguimos graças, consolações e frutos de salvação. (Leão Dehon, OSP4, p. 519)

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Quem quiser ser grande entre vós, faça-se escravo de todos» (Mc 10, 43s.).

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    Comentários litúrgicos a cargo de Fernando Fonseca, scj

  • Tempo Comum - Anos Ímpares - VI Semana - Sábado

    Tempo Comum - Anos Ímpares - VI Semana - Sábado


    18 de Fevereiro, 2023

    Lectio

    Primeira leitura: Hebreus 11, 1-7

    Irmãos: A fé é garantia das coisas que se esperam e certeza daquelas que não se vêem. 2Foi por ela que os antigos foram aprovados. 3Pela fé, sabemos que o mundo foi organizado pela palavra de Deus, de modo que o que se vê provém de coisas não visíveis. 4Pela fé, Abel ofereceu a Deus um sacrifício maior que o de Caim; com base nela, foi declarado justo, porque Deus aceitou os seus dons e, por meio dela, fala ainda depois da morte. 5Pela fé, Henoc foi arrebatado, para não ver a morte, e não foi encontrado porque Deus o tinha levado. Porém, antes de ser levado, obtivera o testemunho de que tinha agradado a Deus. 6Ora, sem a fé é impossível agradar-lhe; e quem se aproxima de Deus tem de acreditar que Ele existe e recompensa aqueles que o procuram. 7Pela fé, Noé, avisado acerca de coisas que ainda se não viam, e, tomando o aviso a sério, construiu uma Arca para salvar a sua família; por essa fé, condenou o mundo e tornou-se herdeiro da justiça que se obtém pela fé.

    O autor da carta aos Hebreus resume toda a história da salvação fazendo desfilar diante de nós as suas principais figuras e protagonistas. Porque está preocupado em dar-nos uma definição de fé, o autor sublinha apenas esse aspecto. As figuras apresentadas são nossos pais e mães na fé. Partindo da história das origens, passando pelos Patriarcas, Moisés e, mais sumariamente, os profetas e reis, chega finalmente a Jesus, que é o «autor e consumador da fé» (Heb 12, 2). «Autor e aperfeiçoador», como dizem mais eloquentemente os textos gregos, equivale a "princípio e fim": Jesus é o ponto inicial e o ponto terminal da história. Só Ele nos permite resumi-la, recapitulá-la de modo sintético e eficaz. Isto quer dizer que a fé de Jesus, a fé actuada e levada à plenitude por Ele, já actuava nas personagens bíblicas que, historicamente, O precederam.
    O nosso texto menciona três "justos", que encontramos na história das origens da humanidade, antes da vocação de Abraão: Abel, Henoc e Noé. Todos se tornaram herdeiros da «justiça que se obtém pela fé» (v. 7), fruto da sua capacidade de ver para além do visível. A história das origens (cf. Gn 1-11) pretende ligar o génesis e os desenvolvimentos do pecado humano à graça de Deus que o previne e perdoa. Mas só quem sabe olhar mais além do que o aparente senhorio das forças do mal, é um homem de fé, capaz de organizar a sua vida de modo contrário ao do mundo, isto é, e viver na justiça.

    Evangelho: Marcos 9, 2-13

    Naquele tempo, Jesus, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e levou-os, só a eles, a um monte elevado. E transfigurou-se diante deles. 3As suas vestes tornaram-se resplandecentes, de tal brancura que lavadeira alguma da terra as poderia branquear assim. 4Apareceu-lhes Elias, juntamente com Moisés, e ambos falavam com Ele. 5Tomando a palavra, Pedro disse a Jesus: «Mestre, bom é estarmos aqui; façamos três tendas: uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias.» 6Não sabia que dizer, pois estavam assombrados. 7Formou-se, então, uma nuvem que os cobriu com a sua sombra, e da nuvem fez-se ouvir uma voz: «Este é o meu Filho muito amado. Escutai-o.» 8De repente, olhando em redor, já não viram ninguém, a não ser só Jesus, com eles. 9Ao descerem do monte, ordenou-lhes que a ninguém contassem o que tinham visto, senão depois de o Filho do Homem ter ressuscitado dos mortos. 10Eles guardaram a recomendação, discutindo uns com os outros o que seria ressuscitar de entre os mortos.11E fizeram-lhe esta pergunta: «Porque afirmam os doutores da Lei que primeiro há-de vir Elias?» 12Jesus respondeu-lhes: «Sim; Elias, vindo primeiro, restabelecerá todas as coisas; porém, não dizem as Escrituras que o Filho do Homem tem de padecer muito e ser desprezado? 13Pois bem, digo-vos que Elias já veio e fizeram dele tudo o que quiseram, conforme está escrito.»

    Pedro professou a sua fé, em nome da Igreja. Jesus anunciou a cruz como seu destino e daqueles que O quisessem seguir. Agora intervém o Pai para confirmar a missão do Filho. Jesus vai a caminho de Jerusalém onde irá dar a sua vida para glória do Pai e nossa salvação. A Transfiguração confirma a justeza da sua decisão e da decisão dos discípulos em segui-l´O.
    Na narração encontramos os elementos típicos das teofanias: o monte alto, a glória, a nuvem luminosa, as tendas, a voz. A presença de Moisés e de Elias confirmam que Jesus é o profeta definitivo, o Messias esperado. A voz que se ouve é dirigida, não só ao Filho, mas também a todos quantos a ouvem e é a apresentação oficial que o Pai faz aos discípulos chamados a ser testemunhas da agonia. O destino de Jesus está a realizar-se. O segredo messiânico será completamente revelado na Ressurreição.
    Mas os discípulos, testemunhas privilegiadas da intimidade filial entre Jesus e o Pai, e com os grandes amigos de Deus do Antigo Testamento, não conseguem acreditar que o Messias deva morrer e ressuscitar. Jesus tem de intervir para afirmar que Elias já veio na pessoa de João Baptista, e que já passou pelo sofrimento e pela morte, que são passagem obrigatória para quem pretende alcançar a glória.

    Meditatio

    O autor da Carta aos Hebreus vê a fé em todas as páginas do Antigo Testamento. Depois de nos dar uma definição muito sintética e sugestiva da mesma fé, faz desfilar diante de nós, como exemplo e como estímulo, uma série de figuras e protagonistas da história da salvação. «A fé é garantia das coisas que se esperam e certeza daquelas que não se vêem» (v. 1), afirma o autor. É o fundamento consistente de tudo: do sacrifício de Abel, do arrebatamento de Henoch - que é figura da ressurreição de Cristo - e da salvação de Noé, que, pela fé na palavra de Deus, construiu uma arca de salvação para a sua família. Tudo tem fundamento na fé. Pela fé, tornam-se desde já actuais, ainda que de modo imperfeito, as coisas esperadas. A fé permite ver mesmo aquilo que não se vê, ainda que de modo enigmático, como num espelho.
    A definição da fé como garantia e como certeza, ou, se preferirmos, como fundamento e como prova das coisas que se esperam, é importante para compreendermos o mistério da transfiguração de Jesus. De facto, na transfiguração de Jesus, a glória futura, a glória esperada, é já possuída, por uma singularíssima antecipação. E as realidades invisíveis, como a contemporaneidade de Moisés, Elias e Jesus no reino dos céus, tornam-se experienciáveis. Mas, tudo isto, na fé de Jesus, e também na nossa. Na vida dos discípulos, como na do Mestre, podem dar-se antecipa
    ções da glória a que estamos destinados, momentos de real experiência das coisas invisíveis. Tudo depende da graça de Deus e da nossa fé. Podem ser apenas cintilas de luz. Mas serão suficientes para esclarecer tantas dúvidas, para iluminar toda a nossa existência, até ao momento de vermos as coisas que ainda não vemos, e estarmos certos daquelas que esperamos.
    Segundo o autor da Carta aos Hebreus, Jesus é o «autor e consumador da fé» (12, 2). Na Transfiguração, a visão esplendorosa de Jesus, luz do mundo que tudo ilumina, enche Pedro, Tiago e João, de uma felicidade que jamais tinham experimentado, e deu maior consistência à sua fé em Jesus. As cintilações do Senhor, em determinados momentos da nossa vida, fazem-nos sentir a mesma alegria indescritível e irradiante de que fala Pedro (1 Pe 1, 8), e dão apoio à nossa fé no Senhor. Apoiados em Jesus, podemos estar em comunhão com Pai, em verdadeiro amor. Sem o fundamento da fé em Jesus, o nosso amor é vão. Se pretendemos caminhar para a perfeição, sem nos apoiarmos em Jesus, jamais a alcançaremos: «Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me» (Mt 19, 21).

    Oratio

    Senhora, Mãe de Jesus e minha mãe, faz crescer em mim uma fé profunda em Jesus. Que a comunhão com Ele esteja na base de todos os meus pensamentos e acções. Que eu saiba renegar a mim mesmo para me apoiar unicamente no autor e consumador da fé, o teu bendito Filho, Jesus. N´Ele reencontrarei tudo, com a alegria irreprimível e gloriosa, semelhante àquela que experimentarem os três Apóstolos, no alto do Tabor. Ajuda-me, Senhora, mestra e mãe da fé, Amen.

    Contemplatio

    S. Pedro ainda falava, quando uma nuvem luminosa, símbolo da presença e da Majestade divina, envolveu Jesus e os profetas. Os apóstolos foram tomados de medo ao verem Moisés e Elias entrarem na nuvem, e desta saiu uma voz que dizia: «Este é o meu Filho bem-amado, no qual pus todo o meu enlevo, escutai-o». Era a voz de Deus Pai, que afirmava de novo a missão messiânica de Jesus, como já o tinha feito na margem do Jordão. - É o meu filho, escutai-o, isto é: proclamo hoje diante de vós que Ele é o soberano legislador e profeta, falando aos homens com a autoridade de um Deus, e ao qual deveis fé e obediência. Escutai-O. Ele promulgará a lei nova; fundará a Igreja para suceder à sinagoga; dará as regras da fé e da vida moral e ascética, escutai-O. Os três apóstolos assustados tinham-se prostrado com a face por terra. Mas Jesus aproximou-se, tocou-lhes e disse: Levantai-vos, não temais. - E eles, reanimados pela doce voz do seu divino Mestre, ergueram os olhos e não viram mais ninguém, senão Jesus. Escutai-O. É todo o fruto deste mistério. Como os três apóstolos ficaram por ele penetrados! E eu, será que eu escuto o divino Mestre? Será que eu o escuto praticamente? Ele fala-me pela Igreja, pela tradição, pela graça, pelos meus superiores e directores. (Leão Dehon, OSP3, p. 251s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «A fé é garantia das coisas que se esperam e certeza daquelas que não se vêem» (Heb 11, 1).

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    Comentários litúrgicos a cargo de Fernando Fonseca, scj

  • Tempo Comum - Anos Ímpares - VII Semana - Segunda-feira

    Tempo Comum - Anos Ímpares - VII Semana - Segunda-feira


    20 de Fevereiro, 2023

    Lectio

    Primeira leitura: Ben Sirá 1, 1-10

    Toda a sabedoria vem do Senhor e permanece junto dele para sempre. 2A areia dos mares, as gotas da chuva, os dias da eternidade, quem os poderá contar? 3A altura do céu, a extensão da terra, o abismo e a sabedoria, quem os poderá medir? 4A sabedoria foi criada antes de todas as coisas, e a luz da inteligência, desde a eternidade. 5A fonte da sabedoria é a palavra de Deus nos céus; os seus caminhos são os mandamentos eternos. 6A quem foi revelada a raiz da sabedoria, e quem pode discernir os seus planos? 7A quem foi manifestada a ciência da sabedoria? E quem pode compreender a riqueza dos seus caminhos? 8Só há um sábio, sumamente temível: o que está sentado no seu trono. 9Foi o Senhor quem a criou, quem a viu e a mediu, e a difundiu sobre todas as suas obras, 10e por todos os homens, segundo a sua liberalidade, e a comunicou àqueles que o amam. O amor do Senhor é uma sabedoria gloriosa. Ele a comunica àqueles a quem se revela, para que o vejam.

    Ben Sirá faz parte dos livros sapienciais, que têm grande interesse para a sabedoria, porque traçam um caminho humano e espiritual que, partindo de uma dimensão humana atinge os cumes da experiência divina. O nosso texto desenvolve três ideias principais: Deus é fonte e sede da sabedoria desde toda a eternidade (vv. 1-4); a sabedoria, tal como o mundo criado, é um mistério inacessível (vv. 2.3 e 6); criada por Deus, a sabedoria foi por derramada abundantemente nas suas obras (vv. 8-11).
    A corrente sapiencial, importada do estrangeiro, foi adaptada pelo javista à sua teologia, que acentua a origem divina da sabedoria. Segundo o Livro dos Provérbios, ela foi criada por Deus antes do próprio mundo (8, 22-24). A própria sabedoria humana, que parece ter origem na experiência do homem e no estudo, tem, em última instância, a sua origem em Deus. Deus não só dá origem a vida, mas também à sabedoria. Ben Sirá, tal como Job (38-41) e Isaías (40, 12-14) sublinha o carácter misterioso e inacessível do mundo criado e da sabedoria. Sendo assim, só por dom de Deus é que o homem pode possuir a sabedoria. O coração do homem que ama a Deus é lugar que o Senhor privilegia para lançar a sabedoria. Há pois um certo paralelismo entre sabedoria e amor. Os verdadeiros sábios são os que amam a Deus. Habita neles a sabedoria, que é um atributo de Deus. Melhor ainda: habita neles o próprio Deus. Assim, no Ben Sirá já se respira o ar oxigenado do Novo Testamento, que celebra Cristo «sabedoria de Deus» (1 Cor 1, 24).

    Evangelho: Marcos 9, 14-29

    Naquele tempo, tendo Jesus descido do monte, ia ter com os seus discípulos, quando viu em torno deles uma grande multidão e uns doutores da Lei a discutirem com eles. 15Assim que viu Jesus, toda a multidão ficou surpreendida e acorreu a saudá-lo. 16Ele perguntou: «Que estais a discutir uns com os outros?» 17Alguém de entre a multidão disse-lhe: «Mestre, trouxe-te o meu filho que tem um espírito mudo. 18Quando se apodera dele, atira-o ao chão, e ele põe-se a espumar, a ranger os dentes e fica rígido. Pedi aos teus discípulos que o expulsassem, mas eles não conseguiram.» 19Disse Jesus: «Ó geração incrédula, até quando estarei convosco? Até quando vos hei-de suportar? Trazei-mo cá.» 20E levaram-lho.Ao ver Jesus, logo o espírito sacudiu violentamente o jovem, e este, caindo por terra, começou a estrebuchar, deitando espuma pela boca. 21Jesus perguntou ao pai: «Há quanto tempo lhe sucede isto?» Respondeu: «Desde a infância; 22e muitas vezes o tem lançado ao fogo e à água, para o matar. Mas, se podes alguma coisa, socorre-nos, tem compaixão de nós.» 23«Se podes...! Tudo é possível a quem crê», disse-lhe Jesus. 24Imediatamente o pai do jovem disse em altos brados: «Eu creio! Ajuda a minha pouca fé!» 25Vendo, Jesus, que acorria muita gente, ameaçou o espírito maligno, dizendo: «Espírito mudo e surdo, ordeno-te: sai do jovem e não voltes a entrar nele.» 26Dando um grande grito e sacudindo-o violentamente, saiu. O jovem ficou como morto, a ponto de a maioria dizer que tinha morrido. 27Mas, tomando-o pela mão, Jesus levantou-o, e ele pôs-se de pé. 28Quando Jesus entrou em casa, os discípulos perguntaram-lhe em particular: «Porque é que nós não pudemos expulsá-lo?» 29Respondeu: «Esta casta de espíritos só pode ser expulsa à força de oração.»

    Jesus não permitiu que os discípulos acampassem no Tabor. Mas nem Ele lá ficou muito tempo. Ao chegar junto dos discípulos, viu-os rodeados por uma multidão, que não esperava a sua vinda. Surpreendida, suspendeu a discussão com os discípulos, e acorreu a saudá-lo. É então que o pai de um jovem endemoninhado Lhe fala do estado de saúde do filho, acrescentando que os discípulos não tinham conseguido curá-lo.
    O carácter iracundo de Jesus, várias vezes realçado no segundo evangelho, vem ao de cima: «Ó geração incrédula, até quando estarei convosco? Até quando vos hei-de suportar? Trazei-mo cá» (v. 19). Jesus verifica que a sua pregação e os milagres realizados não tinham conseguido consolidar a fé dos discípulos, nem da multidão. Daí a sua indignação. Todavia não abandona aqueles que sofrem.
    O pai do jovem também tinha uma fé inconsistente. Mas, pelo menos, reconhecia-o com humildade: «se podes alguma coisa, socorre-nos, tem compaixão de nós» (v. 22). Era já um princípio de fé, que Jesus intuiu. Partindo dessa fé inicial, e escutando a sua oração - «Eu creio! Ajuda a minha pouca fé!» - Jesus concede-lhe uma fé mais robusta. Depois, realiza o milagre pedido, libertando o jovem do espírito mudo e deixando um breve intervalo de tempo para que se revelem a grandeza e o poder do amor. A multidão pensa que o jovem estava morto mas, pelo contrário, estava livre e podia iniciar uma nova vida.
    Quando os discípulos interrogam Jesus sobre a sua incapacidade em curar o jovem, o divino Mestre acena, mais uma vez, à necessidade da oração.

    Meditatio

    Os livros sapienciais da Sagrada Escritura, como o Ben Sirá, apresenta-nos um caminho humano e espiritual que, partindo da realidade que somos e nos envolve, nos ensina a permanecer nela, mas a elevar-nos até Deus. Noutros tempos, era uma atitude bastante espontânea, também entre nós ocidentais. Hoje talvez não o seja tanto. Mas é uma atitude que continua a ser necessária e parece mesmo urgente num mundo vítima de convulsões, tal como o jovem de que nos fala o evangelho. Jesus indica-nos dois meios para sairmos da loucura das convulsões que nos agitam: a fé e a oração. A fé dá-nos um poder incrível, mesmo nas circunstâncias mais difíceis, como podemos verificar na vida de tantos homens e mulheres ao longo da bimilenária história da Igreja. A fé permite-nos re
    zar de modo eficaz. A oração que, segundo Carlos de Foucauld, consiste em pensar em Deus amando-o, eleva-nos para o mesmo Deus, a partir de uma qualquer circunstância. Pode um aspecto da Natureza, que nos leva a apreciar a sabedoria do Criador, que tudo dispôs com ordem e beleza. Mas também pode ser um sofrimento provocado por grave doença, uma qualquer crise que nos perturba física e psiquicamente, a traição de um amigo, um insucesso profissional... Nestas circunstâncias pode ser mais difícil elevar-nos para Deus, dar-nos conta do amor com que continua a envolver-nos. Mas é possível, se tivermos a atitude do pai de que nos fala o evangelho. Em qualquer circunstância, sem descurar os meios humanos, há que dirigir-se ao encontro do Senhor e falar-Lhe com humildade e confiança. É a oração que nos permite abrir o cofre dos favores divinos, pois nos põe em contacto com o Deus vivo a quem, segundo o ensinamento de Jesus, dizemos: «Faça-se a tua vontade». Este abando a Deus é importante para nós, pois Ele sabe o que mais nos convém ou não convém. De qualquer modo, havemos de louvar, dar graças, pedir perdão, oferecer, suplicar em qualquer circunstância. Esta atitude sapiencial enche-nos de paz, ainda que o Senhor não nos dê exactamente o que pedimos, porque nos põe em sintonia e em comunhão com Deus. Rezar é, sobretudo, encontrar o acesso a Deus, a ligação entre a terra e o céu.

    Oratio

    Senhor Jesus, faz-me compreender a lição do milagre que hoje escuto no evangelho. Faz-me compreender que, para me curar, tenho de passar pela morte como o jovem possesso. O importante é que me estendas a mão e me levantes. Também o nosso mundo precisa de passar por uma morte que prepare a ressurreição. Tu também aceitaste morrer para ressuscitar. Para isso, confiando sempre na fidelidade e no poder do Pai, rezaste intensamente durante a agonia. Ensina-me também a acreditar e a rezar para ser iluminado e, através da morte, encontrar o caminho para a vida. Amen.

    Contemplatio

    O dom de sabedoria é um conhecimento saboroso de Deus, dos seus atributos, de Jesus Cristo, do seu Coração e dos seus mistérios. A inteligência ajuda-nos somente a conceber a Deus e os seus atributos; mas a sabedoria representa-nos Deus, a sua grandeza, a sua beleza, as suas perfeições, os seus mistérios como infinitamente adoráveis e amáveis: e deste conhecimento resulta um gosto delicioso que se estende mesmo algumas vezes até ao corpo, e que é maior ou menor conforme o estado de perfeição e de pureza em que a alma se encontra. (Leão Dehon, OSP4, p. 551).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Eu creio! Ajuda a minha pouca fé!» (Mc 9, 24).

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    Subsídio litúrgico a cargo de Fernando Fonseca, scj

  • Tempo Comum - Anos Ímpares - VII Semana - Terça-feira

    Tempo Comum - Anos Ímpares - VII Semana - Terça-feira


    21 de Fevereiro, 2023

    Lectio

    Primeira leitura: Ben Sirá 2, 1-13 (gr. 1-11)

    Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, prepara a tua alma para a provação. 2Endireita o teu coração e sê constante, não te perturbes no tempo do infortúnio. 3Conserva-te unido a Ele e não te separes, para teres bom êxito no teu momento derradeiro. 4Aceita tudo o que te acontecer, e tem paciência nas vicissitudes da tua humilhação, 5porque no fogo se prova o ouro e os eleitos de Deus, no cadinho da humilhação. Nas doenças e na pobreza, confia nele. 6Confia em Deus e Ele te salvará,endireita os teus caminhos e espera nele. 7Vós que temeis o Senhor, esperai na sua misericórdia, e não vos afasteis, para não cairdes. 8Vós que temeis o Senhor, confiai nele, a vossa recompensa não vos faltará. 9Vós, que temeis o Senhor, contai com a prosperidade, a alegria eterna e a misericórdia, pois a sua recompensa é um dom eterno e jubiloso. 10Considerai as gerações antigas e vede: quem confiou no Senhor e foi confundido? Quem perseverou no temor do Senhor e foi abandonado? Quem o invocou e se sentiu desprezado? 11Porque o Senhor é compassivo e misericordioso, perdoa os pecados e salva no tempo da aflição. Ele é o protector dos que o procuram de coração sincero.

    A tentação é um teste, uma prova à verdade ou à falta dela, quando nos propomos servir a Deus. Por isso, o capítulo 2 do Ben Sirá começa com as palavras: «Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, prepara a tua alma para a provação» (v. 1). Logo a seguir, indica algumas regras práticas de comportamento para superar a provação: «Endireita o teu coração e sê constante, não te perturbes no tempo do infortúnio. Conserva-te unido a Ele e não te separes, para teres bom êxito no teu momento derradeiro. Aceita tudo o que te acontecer, e tem paciência nas vicissitudes da tua humilhação» (vv. 2-4). A provação é dura. Mas se usarmos os meios indicados, podemos superá-la e verificar a autenticidade do nosso compromisso.
    Depois destas recomendações, o sábio exorta ao temor de Deus. Não se trata de ter «medo» de Deus, mas de abandonar-se a Ele confiadamente, na certeza de que nos protege: «Confia em Deus e Ele te salvará, endireita os teus caminhos e espera nele» (v. 6). O santo temor de Deus, assim entendido, é um excelente meio para superar a provação, a tentação. Ao terminar, o sábio lembra-nos que, para vencermos a provação, precisamos de um pouquinho da nossa boa vontade e de uma desmedida quantidade de amor divino: «Porque o Senhor é compassivo e misericordioso, perdoa os pecados e salva no tempo da aflição. Ele é o protector dos que o procuram de coração sincero» (v. 11).

    Evangelho: Marcos 9, 30-37

    Naquele tempo, Jesus e os discípulos, partindo dali, atravessaram a Galileia, e Ele não queria que ninguém o soubesse, 31porque ia instruindo os seus discípulos e dizia-lhes: «O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens que o hão-de matar; mas, três dias depois de ser morto, ressuscitará.» 32Mas eles não entendiam esta linguagem e tinham receio de o interrogar. 33Chegaram a Cafarnaúm e, quando estavam em casa, Jesus perguntou: «Que discutíeis pelo caminho?» 34Ficaram em silêncio porque, no caminho, tinham discutido uns com os outros sobre qual deles era o maior. 35Sentando-se, chamou os Doze e disse-lhes: «Se alguém quiser ser o primeiro, há-de ser o último de todos e o servo de todos.» 36E, tomando um menino, colocou-o no meio deles, abraçou-o e disse-lhes: 37«Quem receber um destes meninos em meu nome é a mim que recebe; e quem me receber, não me recebe a mim mas àquele que me enviou.»

    O segundo anúncio da paixão é mais seco do que o primeiro (8, 31). Não se diz quem serão os autores da morte de Jesus. Os discípulos nem se atrevem a fazer perguntas. Talvez porque conhecem as reacções de Jesus, e a sua própria cegueira. Além disso, andavam ocupados com outros pensamentos. Sabiam que Jesus queria fundar uma comunidade e que os elementos fundadores eram eles. Preocupava-os a organização da comunidade. Até aí, não havia falta. Mas também discutiam sobre quem deles seria o primeiro nessa comunidade. Jesus admite que tem que haver um «primeiro», mas não à maneira da sociedade civil. Por isso, faz-lhes saber que será primeiro aquele que se dispuser a servir com humildade. «Servir», em sentido bíblico, é servir a Deus e, portanto, também ao próximo. Este «serviço» liberta do egoísmo, vício dominante do homem. Quem quiser ser o primeiro «há-de ser o último de todos e o servo de todos» (v. 35). Há aqui uma lição de humildade e de entrega de si na dor e no sofrimento, mas, sobretudo, no amor oblativo e desinteressado. Aquele que sabe ser o último e o servo, reconhece que tudo quanto possui lhe foi dado por Deus. Por isso, coloca-se em atitude de acolhimento: «quem me receber, não me recebe a mim mas àquele que me enviou» (v. 37). É comparável a uma criança que recebe tudo e a todos com simplicidade, humildade e pobreza, e se abandona confiadamente nos braços dos pais, ou de quem dela cuida.

    Meditatio

    Quando alguém se propõe servir a Deus, geralmente espera encontrar serenidade e receber logo, não talvez cem por um de quanto deu ao Senhor, mas, pelo menos, tranquilidade e paz. Mas Deus nem sempre permite que isso aconteça. Na primeira leitura de hoje avisa-nos mesmo: «Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, prepara a tua alma para a provação» (v. 1). Sendo assim, a provação não é um mal, mas um bem, um sinal do amor de Deus, a condição para crescermos no seu amor, para recebermos grandes graças. Por isso, continua: «tem paciência nas vicissitudes da tua humilhação, porque no fogo se prova o ouro e os eleitos de Deus, no cadinho da humilhação.» (vv. 4-5). Deus sabe que levamos em nós algo de muito precioso. Submete-nos à provação para que esse tesouro se torne mais belo e agradável aos seus olhos. Da nossa parte, nada mais convém fazer senão abandonar-nos e apoiar-nos no Senhor: «Confia em Deus e Ele te salvará» (v. 6).
    A vida dos que pretendem servir o Senhor há-de ser recta e unificada pelo amor de Deus. Deve decorrer, não no medo, mas no temor de Deus, isto é, num profundo respeito, permeado de amor por Ele: «Ai do coração pusilânime, e das mãos desfalecidas, e do pecador que segue dois caminhos!» (2, 12). O temor do Senhor é garantia dos favores divinos: «Vós, que temeis o Senhor, contai com a prosperidade, a alegria eterna e a misericórdia» (2, 9).
    Jesus, o Servo de Deus por excelência, também passou pela provação. Quando se preparava para subir a Jerusalém, preparou os discípulos para não serem simples espectadores do que ia t&atilde
    ;o intensamente viver. Consciente das dificuldades, foi-os educando progressivamente a diversos valores: à escolha do último lugar, à renúncia a miragens demagógicas, ao acolhimento dos que não contam, como as crianças. Procura prepará-los para a cruz, que não hão-de apenas pelo seu lado negativo, mas como caminho de ressurreição. O mistério pascal nasce da combinação de paixão/morte e ressurreição. Os discípulos estavam sujeitos à tentação de pararem antes da chegada a Jerusalém, de arredarem caminho, de recorrem a atalhos ou caminhos mais largos. Era a provação dos discípulos há dois mil anos, e continua a sê-la também hoje. Se escutarmos o aviso do Ben Sirá - «Confia em Deus e Ele te salvará» - venceremos a provação e poderemos subir a Jerusalém para celebrar a sua e a nossa páscoa.

    Oratio

    Pai santo, o teu Filho Jesus Cristo, depois de anunciar aos discípulos a sua morte, manifestou-lhes no monte santo o esplendor da sua glória. Mostrou assim que, pela sua Paixão, alcançaria a glória da ressurreição. Fortalece, com o alimento interior da tua palavra, a oblação dos sofrimentos que fazem parte da nossa vida reparadora.Que ela, unida à de teu Filho, nos santifique o corpo e o espírito para celebrarmos dignamente as festas pascais e nos alegrarmos um dia na visão da tua glória. Amen.

    Contemplatio

    Deus compraz-se naqueles que caminham diante dele na simplicidade do seu coração: compraz-se naqueles que caminham com simplicidade diante dele. É no livro dos Provérbios (Prov. 11). Deus detesta os corações duplos e hipócritas. Aqueles que usam a dissimulação e a astúcia provocam a sua cólera (Job 36). O Espírito Santo retira-se daqueles que são duplos e dissimulados (Sb 1, 5). Natanael ganhou o coração de Nosso Senhor pela simplicidade e rectidão do seu coração (Jo 1, 47). Deus não desprezará nunca a simplicidade, diz Job. Não rejeitará aqueles que se aproximam dele com simplicidade: não repele os simples (Job 8,10). O Espírito Santo assegura-nos que os cumulará com os seus dons e as suas bênçãos: Os simples possuirão os seus bens (Prov. 28,10). O simples é bem sucedido nos seus desígnios e Deus abençoa-O. Segue os caminhos de Deus; pode caminhar com confiança (Prov. 10,9 e 29). Deus frustrará os que são dúplices e dará as suas graças aos humildes (Prov. 3,34). Os simples são acarinhados, estimados por Jesus, como aquelas crianças do Evangelho que Jesus atraía apesar dos seus apóstolos. «É imitando esta inocência e esta candura de crianças, dizia Jesus, que vos haveis de tornar agradáveis ao meu coração» (Mt 18). Como é que havemos de hesitar em amar e em praticar a simplicidade? (Leão Dehon, OSP 3, p. 48s.)

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Se alguém quiser ser o primeiro, faça-se servo de todos.» (cf. Mc 9, 35).

    __________________

    Subsídio litúrgico a cargo de Fernando Fonseca, scj

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