Eventos Setembro 2024

  • 22º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    22º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]


    1 de Setembro, 2024

    ANO B
    22.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 22.º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia do 22.º Domingo do Tempo Comum propõe-nos uma reflexão sobre a “Lei de Deus”. Deus tem procurado, com as suas sugestões e propostas, ajudar os seus filhos e filhas a encontrar o caminho que conduz à Vida. Convém escutar e acolher as indicações que Ele dá. Mas o coração do homem não deve centrar-se no mero cumprimento de leis externas, mas sim no amor e na comunhão com Deus.

    Na primeira leitura, Moisés convida o povo libertado do Egito a escutar, acolher e pôr em prática as leis e preceitos de Deus. Se Israel se deixar conduzir pelas indicações de Deus, sem as adulterar e sem as desprezar, encontrará o futuro de liberdade e de Vida abundante que busca ansiosamente.

    No Evangelho, Jesus alerta para os perigos do “legalismo”: a absolutização que os fariseus faziam da Lei vai em sentido contrário ao projeto original de Deus. Uma vivência religiosa que absolutiza a Lei impede que o crente possa fazer uma verdadeira experiência de encontro com Deus. As leis podem ajudar a delimitar o caminho; mas nunca devem sobrepor-se ao amor e à misericórdia.

    Na segunda leitura fala-se de uma “boa dádiva”, de um “dom perfeito” vindo de Deus: a “palavra da verdade”. Essa “palavra da verdade” é a Palavra evangélica, dom de Deus que proporciona o nascimento para uma Vida nova a todos aqueles que se dispuserem a acolhê-lo.

     

    LEITURA I – Deuteronómio 4,1-2.6-8

    Moisés falou ao povo, dizendo:
    «Agora escuta, Israel,
    as leis e os preceitos que vos dou a conhecer
    e ponde-os em prática,
    para que vivais e entreis na posse da terra
    que vos dá o Senhor, Deus de vossos pais.
    Não acrescentareis nada ao que vos ordeno,
    nem suprimireis coisa alguma,
    mas guardareis os mandamentos do Senhor vosso Deus,
    tal como eu vo-los prescrevo.
    Observai-os e ponde-os em prática:
    eles serão a vossa sabedoria e a vossa prudência
    aos olhos dos povos,
    que, ao ouvirem falar de todas estas leis, dirão:
    ‘Que povo tão sábio e tão prudente é esta grande nação!’
    Qual é, na verdade, a grande nação
    que tem a divindade tão perto de si
    como está perto de nós o Senhor, nosso Deus,
    sempre que O invocamos?
    E qual é a grande nação
    que tem mandamentos e decretos tão justos
    como esta lei que hoje vos apresento?»

     

    CONTEXTO

    O Livro do Deuteronómio é o “livro da Lei” (ou parte dele) que, de acordo com a notícia de 2 Re 22, 8-13, foi descoberto no Templo de Jerusalém no décimo oitavo ano do reinado de Josias (622 a.C.). Nesse livro, os teólogos deuteronomistas – originários do Norte (Israel) mas, entretanto, refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do norte frente aos assírios – apresentam os elementos principais da sua visão teológica: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com Ele uma Aliança eterna; o Povo de Deus é propriedade pessoal de Javé e deve viver para o serviço de Deus; nenhum outro Deus deve ocupar, no coração do Povo, o lugar que é de Javé por direito.

    Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab, antes de o Povo atravessar o rio Jordão para tomar posse da Terra Prometida. Pressentindo a proximidade da sua morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua aliança com Javé.

    O texto que a liturgia do vigésimo segundo domingo comum nos propõe como primeira leitura apresenta-se como parte do primeiro discurso de Moisés (cf. Dt 1,6-4,43). Na primeira parte desse discurso (cf. Dt 1,6-3,29), em estilo narrativo, o autor deuteronomista põe na boca de Moisés um resumo da história do Povo, desde a estadia no Horeb/Sinai, até à chegada ao monte Pisga, na Transjordânia; na parte final desse discurso (cf. Dt 4,1-43), o autor apresenta, em estilo exortativo, um pequeno resumo da Aliança e das suas exigências. Esta secção final do primeiro discurso de Moisés começa com a expressão “e agora, Israel…”. Isso indica que, na perspetiva dos teólogos deuteronomistas, o compromisso que agora se vai pedir a Israel se apoia nos acontecimentos históricos anteriormente expostos: a ação de Deus ao longo da caminhada do Povo pelo deserto deve conduzir ao compromisso.

    O capítulo 4 do Livro do Deuteronómio é um texto redigido, muito provavelmente, na fase final do Exílio do Povo de Deus na Babilónia. Perdido numa terra estrangeira e mergulhado numa cultura estranha, hostilizado quando tentava afirmar a sua fé em Javé e celebrá-la através do culto, impressionado com o esplendor ritual e as solenidades do culto babilónico, o Povo bíblico corria o risco de trocar Javé pelos deuses babilónicos. Neste contexto os teólogos da escola deuteronomista vão convidar o Povo a olhar para a sua história (cf. Dt 1,6-3,29), a redescobrir nela a presença salvadora e amorosa de Javé e a comprometer-se de novo com Deus e com a Aliança.

     

    MENSAGEM

    No passado recente, Deus concretizou a maravilhosa obra da libertação do Egito e, em seguida, conduziu Israel pelo deserto até às portas da Terra prometida. Portanto, Israel viu do que Deus é capaz e já percebeu que pode confiar na sua bondade e no seu amor. Mas, agora, Deus propõe-se escrever uma página nova na história da salvação: vai oferecer ao seu Povo leis e preceitos sábios e justos. Guiado pelas indicações seguras de Deus, o Povo entrará na Terra Prometida aos seus antepassados e habitará nela; terá Vida em abundância e verá concretizados os seus sonhos de felicidade e de liberdade. (vers. 1).

    Contudo, é fundamental que Israel escute as indicações de Deus, as acolha e viva de acordo com elas. O Povo não deverá ceder à tentação de adulterar as leis e preceitos que Deus lhe vai dar (vers. 2). Se os ignorar ou deturpar estará, se preferir seguir caminhos à margem de Deus, estará a cavar um futuro de sofrimento e morte (como aconteceu quando, em Baal Peor, os israelitas se deixaram seduzir por outros deuses e por outras propostas de felicidade e sofreram na pele as consequências das suas opções erradas – cf. Nm 25,1-19). A Palavra de Deus deve ser uma proposta sagrada, que o Povo se esforçará por abraçar e cumprir fielmente.

    De resto, o cumprimento das leis e preceitos de Deus tornará Israel grande aos olhos de outros povos. Ao verem como Israel vive e caminha, sob a orientação das leis e preceitos de Deus, as outras nações (não esquecer que este texto foi provavelmente acrescentado ao livro primitivo do Deuteronómio quando o Povo estava exilado na Babilónia) comentarão, com espanto: “que povo tão sábio e tão prudente é esta grande nação!”. E os teólogos deuteronomistas acham que essa admiração é justificada: é um orgulho para Israel ser o Povo eleito de Deus, o Povo especial de Javé (“qual a grande nação que tem a divindade tão perto de si como está perto o Senhor nosso Deus sempre que O invocamos?” – vers. 7); é uma honra para Israel possuir leis justas e sábias, que os outros povos admiram e invejam (“qual é a grande nação que tem mandamentos e decretos tão justos como esta lei que hoje vos apresento?” – vers. 8).

    Deus elegeu Israel, de entre todos os povos da terra, como o seu povo predileto. Israel, por sua vez, deve deixar-se guiar por Deus e viver na fidelidade aos seus mandamentos. Essa será a melhor resposta que o Povo poderá dar à iniciativa amorosa de Deus.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Na catequese de Israel, as leis e os preceitos dados por Javé são vistos como o resultado do amor e da solicitude de Deus pelo seu Povo. O Deus criador, libertador e salvador acompanha os passos que Israel dá na história e, a cada instante, oferece-lhe indicações seguras sobre o caminho a seguir. A escuta e o acolhimento dessas “palavras” de Deus garantem, quer em termos pessoais, quer em termos comunitários, felicidade, harmonia, paz, Vida em abundância. Ora, o tesouro da Palavra de Deus continua à nossa disposição hoje. Os tempos são diferentes, mas as indicações de Deus não têm prazo de validade: continuam a dizer, aos homens e mulheres do séc. XXI, o que devem fazer para construírem vidas com sentido. Que importância é que as palavras de Deus assumem na construção da nossa vida e na escolha dos nossos caminhos? No meio da azáfama e do ativismo em que a nossa vida decorre, conseguimos encontrar tempo e disponibilidade para escutar, para meditar e para interiorizar a Palavra eterna de Deus?
    • Há quem considere que as leis e preceitos de Deus condicionam a autonomia e limitam a liberdade do homem; há quem veja nas leis e preceitos de Deus expressões de uma moral ultrapassada, que não condiz com os valores do nosso tempo e que deve permanecer, coberta de pó, no museu da história. Em contrapartida, há quem olhe para as leis e preceitos de Deus como um caminho sempre válido, que ajuda os seres humanos a construírem vidas com sentido, livres de todas as escravidões e balizadas por valores verdadeiros, como o amor, a partilha, o serviço, o dom da vida… E nós, como vemos e entendemos as leis e preceitos de Deus?
    • Uma das recomendações do texto é a de não adulterar a Palavra de Deus, ao sabor dos interesses pessoais ou grupais. Existe sempre o perigo, quer na nossa reflexão pessoal, quer na nossa partilha comunitária, de torcermos a Palavra ao sabor dos nossos interesses, de limarmos a sua radicalidade, de lhe cortarmos os aspetos mais questionantes, ou de a fazermos dizer coisas que não vêm de Deus… É preciso perguntarmo-nos constantemente se a Palavra que vivemos e anunciamos é a Palavra de Deus ou é a nossa “palavra”, se ela transmite os valores de Deus ou os nossos valores pessoais, se ela testemunha a lógica de Deus ou a nossa lógica humana. Este processo de discernimento é mais fácil quando é feito em comunidade, no diálogo e no confronto com os irmãos que caminham connosco, que nos questionam e que partilham connosco a sua perspetiva das coisas. Que Palavra testemunhamos: a de Deus, ou a nossa? Aceitamos que a nossa visão pessoal das coisas seja confrontada com perspetivas ou entendimentos diferentes?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 14 (15)

    Refrão 1: Quem habitará, Senhor, no vosso santuário?
    Refrão 2: Ensinai-nos, Senhor: quem habitará em vossa casa?

    O que vive sem mancha e pratica a justiça
    e diz a verdade que tem no seu coração
    e guarda a sua língua da calúnia.

    O que não faz mal ao seu próximo nem ultraja o seu semelhante,
    o que tem por desprezível o ímpio,
    mas estima os que temem o Senhor.

    O que não falta ao juramento, mesmo em seu prejuízo,
    e não empresta dinheiro com usura,
    nem aceita presentes para condenar o inocente.
    Quem assim proceder jamais será abalado.

     

    LEITURA II – Tiago 1,17-18.21-22.27

    Caríssimos irmãos:
    Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto,
    descem do Pai das luzes,
    no qual não há variação nem sombra de mudança.
    Foi Ele que nos gerou pela palavra da verdade,
    para sermos como primícias das suas criaturas.
    Acolhei docilmente a palavra em vós plantada,
    que pode salvar as vossas almas.
    Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes,
    pois seria enganar-vos a vós mesmos.
    A religião pura e sem mancha,
    aos olhos de Deus, nosso Pai,
    consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações
    e conservar-se limpo do contágio do mundo.

     

    CONTEXTO

    O autor da Carta de onde foi extraída a segunda leitura deste vigésimo segundo domingo comum apresenta-se a si próprio como “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (cf. Tg 1,1). A tradição liga-o ao Tiago “irmão” (parente) do Senhor, que presidiu à Igreja de Jerusalém e do qual os Evangelhos falam acidentalmente como filho de Maria (cf. Mt 13,55; 27,56). De acordo com Flávio Josefo, teria sido martirizado em Jerusalém no ano 62. No entanto, a atribuição deste escrito a tal personagem levanta bastantes dificuldades. O mais certo é estarmos perante um outro qualquer Tiago, desconhecido até agora (o “Tiago, filho de Alfeu” – de que se fala em Mc 3,18 – e o “Tiago, filho de Zebedeu” e irmão de João – de que se fala em Mc 1,19 – também não se encaixam neste perfil). É, de qualquer forma, um autor que escreve em excelente grego, recorrendo até a recursos retóricos como a “diatribe” (um género muito usado pela filosofia popular helénica), a perguntas retóricas e a jogos de paradoxos e contrastes. Inspira-se particularmente na literatura sapiencial, para extrair dela lições de moral prática; mas depende também profundamente dos ensinamentos do Evangelho. Trata-se de um sábio judeo-cristão que repensa, de maneira original, as máximas da sabedoria judaica, em função do cumprimento que elas encontraram nas palavras e no ensinamento de Jesus.

    A carta de Tiago foi enviada “às doze tribos que vivem na Diáspora” (Tg 1,1). Provavelmente, a expressão alude a cristãos de origem judaica, dispersos no mundo greco-romano, sobretudo nas regiões próximas da Palestina – como a Síria ou o Egipto; mas, também pode referir-se, em termos metafóricos, à totalidade da comunidade de Jesus, dispersa pelo mundo greco-romano. Exorta os crentes a que não percam os valores cristãos autênticos herdados do judaísmo através dos ensinamentos de Cristo. Apela a que os cristãos vivam com coerência e verdade a própria fé.

    O texto pertence à primeira parte da carta (cf. Tg 1,2-26). Aí, o autor apresenta, aparentemente sem ordem nem lógica, um conjunto de desenvolvimentos e de sentenças sobre a autenticidade e a coerência da fé. Convida os cristãos a enfrentarem com alegria as provações (Tg 1,2-18), a escutarem e a porem em prática a Palavra de Deus (cf. Tg 1,19-27), a viverem no amor (cf. Tg 2,1-13) e a conciliarem a fé com obras concretas em favor dos irmãos (cf. Tg 2,14-26).

     

    MENSAGEM

    Os versículos que compõem a nossa leitura referem-se a uma “boa dádiva”, a um “dom perfeito” vindo de Deus (designado aqui como “Pai das luzes” porque foi Ele que criou o sol, a lua, as estrelas e é Ele que ilumina os caminhos dos homens): a “palavra da verdade” (vers. 17-18). Essa “palavra da verdade” é, com toda a certeza, a Palavra evangélica, dom de Deus que proporciona o nascimento para uma Vida nova a todos aqueles que se dispuserem a acolhê-lo.

    Depois desta apresentação, o autor da carta de Tiago desenvolve, de forma descontínua mas, ao mesmo tempo, desafiante, a sua reflexão sobre a forma como os crentes devem ver e acolher essa Palavra geradora de uma humanidade nova.

    Antes de mais, o dom de Deus deve ser acolhido com docilidade (vers. 21). Os que acolhem a Palavra com um coração disponível e obediente, estão a criar condições para que surja o Homem novo, o homem transformado, o homem da Vida plena; mas os que prescindem das indicações de Deus e se fecham na sua autossuficiência estão a recusar a oportunidade de dar pleno sentido à sua existência: instalam-se na mediocridade, convivem com a malícia, acomodam-se à escuridão que leva à morte.

    A Palavra escutada e acolhida com docilidade deve, depois, conduzir à ação (vers. 22). Escutar a Palavra é assumir um caminho de conversão, de mudança de vida, de abandono da vida velha do egoísmo e do pecado; escutar a Palavra é, além disso, aceitar o desafio de Deus e comprometer-se na luta pela transformação do mundo.

    Finalmente, o autor da Carta de Tiago convida os membros da comunidade cristã a viverem a sua fé no quadro de uma religião autêntica (por oposição à religião vazia, inoperante, morta, daqueles que falam muito mas não praticam ações coerentes com as suas palavras). A “religião pura e sem mancha”, a religião que Deus quer, é a que se traduz em ações concretas, como “visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações” e “conservar-se limpo do contágio do mundo” (vers. 27). Ligando este versículo com o tema central do resto da leitura (a “Palavra da verdade”), podemos dizer que é a escuta atenta da Palavra de Deus que nos leva a passar de uma religião ritual, legalista, externa, superficial, para uma religião de efetivo compromisso com a realização do projeto de Deus e com o amor dos irmãos.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Na nossa época há uma marcada tendência para a superabundância de palavras. As redes sociais, de forma especial, deram-nos possibilidades quase ilimitadas de fazer ouvir a nossa voz e de dar a nossa opinião sobre tudo o que nos apetecer. Isso abre-nos canais de comunicação, de diálogo e de partilha que nos enriquecem e nos aproximam uns dos outros. Mas, por outro lado, faz-nos viver imersos num ruído de fundo – muitas vezes feito de fake news, de opiniões pouco fundamentadas, de ditos pouco sérios, de pronunciamentos agressivos, de conversas sem conteúdo – que vai degradando o poder e a força das palavras. Habituamo-nos, para nossa defesa, a não levar demasiado a sério todas as palavras que escutamos, a relativizar aquilo que vamos ouvindo aqui e ali… E a Palavra eterna de Deus, como a situamos e valorizamos no meio de tudo isto? Ela tem, na nossa vida, um valor superlativo, ou é mais ou menos igual a tantas outras palavras que todos os dias ferem os nossos ouvidos e intoxicam a nossa mente?
    • Por vezes, nos nossos “tiques” de autossuficiência, temos a tentação de encarar as sugestões que nos são apresentadas como ingerências estranhas, que põem em causa a nossa autonomia e a nossa liberdade. Como reação, fechamo-nos no casulo das nossas certezas e rejeitamos aquilo que nos é proposto, correndo o risco de passar ao lado de desafios importantes. É por isso que o autor da Carta de Tiago nos convida a acolher a Palavra de Deus com docilidade, com boa vontade, com um coração disponível e obediente. Deus não é um adversário dos homens; as palavras que Ele diz nunca serão um atentado contra a nossa liberdade. Deus, ao propor-nos a “Palavra da verdade”, apenas pretende vestir a nossa vida de sentido e apontar-nos caminhos seguros para chegarmos à Vida em plenitude. Alguma vez encaramos as indicações de Deus como intromissões que limitam as nossas escolhas ou a nossa liberdade?
    • A Palavra de Deus que escutamos e que acolhemos deve conduzir-nos à ação e ao compromisso. Se ficamos apenas pela escuta e pela contemplação da Palavra, ela torna-se estéril e inútil. A Palavra de Deus leva-nos efetivamente a uma mudança de vida, a um refazer as nossas prioridades, a uma purificação dos valores que sustentam a nossa caminhada? A Palavra de Deus faz-nos sair de nós próprios, abandonar a nossa zona de conforto e envolver-nos na luta pela justiça, pela paz, pela dignidade dos nossos irmãos, pelos direitos dos mais pobres, por um mundo mais humano e mais fraterno?
    • A vivência da religião, sem a escuta atenta e comprometida da Palavra de Deus, pode facilmente tornar-se o mero cumprimento de ritos e práticas devocionais, a simples preservação de uma tradição que herdámos dos nossos antepassados, a adoção de práticas que tornam mais fácil a nossa inserção num determinado meio social… A Palavra de Deus põe-nos em diálogo com Deus, faz-nos conhecer os projetos de Deus, envolve-nos na vida de Deus, chama-nos a viver na obediência a Deus, compromete-nos com Deus e com o projeto que Ele tem para o mundo e para os homens. Que lugar tem a Palavra de Deus na nossa vivência religiosa?

     

    ALELUIA – Tiago 1,18

    Aleluia. Aleluia.

    Deus Pai nos gerou pela palavra da verdade,
    para sermos como primícias das suas criaturas.

     

    EVANGELHO – Marcos 7,1-8.14-15.21-23

    Naquele tempo,
    reuniu-se à volta de Jesus
    um grupo de fariseus e alguns escribas
    que tinham vindo de Jerusalém.
    Viram que alguns dos discípulos de Jesus
    comiam com as mãos impuras, isto é, sem as lavar.
    – Na verdade, os fariseus e os judeus em geral
    não comem sem terem lavado cuidadosamente as mãos,
    conforme a tradição dos antigos.
    Ao voltarem da praça pública,
    não comem sem antes se terem lavado.
    E seguem muitos outros costumes
    a que se prenderam por tradição,
    como lavar os copos, os jarros e as vasilhas de cobre –.
    Os fariseus e os escribas perguntaram a Jesus:
    «Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos,
    e comem sem lavar as mãos?»
    Jesus respondeu-lhes:
    «Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas,
    como está escrito:
    ‘Este povo honra-Me com os lábios,
    mas o seu coração está longe de Mim.
    É vão o culto que Me prestam,
    e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos’.
    Vós deixais de lado o mandamento de Deus,
    para vos prenderdes à tradição dos homens».
    Depois, Jesus chamou de novo a Si a multidão
    e começou a dizer-lhe:
    «Ouvi-Me e procurai compreender.
    Não há nada fora do homem
    que ao entrar nele o possa tornar impuro.
    O que sai do homem é que o torna impuro;
    porque do interior dos homens é que saem os maus pensamentos:
    imoralidades, roubos, assassínios,
    adultérios, cobiças, injustiças,
    fraudes, devassidão, inveja,
    difamação, orgulho, insensatez.
    Todos estes vícios saem lá de dentro
    e tornam o homem impuro».

     

    CONTEXTO

    Enquanto andava pela Galileia a anunciar a chegada do Reino de Deus, Jesus era frequentemente questionado pelos fariseus e doutores da Lei (cf. Mc 2,6.16.18.24; 3,6.22).

    Os fariseus eram uma presença determinante no universo religioso judaico. Procuravam a cada passo – nomeadamente na liturgia sinagogal – contagiar o povo com o amor que eles próprios sentiam pela Tora (a Lei). Apoiando-se nos “escribas” (ou “doutores da Lei”), ensinavam as regras (“halakot”) que deviam dirigir cada passo da vida dos israelitas. A santidade, para eles, não estava reservada aos sacerdotes, mas era algo que dizia respeito a todo o povo. Chegava-se à santidade, cumprindo todas as exigências da Lei. E quando todo o povo cumprisse a Lei, o Messias viria trazer a salvação a Israel. Nesse sentido, vigiavam atentamente para que o Povo não se afastasse das “tradições dos antigos”.

    Essa “tradição dos antigos” não se cingia – na visão dos fariseus – às normas escritas contidas na Tora, mas abrangia um imenso conjunto de leis orais onde apareciam as decisões e as sentenças dos Rabis acerca dos mais diversos temas. Na época de Jesus, essa “tradição dos antigos” constava de 613 leis (tantas quantas as letras do Decálogo dado a Moisés no Monte Sinai), das quais 248 eram preceitos de formulação positiva e 365 eram preceitos de formulação negativa. Essas leis – que o Povo tinha dificuldade em conhecer na sua totalidade e que tinha, ainda mais, dificuldade em praticar – eram, para os fariseus, o caminho para tornar Israel um Povo santo e para apressar a vinda libertadora do Messias. Vai ser, precisamente, à volta desta temática que se vai centrar a polémica entre Jesus e os fariseus que o Evangelho de hoje nos relata.

    Quando Marcos escreveu o seu Evangelho (durante a década de 60), a questão do cumprimento da Lei judaica ainda era uma questão “quente”. Para os cristãos vindos do judaísmo, a fé em Jesus devia ser complementada com o cumprimento rigoroso das leis judaicas… No entanto, a imposição dos costumes judaicos levaria, certamente, ao afastamento dos cristãos vindos do paganismo. Como proceder? O cumprimento da Lei de Moisés era importante para a experiência cristã? Para que o Reino que Jesus propôs se concretizasse, era necessário o cumprimento integral da Lei judaica? O Concílio de Jerusalém (realizado por volta do ano 49) já havia dado uma primeira resposta à questão: para os cristãos, o fundamental é a pessoa de Jesus e o seu Evangelho; não é lícito impor aos cristãos vindos do paganismo o fardo da Lei de Moisés. No entanto, o problema continuou a colocar-se durante algumas décadas mais, nomeadamente a propósito dos tabus alimentares hebraicos, que os cristãos vindos do judaísmo pretendiam impor a toda a Igreja (cf. Rm 14,1-15,6).

    O evangelista Marcos está ciente, na altura em que escreve o seu Evangelho, de que esta questão ainda levanta problemas à convivência entre cristãos vindos do mundo judaico e cristãos vindos do mundo pagão. Neste relato, recorrendo à autoridade de Jesus, Marcos pretende responder a esta problemática.

     

    MENSAGEM

    Os povos antigos, em geral, e os judeus, em particular, sentiam um grande desconforto quando tinham de lidar com certas realidades desconhecidas e misteriosas (quase sempre ligadas à vida e à morte) que não podiam controlar nem dominar. Criaram, então, um conjunto de regras que interditavam o contacto com essas realidades (por exemplo, os cadáveres, o sangue, a lepra, etc.) ou que, pelo menos, regulamentavam a forma de lidar com elas, de forma a torná-las inofensivas. No contexto judaico, quem infringia – mesmo involuntariamente – essas regras, colocava-se a si próprio numa situação de marginalidade e de indignidade que o impedia de se aproximar do mundo divino (o culto, o Templo) e de integrar a comunidade do Povo de Deus. Dizia-se então que a pessoa ficava “impura”. Para readquirir o estado de “pureza” e poder reintegrar a comunidade do Povo santo, o crente necessitava de realizar um rito de “purificação”, cuidadosamente estipulado na Lei.

    Na época de Jesus, as regras da “pureza” (cf. Lv 11,1-15,33) tinham sido absurdamente ampliadas pelos doutores da Lei. Havia uma lista de coisas que tornavam o homem “impuro” e que o afastavam da comunidade do Povo santo de Deus. Daí a obsessão com os rituais de “purificação”, que deviam ser cumpridos a cada passo da vida diária.

    Um desses ritos consistia na lavagem das mãos antes das refeições. Na sua origem está, provavelmente, a universalização do preceito que mandava os sacerdotes lavarem os pés e as mãos, antes de se aproximarem do altar para o exercício do culto (cf. Ex 30,17-21). Na perspetiva dos doutores da Lei, a purificação das mãos antes das refeições não era uma questão de higiene, mas uma questão de “pureza ritual”. Em cada momento o crente corria o risco, mesmo sem o saber, de tropeçar com uma realidade impura e de lhe tocar; para evitar que a “impureza” (que lhe ficara agarrada às mãos) se introduzisse, juntamente com os alimentos, no corpo exigia-se a lavagem das mãos antes das refeições.

    Na Galileia, terra em permanente contacto com o mundo pagão e onde as normas de “pureza” não eram tão rígidas como em Jerusalém, não se dava demasiada importância ao ritual de lavar as mãos antes das refeições para evitar a ingestão da “impureza”. Mas os fariseus vindos de Jerusalém, testemunhando como os discípulos comiam sem realizar o gesto ritual de purificação das mãos, ficaram escandalizados e referiram o caso a Jesus. Provavelmente, a história serviu aos fariseus para sondar Jesus e para averiguar a sua ortodoxia e o seu respeito pela tradição dos antigos.

    Para Jesus, a obsessão dos fariseus com os ritos externos de purificação é sintoma de uma grave deficiência quanto à forma de ver e de viver a religião. Respondendo a esses fariseus “vindos de Jerusalém” que o interpelaram, Jesus vai dizer exatamente isso. Partindo da Escritura (vers. 6-8), Jesus acusa-os de uma praxis que preserva a letra da Lei, mas que não tem em conta o espírito dessa mesma Lei (vers. 9-13). Eles limitam-se a repetir sem critério práticas externas e formalistas, mas não se preocupam com o acolhimento da vontade de Deus (“este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” – vers. 6) nem com o bem das pessoas. A religião que praticam é uma religião vazia e estéril (“é vão o culto que Me prestam” – vers. 7), que não vem de Deus mas foi inventada pelos homens (“as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos” – vers. 7). Segundo Jesus, quem se instala numa vivência religiosa desse tipo é “hipócrita” (vers. 6): interessa-lhe mais o “parecer” do que o “ser”, a materialidade do que a essência das coisas, a salvaguarda dos próprios interesses do que o cumprimento da vontade de Deus… Na realidade, os fariseus cumprem as regras, mas não amam; vestem com fingimento a máscara da religião, mas não se preocupam minimamente com a vontade de Deus. A religião deles é uma mentira, uma hipocrisia, ainda que se revista de ares muito santos e muito piedosos.

    Depois, Jesus dirige-Se à multidão e formula o princípio decisivo da autêntica moralidade: “não há nada fora do homem que ao entrar nele o possa tornar impuro; o que sai do homem é que o torna impuro” (vers. 15). Este princípio geral, à primeira vista enigmático e passível de várias interpretações, será explicado mais à frente à comunidade dos discípulos: “do interior do homem é que saem os maus pensamentos: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez. Todos estes vícios saem lá de dentro e tornam o homem impuro” (vers. 22-23). O dito de Jesus refere-se, naturalmente, a dois “circuitos” diversos: o do estômago (onde entram os alimentos que se ingerem) e o do coração (de onde saem os pensamentos, os sentimentos e as ações). Os alimentos que entram no estômago não são fonte de “impureza”; os pensamentos e as ações más que saem do coração do homem é que são fonte de “impureza”: afastam o homem de Deus e podem colocá-lo à margem da comunidade do Povo santo de Deus.

    Na antropologia judaica, o “coração” é o “interior do homem” em sentido amplo; é aí que está a sede dos sentimentos, dos desejos, dos pensamentos, dos projetos e das decisões do homem. É nesse “centro vital” de onde tudo parte que é preciso atuar. A verdadeira religião não passa, portanto, pelo cumprimento de regras externas, ou pela repetição de rituais vazios; mas passa por uma autêntica conversão do coração, por uma mudança autêntica que leve o homem a redirecionar a sua vida para Deus, a buscar apaixonadamente a vontade de Deus, a assumir os valores do Reino de Deus e a concretizá-los na vida do dia a dia. Os rituais externos, por si, não transformam o coração do homem. Podem até distrair o crente do essencial, dando-lhe uma falsa segurança e uma falsa sensação de estar em regra com Deus. A verdadeira preocupação do crente deve ser moldar o seu coração, a fim de que os seus sentimentos, os seus desejos, os seus pensamentos, os seus projetos, as suas decisões se concretizem, a cada instante, na escuta atenta dos desafios de Deus e no amor aos irmãos.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Muitas pessoas estão mais à vontade com definições claras, objetivas e seguras; mas não se sentem tão à vontade no campo nem sempre bem balizado da consciência e do coração. Têm medo do imprevisto, do que é novo e diferente, daquilo que não é claramente “branco” ou “preto”. Por isso, sentem necessidade de leis que lhes digam, sem margem para dúvidas, o que devem fazer e o como devem viver. Preferem que seja outra pessoa – talvez até o padre – a pensar por elas, a decidir por elas, a dizerem-lhe o que está certo e o que está errado. Escondem-se atrás de leis e sentem-se de consciência tranquila porque descarregaram a sua responsabilidade nas leis. As leis são a sua salvaguarda, as leis definem o seu caminho, as leis são uma proteção segura para lidar com aquilo que as ultrapassa. Vivem a religião das leis. Se transgredirem as leis, confessam-se e voltam a estar de consciência tranquila. O problema é que esta forma de viver a religião não liberta, não traz alegria, não enche o coração de paz. Também não ajuda a abraçar a religião de Jesus, a religião do amor. As leis, na sua rigidez de pedra, deixam pouco espaço para o amor, a misericórdia, a compaixão. Era esse o problema de Jesus com a religião das leis e com os fariseus, os arautos dessa experiência religiosa. E nós? A nossa vivência religiosa está presa a leis que balizam tudo aquilo que fazemos e dizemos, ou é a religião do amor, da tolerância, da misericórdia, do Evangelho, da abertura de coração aos desafios sempre novos de Deus?
    • “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim”, diz Jesus, citando o profeta Isaías. Esse é o risco de uma vivência religiosa que assenta na simples repetição de orações decoradas, na mera reprodução mecânica de respostas não assumidas interiormente, em hábitos e gestos rotineiros, em tradições fixas e imutáveis, num aparato externo que não envolve o coração e uma clara opção por Deus e pelas suas propostas. A nossa forma de viver e de celebrar a fé tem alguma coisa a ver com isto?
    • “A doutrina que ensinam são preceitos humanos”, diz Jesus. É inevitável: com o passar do tempo, as religiões vão acumulando normas, costumes, devoções, hábitos, tradições, rituais, fórmulas teológicas, que nasceram num determinado contexto cultural, social e religioso e que se transformaram em património inalienável. Todas essas coisas podem ser úteis e fazer bem; mas também podem fazer mal, se nos distraem e afastam da Palavra de Deus e do seguimento radical de Jesus. Os “preceitos humanos” nunca devem ter a primazia. Seria um erro grave se a comunidade de Jesus ficasse prisioneira das tradições humanas do passado e não buscasse, antes de tudo, a fidelidade a Jesus e ao Evangelho; seria uma falha grave se nos esforçássemos por manter intactas as tradições do passado, sem nos preocuparmos em dar testemunho vivo do Reino de Deus com a linguagem que os homens e mulheres do nosso tempo entendem; seria um grave equívoco se dessemos a mesma importância a certas leis da Igreja (sobre a liturgia, o jejum, o celibato dos padres, a organização paroquial, por exemplo) e às palavras de Jesus. Na nossa vivência da fé, a que é que damos o primeiro lugar: a tradições e a doutrinas humanas, ou à Palavra eterna e sempre nova de Deus?
    • “É vão o culto que me prestam”, diz Jesus. Ao dizer isto, Jesus poderia perfeitamente estar a falar de certas celebrações litúrgicas cheias de pompa e circunstância que todos os domingos se desenrolam nas nossas igrejas, mas que não correspondem, para aqueles que nelas participam, a uma opção clara por Deus e pela Vida de Deus: há celebrações do matrimónio que são meros acontecimentos de caráter social; há celebrações de batismo que não passam de atos impostos pela tradição familiar ou pela cultura ambiente; há celebrações da primeira caminhão que são vistos como simples “rituais de passagem” na história de vida de uma criança. Todas as nossas belas, solenes e elevadas celebrações litúrgicas são um encontro sincero com Deus? Quando vamos celebrar a fé preparamos o coração para o encontro com Deus?
    • “É do interior dos homens que saem os maus pensamentos: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez”, diz Jesus. É verdade. Podemos criar todo o tipo de mecanismos legais que combatam a injustiça, a corrupção, a violência, as desigualdades sociais, a indiferença diante da miséria, a deterioração moral da sociedade… Mas nada disso modificará substancialmente o estado do nosso mundo se não atuarmos ao nível dos corações. A conversão é sempre um processo pessoal, que implica uma renovação do coração, um redirecionar o coração para Deus e para as propostas de Deus. Estamos disponíveis para uma conversão, para uma mudança do coração que nos leve a viver segundo Deus?
    • A “religião das leis” pode ter efeitos perversos na nossa forma de vermos Deus e de situarmos a nossa relação com Deus… Quando absolutizamos as leis, elas podem tornar-se para nós um fim e não um caminho. Vivemos de acordo com as leis, procuramos cumpri-las integralmente, ficamos satisfeitos e descansados, sentimo-nos em regra com Deus e com a nossa consciência… Na sequência, corremos o risco de nos tornarmos orgulhosos e autossuficientes, pois sentimos que somos nós que, com o nosso esforço para estar em regra, conquistamos a nossa salvação. Deixamos de precisar de Deus, ou só precisamos d’Ele para apreciar o nosso esforço e para nos dar aquilo que julgamos ser uma “justa recompensa”. O culto que prestamos a Deus pode tornar-se, nesse caso, um processo interesseiro de compra e venda de favores e não uma manifestação do nosso amor a Deus. Tenho consciência de que o mero cumprimento das leis não torna Deus meu devedor? Sei que a salvação é um dom de Deus e não o resultado de uma conquista que eu fiz ao cumprir as leis?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 22.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 22.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.

    Só Deus pode ver o coração, enquanto os homens, esses, veem as aparências. É, pois, com toda a confiança filial que podemos deixar Deus olhar-nos. Mas isso é exigente para nós, porque todas as nossas palavras e todos os nossos gestos devem estar em harmonia com o que o nosso coração quer exprimir. As nossas palavras e orações devem ser a expressão do nosso amor filial e fraternal. A lei de Deus está inscrita no nosso coração, conhecemos a sua vontade, sabemos muito bem o que Lhe agrada: cabe a nós pormo-nos de acordo sobre os nossos comportamentos e sobre esta vontade de Deus. Aliás, falta-nos pedir-Lhe: “Que a tua vontade seja feita!” Então, talvez Deus dir-nos-á: “Honras-Me com os lábios, fazes a minha vontade, mas o teu coração está longe de Mim”.

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.

    Os escribas e fariseus tinham enchido a Lei de Moisés com tantas interpretações que se acabou por sacralizá-la e torná-la intocável, sob o nome de “tradições dos antigos”. A lei tinha-se tornado, em todos os detalhes da vida quotidiana, um fardo insuportável denunciado pelo próprio Jesus. Assim, era contrário à tradição dos antigos comer sem ter lavado as mãos. Regra de higiene elementar, sem dúvida, mas que se tinha intitulado de “purificação”. Não se submeter a essa regra era tornar-se impuro aos olhos de Deus! O que faziam precisamente alguns discípulos de Jesus. Jesus aproveita para dar uma lição de moral… A palavra de Jesus tem todo o seu valor e vigor. Quantas interpretações dadas em Igreja, ao longo dos séculos, que acabámos por identificar com a Palavra de Deus! Multiplicaram-se leis, obrigações e proibições, dizendo: “É a tradição!” Nem pensar em mudar uma vírgula das regras litúrgicas ou morais! É, sem dúvida, uma atitude tranquilizadora, mas esconde muitas vezes medos e inseguranças. É a mesma reação que a dos escribas e dos fariseus! Ora, não é protegendo a nossa fé com uma carapaça de leis que a tornamos mais sólida, mas por uma escuta sem cessar nova daquilo que “o Espírito diz às Igrejas”. Mas é verdade que o Espírito Santo sempre teve tendência para mexer com os homens e provocá-los, para fazê-los avançar para o grande largo! O Espírito de Jesus quer construir-nos como seres vivos, com uma coluna vertebral interior e não com uma carapaça exterior, para que possamos manter-nos de pé, como ressuscitados!

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    Ter um objetivo… Não fiquemos pelas boas intenções… Não tenhamos demasiadas ambições… Cristo não nos pede grandes façanhas, Ele prefere a sinceridade do coração e a vontade de servir o nosso próximo. Vale mais ter um objetivo razoável (visitar determinada pessoa que está só, ajudar outra nas suas preocupações materiais) e tudo fazer para o atingir.

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

  • XXII Semana - Segunda-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXII Semana - Segunda-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    2 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares
    XXII Semana - Segunda-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 1 Coríntios 2, 1-5

    Irmãos: 1Eu mesmo, quando fui ter convosco, irmãos, não me apresentei com o prestígio da linguagem ou da sabedoria, para vos anunciar o mistério de Deus. 2Julguei não dever saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e este, crucificado. 3Estive no meio de vós cheio de fraqueza, de receio e de grande temor. 4A minha palavra e a minha pregação nada tinham dos argumentos persuasivos da sabedoria humana, mas eram uma demonstração do poder do Espírito, 5para que a vossa fé não se baseasse na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus.

    Paulo chama a atenção da comunidade de Corinto, ameaçada na sua fé por princípios da mentalidade greco-pagã, para a centralidade do mistério pascal de Cristo. O essencial para a salvação é acreditar em Cristo, morto e ressuscitado: «Julguei não dever saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e este, crucificado». A mediação histórica para acolher a salvação é a pregação, que se caracteriza pela fraqueza humana: «Estive no meio de vós cheio de fraqueza, de receio e de grande temor». É a fé, como acolhimento da Palavra da cruz, que revela o poder de Deus que salva. Não há outro caminho. Paulo afirma-o com a força da sua autoridade, procurando reconduzir ao bom caminho os cristãos de Corinto que tinham assumido práticas contrárias ao que é próprio da fé em Cristo. Os eventos salvíficos ordenam-se do seguinte modo: Cristo crucificado, pregação apostólica, fé como adesão a Cristo e ao seu mistério pascal.

    Evangelho: Lucas 4, 16-30

    Naquele tempo, Jesus 16Veio a Nazaré, onde tinha sido criado. Segundo o seu costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para ler. 17Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o, deparou com a passagem em que está escrito: 18«O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, 19a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.» 20Depois, enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. 21Começou, então, a dizer-lhes: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir.» 22Todos davam testemunho em seu favor e se admiravam com as palavras repletas de graça que saíam da sua boca. Diziam: «Não é este o filho de José?» 23Disse-lhes, então: «Certamente, ides citar-me o provérbio: 'Médico, cura-te a ti mesmo.' Tudo o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaúm, fá-lo também aqui na tua terra.» 24Acrescentou, depois: «Em verdade vos digo: Nenhum profeta é bem recebido na sua pátria. 25Posso assegurar-vos, também, que havia muitas viúvas em Israel no tempo de Elias, quando o céu se fechou durante três anos e seis meses e houve uma grande fome em toda a terra; 26contudo, Elias não foi enviado a nenhuma delas, mas sim a uma viúva que vivia em Sarepta de Sídon. 27Havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu, mas nenhum deles foi purificado senão o sírio Naaman.» 28Ao ouvirem estas palavras, todos, na sinagoga, se encheram de furor. 29E, erguendo-se, lançaram-no fora da cidade e levaram-no ao cimo do monte sobre o qual a cidade estava edificada, a fim de o precipitarem dali abaixo. 30Mas, passando pelo meio deles, Jesus seguiu o seu caminho.

    A pregação de Jesus começa com um rito na sinagoga: levanta-se, vai ler, é-Lhe dado o rolo, abre-o... É um momento solene que Lucas sublinha. Jesus proclama a página profética e interpreta-a: «Cum¬priu se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir.» Jesus é o profeta prometido. O tempo presente é o Kairós - o tempo providencial - que é preciso acolher. Os ouvintes reagem manifestando espanto pelas palavras de Jesus e pelo modo como as pronuncia: palavras repletas de graça. Alguns reagem negativamente, de modo crítico e mesmo agressivo contra Jesus. A proposta da salvação provoca reacções diferentes e, por vezes, opostas.

    Meditatio

    Os Coríntios tinham caído naquilo a que se chama o culto da personalidade, ou de várias personalidades, criando divisões na comunidade. Para tentar remediar a situação, Paulo recorda-lhes que a fé não se baseia nas habilidades retóricas deste ou daquele pregador, nem sobre a capacidade dialéctica de um pensador, mas na intervenção de Deus na história humana. É certo que a pregação é essencial para desencadear a caminhada da fé, que leva à salvação. Mas ela é, antes de mais, um evento de graça.
    Como os habitantes de Corinto, como os contemporâneos de Elias e de Eliseu, como os contemporâneos de Jesus, também nós somos postos perante um evento que não é simplesmente humano pois, apesar da sua simplicidade, ou mesmo da sua fraqueza, traz consigo uma mensagem e uma graça que vem de Deus. A pregação cristã apoia-se nas profecias do Antigo Testamento, mas assenta no presente histórico: «Cum-priu se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir.» A referência ao passado é memória actualizante de algumas profecias que contêm uma promessa divina. Do mesmo modo, a referência ao presente histórico não é violência à liberdade de cada um, mas convite a não desperdiçar, por preguiça ou superficialidade, a palavra de Deus. A pregação apostólica está no começo de toda a caminha da fé. Paulo dá pistas para essa caminha nos primeiros capítulos da 1Tess. Será oportuno lê-los. De qualquer modo, aqui fica um trecho: «Damos continuamente graças a Deus, porque, tendo recebido a palavra de Deus, que nós vos anunciámos, vós a acolhestes não como palavra de homens, mas como ela é verdadeiramente, palavra de Deus, a qual também actua em vós que acreditais» (1 Tess 2, 13).
    A escuta-acolhimento da pregação, leva a acreditar, isto é, à fé-adesão a Cristo, o Filho de Deus: "A vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, que me amou e Se entregou por mim" (Gal 2, 20). Esta "fé do Filho de Deus" é a fonte da "experiência de fé do Pe. Dehon", disposto a fazer em tudo a vontade do Pai e a realizar a missão que lhe foi confiada. O "Ecce venio" (Heb 10, 7) é o mote preferido pelo Pe. Dehon. Pronuncia-o em todos os momentos da sua vida, particularmente nos mais dolorosos, quando é chamado a viver o mistério da paixão e da morte. Anima-o uma intensa contemplação do Coração de Jesus. Vê n´Ele «a expressão mais evocadora de um amor, cuja presença activa experimenta na s
    ua vida» (Cst 2) e «a própria fonte da salvação» (Cst 2).
    Também para nós, a pregação há-de levar-nos à fé, isto é uma "adesão" que nos conduza à identificação com Cristo, à vivência da sua vida, dos seus "mistérios", dos seus sentimentos até podermos dizer como Paulo: «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gal 2, 20).

    Oratio

    Senhor Jesus, ontem falaste mas, surdos à tua mensagem de salvação, «todos, na sinagoga, se encheram de furor». Hoje, voltas a falar para proclamar o amor do Pai que liberta da opressão, mas poucos Te escutam e aceitam. Falarás amanhã e novamente as tuas palavras serão incómodas, e muitos procurarão afastar-Te. Porquê?
    A tua Palavra, Senhor, só é acolhida por corações abertos ao Espírito e à surpresa do teu Evangelho. Que, ao anunciar-Te, eu tenha um coração impregnado de verdade, livre de medos, de interesses pessoais, de pressões inúteis. Que e minha única preocupação seja dar a conhecer o Pai e o seu amor sem limites pela humanidade. Suscita naqueles a quem sou enviado o desejo de Te conhecer. A tua Palavra tem o poder de curar, de transformar e de fazer maravilhas.
    Que o meu coração, e o coração de todos os homens, a quem me envias a semear a Palavra, se tornem terra boa, onde ela cresça e dê muito fruto. Amen.

    Contemplatio

    Nosso Senhor ensina-no-la (a sua doutrina) aplicando a si mesmo estas palavras de Isaías: «Spiritus Domini super me, eo quod unxit me (Lc 5, 18); o espírito de força e de amor repousa sobre mim, e encheu o meu coração com uma unção inefável». Portanto, a pregação do Sagrado Coração está cheia de caridade, deste amor inefável, tão terno e tão forte, que entusiasmava todos aqueles que o escutavam e levava-os a dizer: «Ninguém falou como este homem». «Speciosus forma prae filiis hominum; diffusa est gratia in labiis tuis: Este homem é entre todos amável; a graça está nos seus lábios». Entremos, portanto, no Sagrado Coração, tomemos o seu amor pata pregarmos o amor aos homens. Imitemos neste ponto, como em todos os outros, o apóstolo João.
    Isaías descreve-nos o apostolado do Salvador: «Evangelizare pauperibus misit me». Pregar aos pobres! Eis o que deseja este Coração que ama os pequenos, os fracos e as crianças. Ou qual é a qualidade que daí segue, senão a simplicidade? Simplicidade na expressão, simplicidade na ideia, o que não exclui a grandeza; que de mais simples e de mais sublime do que o Evangelho? Nós devemos, portanto, abandonar a eloquência mundana e teatral dos pregadores modernos para tomar a do Santo Evangelho e dos Padres.
    «Sanare contritos corde», isto é, consolar os aflitos. Aqui está um ponto de vista que a nossa pregação dura e mundana ignora absolutamente, mas que o Sagrado Coração, que é a consolação por excelência, não saberia ignorar. E como consolar os aflitos? Não é com banalidades, mas abrindo-lhes o Sagrado Coração, inspirando-lhes uma confiança n'Ele absoluta, inteira e inalterável.
    «Praedicare captivis remissionem et caecis visum, dimittere confractos in remissionem: Pregar a libertação aos cativos, aos feridos a cura». Com estas palavras, Nosso Senhor designa a classe inumerável dos pecadores. Trata-se de quebrar pela palavra as cadeias dos cativos, de abrir os olhos dos cegos, de dar a saúde aos doentes. Ah! A grande a nobre missão! Procuremos inspirar aos pecadores o desejo de amar o Sagrado Coração, impelamo-los à oração, a gemer diante d'Ele por causa das suas misérias, e a sua graça será mais poderosa do que todas as nossas palavras.
    «Praedicare annum Domini acceptum et diem retributionis». Pregar o grande jubileu do amor e da misericórdia, é a devoção ao Sagrado Coração que nos é necessário anunciar a todos de maneira que ela inflame os corações de todos. É para nós o primeiro dos deveres, que nós cumpriremos bem, se nós mesmos, estivermos cheios de um amor terno e generoso para com o Sagrado Coração (Sl 61). (Leão Dehon, OSP 2, p. 260s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Surgiu entre nós um grande profeta e Deus visitou o seu povo!» (Lc 7, 16).

    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXII Semana - Terça-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXII Semana - Terça-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    3 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares
    XXII Semana - Terça-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 1 Coríntios 2, 10b-16

    Irmãos: o Espírito tudo penetra, até as profundidades de Deus. 11Quem, de entre os homens, conhece o que há no homem, senão o espírito do homem que nele habita? Assim também, as coisas que são de Deus, ninguém as conhece, a não ser o Espírito de Deus. 12Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que vem de Deus, para podermos conhecer os dons da graça de Deus. 13E deles não falamos com palavras que a sabedoria humana ensina, mas com as que o Espírito inspira, falando de realidades espirituais em termos espirituais. 14O homem terreno não aceita o que vem do Espírito de Deus, pois é uma loucura para ele. Não o pode compreender, pois só de modo espiritual pode ser avaliado. 15Pelo contrário, o homem espiritual julga todas as coisas e a ele ninguém o pode julgar. 16Pois quem conheceu o pensamento do Senhor, para poder instruí-lo? Mas nós temos o pensamento de Cristo.

    Paulo afirma que ninguém, pelas suas próprias forças, pode conhecer a Deus e o mistério da salvação que oferece a todos. Tudo é graça, e só pela graça podemos participar na salvação. A revelação do Pai tornou possível conhecermos a Deus e ao seu desígnio de salvação. Por Cristo, ficámos a conhecer os segredos de Deus e, com a ajuda do Espírito Santo, conseguimos balbuciar algo do que se refere à vida em Deus. Recebemos o Espírito que vem de Deus, o dom por excelência, que traz consigo o dom da sapiência. Assim, podemos entrar em sintonia com a mensagem revelada. Quem não acolher esse dom, não poderá saborear nem compreender o mistério, os segredos de Deus. E pode mesmo escandalizar-se. O que seria sabedoria, torna-se simplesmente loucura. Finalmente também temos «o pensamento do Senhor», isto é, somos iluminados pelo Evangelho acerca daquilo que agrada a Deus. Tudo isso se realizou em Cristo Jesus: na sua vida terrena e concretamente na sua morte e ressurreição.

    Evangelho: Lucas 4, 31-37

    Naquele tempo, Jesus 31desceu a Cafarnaúm, cidade da Galileia, e a todos ensinava ao sábado. 32E estavam maravilhados com o seu ensino, porque falava com autoridade. 33Encontrava-se na sinagoga um homem que tinha um espírito demoníaco, o qual se pôs a bradar em alta voz: 34«Ah! Que tens que ver connosco, Jesus de Nazaré? Vieste para nos arruinar? Sei quem Tu és: o Santo de Deus!» 35Jesus ordenou-lhe: «Cala-te e sai desse homem!» O demónio, arremessando o homem para o meio da assistência, saiu dele sem lhe fazer mal algum. 36Dominados pelo espanto, diziam uns aos outros: «Que palavra é esta? Ordena com autoridade e poder aos espíritos malignos, e eles saem!» 37A sua fama espalhou-se por todos os lugares daquela região.

    A distância entre Nazaré e Cafarnaúm é relativamente curta. Jesus percorre-a para a anunciar e curar. Para Lucas, são esses os modos como Jesus mostra a autoridade de que está revestido. A palavra de Jesus é eficaz: realiza o que significa. Os gestos terapêuticos de Jesus levam conforto e vida a todos os que deles precisam.
    Palavras e gestos são os elementos que ligam todo o Evangelho (cf. Lc 24, 19 onde se fala de «Jesus de Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e de todo o povo»; Act 1,1: «No meu primeiro livro, ó Teófilo, narrei as obras e os ensinamentos de Jesus, desde o princípio»). Esta página, que se refere ao início do ministério público de Jesus, confirma-o. Jesus quer se escutado e acolhido por todos e cada um dos homens: por isso lhes fala ao coração e lhes cura o corpo. É uma intervenção libertadora que revela a eficácia da palavra de Jesus. O texto de hoje apresenta-nos um pobre doente que é libertado de um espírito maligno. Começa o choque frontal entre Jesus e o demónio. Esse choque é preciso para que Jesus se revele como salvador, isto é, como aquele que redime os que estão sob o domínio de Satanás e resgata para Deus e para o seu reino.
    A intervenção de Jesus tem dois efeitos colaterais: suscita espanto em alguns e faz com que a sua fama se espalhe na região.

    Meditatio

    Que significa a expressão: Mas nós temos o pensamento de Cristo. Será que conhecemos o seu pensamento? À luz de Is 40, 13, ninguém pode dizer que conhece o pensamento do Senhor-Deus. Estamos aqui diante da teologia apofática - que prefere calar do que dizer coisas sobre Deus - cultivada pelos místicos e contemplativos. Mas a referência a Is. 64, 3, que encontramos em 2, 9, faz-nos saber que Deus preparou (isto é, revelou) coisas que jamais alguém viu ou ouviu, para aqueles que O amam. A benevolência divina tornou possível ao homem o que era impossível. Abre-se diante de nós um caminho novo de conhecimento. Os dons de Jesus, especialmente o dom do seu Espírito, rasga um novo horizonte em que podemos saber o que agrada a Deus e reconhecê-lo com alegria interior. Como filhos no Filho, como ouvintes da Palavra, como discípulos do Evangelho, podemos dizer com S. Paulo: nós temos o pensamento de Cristo. Não o descobrimos engenhosamente. Acolhemo-lo com alegria. Na linha de Is. 55, 9, podemos dizer que os pensamentos de Cristo não são os nossos pensamentos e que os nossos caminhos não são os seus caminhos. Todavia, apoiando-nos em Paulo, podemos ter certezas mais sólidas do que a rocha.
    Há tempos, na nossa vida, que são particularmente propícios para acolher e se deixar conduzir pelo Espírito Santo, e adquirir certezas que sejam fundamento sólido para toda a nossa vida cristã, religiosa, sacerdotal, para o nosso apostolado. Pode ser o tempo de férias, o tempo dedicado a um retiro espiritual, o tempo de formação à vida religiosa, ao sacerdócio. Para os religiosos tem particular importância o noviciado. As certezas, que todos procuramos, por vezes com angústia, não se adquirem com cálculos humanos ou garantias exteriores. Elas são fruto do Espírito que o Pai dá «àqueles que lho pedem!» (Lc 11, 13). É o Espírito de amor, o Espírito Santo, que realiza a promessa de Jesus: «Ele há-de ensinar-vos todas as coisas e há-de recordar-vos tudo aquilo que eu vos disse» (Jo 14, 26); «Há-de guiar-vos para a verdade perfeita... Ele há-de glorificar-me, porque tomará do que é Meu e vo-lo anunciará» (Jo 16, 13-14).
    Só o Espírito nos pode ensinar «todas as coisas», também sobre o mistério do pensamento de Cristo. Só Ele nos pode conduzir à «verdade perfeita». Só Ele nos pode «recordar», isto é, actualizar na nossa vida, tudo quanto Jesus ensinou e fez.
    O Espírito está na origem da nossa Congregação (Cst. 1), está presente no seu desenvolvimento (Cst. 15); faz-nos penetrar no mistério de Cristo (Cst. 16), faz-nos realizar a nossa missão de amor e de reparação (Cst. 23). O nosso cel
    ibato é abertura ao Espírito (Cst. 42), a nossa obediência é atenção ao Espírito (Cst. 57), a nossa vida comunitária é dom do Espírito (Cst. 59), a nossa oração é acolhimento do Espírito (Cst. 78).
    Que mais te dizem as Leituras de hoje, no momento e na situação em que te encontras? Que luz dão à tua vida, às tuas preocupações, aos teus sonhos e projectos?

    Oratio

    Senhor, os teus desígnios são insondáveis! Escolheste um assassino, como Paulo, para anunciar o teu nome, tomaste um pecador como Pedro para o tornar chefe da Igreja, socorreste uma adúltera para manifestar a tua misericórdia. Como são misteriosos os teus caminhos, ó Senhor! Agostinho permanece um exemplo de conversão para aqueles que estão atormentados e empedernidos no mal; Francisco, de libertino, torna-se promotor de paz.
    Ó Senhor, os teus gestos são loucos para a sabedoria humana! Assumes a fraqueza de uma criança para destruir os poderosos; dás a outra face a quem te bate e perdoas a quem Te ofende; morres para dar a vida e a salvação.
    Também eu, na situação concreta em que me encontro, à luz do teu Espírito, posso dar-me conta do teu amor e dizer-Te: «Tudo é graça». Amen.

    Contemplatio

    Para aquele que compreende, para aquele que o Espírito Santo ilumina, vigilanti, como diz Santo Agostinho, é a porta da vida que se abre, é o segredo de Deus que é revelado. O Coração ferido de Jesus significa que é por amor por nós, unicamente por amor, que Ele fez tudo o que fez, que viveu entre nós, que morreu por nós e que ainda vive por nós no céu e na santa Eucaristia. A lança repete à sua maneira aquilo que o Salvador tinha dito a Nicodemos: «Sic Deus dilexit mundum ut Filium suum unigenitum daret: Deus amou-nos até ao ponto de nos dar o seu Filho único». Fê-lo nossa propriedade; tudo nos pertence, os seus méritos, os seus mistérios, a sua vida, a sua morte, a sua graça, a sua glória e sobretudo o seu amor. Porque, repete ainda S. João, aqueles que Jesus amou, amou-os até ao fim, isto é, sem fim e sem medida.
    Eis porque a lança abriu o seu Coração material, a fim de nos fazer conhecer a ferida do seu Coração espiritual, do seu amor que foi o obreiro da nossa salvação e da nossa Redenção. No momento da morte do Salvador, o véu do Santo dos Santos rasgou-se. Isto significava o mesmo mistério que o golpe da lança.
    Jesus Cristo é o templo de Deus e o seu Coração é o Santo dos Santos, o altar do amor onde se operaram todos os mistérios e todos os sacrifícios. Tal é o significado primeiro da abertura do Coração adorável de Jesus. Este mistério ultrapassa todos os outros, porque a todos os contém. Que seria a oblação do Salvador, a sua vida, a sua imolação sobre a cruz, a sua morte mesma, se estes augustos mistérios não tirassem toda a sua seiva do seu Coração? (Leão Dehon, OSP 2, p. 380).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Nós temos o pensamento de Cristo» (1 Cor 2, 16).

    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXII Semana - Quarta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXII Semana - Quarta-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    4 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares
    XXII Semana - Quarta-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 1 Coríntios 3, 1-9

    Irmãos: 1Quanto a mim, irmãos, não pude falar-vos como a simples homens espirituais, mas como a homens carnais, como a criancinhas em Cristo. 2Foi leite que vos dei a beber e não alimento sólido, que ainda não podíeis suportar. Nem mesmo agora podeis, visto que sois ainda carnais. 3Pois se há entre vós rivalidades e contendas, não é porque sois carnais e procedeis de modo meramente humano? 4Quando um diz: «Eu sou de Paulo»; e outro: «Eu sou de Apolo», não estais a proceder como simples homens? 5Pois, quem é Apolo? Quem é Paulo? Simples servos, por cujo intermédio abraçastes a fé, e cada um actuou segundo a medida que o Senhor lhe concedeu. 6Eu plantei, Apolo regou, mas foi Deus quem deu o crescimento. 7Assim, nem o que planta nem o que rega é alguma coisa, mas só Deus, que faz crescer. 8Tanto o que planta como o que rega formam um só, e cada um receberá a recompensa, conforme o seu próprio trabalho. 9Pois, nós somos cooperadores de Deus, e vós sois o seu terreno de cultivo, o edifício de Deus.

    Para Paulo, homens carnais são pessoas que se orientam pelas suas próprias forças, por critérios meramente humanos. Pode dizer-se que essas pessoas estão espiritualmente "subdesenvolvidas"; mesmo humanamente, ainda não experimentaram a plenitude da vida. Pelo contrário, homens espirituais são aqueles que livremente e conscientemente entraram numa nova mentalidade, num estilo de vida que partilha a novidade de Cristo.
    Como se manifesta o ser carnais de alguns cristãos? Manifesta-se no criar facções, divisões, no semear discórdias e invejas. Em vez de contribuírem para construir a comunidade, tendem a destruí-la com os pensamentos que alimentam e, sobretudo, com as obras que praticam.
    O Apóstolo garante que a todos é possível comportar-se como homens espirituais, desde que compreendam bem quem é Apolo e quem é Paulo: ambos são ministros, isto é, servos, simples colaboradores de Deus. Só Deus tem a iniciativa de salvar; só a Ele pertence o mérito e a honra. Há que reconhecê-lo como verdadeiro e único protagonista da salvação. Só Ele faz crescer o que os servos plantaram e regaram. Só Ele salva aqueles que, pela pregação da Palavra, se abrem ao diálogo que leva a descobrir a verdade.
    Notar ainda que só Deus está sempre em primeiro lugar. Só depois vêm todos os outros. Por seu lado, Paulo está disposto a ocupar o último lugar.

    Evangelho: Lucas 4, 38-44

    Naquele tempo, Jesus 38deixando a sinagoga, entrou em casa de Simão. A sogra de Simão estava com muita febre, e intercederam junto dele em seu favor. 39Inclinando-se sobre ela, ordenou à febre e esta deixou-a; ela erguendo-se, começou imediatamente a servi-los. 40Ao pôr do sol, todos quantos tinham doentes, com diversas enfermidades, levavam-lhos; e Ele, impondo as mãos a cada um deles, curava-os. 41Também de muitos saíam demónios, que gritavam e diziam: «Tu és o Filho de Deus!» Mas Ele repreendia-os e não os deixava falar, porque sabiam que Ele era o Messias. 42Ao romper do dia, saiu e retirou-se para um lugar solitário. As multidões procuravam-no e, ao chegarem junto dele, tentavam retê-lo, para que não se afastasse delas. 43Mas Ele disse-lhes: «Tenho de anunciar a Boa-Nova do Reino de Deus também às outras cidades, pois para isso é que fui enviado.» 44E pregava nas sinagogas da Judeia.

    Notamos, nesta página, dois momentos distintos: a cura da sogra de Simão; as palavras sobre a consciência que Jesus tinha da sua missão evangelizadora (v. 43). O primeiro momento revela-nos que a cura habilita ao serviço. Também nos diz que as curas dos doentes se tornam ocasião de verdadeiras profissões de fé em Cristo, mesmo que elas saíam da boca dos demónios...
    Na segunda parte de texto, Lucas faz-se intérprete de dois eventos fundamentais: do facto de que a evangelização seja uma característica essencial do cristianismo e da consciência messiânica de Jesus que explode sobretudo na necessidade que lhe incumbe de anunciar o reino de Deus. Trata-se de uma necessidade providencial, porque está inscrita no projecto salvífico de Deus. Jesus não pode eximir-se a esse preciso dever, até porque qualifica a sua missão: «Para isso fui enviado» (4, 8; cfr. também Lc 10, 16).

    Meditatio

    Fala-se muito, hoje, de evangelização e nova evangelização, de evangelização das culturas, de inculturação da fé. Cada cristão deve estar consciente do indeclinável dever de dar testemunho do Evangelho, onde quer que viva, se encontre, trabalhe. O Vaticano II fundamenta esse dever no evento sacramental do baptismo (cfr. LG 10 e AA 3).
    «É preciso que eu evangelize o reino de Deus». O objecto da missão não é a Igreja, mas o reino de Deus. A palavra "Reino de Deus" não deve ser entendida em sentido meramente local, como se devêssemos entrar num certo local, em recinto bem definido, mas em sentido espiritual para indicar, antes de mais, a soberania de Deus a que nos submetemos e a comunidade de salvação que caminha para o Reino.
    «Para isso fui enviado»: é como dizer que não há evangelização sem missão. Não é indispensável uma missão apostólica. É suficiente referir-nos ao baptismo e à vocação que abraçámos. Ele dão-nos o direito não só de sermos servidores da Palavra aqui e agora, mas também as forças espirituais necessárias para essa missão.
    «Evangelizar, para a Igreja, é levar a Boa Nova de Cristo a todos os sectores da Humanidade e, graças ao seu influxo, transformar a partir de dentro, tornar nova a própria humanidade» ( Paulo VI, Evangelii Nuntiandi 18).
    Se a nossa experiência pessoal de fé um dia nos fez enamorar por Cristo, e demos a nossa adesão total à Sua Pessoa (cf. Cst 14), a consequência de tudo isso devia ser «o zelo pela casa do Senhor devora-nos»; toda a actividade, todo o ministério, toda a presença em qualquer ambiente deveria tornar-se evangelização convicta.
    Os documentos da Congregação lembram-nos que viver a nossa Regra de vida significa viver a nossa espiritualidade como missão apostólica e que a vida religiosa, como vida comunitária, como vivência dos votos, da espiritualidade e do nosso serviço apostólico, é missão» (cf. Documenta XII, p. 51).
    A Carta circular sobre o contributo SCJ para a evangelização apresenta de modo muito eficaz e concreto a missão dehoniana na preciosa e humilde realidade da vida de cada dia: «Não só as zonas de fronteira são hoje terra de missão, mas todas as nossas actividades, onde devemos ter sempre a preocupação de dar o primeiro lugar anúncio do Evangelho: formação, escola, pastoral paroquial, animação vocaciona
    l, etc.; também os anciãos e doentes podem colaborar na missão da Igreja e da Congregação, vivendo a sua oblação e colaboração na difusão da Boa Nova de Cristo, conforme a variedade dos dons recebidos do Espírito (1 Cor 12, 4-6).
    Reconhecemos como parte importante da nossa missão reparadora todo o trabalho que desde os princípios da Congregação muitos de nós desenvolvem na actividade missionária, em vista do anúncio do Evangelho e em solidariedade com os povos, cuja situação é particularmente difícil»( Cf. Documenta XIV, n. 23, p. 102).

    Oratio

    Senhor, liberta-me da inveja que mina o meu crescimento e as minhas relações interpessoais. Desejar avidamente o que pertence aos outros cria divisões e rivalidades; liberta-me do ciúme, «icterícia da alma», sentimento que liberta frustração, cólera e rancor naqueles que desejam para si a atenção prestada aos outros.
    Dá-me aquela liberdade que não teme críticas nem pretender atrair louvores, que leva à largueza de vistas e é feita de humildade, tolerância e inteligência, que está privada de interesses egoístas e acredita que todos colaboram contigo, único e verdadeiro artista.
    Senhor, faz com que caminhe sempre diante de mim o teu lema trinitário: "Um por todos". E que isso aconteça, de modo particular, no serviço da evangelização. Amen.

    Contemplatio

    O Evangelho é, como a sagrada Eucaristia, o sacramento do Coração de Jesus. Este divino Coração está lá, sob a letra, escondido com o seu amor e os seus tesouros de graças; as suas palavras são espírito e vida. Nós devemos amar e estudar todos os Evangelhos, mas há um pelo qual nós nos devemos apaixonar: é o de S. João. Portanto, para ter bom resultado na pregação, o principal não é estudar Massillon, Bourdaloue e Bossuet, por maioria de razão os autores absolutamente profanos como Cícero ou Quintilino. É preciso estudar o Sagrado Coração no Evangelho: está tudo aí.
    Recordemo-nos das promessas feitas por Nosso Senhor àqueles que pregassem a devoção ao Sagrado Coração. Estas promessas são infalíveis. Tenhamos uma confiança absoluta. Esta confiança pode produzir milagres. «Aqueles que trabalham pela salvação das almas, dizia Nosso Senhor à Bem-Aventurada, terão a arte de tocar os corações mais endurecidos e trabalhar com um sucesso maravilhoso, se eles mesmos estiverem penetrados de uma terna devoção ao meu divino Coração».
    Meditemos e desenvolvamos as belas páginas de S. João ... sobre a ressurreição de Lázaro, sobre as bodas de Caná, sobre a conversão da Samaritana. Estudemos estas parábolas do Bom Mestre sobre o Bom Pastor, sobre a Vinha mística e as efusões do seu Coração no discurso depois da Ceia. Todos estes ensinamentos têm uma eficácia particular. Brotam directamente do Coração de Jesus.
    Alimentar-me-ei constantemente do Evangelho, sobretudo do de S. João. Lerei com preferência os escritos dos Santos que tiveram a missão de nos revelar o Sagrado Coração. É o Coração de Jesus que eu quero fazer conhecer e amar ao exercer o apostolado (Leão Dehon, OSP 2, pp. 262s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Somos colaboradores de Deus» (1 Cor 3, 9).

    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXII Semana - Quinta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXII Semana - Quinta-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    5 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares
    XXII Semana - Quinta-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 1 Coríntios 3, 18-23

    Irmãos: 18Ninguém se engane a si mesmo: se algum de entre vós se julga sábio à maneira deste mundo, torne-se louco para ser sábio. 19Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus. Com efeito, está escrito: Ele apanha os sábios na sua própria astúcia. 20E ainda: O Senhor conhece os pensamentos dos sábios e sabe que são fúteis. 21Portanto, ninguém se glorie nos homens, pois tudo é vosso: 22Paulo, Apolo, Cefas, o mundo, a vida, a morte, o presente ou o futuro. Tudo é vosso. 23Mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus.

    Paulo retoma a reflexão sobre o binómio «sabedoria-loucura» e adorna-o com referências ao Antigo Testamento. A sua atenção concentrara-se na loucura da pregação, na loucura da cruz, na loucura da fé. Agora o discurso alarga-se e aplica-se a toda a existência cristã: «viver em Cristo» comporta assumir a novidade de vida que Cristo pregou e que a sua cruz anuncia, ainda que isso pareça paradoxal e escandaloso ao mundo em que vivemos. Depois Paulo aperfeiçoa a escala dos valores, apresentando-a de modo eloquente: Tudo é vosso - Paulo refere-se a todos os crentes e a toda a comunidade dos crentes; mas vós sois de Cristo - todos, nós e vós, diz o Apóstolo, pertencemos a Cristo por meio da fé; ser de Cristo significa ter uma relação especial com Ele, por um chamamento recebido, pela Palavra escutada, pelo dom da graça acolhido; e Cristo é de Deus - é novamente reafirmado o primado de Deus Pai, origem e fim de tudo e de todos. Paulo esboça diante de nós um itinerário teológico persuasivo e englobante.

    Evangelho: Lucas 5, 1-11

    Naquele tempo, 1encontrando-se junto do lago de Genesaré, e comprimindo-se à volta dele a multidão para escutar a palavra de Deus, 2Jesus viu dois barcos que se encontravam junto do lago. Os pescadores tinham descido deles e lavavam as redes. 3Entrou num dos barcos, que era de Simão, pediu-lhe que se afastasse um pouco da terra e, sentando-se, dali se pôs a ensinar a multidão. 4Quando acabou de falar, disse a Simão: «Faz-te ao largo; e vós, lançai as redes para a pesca.» 5Simão respondeu: «Mestre, trabalhámos durante toda a noite e nada apanhámos; mas, porque Tu o dizes, lançarei as redes.» 6Assim fizeram e apanharam uma grande quantidade de peixe. As redes estavam a romper-se, 7e eles fizeram sinal aos companheiros que estavam no outro barco, para que os viessem ajudar. Vieram e encheram os dois barcos, a ponto de se irem afundando. 8Ao ver isto, Simão caiu aos pés de Jesus, dizendo: «Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador.» 9Ele e todos os que com ele estavam encheram-se de espanto por causa da pesca que tinham feito; o mesmo acontecera 10a Tiago e a João, filhos de Zebedeu e companheiros de Simão.Jesus disse a Simão: «Não tenhas receio; de futuro, serás pescador de homens.» 11E, depois de terem reconduzido os barcos para terra, deixaram tudo e seguiram Jesus

    Lucas realça o modo como a multidão escutava «a palavra de Deus». Deste modo, remete-nos para a comunidade eclesial que vive a sua fé colocando no centro de si mesma «a palavra de Deus» e, ao mesmo tempo, Jesus como Palavra da revelação e a pregação apostólica. Lucas também realça que Jesus, «sentando se, dali se pôs a ensinar a multidão». Também este pormenor nos leva a considerar a narração evangélica como intimamente ligada à vida da primitiva comunidade cristã, em que a passagem da evangelização à catequese era normal e permanente.
    «Porque Tu o dizes, lançarei as redes»: Lucas sublinha a autoridade da palavra de Jesus. Sabemos que toda a palavra que saía da boca de Jesus, para os Apóstolos ou para a multidão, estava carregada de especial autoridade: «Que palavra é esta? Ordena com autoridade e poder aos espíritos malignos, e eles saem!» (4, 36).
    «Depois de terem reconduzido as barcas para terra, dei¬xaram tudo e seguiram no». Esta expressão alerta para o radicalismo evangélico. Lucas quer indicar que o seguimento de Jesus implica, não só uma opção pessoal, mas também a decisão de se desapegar de tudo aquilo que, de algum modo, possa enfraquecer a adesão a Jesus.

    Meditatio

    As leituras de hoje convidam-nos a ultrapassar os nossos estreitos limites humanos, para nos abrirmos à imensidade do amor de Deus.
    Paulo exorta os Coríntios a irem além da sabedoria humana, que, muitas vezes, se deixar guiar por simpatias e preferências, e acaba por erguer barreiras que nos separam de Deus e uns dos outros. O Apóstolo indica-lhes horizontes bem mais amplos: «Tudo é vosso. Mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus» (vv. 22b-23).
    O mesmo acontece no evangelho. Jesus quis que Pedro compreendesse que o apostolado não é coisa humana. A pesca milagrosa leva Pedro a ultrapassar o senso comum, a curtas vistas humanas: ao ver a pesca inesperada, o apóstolo diz: «Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador» (v. 8). Há pormenores que marcam este encontro entre Jesus e Simão Pedro. Facilmente reconhecemos neles aspectos importantes da nossa experiência de vida cristã. Por exemplo: a passagem da desilusão à confiança: um pescador experimentado como Pedro sabe que, depois de certas noites de faina, não tem muito a esperar; a experiência é sempre uma referência em que nos apoiamos para fazer opções ou tomar decisões. Geralmente, não estamos muito inclinados a arriscar em coisas em que já experimentamos o fracasso. Mas Pedro acredita na palavra de Jesus e confia na sua eficácia. Do espanto ao reconhecimento da sua condição de pecador: a consciência de Pedro ilumina-se no contacto com Jesus, e não só diante do milagre. É verdade que o milagre sacode as consciências e as interpela drasticamente, mas a referência principal e última é a pessoa de Jesus. Diante dele, Pedro reconhece a sua condição de pobre pecador, idêntica à dos outros. De pecador a pescador de homens: Pedro dá-se conta de que Jesus entrou na sua vida, não para o atrair, mas também para ganhar, por meio dele, outras pessoas para a novidade cristã. Dá-se uma transformação da sua qualidade de pescador. Do abandono de todo ao seguimento de Jesus: a vocação qualifica-se, não tanto pelo que deixa, mas por Aquele a Quem se adere. Também Pedro de deu conta da necessidade de deixar tudo para seguir a Cristo. E não hesitou!
    Para responder à vocação, é preciso conhecer o rosto d'Aquele que chama. Toda a resposta vocacional implica um reconhecimento de Deus na pessoa de Jesus Cristo. Aí, no amor dado e recebido, na identidade salvadora acolhida, pode-se dar um salto de confiança para os braços d'Aquele que chama porque se reconhece n'Ele a misericórdia e a salvação, a vida e a paz, a verdade e a beleza.
    A motivação consistente para
    vida consagrada só pode ser Cristo e o Evangelho (cf. Mc 10, 29). Só o amor a Cristo justifica uma vida de castidade, de pobreza, de obediência, vivida em fraternidade e ao serviço da missão.
    «Na Igreja, fomos iniciados na Boa Nova de Jesus Cristo: "Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem" (1 Jo 4,16). Recebemos o dom da fé que dá fundamento à nossa esperança; uma fé que orienta a nossa vida e nos inspira a deixar tudo para seguir a Cristo; no meio dos desafios do mundo, devemos consolidá-la, vivendo-a na caridade. Com todos os nossos irmãos cristãos confessamos, por meio do Espírito, que Cristo é o Senhor, no qual o Pai nos manifestou o seu amor e que continua presente no mundo para o salvar. "Ninguém pode dizer - Jesus é o Senhor - senão sob a acção do Espírito Santo" (1 Cor 12,3) (Cst 9).

    Oratio

    Seduziste-me, Senhor, e eu deixei-me seduzir. Procurava algo de significativo numa vida fácil e sem brio, no tédio mortal de muitos dias sempre iguais. O teu amor arcano e misterioso atemorizava-me e, por isso, resisti muito tempo. Agora, sinto-me rendido à tua irresistível sedução. Puseste-me numa nova forma de existência, mostrando-me uma missão que, a partir de agora, dá consistência à minha vida, mesmo no meio das dificuldades, e das contradições. Seguir-Te tornou-se uma maravilhosa oportunidade para Pedro e para mim, como para todos os que são chamados. Que a saiba aproveitar, para glória do teu Nome. Amen.

    Contemplatio

    A vocação sacerdotal é muitas vezes preparada por piedosos antepassados. Há muitas vezes entre as causas determinantes da nossa vocação os exemplos, as orações, os méritos de uma mãe, de uma avó ou de outros familiares. Não vemos também aqui, como prelúdio ao Ecce venio de Jesus, o Ecce Ancilla de Maria, e a vida santa e pura da Virgem imaculada, a humildade de José, pai adoptivo do Salvador, a dignidade de Santa. Ana e de S. Joaquim? Jesus quer que nós guardemos a recordação destas santas preparações. S. Paulo diz a Timóteo: «Recorda-te da fé da tua avó e da tua mãe» (2Tim 1). Muitas vezes também, houve nas gerações precedentes da família do sacerdote, outras vocações de sacerdotes, de religiosos, de religiosas. Jesus, por Maria, descendia simultaneamente da família de Judá e da tribo de Levi. Muito frequentemente os piedosos antepassados do sacerdote passaram por provações. As graças compram-se. Sta. Ana e S. Joaquim foram desprezados, Maria e José viveram na pobreza.
    Se nós reconhecemos o toque divino na origem da nossa vocação, exprimamos a nossa gratidão ao divino Coração de Jesus... Regressemos em pensamento à nossa infância. Agradeçamos a Deus as graças recebidas e peçamos-Lhe perdão pelas falhas que nos escaparam.
    Quais eram as disposições do Coração de Jesus durante a sua infância e a sua juventude? ... Oferecia sem cessar um sacrifício perfeito ao seu Pai... Crescia em graça, crescia em sabedoria...
    Perdão por todos os abusos que cometi dos vossos dons! Obrigado por todos os proveitos espirituais que deles pude colher! (Leão Dehon, OSP 2, pp. 544ss.)

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Vós sois de Cristo e Cristo é de Deus» (1 Cor 3, 23).

    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXII Semana - Sexta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXII Semana - Sexta-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    6 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares
    XXII Semana - Sexta-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 1 Coríntios 4, 1-5

    Irmãos: 1Considerem-nos, pois, servidores de Cristo e administradores dos mistérios de Deus. 2Ora, o que se requer dos administradores é que sejam fiéis. 3Quanto a mim, pouco me importa ser julgado por vós ou por um tribunal humano. Nem eu me julgo a mim mesmo. 4De nada me acusa a consciência, mas nem por isso me dou por justificado; quem me julga é o Senhor. 5Por conseguinte, não julgueis antes do tempo, até que venha o Senhor. Ele é quem há-de iluminar o que se esconde nas trevas e desvendar os desígnios dos corações. E então cada um receberá de Deus o louvor que merece.

    Na comunidade de Corinto, havia alguns que contestavam a autoridade de Paulo. O Apóstolo começa por afirmar: somos "servidores de Cristo e administradores dos mistérios de Deus"; nada mais. Estas palavras lembram-nos o que Jesus disse: «Quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: 'Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer'» (Lc 17, 10). Fica assim realçada a identidade do Apóstolo, em relação a Cristo que o chamou.
    Também somos «administradores dos mistérios de Deus», isto é, ecónomos, porque responsáveis por aquela economia que vê actuar a Deus que dispensa os seus ministérios, mas também os apóstolos que são chamados a dar o que receberam. Este segundo aspecto caracteriza o ministério apostólico em relação com os fiéis, que têm direito a receber aquilo que Deus, por meio dos seus ministros, dispensa generosamente. Aos servos-administradores requerer-se que sejam fiéis ao Senhor e ao serviço que lhes é confiado. Paulo sente-se submetido ao juízo de todos; mas sente-se livre. Mas também se sente objecto do juízo de Deus a Quem se rendeu de uma vez para sempre. E, sendo assim, não se sente livre, mas obrigado a cumprir a sua missão.

    Evangelho: Lucas 5, 33-39

    Naquele tempo, os fariseus e os escribas 33disseram a Jesus: «Os discípulos de João jejuam frequentemente e recitam orações; o mesmo fazem também os dos fariseus. Os teus, porém, comem e bebem!» 34Jesus respondeu-lhes: «Podeis vós fazer jejuar os companheiros do esposo, enquanto o esposo está com eles? 35Virão dias em que o Esposo lhes será tirado; então, nesses dias, hão-de jejuar.» 36Disse-lhes também esta parábola: «Ninguém recorta um bocado de roupa nova para o deitar em roupa velha; aliás, irá estragar-se a roupa nova, e também à roupa velha não se ajustará bem o remendo que vem da nova. 37E ninguém deita vinho novo em odres velhos; se o fizer, o vinho novo rompe os odres e derrama-se, e os odres ficarão perdidos. 38Mas deve deitar-se vinho novo em odres novos. 39E ninguém, depois de ter bebido o velho, quer do novo, pois diz: 'o velho é que é bom!'».

    A partir de hoje, a liturgia apresenta-nos três polémicas de Jesus com os discípulos de João Baptista: uma sobre a prática do jejum e duas sobre a observância do sábado.
    A esmola, a oração e o jejum são três compromissos indeclináveis para os discípulos de Cristo (cf. Mt 6, 1-18). Mas o que preocupa a Jesus é o modo como os seus discípulos praticam a esmola, a oração e o jejum. Esta página realça o espírito com que deve ser praticado o jejum. A alegoria esponsal leva-nos a considerar Jesus como "o esposo", cuja presença é motivo de alegria e cuja ausência será motivo de tristeza. A espiritualidade cristã não pode deixar de dar atenção a estas expressões muito pessoais que podem configurar uma relação, não só de filhos com o pai, mas também da esposa com o esposo. O Antigo Testamento desenvolve muito esta alegoria esponsal para iluminar as relações de Israel com o seu Senhor e a relação de cada crente com Deus.
    Este texto distingue também os tempos de Jesus dos tempos da Igreja. A Igreja é representada pelos convidados que participam da alegria do esposo; mas algumas vezes é apresentada na imagem da esposa, ou do amigo do esposo que lhe está próximo e a escuta (cf. Jo 25, 30).

    Meditatio

    A filosofia grega procurava, sobretudo, explicar o Universo. A Bíblia, pelo contrário, ensina-nos a estar atentos às pessoas e às relações interpessoais. A filosofia grega distinguia os quatro elementos: o ar, a água, o fogo e a terra. A Bíblia, pelo contrário, ensina-nos a entrar em contacto com o Ser pessoal que criou a matéria: Deus. As leituras de hoje mostram que Jesus e, depois d´Ele, os apóstolos confirmaram e aprofundaram essa orientação.
    É sempre útil reflectir sobre a novidade trazida por Cristo e testemunhada pelo Evangelho. A parábola de Lucas sobre a roupa nova e o vinho novo evidencia essa novidade. Tomemos nota, em primeiro lugar, do estilo paradoxal com que Lucas narra a primeira parábola. Não fala simplesmente de um pedaço de pano a coser em roupa velha. Fala, sim, do gesto de alguém que «recor¬ta um bocado de roupa nova para o deitar em roupa velha». É evidente que Lucas quer estigmatizar a atitude daqueles que, recusando a novidade do Evangelho, acabam por arruinar o que é novo sem realizar o que é velho.
    "Novo" pode entender-se em referência ao Antigo Testamento: neste caso, o verdadeiro discípulo de Jesus, desde o princípio entende da sua experiência de fé intui que apalavra de Jesus chega como cumprimento das profecias e que a adesão de fé a Jesus o põe na linha de todos quantos, antes de Jesus Cristo, se abriram à escuta da Palavra de Deus e se deixaram guiar pelos profetas.
    "Novo" pode entender-se em referência aos mestres alternativos que faziam prosélitos por todos os meios, no tempo de Jesus; neste caso, os apóstolos e os discípulos encontraram-se na situação de ter que fazer opções drásticas (cfr. Jo 6, 60-69) para não se deixarem hipnotizar pelos falsos mestres e por guias cegas e hipócritas (cfr. Mt 23, 15-17).
    "Novo", finalmente, pode entender-se em referência a algumas atitudes que caracterizam a vida dos discípulos de Jesus antes do seu encontro com o Mestre: neste caso, o discípulo de Jesus adverte a necessidade de deixar-se agarrar, de se abandonar para receber, de perder para encontrar.
    Para aqueles que são chamados à vida religiosa, a profissão dos conselhos evangélicos é um sinal «que manifesta a todos os crentes os benefícios celestiais...; testemunha a vida nova e eterna...; preanuncia a futura ressurreição e a glória do Reino celeste... O estado religioso representa na Igreja a forma de vida que o Filho de Deus abraçou...; manifesta a elevação do Reino de Deus acima de todas as coisas terrestres...; demonstra... o infinito poder do Espírito Santo, admiravelmente operante na Igreja» (Cf. Lumen Gentium, 44).
    As nossas Constituições dizem que somos "disc&iac
    ute;pulos do Padre Dehon..." (n. 17). Mas há que esclarecer: "Discípulos", por meio do P. Dehon, de Cristo, porque o único Mestre é sempre e somente Ele: "Um só é o vosso mestre e todos vós sois irmãos" (Mt 23, 8). Todavia, o P. Dehon é sempre nosso modelo. A sua experiência de fé, o modo como abandonou tudo, aderiu e se abandonou a Cristo, tem para nós um valor constitutivo (Cf. Cst nn. 2-5). É ao seu jeito que queremos seguir a Cristo, o único Mestre.

    Oratio

    Senhor, arranca-nos do sulco dos nossos costumes! A tarefa principal da pessoa que quer amadurecer é paradoxalmente alcançar a inocência de uma criança. Senhor, dá-me uma mente fresca, inocente, aberta e capaz de conhecimento infinito.
    «Ninguém recor¬ta um bocado de roupa nova para o deitar em roupa velha»! Senhor, dá-me o sentido do bom gosto, que não me fecha no "velho" mas, ainda que valorizando-o, sabe colher a novidade da graça, sempre dotada de originalidade e elegância espiritual. Os discípulos de João jejuam. Os teus, comem e bebem. Ó Senhor, dá-me aquele sentido de equilíbrio que não me amarra a normas e práticas decaídas e ultrapassadas, mas, por intuições felizes, leva-me a fazer opções espontâneas e adequadas a todos os tipos de situação. Amen.

    Contemplatio

    A Bem Aventurada Margarida Maria mantinha-se diante de Nosso Senhor como uma tela vazia, tela muito branca, muito bela, bem purificada neste purgatório de amor. Sobre esta tela, Nosso Senhor como um hábil pintor, desenhava a imagem do seu Coração. Não era uma pintura morta, mas uma imagem viva que produzia os traços do divino Mestre; esta alma, iluminada e purificada pelo Coração de Jesus, era tão semelhante ao seu adorável modelo, que realizava esta unidade mística que é o último limite de união com o Coração de Jesus. Nós também, estejamos diante de Nosso Senhor como uma tela bem branca onde ele há-de imprimir o selo do seu Coração; ele nos há-de purificar, iluminar, nos há-de elevar enfim a este união perfeita na qual não fazemos mais do que um só com ele. Então havemos de poder dizer com S. Paulo: «Vivo, non ego, vivit vero in me Christus. - Já não sou eu, mas Jesus Cristo, o seu Coração quem vive em mim» (Gal 2, 20). Permaneçamos, portanto, aos pés de Nosso Senhor com um olhar de ternura, com um esforço de amor, na amargura das nossas faltas e na alegria do perdão, sob um raio de luz e de bênção (Leão Dehon, OSP 2, p. 187).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Servidores de Cristo e administradores dos mistérios de Deus.» (1 Cor 4, 1).

    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXII Semana - Sábado - Tempo Comum - Anos Pares

    XXII Semana - Sábado - Tempo Comum - Anos Pares


    7 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares
    XXII Semana - Sábado

    Lectio

    Primeira leitura: 1 Coríntios 4, 6-15

    Irmãos: 6Se apliquei tudo isto a mim e a Apolo, irmãos, foi por vossa causa, para que aprendais de nós mesmos a «não ir além do que está escrito», e para que ninguém se vanglorie, tomando o partido de um contra o outro. 7Pois, quem te faz superior aos outros? Que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, porque te glorias, como se não o tivesses recebido? 8Já estais saciados! Já sois ricos! Sem nós, já vos tornastes reis! Oxalá o tivésseis conseguido, para que também nós pudéssemos reinar convosco. 9De facto, parece-me que Deus nos pôs a nós, os apóstolos, no último lugar, como se fôssemos condenados à morte, porque nos tornámos espectáculo para o mundo, para os anjos e para os homens. 10Nós somos loucos por causa de Cristo, e vós, sábios em Cristo! Nós somos fracos, e vós, fortes! Vós, honrados, e nós, desprezados! 11Até este momento, sofremos fome, sede e nudez, somos esbofeteados, andamos errantes, 12e cansamo-nos a trabalhar com as nossas próprias mãos. Amaldiçoados, abençoamos; perseguidos, aguentamos; 13caluniados, consolamos! Tornámo-nos, até ao presente, como o lixo do mundo e a escória do universo. 14Não escrevo estas coisas para vos envergonhar, mas para vos admoestar, como a meus filhos muito queridos. 15Na verdade, ainda que tivésseis dez mil pedagogos em Cristo, não teríeis muitos pais, porque fui eu que vos gerei em Cristo Jesus, pelo Evangelho.

    Paulo desenvolve o discurso sobre a verdadeira identidade dos ministros de Cristo e dos administradores dos mistérios de Deus.
    Os apóstolos, em primeiro lugar, estão ligados aos fiéis-irmãos: por isso não podem avançar sozinhos e, muito menos, chegar à meta sem eles. Paulo sente-se ligado aos seus fiéis porque, como eles, sabe que foi salvo pela graça de Cristo. Por outro lado, não quer chegar à meta sem eles. A expressão "reinar convosco " (v. 8) exprime claramente o seu desejo de partilhar com todos a alegria da salvação
    Os apóstolos são "condenados à morte " (v. 9), como Cristo, depois de Cristo. É o que espera Paulo, desde que encontrou a Cristo no caminho de Damasco. Desde então, sabe que não há outro caminho senão o da cruz, outra perspectiva senão a do Calvário.
    Os apóstolos também se sentem pais em relação aos fiéis que consideram "filhos muito queridos" (v. 14). Trata-se de uma paternidade espiritual não menos comprometedora que a paternidade física. É uma paternidade sem fronteiras. É essa a experiência de Paulo.

    Evangelho: Lucas 6, 1-5

    1Num dia de sábado, passando Jesus através das searas, os seus discípulos puseram-se a arrancar e a comer espigas, desfazendo-as com as mãos. 2Alguns fariseus disseram: «Porque fazeis o que não é permitido fazer ao sábado?» 3Jesus respondeu: «Não lestes o que fez David, quando teve fome, ele e os seus companheiros? 4Como entrou na casa de Deus e, tomando os pães da oferenda, comeu e deu aos seus companheiros esses pães que só aos sacerdotes era permitido comer?» 5E acrescentou: «O Filho do Homem é Senhor do sábado.»

    Lucas apresenta-nos hoje, e nos textos seguintes, algumas polémicas de Jesus com os fariseus acerca do sábado e das práticas permitidas ou não permitidas nesse dia. Impressiona o modo positivo e propositivo como Jesus entra na polémica: tenta desamarrar os seus interlocutores de uma mentalidade excessivamente jurídica, servilmente ligada a aspectos que levaram os fariseus, do tempo de Jesus, a compilar um elenco de 613 preceitos, além dos 10 mandamentos, a que queriam ser fiéis. Jesus tenta tirá-los dessa mentalidade lembrando um acontecimento vetero-testamentário da vida de David: uma opção de liberdade diante de uma tradição que parece não admitir excepções. David era uma referência para todos, também para Jesus. Mais uma razão para, neste caso, o aceitar como modelo de liberdade perante tradições que, não sendo bem interpretadas, ameaçam sujeitar o homem à lei, em vez de o libertar.
    A afirmação final é clara: «O Filho do Homem é Senhor do sábado» (v. 5). Por um lado, Jesus compara-se a David; por outro lado, afirma a sua superioridade e, implicitamente, enquanto "Senhor do sábado", a sua divindade.

    Meditatio

    A primeira leitura leva-nos a meditar como Deus nos quer unidos na caridade: «Irmãos - escreve Paulo - ninguém se vanglorie, tomando o partido de um contra o outro... Que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, porque te glorias» (vv. 6-7). É uma palavra profunda: tudo recebemos; não devemos usar os dons de Deus para criar divisões entre nós, mas para nos construirmos como uma só coisa.
    O Evangelho leva-nos a reflectir sobre o «novo» trazido por Cristo. Este «novo» não significa «inédito», jamais visto, mas «original», no sentido em que Jesus veio restabelecer o projecto de Deus criador e entregá-lo a todos os que aceitam segui-l´O no caminho da verdade. Em Mt 19, 1-12, temos um exemplo claro deste projecto de Jesus. Na polémica com os fariseus sobre a espiritualidade conjugal, Jesus convida a ultrapassar a lógica das concessões de Moisés por causa da dureza dos corações e a assumir a lógica do dom recíproco total, de acordo com o projecto original de Deus.
    O «novo», segundo o Evangelho, também não significa «actual»", mas «autêntico», no sentido em que Jesus, com as suas propostas de vida nova tende a acordar na pessoa, em cada pessoa, aquilo que nela há de genuíno e de válido. Jesus veio libertar... a liberdade. Por isso, quando foi preciso, não hesitou em contrapor a sua proposta às propostas alternativas dos outros falsos Messias, que prometiam liberdade fácil e barata.
    Finalmente, «novo», segundo o Evangelho, não significa «genial», mas «essencial», no sentido que Jesus veio retirar ou, pelo menos, aligeirar os demasiados pesos que ameaçam entristecer e talvez também mortificar o coração das pessoas. Sobre isto, são extremamente iluminadoras as palavras de Jesus: «Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que eu hei-de aliviar-vos. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso espírito. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve» (Mt 11, 28-30).
    Abramo-nos à humildade, na oração ao Espírito, para obtermos, com a experiência da cruz, o grande dom da liberdade interior, a liberdade do coração e dizermos com o Apóstolo: «Em tudo somos atribulados, mas não esmagados; perplexos, mas não desanimados; perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruíd
    os. Trazemos sempre no nosso corpo os traços da morte de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste no nosso corpo» (2Cor 4, 8-10). Somos vasos frágeis, mas levamos dentro de nós um tesouro infinito: Jesus, o Seu Espírito. Deixemos que Jesus limpe quando queira este nosso vaso, por vezes tão encrostado, tão opaco, para que se torne transparente como o cristal, deixe irradiar a vida de Cristo e os frutos do Espírito. Rezemos como Newman: «Senhor Jesus, ajuda-me a espalhar por todo o lado o Teu perfume... Brilha por meio de mim... Faz com que eu levante os olhos e já não me veja a mim, mas a Jesus».
    Se a oblação é um «ser para os outros», um «viver para os outros» e, antes de mais nada para o Outro, o Pai, Cristo, e para os outros, os irmãos, é inevitável a renúncia ao nosso egoísmo, às nossas comodidades e aos nossos interesses; é, portanto, inevitável a experiência da imolação do nosso "eu". Só assim se colabora no advento de uma humanidade menos egoísta, de um mundo novo; realiza-se a reparação, típica do homem de coração novo da civilização do amor. E tudo isto «por Cristo, com Cristo e em Cristo».

    Oratio

    Senhor, o sofrimento assusta-me. Mas não posso negá-lo, escapar dele, porque faz parte da vida de todo o homem, também do religioso, do apóstolo. Tenho medo do sofrimento físico causado pelas doenças, pelas privações, pelo cansaço, por um corpo frágil que se deteriora com o passar dos anos. Tenho medo do sofrimento psicológico que deriva das incompreensões, das resistências sem razão diante de realidades claras, das limitações escondidas e não aceites que se tornam violência irracional, dos jogos obscuros para alcançar os próprios objectivos. Tenho medo do sofrimento espiritual velado por dúvidas, aridez, incertezas, indiferença. Mas foi esse o caminho dos discípulos e amigos. Assim é também para nós que decidimos seguir-Te. Infunde em nós o teu Espírito de coragem e confiança. Amen.

    Contemplatio

    Depois do pecado original o homem citado ao tribunal de Deus viu-se condenado aos sofrimentos, ao trabalho, à dor, às doenças e à morte. É uma lei da natureza à qual ninguém escapa. Todo o homem, pelo facto mesmo de ser filho de Adão, sofre e morre. Tal é a pena indelével do pecado. Mas na sua misericórdia infinita, Deus quis conceder-nos um Redentor. O Verbo consentiu em fazer-se homem, para de novo nos tornar participantes da divindade. Então levanta-se este problema: Era necessário reconduzir o homem resgatado às alegrias do paraíso terrestre ou então fazer com que ele comprasse o céu com o sofrimento? A sabedoria divina deteve-se neste último modo; somente o sofrimento foi transformado. Antes era apenas uma punição, um castigo, torna-se desde então uma reparação, um meio de purificação e, como diz Tertuliano, o carro de triunfo que conduz os eleitos ao céu.
    A cruz do Salvador transformou os espinhos em rosas e as pedras ásperas dos sofrimentos em ouro e em diamante. O mistério da Redenção está todo aí.
    É necessário, diz S. Paulo, que unicamente nos glorifiquemos na cruz do Salvador. Só ela nos pode trazer a salvação, a vida e a ressurreição. É por isso que a Igreja exclama num transporte de amor: O crux, ave, spes única! Salve! Ó Cruz, nossa única esperança. Foi de facto sobre esta árvore que o Salvador pregou a nossa própria condenação, que Ele anulou no seu sangue e no seu amor. A cruz tornou-se amável, porque ela é redentora e fonte de graças (Leão Dehon, OSP 2, p. 344).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «O Filho do Homem é Senhor do sábado» (Lc 6, 5).

    | Fernando Fonseca, scj |

  • 23º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    23º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]


    8 de Setembro, 2024

    ANO B
    23.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 23.º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia do 23.º Domingo do Tempo Comum fala-nos de um Deus eternamente comprometido com a vida e a felicidade dos seus filhos. Ele está presente em cada pedaço do caminho que a humanidade vai percorrendo, orientando os seus filhos e filhas, apontando-lhes a direção que leva à Vida plena, à felicidade sem ocaso.

    Na primeira leitura, um profeta do tempo do Exílio na Babilónia garante aos exilados, desanimados, desiludidos e sem esperança, que Deus vai salvá-los e reconduzi-los à terra que tinham deixado para trás. Nas imagens dos cegos cujos olhos veem novamente a luz, dos surdos que voltam a ouvir, dos coxos que saltarão como veados e dos mudos a cantar com alegria, o profeta representa essa Vida nova, excessiva, abundante, transformadora, que Deus vai oferecer ao seu Povo.

    No Evangelho Jesus, cumprindo a promessa de Deus, abre os ouvidos e solta a língua de um surdo-mudo. Ele diz-nos, com esse gesto, que Deus não Se conforma quando vê o homem fechar-se no egoísmo e na autossuficiência, que só trazem sofrimento e infelicidade. Jesus propõe aos “surdos-mudos” que encontra, que abram o coração ao amor, partilha, à comunhão: esse é o caminho para o Homem novo, para o homem que vai em direção à Vida autêntica.

    A segunda leitura dirige-se àqueles que acolheram a proposta de Jesus e se comprometeram a segui-l’O no caminho do amor. Convida-os a não desvalorizar ou discriminar qualquer irmão e a acolher com especial bondade os pequenos, os pobres e os frágeis.

     

    LEITURA I – Isaías 35,4-7a

    Dizei aos corações perturbados:
    «Tende coragem, não temais.
    Aí está o vosso Deus;
    vem para fazer justiça e dar a recompensa;
    Ele próprio vem salvar-nos».
    Então se abrirão os olhos dos cegos
    e se desimpedirão os ouvidos dos surdos.
    Então o coxo saltará como um veado
    e a língua do mudo cantará de alegria.
    As águas brotarão no deserto
    e as torrentes na aridez da planície;
    a terra seca transformar-se-á em lago
    e a terra árida em nascentes de água.

     

    CONTEXTO

    Os capítulos 34-35 do Livro de Isaías constituem aquilo a que os biblistas chamam o “pequeno apocalipse de Isaías” (para distinguir do “grande apocalipse de Isaías”, que aparece nos capítulos 24-27). Descrevem o castigo definitivo das nações inimigas de Israel, particularmente de Edom, o povo nascido de Esaú, irmão de Jacob (capítulo 34), e a vitória definitiva do Povo de Deus sobre os inimigos (capítulo 35).

    Estes dois capítulos, pelos motivos e pela temática, parecem poder ser relacionados com os capítulos 40-55 do Livro de Isaías (cujo autor é o profeta designado por Deutero-Isaías, que atuou na Babilónia entre os exilados, na fase final do Exílio). Porque razão estes dois capítulos se apresentam separados do seu “ambiente natural” (Is 40-55)? Provavelmente, foram atraídos pelas peças escatológicas soltas de Is 28-33 (especialmente pelo capítulo 33).

    O autor destes dois capítulos escreve na fase final do exílio do Povo de Deus na Babilónia (por volta do ano 550 a.C.). A sua intenção é consolar os exilados, desanimados, frustrados e mergulhados no desespero, porque a libertação tarda e parece que Deus os abandonou (uma temática que será desenvolvida e aprofundada nos capítulos 40-55 do Livro de Isaías).

    Depois de apresentar o julgamento de Deus sobre as nações (cf. Is 34,1-4) e o castigo de Edom (cf. Is 34,5-15), o autor descreve, por contraste, a alegria do Povo de Deus porque chegou a hora da libertação. A própria terra (o Líbano glorioso, o belo monte Carmelo e a policromada planície do Saron) alegrar-se-á, vestir-se-á das suas melhores cores, encher-se-á de flores para celebrar a iniciativa salvadora de Deus e para acolher os exilados que regressam triunfalmente (cf. 35,1-2).

     

    MENSAGEM

    Depois de quase quarenta anos de cativeiro, o Povo de Deus, exilado na Babilónia, está paralisado e desencantado. Mostra-se abatido e incapaz de sair, por si só, da sua triste situação. Acha que Deus o abandonou e esqueceu. Não tem perspetivas de futuro e não vê razões para ter esperança.

    Mas o profeta, em nome de Deus, dirige-se aos exilados e anuncia-lhes a iminência da libertação. Esse anúncio provoca uma explosão de alegria: a natureza e as pessoas exultam jubilosas porque o Senhor Se apresta para salvar Judá do cativeiro e para abrir uma estrada no deserto, a fim de que o seu Povo possa retornar em triunfo a Jerusalém.

    Apesar das aparências, Deus não esqueceu o seu Povo. Judá deve recobrar ânimo e preparar-se para acolher o Senhor. O próprio Javé irá realizar a libertação; Ele fará justiça e recompensará o seu Povo por todos os sofrimentos suportados no tempo do cativeiro (vers. 4).

    O resultado da iniciativa salvadora e libertadora de Deus traduzir-se-á no despertar do Povo, paralisado e desanimado, para uma vida nova. O encontro com o Deus libertador e salvador transformará o Povo, dar-lhe-á de novo a liberdade, a alegria, a coragem para enfrentar o caminho, a Vida em abundância. Nas imagens dos cegos que voltam a contemplar a luz, dos surdos que voltam a ouvir, dos coxos que saltarão como veados e podem acompanhar o ritmo da caminhada, dos mudos a cantar com alegria (vers. 5-6), o profeta representa essa Vida nova, excessiva, abundante, transformadora, renovadora, que Deus vai oferecer a Judá.

    Por outro lado, o dom de Deus manifestar-se-á na própria natureza. O deserto desolado e estéril, que os exilados terão de atravessar na caminhada de regresso à sua terra, transformar-se-á numa terra fértil, com água em abundância e onde o Povo não terá dificuldade em saciar a sua fome e a sua sede. A abundância de água no deserto, de que o profeta fala, é um motivo tradicionalmente usado para mostrar a vontade de Deus em cumular o seu Povo de Vida plena e abundante.

    A marcha do Povo da terra da escravidão para a terra da liberdade será um novo êxodo, onde se repetirão as maravilhas operadas pelo Deus libertador aquando do primeiro êxodo; no entanto, este segundo êxodo será ainda mais grandioso, quanto à manifestação e à ação de Deus. Será uma peregrinação festiva, uma procissão solene, feita na alegria e na festa.

    Qual o papel e o lugar do Povo em tudo isto? Judá deve recobrar ânimo e acolher, com fé, com coragem, com confiança, os dons de Deus.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Para uns, o nosso tempo é um tempo fascinante, cheio de realizações, de descobertas, de conquistas, que abrem aos seres humanos possibilidades infinitas. Para outros, no entanto, o nosso tempo é um tempo assustador, marcado pelo sobreaquecimento do planeta, pela subida do nível do mar, pela destruição da camada do ozono, pela eliminação das florestas, pela poluição dos rios e mares, pelo espectro da fome e da miséria de biliões de seres humanos, pelas guerras cada vez mais violentas e destruidoras, pelo risco de holocausto nuclear… Para todos, é um tempo de desafios, de interpelações, de procura, de risco… Como é que nós nos relacionamos com este mundo? Vemo-lo com os olhos da esperança, ou com os óculos escuros do pessimismo?
    • Os crentes, seja qual for a avaliação que façam do mundo e das suas cores, não podem esquecer que “Deus está aí”: Ele preside à história humana, Ele conhece e acompanha a caminhada dos homens, Ele abraça a humanidade inteira com o seu carinho e a sua ternura de pai e de mãe. É Ele que faz com que o deserto se revista de vida nova e que na planície árida do desespero brote a flor da esperança; é Ele que ilumina o caminho para que não andemos aos tropeções, na escuridão; é Ele que desperta os surdos do seu isolamento e da sua autossuficiência e os convida a escutar os gritos de sofrimento dos pobres; é Ele que devolve aos coxos, presos por cadeias de opressão, de injustiça e de pecado, a possibilidade de serem livres. É com a certeza da presença salvadora e amorosa de Deus e com a convicção de que Ele não nos deixará abandonados nas mãos das forças da morte que somos convidados a caminhar pela vida e a enfrentar a história. Confiamos em Deus, na sua providência, na sua solicitude, no seu amor?
    • O profeta é o homem que rema contra a maré… Quando todos cruzam os braços e se afundam no desespero, o profeta é capaz de olhar para o futuro com os olhos de Deus e ver, para lá do horizonte do sol poente, um amanhã novo. Ele vai então gritar aos quatro ventos a esperança, fazer com que o desespero se transforme em alegria e que o imobilismo se transforme em luta empenhada por um mundo melhor. E nós, chamados a ser no mundo sinais vivos de Deus, somos profetas da desgraça, ou arautos e testemunhas da esperança?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 145 (146)

    Refrão 1: Ó minha alma, louva o Senhor.

    Refrão 2: Aleluia.

    O Senhor faz justiça aos oprimidos,
    dá pão aos que têm fome
    e a liberdade aos cativos.

    O Senhor ilumina os olhos dos cegos,
    o Senhor levanta os abatidos,
    o Senhor ama os justos.

    O Senhor protege os peregrinos,
    ampara o órfão e a viúva
    e entrava o caminho aos pecadores.

    O Senhor reina eternamente;
    o teu Deus, ó Sião,
    é rei por todas as gerações.

     

    LEITURA II – Tiago 2,1-5

    Meus irmãos:
    A fé em Nosso Senhor Jesus Cristo
    não deve admitir aceção de pessoas.
    Pode acontecer que na vossa assembleia
    entre um homem bem vestido e com anéis de ouro
    e entre também um pobre e mal vestido;
    talvez olheis para o homem bem vestido e lhe digais:
    «Tu, senta-te aqui em bom lugar»,
    e ao pobre: «Tu, fica aí de pé»,
    ou então: «Senta-te aí, abaixo do estrado dos meus pés».
    Não estareis a estabelecer distinções entre vós
    e a tornar-vos juízes com maus critérios?
    Escutai, meus caríssimos irmãos:
    Não escolheu Deus os pobres deste mundo
    para serem ricos na fé
    e herdeiros do reino que Ele prometeu àqueles que O amam?

     

    CONTEXTO

    O autor da “Carta de Tiago” apresenta-se a si próprio como “servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (Tg 1,1). A tradição identifica-o com o Tiago “irmão do Senhor”, figura de referência na comunidade cristã de Jerusalém (cf. At 12,17; 15,13-21; 21,18-25), que foi martirizado no ano 62. No entanto, é pouco provável que esse Tiago tenha sido o autor deste escrito. Também não parece provável que a carta tenha sido escrita por Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João (cf. Mc 1,19; 3,17), ou pelo outro Tiago, o “filho de Alfeu” (cf. Mc 3,18), que fazia parte do grupo dos Doze apóstolos.

    A carta é endereçada “às doze tribos da Dispersão” (Tg 1,1). Isso pode querer dizer que o documento se destinava a cristãos de origem judaica que viviam fora da Palestina; no entanto, as “doze tribos da Dispersão” também podem, em sentido figurado, ser as comunidades cristãs dispersas pelo mundo greco-romano.

    Seja como for, o autor desta carta é um escritor exímio, que se exprime muito bem na língua grega, apesar de usar diversos semitismos. Tem um vocabulário rico e utiliza recursos estilísticos de belo efeito.

    A Carta de Tiago não é um tratado de teologia. É, digamos assim, um conjunto de reflexões de um mestre cristão empenhado em propor, a partir da mensagem de Jesus, um caminho de vida cristã autêntica. Os discípulos de Jesus, destinatários da carta, são exortados a acolher a sabedoria que vem do alto e a deixar que ela os guie pelo caminho da fé e da vida.

    O texto que a liturgia deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum nos propõe como segunda leitura pertence à segunda parte da carta (cf. Tg 2,1-26), que reflete sobre a fé. De uma forma muito prática, este “sábio” cristão ensina que a fé se concretiza no amor ao próximo, sem qualquer tipo de discriminação ou de aceção de pessoas (cf. Tg 2,1-13); e que a fé se expressa, não através de ritos formais ou de palavras ocas, mas de ações concretas em favor do homem (cf. Tg 2,14-26). De acordo com o autor da Carta de Tiago, a fé dos crentes deve ser uma fé operativa, que se traduz num compromisso social e comunitário.

     

    MENSAGEM

    Jesus não fez qualquer aceção de pessoas, mas a todos acolheu e a todos amou igualmente, mesmo os pobres, os “últimos”, os marginalizados, os pecadores, os doentes, aqueles que ninguém queria e que a própria religião condenava e ostracizava. O mundo novo que Jesus propôs (o “Reino de Deus”) é um mundo onde todos têm lugar, sem exceção, e onde todos são filhos amados de Deus. Quem aderiu a Jesus Cristo e procura, com coerência, segui-l’O, tem de assumir os seus valores, os valores do Reino; por isso, não pode, no trato com as pessoas, deixar-se levar pelo favoritismo e a parcialidade, ou assumir qualquer tratamento discriminatório (vers. 1).

    Depois da afirmação de caráter geral, o autor da Carta de Tiago apresenta exemplos concretos: a comunidade cristã não pode acolher e tratar de forma diferente o rico e o pobre, aquele que se apresenta bem vestido e aquele que se apresenta mal vestido, aquele que é conhecido e famoso e aquele que é humilde e passa despercebido (vers. 2-3). Na comunidade cristã, todos são iguais e dignos de consideração e de respeito, ainda que desempenhem funções diferentes e serviços diversos. Para os seguidores de Jesus, a aceção de pessoas por razões ligadas à riqueza, ao poder, à fama, à posição social, é um esquema perverso, absolutamente incompatível com a fé em Cristo (vers. 4).

    O texto que a liturgia deste domingo nos propõe termina (embora a reflexão do autor da Carta de Tiago se prolongue ainda por mais alguns versículos) com uma pergunta que corta pela raiz qualquer razão para tratar com menos consideração os mais pequenos e frágeis: “não escolheu Deus os pobres deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do reino que Ele prometeu àqueles que O amam?” (vers. 5). No universo bíblico, os “pobres deste mundo” são, mais do que uma categoria sociológica, uma categoria religiosa. A expressão designa os humildes, os débeis, os pacíficos, aqueles que se apresentam diante de Deus numa atitude de simplicidade, despidos de qualquer atitude de orgulho, de autossuficiência, de preconceitos; são aqueles que, com humildade e disponibilidade, aceitam os dons de Deus e acolhem as suas propostas com alegria e gratidão. Perpassa por diversos textos bíblicos a sugestão de que esses “pobres” têm um lugar especial no coração de Deus. Em primeiro lugar, porque são os que mais necessitam de ser acolhidos, cuidados e salvos; em segundo lugar, porque são os mais disponíveis para acolher o dom do Reino. Não é que o Reino de Deus seja uma opção de classe e que os ricos e poderosos não possam, à partida, ter acesso ao Reino; mas os ricos, os poderosos, os instalados, com o coração cheio de orgulho e de autossuficiência, muitas vezes não estão disponíveis para acolher a novidade revolucionária e libertadora do Reino de Deus… São os “pobres”, na sua simplicidade, humildade e despojamento, na sua ânsia de libertação, que estão preparados para acolher o dom de Deus que se torna presente em Jesus e nos seu projeto.

     

    INTERPELAÇÕES

    • O autor da Carta de Tiago tem razão: a nossa fé em Cristo Jesus é incompatível com qualquer atitude que sugira a aceção de pessoas. Sabemos como Jesus viveu: Ele sentou-se à mesa com os desclassificados, acolheu os doentes, estendeu a mão aos leprosos, chamou um publicano para fazer parte do seu grupo de discípulos, disse que os pobres eram os filhos queridos de Deus, amou aqueles que a sociedade religiosa do tempo considerava amaldiçoados e condenados… Ora, a comunidade cristã é hoje, no meio do mundo, o rosto vivo de Cristo; por isso, deve ser a “casa de família” onde todos os filhos de Deus, sem exceção, se sentem acolhidos, queridos e amados. Isto é, naturalmente, uma evidência que ninguém contesta… Mas, na prática, todos são acolhidos na nossa comunidade cristã com respeito e amor? Na nossa comunidade cristã tratamos com a mesma delicadeza e com o mesmo respeito quem é rico e quem é pobre, quem tem uma posição social relevante e quem a não tem, quem tem um título universitário e quem é analfabeto, quem se dá bem com o padre e quem tem uma atitude crítica diante de certas opções dos responsáveis da comunidade?
    • Na nossa vida do dia a dia deparamo-nos, a cada passo – no nosso círculo de relações, no nosso universo profissional, no nosso prédio, talvez até na nossa família – com pessoas que têm ideias diferentes, das nossas, que têm comportamentos que reprovamos, que talvez levam vidas pouco recomendáveis, que vivem “fora da caixa” e não são social ou politicamente corretas… Como lidamos com as pessoas “diferentes”, com aqueles que a sociedade marcou, julgou e condenou? Somos, para todos e em todos os momentos, testemunhas daquele Jesus que nunca fez aceção de pessoas e que acolheu até aqueles que a sociedade julgava e condenava?
    • Deus tem uma relação privilegiada com os pobres. Isto não quer dizer, contudo, que Deus tenha uma opção de classe e que privilegie uns em detrimento de outros… Na verdade, Deus oferece o seu amor, a sua graça e a sua vida a todos; contudo, uns acolhem os seus dons e outros não… Os “pobres” são aqueles que, na sua simplicidade e humildade estão disponíveis para acolher os dons de Deus. Estamos conscientes de que temos de despir-nos do orgulho, da autossuficiência, dos preconceitos, das ostentações, das vaidades, para que nos nossos corações haja espaço para os desafios e as propostas de Deus?

     

    ALELUIA – cf. Mateus 4,23

    Aleluia. Aleluia.

    Jesus pregava o Evangelho do reino
    e curava todas as enfermidades entre o povo.

     

    EVANGELHO – Marcos 7,31-37

    Naquele tempo,
    Jesus deixou de novo a região de Tiro
    e, passando por Sidónia, veio para o mar da Galileia,
    atravessando o território da Decápole.
    Trouxeram-Lhe então um surdo que mal podia falar
    e suplicaram-Lhe que impusesse as mãos sobre ele.
    Jesus, afastando-Se com ele da multidão,
    meteu-lhe os dedos nos ouvidos
    e com saliva tocou-lhe a língua.
    Depois, erguendo os olhos ao Céu,
    suspirou e disse-lhe:
    «Effathá», que quer dizer «Abre-te».
    Imediatamente se abriram os ouvidos do homem,
    soltou-se-lhe a prisão da língua
    e começou a falar corretamente.
    Jesus recomendou que não contassem nada a ninguém.
    Mas, quanto mais lho recomendava,
    tanto mais intensamente eles o apregoavam.
    Cheios de assombro, diziam:
    «Tudo o que faz é admirável:
    faz que os surdos oiçam e que os mudos falem».

     

    CONTEXTO

    Na fase final da “etapa da Galileia”, multiplicam-se as reações negativas contra Jesus e contra o seu projeto, apesar do rasto de esperança que Ele vai deixando pelas aldeias e cidades por onde passa. As últimas discussões com os fariseus e com doutores da Lei a propósito de questões legais e da “tradição dos antigos” (cf. Mc 7,1-23) são uma espécie de gota de água que faz Jesus abandonar o território judeu e a passar, por algum tempo, ao território pagão.

    Marcos refere, neste contexto, uma viagem de Jesus pela Fenícia, que o leva até Tiro e Sídon, cidades da faixa costeira oriental do mar Mediterrâneo, no Líbano atual (cf. Mc 7,24). Aí teria curado a filha de uma mulher pagã, siro-fenícia de origem (cf. Mc 7,25-30). No regresso dessa incursão pela Fenícia, Jesus não teria vindo diretamente na direção do Mar da Galileia, mas teria dado uma longa volta pelo território pagão da Decápole (cf. Mc 7,31). O nome Decápole servia para designar uma liga de dez cidades (Damasco, Filadélfia, Rafana, Bet-Shean, Gadara, Hipos, Diom, Pela, Gerasa e Canata), que se formou depois da conquista da Palestina pelos romanos (ano 63 a.C.). Essas cidades situavam-se a oriente do Mar da Galileia e estavam sob a administração do legado romano da Síria. Eram centros de cultura grega, e cada uma delas tinha um certo grau de autonomia. Os judeus, por sua vez, viam a Decápole como um território pagão, completamente à margem dos caminhos da salvação.

    É nesse ambiente geográfico e humano que Marcos situa a cura, por Jesus, de um homem surdo-mudo. Provavelmente o catequista Marcos está a sugerir, com este enquadramento, que o anúncio do Evangelho aos pagãos – que alguns anos mais tarde, após o Concílio de Jerusalém, vem a ser uma aposta firme da comunidade cristã – foi algo que estava já nos planos e na prática de Jesus.

     

    MENSAGEM

    Algures no território pagão da Decápole, trouxeram a Jesus “um surdo que mal podia falar e suplicaram-Lhe que impusesse as mãos sobre ele” (vers. 32). Na base do relato de Marcos estará, certamente, o encontro de Jesus com esse homem e os gestos (alguns bem estranhos) que Jesus fez para o curar; mas Marcos, ao descrever-nos esse encontro, vai um pouco mais além e propõe-nos uma catequese sobre a missão que Jesus recebeu do Pai. O que nos interessa, além do facto em si, é perceber como é que Marcos entendeu a ação curadora de Jesus em favor daquele homem e os diversos gestos que a acompanharam.

    No centro da cena está o homem surdo-mudo. Se a linguagem é um meio privilegiado de comunicar, de estabelecer relação, o surdo-mudo é um homem que tem dificuldade em estabelecer laços, em dialogar com as outras pessoas, em viver em comunhão, em abrir-se à relação. Por outro lado, num universo religioso que considera as enfermidades físicas como consequência do pecado, o surdo-mudo é, de forma notória, um “impuro”, um pecador e um maldito: um problema físico que impedisse o homem de escutar a Lei era considerado um especial castigo de Deus. Finalmente, o surdo-mudo vive no território pagão da Decápole: é, portanto, um desses pagãos que, segundo a teologia oficial judaica, não podem contar com a salvação de Deus.

    Na reflexão que Marcos entendeu propor-nos, este surdo-mudo representa todos aqueles que vivem fechados no seu mundo, na sua pobre autossuficiência, de ouvidos fechados às propostas de Deus e de coração fechado à relação com os outros homens. Representa também aqueles que a teologia oficial considerava pecadores e malditos, incapazes de estabelecer uma relação verdadeira com Deus, de escutar a Palavra de Deus e de viver de forma coerente com os desafios de Deus. Representa ainda esses “pagãos” que os judeus desprezavam e que consideravam completamente alheados dos caminhos da salvação.

    Aquele surdo-mudo vem ao encontro de Jesus trazido por pessoas não identificadas. Aparentemente, a iniciativa de se encontrar com Jesus não é dele (“trouxeram-Lhe um surdo que mal podia falar” – vers. 32). O surdo-mudo, fechado em si próprio, acomodado a essa vida sem relação, instalado na sua autossuficiência, não sente necessidade de abrir o coração à comunhão com Deus e com os irmãos. É preciso que alguém o traga, que o apresente a Jesus, que o empurre para essa Vida nova de amor e de comunhão que ele não conhece e que não procura. Marcos estará aqui a tentar dizer-nos, com toda a certeza, que esse é o papel da comunidade cristã: os que já descobriram Jesus, que O escutaram, que se deixaram transformar pela sua Palavra, que aceitaram segui-l’O, devem dar testemunho dessa experiência e desafiar outros irmãos para o encontro libertador com Jesus.

    Frente a frente com o homem, Jesus dispõe-se a libertá-lo da sua triste situação. O primeiro gesto de Jesus é tomar o homem à parte, afastando-o da multidão. Depois, mete-lhe os dedos nos ouvidos e faz saliva com a qual lhe toca a língua (vers. 33). Trata-se, segundo alguns comentadores, de gestos que os curandeiros da época costumavam fazer em circunstâncias semelhantes para inspirar ao doente a certeza do seu poder curador. No entanto, é provável que Marcos relacione estes gestos com os relatos de criação do livro do Génesis: o afastamento da multidão poderia estar a sugerir (como em Gn 2,21) que o prodigioso “criar” de Deus é um processo exclusivamente divino, que não tolera espetadores; o tocar os ouvidos do surdo lembra a modelação do homem, por Deus, a partir do barro da terra (cf. Gn 2,7); o pôr saliva na língua do mudo lembra o sopro de vida de Deus (cf. Gn 2,7), que transformou o barro inerte do primeiro homem num ser dotado de vida divina. Sendo assim, Marcos convida-nos a ler o episódio em chave de criação: a missão que Jesus recebeu do Pai é fazer nascer um Homem novo, dotado da energia vital do próprio Jesus (saliva), aberto à comunhão com Deus e à relação com os outros homens e mulheres.

    Para completar a criação desse Homem novo, diz Marcos, Jesus ergueu “os olhos ao Céu, suspirou e disse: «effathá», que quer dizer «abre-te»” (vers. 34). O gesto de levantar os olhos ao céu deve ser entendido como uma invocação de Deus: Jesus, ao criar um Homem novo, age em nome de Deus e por mandato de Deus; o que Ele acabou de fazer tem o aval do Pai e insere-se no projeto salvador que o Pai tem para os homens. A palavra “effathá” (“abre-te”), dita por Jesus, dirige-se mais ao coração do que aos ouvidos daquele homem. Não é uma palavra mágica, com especiais virtudes curativas; mas é um convite ao homem fechado no seu mundo pessoal a abrir o coração à Vida nova da relação com Deus e com os irmãos; é um convite ao surdo-mudo a sair do seu fechamento, do seu comodismo, do seu egoísmo, da sua instalação, para fazer da sua vida uma história de comunhão com Deus e de partilha com os irmãos. O processo de transformação do homem velho num Homem novo não é um processo em que só Jesus age e onde o homem assume uma atitude de passividade; mas é um processo que exige o compromisso ativo e livre do homem. Jesus faz as propostas, lança desafios, oferece o seu Espírito que transforma e renova o coração do homem; mas o homem tem de acolher a proposta, optar por Jesus e abrir o coração aos desafios de Deus.

    A ação de Jesus e a sua palavra poderosa e convincente fazem com que aquele homem se disponha a sair da prisão em que estava encerrado: “imediatamente se abriram os ouvidos do homem, soltou-se-lhe a prisão da língua e começou a falar corretamente” (vers. 35). O episódio lembra-nos imediatamente o anúncio de Isaías na primeira leitura: “Tende coragem, não temais. Aí está o vosso Deus; vem para fazer justiça e dar a recompensa; Ele próprio vem salvar-nos. Então se abrirão os olhos dos cegos e se desimpedirão os ouvidos dos surdos. Então o coxo saltará como um veado e a língua do mudo cantará de alegria” (Is 35,4-6). Jesus é efetivamente o Deus que veio ao encontro dos homens, a fim de os libertar das cadeias do egoísmo, do comodismo, da autossuficiência, dos preconceitos religiosos que impedem a relação, o diálogo, a comunhão com Deus e com os irmãos. Em Jesus, as promessas de Deus concretizam-se plenamente.

    No final do relato da cura do surdo-mudo, as testemunhas do acontecimento dizem a propósito de Jesus: “tudo o que Ele faz é admirável” (vers. 37). A expressão parece ser um eco de Gn 1,31 (“Deus, vendo a sua obra, considerou-a muito boa”). Mas poderia ser, também, a profissão de fé de uma comunidade agradecida que reconhece e agradece a ação maravilhosa de Jesus, a feliz concretização da sua obra criadora e vivificadora.

     

    INTERPELAÇÕES

    • A “surdez” e a “mudez” que atacam os seres humanos não estavam no plano original de Deus para a humanidade. Deus criou o ser humano para a relação, para o diálogo, para a comunhão (“não é conveniente que o homem esteja só” – disse Deus no início de tudo – cf. Gn 2,18). A “surdez” e a “mudez” que nos paralisam e nos tornam infelizes não vêm de Deus, mas são consequência das escolhas erradas feitas pelo homem. Contudo, Deus nunca se conformou com essa opção que priva os seres humanos de Vida verdadeira. Para nos curar da nossa “surdez” e da nossa “mudez”, enviou-nos o seu Filho, a sua “Palavra eterna”. Cumprindo a missão que o Pai Lhe entregou, Jesus convidou-nos insistentemente a superar o egoísmo, a autossuficiência, o isolamento, e a abrir o coração à comunhão, à partilha, ao amor (“effathá”, “abre-te”). Estamos disponíveis para nos encontrar com Jesus, para acolher o desafio que Ele nos veio propor, para assumir os valores do Reino de Deus, para O seguir até à cruz, até ao dom da vida por amor? Estamos convictos de que escolher viver na “surdez” e na “mudez” é uma opção estúpida, que impede a nossa realização plena, a nossa felicidade?
    • O “surdo-mudo”, incapaz de escutar a Palavra de Deus, pode perfeitamente representar aqueles homens e mulheres que vivem fechados aos projetos e aos desafios de Deus, que não têm espaço nem disponibilidade para Deus e para as suas propostas. Essa é, aliás, uma das “doenças” mais significativas do nosso tempo. O que carateriza o séc. XXI não é o ateísmo; mas é a indiferença em relação a Deus. Muitos dos nossos contemporâneos optam por permanecer surdos a Deus e às suas indicações; o que Deus diz e propõe não lhes interessa. O que é que as propostas de Deus significam para nós? Damos ouvidos aos apelos e desafios de Deus, ou aos valores e propostas que o mundo nos apresenta?
    • O “surdo-mudo” pode também ser figura daqueles que não se preocupam em comunicar, em escutar e acolher os outros, em partilhar a vida, em deixar-se questionar pelas achegas e sugestões dos irmãos… Os “surdos-mudos” são que não precisam dos irmãos para nada, que vivem instalados nas suas certezas e nos seus preconceitos, convencidos de que são donos absolutos da verdade; são aqueles que não têm tempo nem disponibilidade para ouvir os outros com paciência e compaixão, que não conseguem compreender os erros e as falhas dos outros e não sabem perdoar… Uma vida de “surdez” é uma vida vazia, estéril, triste, egoísta, fechada, sem amor. Temos consciência de que nesse caminho nunca encontraremos a nossa realização e a nossa felicidade?
    • O “surdo-mudo” representa ainda aqueles que se fecham no egoísmo e no comodismo e ficam indiferentes aos apelos do mundo… Somos “surdos-mudos” quando escutamos os gritos dos injustiçados e lavamos as nossas mãos; somos “surdos-mudos” quando toleramos estruturas que geram injustiça, miséria, sofrimento e morte; somos “surdos-mudos” quando pactuamos com valores que tornam o homem mais escravo e mais dependente; somos “surdos-mudos” quando encolhemos os ombros, indiferentes, face à guerra, à fome, à injustiça, à doença, ao analfabetismo; somos “surdos-mudos” quando nos demitimos das nossas responsabilidades e deixamos que sejam os outros a comprometer-se e a arriscar; somos “surdos-mudos” quando calamos a nossa revolta por medo, cobardia ou calculismo; somos “surdos-mudos” quando nos resignamos a vegetar no nosso espaço de conforto, sem nos empenharmos na construção de um mundo novo… Uma vida comodamente instalada nesta “surdez-mudez” descomprometida é uma vida que vale a pena ser vivida?
    • O “surdo-mudo” de que o Evangelho deste vigésimo terceiro domingo comum nos fala foi trazido e apresentado a Jesus por outras pessoas. Isto deve fazer-nos pensar na nossa obrigação de fazer a ponte entre os irmãos que vivem prisioneiros da “surdez-mudez” e a proposta libertadora de Jesus. Poderemos ficar de braços cruzados quando algum dos nossos irmãos se instala em esquemas de fechamento, de egoísmo, de autossuficiência, e renuncia assim à possibilidade de construir uma vida com sentido? O que poderemos fazer – respeitando sempre as opções e a liberdade de cada um – para que os “surdos-mudos” que encontramos nos caminhos da vida descubram a alegria do encontro, da comunhão, da partilha, do serviço, do amor?
    • Antes de curar o “surdo-mudo”, Jesus “ergueu os olhos ao céu”. O gesto de Jesus recorda-nos que é preciso manter sempre, no meio da ação, a referência a Deus. Não conseguiremos ser arautos de uma nova humanidade – de uma humanidade liberta do egoísmo e da autossuficiência – se não nos mantivermos conectados com Deus, em diálogo com Deus, atentos aos projetos e desafios de Deus, fortalecidos pelo Espírito de Deus. Deus é a nossa referência, a razão última de tudo aquilo que fazemos? Procuramos encontrar tempo para o escutar, para lhe colocar as nossas dúvidas e questões, para falar com Ele e para entender os seus caminhos e projetos? Quando tentamos fazer alguma coisa em favor de alguém, sentimos que agimos em nome de Deus e não em nome de nós próprios ou dos nossos projetos e interesses?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 23.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 23.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.

    Marcos é um verdadeiro encenador. Ele faz a decoração em pleno território de Decápole, habitado pelos pagãos. Coloca em primeiro plano da cena duas personagens: Jesus e o surdo-mudo, enquanto a multidão fica em segundo plano. O ator principal, Jesus, só pronuncia uma palavra: “Effata!” (Abre-te) e faz três gestos: mete o dedo nos ouvidos do doente, toca-lhe a língua com a sua própria saliva e levanta os olhos para o céu. A segunda personagem deixa-se levar, pois põe-se a falar corretamente. Jesus vira-se para a multidão, pedindo-lhe para não dizer nada do que se tinha passado. A cena termina com um coro unânime: “Tudo o que faz é admirável: faz que os surdos oiçam e que os mudos falem”. E nós, onde nos vamos situar? Nós somos este surdo-mudo doente, recusando por vezes escutar a Palavra de Deus e não ousando anunciá-la. Então, Jesus dirige-Se a nós, faz-nos sinal, pede-nos para nos abrirmos nós mesmos, como tinha pedido ao paralítico para se levantar. Cada Eucaristia é uma passagem de Cristo ressuscitado: deixemo-nos tocar por Ele para nos abrirmos…

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.

    “Effata!” “Abre-te!” Esta palavra tão simples é na realidade muito perigosa. Como diz o dicionário, abrir é fazer com que o que está fechado não o fique mais. Óbvio, mas cheio de consequências! Os Judeus de Jerusalém tinham consciência de serem o Povo eleito por Deus, posto à parte pelos outros povos. Nem pensar misturar-se aos outros povos, aos pagãos, aos estrangeiros! E eis que Jesus faz o contrário. Sai das fronteiras de Israel, vai junto dos pagãos, fazendo mesmo milagres em seu favor. É o mundo ao contrário! Ele não teme mesmo ter contacto físico com este surdo-mudo, impuro aos olhos dos Judeus fiéis. Antes de abrir os ouvidos do infeliz, é Jesus que Se abre aos estrangeiros, tornando-Se um impuro aos olhos dos Judeus. Evidentemente, é muito arriscado, ainda hoje, abrir a sua porta, mas primeiro o seu coração aos estrangeiros. Porque é preciso olhá-los ultrapassando os preconceitos, aceitando outras maneiras de pensar e de viver. Aquele que segue Jesus não pode esquivar-se à interrogação: E eu, onde estou quanto à minha abertura de coração? Jesus quer sempre vir até mim, tocar os meus ouvidos para que eu ouça melhor o grito dos meus irmãos em angústia, tocar os meus olhos para que procure encontrar o olhar de Deus sobre os outros. A um visitante que lhe perguntava para que servia um concílio, João XXIII respondeu: ” o concílio é a janela aberta. Ou ainda, é tirar a poeira e varrer a casa, e pôr flores e abrir a porta dizendo a todos: Vinde e vede, aqui é a casa do bom Deus!” Na manhã de Páscoa, já houve uma abertura, quando a pedra que fechava o túmulo de Jesus foi retirada. E antes ainda, tinha havido já uma abertura, quando o soldado romano tinha aberto o lado de Jesus com um golpe de lança. Estas duas aberturas nunca foram fechadas. Participando em cada Eucaristia, vimos beber a água e o sangue que brotam para que o grito de Jesus seja eficaz também em nós: “Effata!” “Abre-te!”

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    Um tempo de meditação… Para nos impregnarmos daquilo que o Senhor deseja para nós, tomemos o tempo para rezar e meditar estas simples palavras de Cristo: “Abre-te”. O Salmo 145 pode ajudar-nos. Por este tempo de meditação, ou com a ajuda de um acompanhador espiritual, procuremos descobrir o que impede ainda em nós a verdadeira libertação oferecida pelo Senhor.

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

    Natividade da Virgem Santa Maria

    Natividade da Virgem Santa Maria


    8 de Setembro, 2024

    A memória litúrgica da Natividade de Nossa Senhora remonta ao século V, quando foi edificada em Jerusalém uma igreja, num sítio que os Apócrifos indicavam como lugar da casa de Joaquim e de Ana, pais da mãe de Jesus. São desconhecidas as razões da data de 8 de Setembro. A Igreja Oriental soleniza a natividade de Maria como início do ano litúrgico; no Ocidente (a partir de Roma) as primeiras celebrações surgem no século VII.

    Lectio

    Primeira leitura: Romanos, 8, 28-30

    Irmãos: Nós sabemos que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados, de acordo com o seu desígnio. 29Porque àqueles que Ele de antemão conheceu, também os predestinou para serem uma imagem idêntica à do seu Filho, de tal modo que Ele é o primogénito de muitos irmãos. 30E àqueles que predestinou, também os chamou; e àqueles que chamou, também os justificou; e àqueles que justificou, também os glorificou.

    S. Paulo manifesta neste texto uma fé assimilada e madura, com a preocupação de que todos acolham a mensagem, se convençam e se alegrem com ela. O Apóstolo apresenta tudo num quadro trinitário: o Espírito acompanha e ensina (vv. 26ss), Cristo consolida a comunhão no amor (vv. 31-39), Deus Pai mantém o projeto eterno de manifestar a sua paternidade divina dando aos homens a graça da filiação e da fraternidade com Cristo, primogénito de muitos irmãos.
    O núcleo da mensagem está num anúncio de fé: há um nascimento como dom do amor de Deus, um acompanhamento da vida nova, uma realização na partilha da glória.

    Evangelho: Mateus, 1, 1-16.18-23

    Genealogia de Jesus Cristo, filho de David, filho de Abraão: 2Abraão gerou Isaac;Isaac gerou Jacob; Jacob gerou Judá e seus irmãos; 3Judá gerou, de Tamar, Peres e Zera; Peres gerou Hesron; Hesron gerou Rame; 4Rame gerou Aminadab; Aminadab gerou Nachon; Nachon gerou Salmon; 5Salmon gerou, de Raab, Booz; Booz gerou, de Rute, Obed; Obed gerou Jessé;6Jessé gerou o rei David. David, da mulher de Urias, gerou Salomão; 7Salomão gerou Roboão; Roboão gerou Abias; Abias gerou Asa; 8Asa gerou Josafat; Josafat gerou Jorão; Jorão gerou Uzias; 9Uzias gerou Jotam; Jotam gerou Acaz;
    Acaz gerou Ezequias; 10Ezequias gerou Manassés; Manassés gerou Amon; Amon gerou Josias; 11Josias gerou Jeconias e seus irmãos, na época da deportação para Babilónia.12Depois da deportação para Babilónia, Jeconias gerou Salatiel; Salatiel gerou Zorobabel;13Zorobabel gerou Abiud. Abiud gerou Eliaquim; Eliaquim gerou Azur; 14Azur gerou Sadoc; Sadoc gerou Aquim; Aquim gerou Eliud; 15Eliud gerou Eleázar; Eleázar gerou Matan; Matan gerou Jacob. 16Jacob gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo.18Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava desposada com José; antes de coabitarem, notou-se que tinha concebido pelo poder do Espírito Santo.19José, seu esposo, que era um homem justo e não queria difamá-la, resolveu deixá-la secretamente.20Andando ele a pensar nisto, eis que o anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: «José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo. 21Ela dará à luz um filho, ao qual darás o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo dos seus pecados.» 22Tudo isto aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito pelo profeta: 23Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho; e hão-de chamá-lo Emanuel, que quer dizer: Deus connosco.

    Mateus começa o seu evangelho apresentando a genealogia de Jesus, uma espécie de ladainha de nascimentos. Todos os antepassados foram, de algum modo, protagonistas de uma etapa da história; no nascimento e na aventura humana de muitos foi determinante a intervenção de Deus.
    No final da lista, o evangelista coloca José, esposo de Maria «da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo» (v. 16). Com S. José não houve presença mas apenas vizinhança ou contiguidade no evento da Encarnação, revelado como mistério esponsal entre a Virgem e o Espírito Santo. O mistério também foi anunciado a José. Também ele amadureceu na fé a compreensão do nascimento d´Aquele que foi gerado em Maria sua esposa pelo Espírito Santo e destinado a salvar o povo dos seus pecados (v. 21). José secunda a palavra divina, obediente, silencioso, ativo.

    Meditatio

    A festa da Natividade de Maria, aurora da nossa salvação, oferece-nos importantes elementos de meditação. São os evangelhos apócrifos que narram o nascimento da Mãe do Salvador, com emocionantes e inverosímeis fantasias, que podem ser vistas como simbologias e interpretações. A Bíblia não nos dá informações sobre o nascimento de Maria. Mas ele foi uma realidade importante na prossecução do projeto divino da nossa salvação. Daí que valha a pena meditar sobre esse acontecimento à luz da fé em Deus que, na sua misericórdia, quis salvar os homens com a colaboração de Maria, nova criatura, cuja entrada no mundo hoje celebramos.
    Para nos darmos conta da importância do nascimento de Maria, devemos ter em conta que o seu protagonista é Deus. As fantasias dos apócrifos indiciam fé nesse protagonismo. A Liturgia aponta para a presença e o protagonismo de Deus no nascimento e na vida de Maria. O oráculo de Miqueias (1ª leitura alternativa da festa) tem em vista a maternidade, isto é, a fonte de um nascimento, projetado por Deus: a citação desse oráculo em Mt 2, 6 regista uma convicção messiânica do evangelista traduzida em convicção cristológica e contextualmente mariológica. A releitura de um outro oráculo (Is 7, 14) pelo mesmo evangelista vê na Virgem que dá à luz, a mãe designada pelo próprio Deus e envolta no abismo místico da comunhão com o Espírito Santo, o «Senhor que dá a vida». A importância do nascimento da Virgem também se deduz pela verificação da sua presença entre aqueles que foram chamados por Deus conforme o seu desígnio, desde sempre conhecidos, predestinados, justificados (a singular redenção antecipada da Imaculada), glorificados.
    Esta festa é uma excelente ocasião para crescermos no amor e na devoção à Virgem Maria, Mãe de Deus e nossa mãe. Escreve o Pe. Dehon: «Nesta festa, quero renovar-me na devoção a Maria, na fidelidade ao seu culto diário, na união com ela, como meio para me elevar a uma união mais íntima com Jesus, em todas as minhas ações» (OSP 4, p. 234).

    Oratio

    Salve santa Maria, filha do Deus da vida, criatura nascida na alegria, cofre da graça plasmado pelo Espírito. Ó Mãe d´Aquele que vive, canta mais uma vez, por nós, o louvor do Omnipotente, e guia a nossa gratidão por cada vida que nasce e cresce à nossa volta. Mulher escolhida desde sempre para abrir a vida ao Filho do homem, ao vencedor da morte na sua ressurreição, acompanha-nos no caminho e nas paragens da existência. Virgem solitária, presença amorosa e serviçal na nossa história, acolhe a oração dos teus servos. Ámen.

    Contemplatio

    Que alegria no céu! Que cânticos de alegria entre os anjos quando Maria nasceu! Informados pela mensagem do Arcanjo Gabriel, sabiam que era a aurora da salvação dos homens. Maria ocupa um importante lugar nas promessas, nas figuras, na redenção! Ela é como que a aurora que precede o sol, como a lua que reflete os raios do astro-rei. É a nova Eva, a mãe espiritual dos homens, é Judite que será vitoriosa sobre o inimigo do povo de Deus. É Ester que alcançará misericórdia para o seu povo. É a esposa dos cantares, cuja poesia sagrada cantou a união com Jesus. Foi ela que Adão entreviu quando Deus lhe disse que uma mulher esmagaria a cabeça da serpente. Deus tinha-a em vista quando prometia a Abraão, aos patriarcas, a David, que o Salvador brotaria da sua estirpe. Ela é o tronco de Jessé que havia de dar a flor escolhida, conforme a profecia de Isaías. (Leão Dehon, OSP 4, p. 232s.).

    Actio

    Repete hoje a antífona:
    «Bendita e venerável sois,
    ó Virgem Maria Santa Mãe de Deus» (da Liturgia).

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    Natividade da Virgem Santa Maria (08 Setembro)

  • XXIII Semana - Segunda-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXIII Semana - Segunda-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    9 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXIII Semana - Segunda-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 1 Coríntios 5, 1-8
    Irmãos: 1ouve-se dizer por toda a parte que existe entre vós um caso de imoralidade, e uma imoralidade como não se encontra nem mesmo entre os pagãos: um de vós vive com a mulher de seu pai. 2E continuais cheios de orgulho, em vez de andardes de luto, a fim de que seja retirado do meio de vós o autor de tal acção. 3Quanto a mim, ausente de corpo mas presente em espírito, já julguei, como se estivesse presente, aquele que assim procedeu: 4em nome do Senhor Jesus e com o seu poder, por ocasião de uma assembleia onde eu estarei presente em espírito, que 5tal homem seja entregue a Satanás para mortificação da sua carne, a fim de que o seu espírito seja salvo no Dia do Senhor. 6Não é digno o vosso motivo de orgulho! Não sabeis que um pouco de fermento faz levedar toda a massa? 7Purificai-vos do velho fermento, para serdes uma nova massa, já que sois pães ázimos. Pois Cristo, nossa Páscoa, foi imolado. 8Celebremos, pois, a festa, não com o fermento velho, nem com o fermento da malícia e da corrupção, mas com os ázimos da pureza e da verdade.
    A primeira carta de S. Paulo aos Coríntios pode ser considerada um conjunto de respostas a questões levantadas por essa comunidade. Para dar uma resposta unificada a essas questões, o Apóstolo apela para o núcleo da fé cristã, o mistério pascal de Jesus.
    O texto de hoje trata de um caso de imoralidade que não pode passar em claro. Um cristão de Corinto tinha cometido um grave pecado de incesto unindo-se com a «mulher de seu pai», provavelmente já viúva. A comunidade não o tinha expulsado do seu seio, correndo o grave risco de corrupção interna, e com escândalo dos próprios pagãos, uma vez que as leis romanas proibiam essas uniões conjugais. O que mais impressiona é que Paulo, em vez de amontoar proibições e recomendações mais ou menos paternalistas, apela para o evento pascal que, tendo caracterizado a vida de Jesus, deve também caracterizar a vida de todos os cristãos e a das respectivas comunidades: «Purificai-vos do velho fermento, para serdes uma nova massa, já que sois pães ázimos» (v. 7). A imagem é de fácil compreensão: temos diante de nós o binómio «velho/novo». Com ele, Paulo quer afastar, não só uma certa preguiça espiritual, mas também e sobretudo a adesão estática e nostálgica àquilo que foi definitivamente ultrapassado com a vinda de Cristo. Não se pode ficar parados, nem os cristãos, nem as comunidades. Há que acertar o passo com Jesus Cristo.
    «Pois Cristo, nossa Páscoa, foi imolado. Celebremos a festa» (v. 7b-8): é a motivação pascal oferecida por Paulo a uma comunidade que deve viver a fé em termos de alegre novidade, em novidade de vida, esquecendo o que está para trás.
    Evangelho: Lucas 6, 6-11
    Naquele tempo, Jesus 6entrou na sinagoga a um sábado e começou a ensinar. Encontrava-se ali um homem cuja mão direita estava paralisada. 7Os doutores da Lei e os fariseus observavam-no, a ver se iria curá-lo ao sábado, para terem um motivo de acusação contra Ele. 8Conhecendo os seus pensamentos, Jesus disse ao homem da mão paralisada: «Levanta-te e põe-te de pé, aí no meio.» Ele levantou-se e ficou de pé. 9Disse-lhes Jesus: «Vou fazer-vos uma pergunta: O que é preferível, ao sábado: fazer bem ou fazer mal, salvar uma vida ou perdê-la?» 10Então, olhando-os a todos em volta, disse ao homem: «Estende a tua mão.» Ele estendeu-a, e a mão ficou sã. 11Os outros encheram-se de furor e falavam entre si do que poderiam fazer contra Jesus.
    Lucas volta à polémica sobre o sábado. A ocasião é-lhe proporcionada por um milagre de Jesus em favor de um homem paralítico, que desencadeia críticas dos seus adversários. O choque é ainda mais forte do que fora quando os discípulos colheram e comeram espigas de trigo, ao sábado. Uma certa mentalidade farisaica queria, não só parar os discípulos de Jesus, mas também pôr fim à actividade taumatúrgica do seu Mestre. Jesus não pode aceitar a pretensão dos escribas e fariseus, e aponta-lhes, não só o criticismo, mas também a perversidade. Jesus lê o coração do homem: daquele que o escuta e segue, mas também daquele que O espia e quer apanhar em falso...
    Realizado o milagre, Jesus enfrenta os adversários colocando a questão do seguinte modo: «O que é preferível, ao sábado: fazer bem ou fazer mal, salvar uma vida ou perdê¬ la?» (v. 9). Jesus está tão seguro da sua certeza que nem espera a resposta. Cura o doente, e desencadeia uma reacção de fúria contra Si. A intolerância e a violência dos adversários levam Jesus à morte espiritual, ainda antes da morte física.

    Meditatio
    Os cristãos correm o risco de se deixar iludir. Os da comunidade de Corinto pensavam ter atingido o cume da perfeição e orgulhavam-se disso, não se dando conta de que havia entre eles «uma imoralidade como não se encontra nem mesmo entre os pagãos» (v. 1). Havia, pois, temas a esclarecer, nomeadamente no que se refere à liberdade humana. Até que ponto obriga a própria lei divina? Todas as leis valem o mesmo? Há espaço para interpretações libertadoras? Como harmonizar no dia a dia autoridade e liberdade, norma escrita e autodeterminação? As páginas evangélicas sobre a observância do sábado oferecem-nos alguns raios de luz.
    Toda a lei quer ser considerada com dom de Deus ao seu povo, e a todo o homem e mulher que queira dar ouvidos à Palavra, portadora de vida. Se conseguirmos considerar a lei, toda a lei, como dom, teremos diante de nós um caminho de liberdade genuína, autêntica. A lei, toda a lei, é-nos oferecida como luz para os nossos passos, como lâmpada para o nosso caminho. Devemos confessar que precisamos de uma luz capaz de iluminar mesmo o mais recôndito da nossa vida, capaz de orientar as nossas opções no devir da história.
    A lei, toda a lei, é-nos oferecida como pedagogo, isto, como instituição capaz de nos educar no exercício da liberdade: a liberdade psicológica, pela qual afirmamos a nossa dignidade diante de toda a tentativa de instrumentalização; a liberdade evangélica, pela qual reconhecemos o primado de Deus e a prioridade de Cristo em todas as nossas opções.
    «Cristo...pela sua morte e ressurreição, abriu-nos ao dom do Espírito e à liberdade dos Filhos de Deus (cf. Rom 8,21). Ele é para nós o Primeiro e o Último, Aquele que vive (cf. Apoc 1,17-18)» (Cst 11). O Espírito de Cristo é um Espírito de amor e "onde está o Espírito há liberdade" (2 Cor 3, 17). Os preciosos frutos do Espírito (cf. Gal 5, 22) tornam o homem verdadeiramente livre, inclusivamente de si mesmo, pe
    lo "auto-domínio", quando, nos seus pensamentos, desejos, afectos, palavras, acções não se deixa guiar pelo seu eu, pelo egoísmo, mas pelo Espírito de Deus.

    Oratio
    Senhor Jesus, ver-Te actuar segundo a lei do amor, mesmo na certeza de que os teus adversários iriam reagir negativamente, é para mim uma lufada de ar fresco! Que alegria observar a tua certeza, apoiada apenas no teu amor libertador, em contraste com a mesquinhez dos fariseus, apenas preocupados em mostrar a sua impecável observância! Que luz perceber uma nova lei que respeita a liberdade, uma autoridade solícita em promover a responsabilidade dos outros! Que conforto ver Paulo sacudir a comunidade de Corinto, para que substitua o velho fermento pelo novo, o da sinceridade e da verdade!
    Ó Senhor, liberta-nos da cegueira dos fariseus que, por amor da lei, chegaram a matar-te e, em defesa das suas tradições não tinha escrúpulos em espezinhar o próximo. Amen.

    Contemplatio
    Deus conhece-se, ama-se, goza a perfeição das suas perfeições infinitas, nada lhe falta, não tem necessidade de nenhum ser fora dele. Mas como a bondade é difusiva por natureza, Deus quis expandir-se para fora pela efusão da sua bondade. As criaturas inanimadas são como que o vestígio do seu Ser. As criaturas dotadas apenas da vida vegetal ou animal já são um reflexo da vida divina. Mas, só as criaturas inteligentes, os anjos e os homens, são verdadeiramente a imagem e a semelhança de Deus. Pela sua vida, inteligência e vontade, o homem é a imagem da santa Trindade; cada uma das três pessoas divinas imprimiu na sua alma o seu traço característico; vivendo, a nossa alma reproduz a vida divina e o poder do Pai; sendo inteligente, ela imita a inteligência do Verbo; amando, ela exprime o amor do Espírito Santo. O homem tem semelhança com família com Deus.
    Deus é espírito; a nossa alma é espírito. - Deus é um na natureza e triplo nas pessoas; a nossa alma é una segundo a natureza e múltipla nas suas faculdades. - Deus é eterno; o homem é imortal. - Deus é livre; o homem é livre. Por esta liberdade, nós merecemos o céu; e por isso Deus comunica-nos, na medida do possível, a mais incomunicável das suas perfeições, a sua qualidade de ser e de ter por si mesmo tudo o que Ele é e tudo o que tem.
    Deus colocou todas as criaturas ao nosso serviço, mas fez ainda mais ao nos dar a sua própria semelhança e ao se nos dar a si mesmo, para fazer a nossa felicidade pelo seu conhecimento e pelo seu amor. Porque as nossas faculdades naturais, a nossa inteligência, a nossa razão, já nos permitem conhecer a Deus como nosso Criador e amá-lo como nosso remunerador, fora mesmo da revelação e dos dons sobrenaturais (Leão Dehon, OSP 2, pp.189-190).

    Actio
    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Cristo, nossa Páscoa, foi imolado» (1 Cor 5, 7).
    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXIII Semana - Terça-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXIII Semana - Terça-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    10 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXIII Semana - Terça-feira
    Lectio
    Primeira leitura: 1 Coríntios 6, 1-11
    Irmãos: 1Quando algum de vós entra em litígio com outro, como é que se atreve a submetê-lo ao juízo dos injustos e não ao dos santos? 2Ou não sabeis que os santos é que hão-de julgar o mundo? E, se é por vós que o mundo há-de ser julgado, sereis indignos de julgar questões menores? 3Não sabeis que havemos de julgar os anjos? Quanto mais, as pequenas coisas da vida! 4Quando, pois, tendes questões menores, porque escolheis como juízes aqueles que a Igreja menospreza? 5Digo isto para vossa vergonha. Não haverá, entre vós, ninguém suficientemente sábio para poder julgar entre irmãos? 6No entanto, um irmão processa o seu irmão, e isto diante dos não crentes! 7Ora, a existência de questões entre vós é já um sinal de inferioridade. Porque não preferis, antes, sofrer uma injustiça? Porque não preferis ser prejudicados? 8Mas, pelo contrário, sois vós que cometeis injustiças e causais danos, e isto contra os próprios irmãos! 9Ou não sabeis que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não vos iludais: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os pedófilos, 10nem os ladrões, nem os avarentos, nem os beberrões, nem os caluniadores, nem os salteadores herdarão o Reino de Deus. 11E alguns de vós eram assim. Mas vós cuidastes de vos purificar; fostes santificados, fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito do nosso Deus.
    Nesta página emerge outra situação da comunidade de Corinto: alguns cristãos, na tentativa de dirimirem algumas questões surgidas entre eles, apelaram para tribunais pagãos. Paulo intervém com autoridade e clareza. Começa por usar um tom provocador (vv. 1.1-3) para levar os seus interlocutores a darem-se conta da gravidade e da delicadeza da situação de certas atitudes. Quer, sobretudo, recordar-lhes que o juízo entre irmãos na fé deveria obedecer a critérios que a própria fé sugere e é capaz de formular. Caso contrário, seria preciso concluir que a fé daquela comunidade era incapaz de orientar a vida dos crentes e de iluminar as suas opções. Depois, o Apóstolo recorre a um tom irónico: com isso, quer que os cristãos de Corinto se sintam envergonhados por não encontrarem entre eles uma pessoa sábia para arbitrar as suas questões. É uma ironia cheia de tristeza e mesmo, talvez, de uma certa raiva, semelhantes às que Paulo manifesta noutras cartas. Finalmente, passa a um discurso teológico (v. 11). O Apóstolo retoma o núcleo da sua doutrina e, referindo-se ao baptismo, lembra a novidade do dom recebido: «Vós cuidastes de vos purificar; fostes santificados, fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito do nosso Deus». Da novidade do dom, depende obviamente a novidade de vida.
    Evangelho: Lucas 6, 12-19
    12Naqueles dias, Jesus foi para o monte fazer oração e passou a noite a orar a Deus. 13Quando nasceu o dia, convocou os discípulos e escolheu doze dentre eles, aos quais deu o nome de Apóstolos: 14Simão, a quem chamou Pedro, e André, seu irmão; Tiago, João, Filipe e Bartolomeu; 15Mateus e Tomé; Tiago, filho de Alfeu, e Simão, chamado o Zelote; 16Judas, filho de Tiago, e Judas Iscariotes, que veio a ser o traidor. 17Descendo com eles, deteve-se num sítio plano, juntamente com numerosos discípulos e uma grande multidão de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e de Sídon, 18que acorrera para o ouvir e ser curada dos seus males. Os que eram atormentados por espíritos malignos ficavam curados; 19e toda a multidão procurava tocar-lhe, pois emanava dele uma força que a todos curava.
    Como outras vezes, Lucas refere que Jesus se retira para a montanha a fim de rezar, passando lá toda a noite (v. 12). Ainda que não haja uma referência explícita à relação entre a oração de Jesus e a escolha dos Doze, é possível, à luz da fé, estabelecer essa relação. O gesto que Jesus está para realizar tem uma enorme importância. Daí a necessidade de dialogar com o Pai. A escolha dos Doze inclui um chamamento: «convocou os discípulos e escolheu doze dentre eles». Vocação e missão são inseparáveis. Sem a vocação, a missão não é mais que profissão. Por outro lado, a vocação, sem a missão, seria um gesto incompleto.
    «Aos quais deu o nome de Apóstolos» (v. 13b): parece um anacronismo, pois "apóstolo" é um nome tipicamente pós-pascal. Mas é a luz da Páscoa já projectada sobre o tempo do ministério público de Jesus, como que a dizer-nos que essa luz também se projecta sobre a nossa vida e a nossa história.
    Finalmente, a relação de Jesus com a multidão é, mais uma vez caracterizada de duas maneiras: as multidões vêm para escutar Jesus e para ser curadas das suas doenças (v. 18). Em ambos os casos, trata-se, na perspectiva de Lucas, de uma "força" que dá autoridade à sua doutrina e eficácia aos seus gestos taumatúrgicos.
    Meditatio
    A escolha dos Apóstolos é um tema central no texto evangélico que a liturgia hoje nos propõe. Por isso, parece oportuno deter-nos um pouco a meditar na apostolicidade da Igreja. Como se sabe, trata-se de uma das características da Igreja de Cristo, juntamente com a unidade, a santidade e a catolicidade.
    Em primeiro lugar, notemos que não se trata de notas simplesmente jurídicas. Pelo contrário, são notas espirituais, dadas à Igreja pelo Espírito de Deus e do Senhor ressuscitado. A Igreja de Cristo não se torna apostólica a certo ponto do seu caminho, mas nasce apostólica. A razão fundamental de tudo isto é que o próprio Jesus é o apóstolo por excelência, o missionário do Pai. Antes de ser o fundador da Igreja, Jesus é o seu salvador: a Igreja nasce do Lado aberto do Crucificado, no poder do "espírito" que Ele dá na cruz (cfr. Jo 19, 30). À missão que Jesus confiou aos Doze durante o seu ministério público (cfr. Mt 10, 1ss.) corresponde a missão bem mais importante que lhes confiou depois da Ressurreição (cfr. Mt 28, 16-20).
    É preciso não confundir a apostolicidade da Igreja com a sua missionaridade, ainda que haja entre eles uma ligação íntima e profunda. A primeira nasceu da Igreja e está ligada ao colégio dos Doze, enquanto esta é tarefa da Igreja e está ligada à pessoa de todos os seus membros. A primeira é um artigo da nossa fé: «Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica»; a segunda é objecto do nosso testemunho.
    A nossa congregação é um instituto religioso apostólico, isto é, um instituto chamado a participar na acção missionária da Igreja, concretam
    ente na missão "ad gentes". De início o Pe. Dehon excluiu a actividade apostólica nas missões longínquas porque lhe parecia difícil harmonizá-la com a espiritualidade do instituto. Mas, já em 1882, numa carta a Leão XIII, manifesta o desejo de trabalhar nas missões. A 8 de Novembro de 1888 partem os primeiros missionários dehonianos para o Equador. De facto, depois da audiência com Leão XIII, a 6 de Setembro de 1888, o Pe. Dehon considera o apostolado nas missões longínquas, com a pregação das encíclicas do Papa, a oração e a ajuda aos sacerdotes e a adoração eucarística, como parte essencial da "missão que nos foi confiada pelo Papa".
    Os motivos são: fazer conhecer o amor do Coração de Jesus nas terras infiéis; o espírito de sacrifício e, portanto, de imolação, a alegria de Nosso Senhor e da Igreja.
    Oratio
    Senhor Jesus, é próprio do sábio assumir comportamentos cada vez mais honestos, ligados à progressiva transparência da vida: dá-me a graça de envelhecer desse modo! É próprio do sábio ser ponderado nos seus juízos, o que o torna imparcial para com todos e livre da corrupção: dá-me a graça de me relacionar assim com os outros. É próprio do sábio ter um profundo respeito pelos outros: dá-me a graça de assim me alegrar! É próprio do sábio valorizar a vida com todas as suas luzes e sombras: dá-me a graça de crescer desse modo! É próprio do sábio favorecer o crescimento da pessoa sem pressões, sem castigos, sem preconceitos: dá-me a graça de agir assim!
    Senhor, dá-me a sabedoria, a ciência prática da vida e da fé que me torna livre emocionalmente, capaz de um discernimento correcto e justo no juízo, para indicar a todos o caminho do bem. Amen.
    Contemplatio
    A devoção ao Papa e a docilidade a todas as suas orientações deve ser o carácter próprio da devoção ao Sagrado Coração. Não há analogias tocantes entre o Papa e a Eucaristia? Não é Nosso Senhor quem nos dirige e nos instrui pelo seu Vigário? Ele vive nele por uma assistência especial. Ensina, fala pelo seu Vigário. Disse aos apóstolos: «Quem vos escuta a mim escuta e quem vos despreza a mim despreza». Isto deve entender-se também do Papa, ao qual S. Pedro transmitiu a plenitude da autoridade apostólica.
    A Eucaristia, é Jesus que se imola, Jesus que permanece connosco, que se dá a nós, que nos escuta e nos consola. O Papa, é Jesus que nos dirige e nos ensina. Na Eucaristia, é a presença real de Jesus; no Papa, é a sua autoridade e o seu ensinamento, com uma assistência especial.
    Admiro, ó meu bom Mestre, mais do que compreendo, a imensidade do amor pelo qual vos entregastes a vós mesmo aos cismáticos. Oh! Como gostaria de vos consolar com um amor sem limites (Leão Dehon, OSP 2, p. 478).
    Actio
    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Vós fostes santificados, fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito do nosso Deus» (1 Cor 6, 11).
    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXIII Semana - Quarta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXIII Semana - Quarta-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    11 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXIII Semana - Quarta-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 1 Coríntios 7, 25-31
    Irmãos: 25A respeito de quem é solteiro, não tenho nenhum preceito do Senhor, mas dou um conselho, como homem que, pela misericórdia do Senhor, é digno de confiança. 26Julgo, pois, que essa condição é boa, por causa das angústias presentes; sim, é bom para o homem continuar assim. 27Estás comprometido com uma mulher? Não procures romper o vínculo. Não estás comprometido? Não procures mulher. 28Todavia, se te casares, não pecas; e se uma virgem se casar, também não peca. Mas estes terão de suportar as tribulações corporais e eu quisera poupar-vos a elas. 29Eis o que vos digo, irmãos: o tempo é breve. De agora em diante, os que têm mulher, vivam como se não a tivessem; 30e os que choram, como se não chorassem; os que se alegram, como se não se alegrassem; os que compram, como se não possuíssem; 31os que usam deste mundo, como se não o usufruíssem plenamente. Porque este mundo de aparências está a terminar.
    Paulo lembra às pessoas virgens uma verdade fundamental: «o tempo é breve» (v. 29), que poderia traduzir-se literalmente: o tempo já embrulhou as velas, lembrando uma expressão das artes náuticas dos gregos, usada ao aproximar-se de um porto. Paulo parece pensar o seguinte: qualquer que seja o tempo que falta para o regresso glorioso do Senhor, o mundo futuro já está presente no meio de nós, graças ao Ressuscitado; pela morte e ressurreição de Jesus, Deus já inaugurou em nós, e no meio de nós, a novidade do seu reino. A esta luz, a virgindade, livre e alegremente escolhida pelo Reino (cfr. Mt 19, 12), longe de ser um desprezo pelo matrimónio, constitui um sinal escatológico que tende a orientar a nossa esperança, e a dos outros, para a alegria definitiva. As exortações são consequências lógicas da verdade anunciada. Em primeiro lugar, é preciso viver a espiritualidade do «como se» (vv. 29-31). Depois vem da lógica de «o que é melhor» (cfr. 7, 9: «é melhor casar-se do que ficar abrasado»; 7, 38.40: «quem a não desposa ainda faz melhor»). Paulo pretende propor à nossa liberdade aquilo que ele, por experiência pessoal e pelo que o liga a Cristo, está convencido de que é o melhor a desejar e a realizar.
    Em segundo lugar - mas é apenas um conselho seu - quando alguém chega à fé em Cristo, continue a viver como casado ou como virgem, na situação em que se encontrava. Mas o mais importante - e é nisso que Paulo se apoia - é a consciência de que fomos «comprados por um alto preço» (7, 23), por Cristo Jesus, pela sua morte e ressurreição. É sempre o mistério pascal que projecta luz sobre a nossa vida.

    Evangelho: Lucas 6, 20-26
    Naquele tempo, Jesus 20Erguendo os olhos para os discípulos, pôs-se a dizer: «Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. 21Felizes vós, os que agora tendes fome, porque sereis saciados. Felizes vós, os que agora chorais, porque haveis de rir. 22Felizes sereis, quando os homens vos odiarem, quando vos expulsarem, vos insultarem e rejeitarem o vosso nome como infame, por causa do Filho do Homem. 23Alegrai-vos e exultai nesse dia, pois a vossa recompensa será grande no Céu. Era precisamente assim que os pais deles tratavam os profetas». 24«Mas ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossa consolação! 25Ai de vós, os que estais agora fartos, porque haveis de ter fome! Ai de vós, os que agora rides, porque gemereis e chorareis! 26 Ai de vós, quando todos disserem bem de vós! Era precisamente assim que os pais deles tratavam os falsos profetas».
    Lucas reduz as bem-aventuranças a quatro, acrescentando os quatro «ai de vós». Segundo os exegetas, o texto de Lucas seria mais próximo da verdade histórica das palavras de Jesus, o que lhe daria especial relevo. Mas convém recordar que as mediações dos vários evangelistas, ao referirem os ensinamentos de Jesus, não atraiçoam a verdade da mensagem. Pelo contrário, focalizam-no e relêem-na para bem das suas comunidades.
    Tanto as oito bem-aventuranças de Mateus, como as quatro de Lucas, podem reduzir-se a uma só: a bem-aventurança de quem acolhe a palavra de Deus na pregação de Jesus e procura adequar a vida a essa palavra. O verdadeiro discípulo de Jesus é, ao mesmo tempo, pobre, manso, misericordioso, fazedor de paz, puro de coração, etc. Pelo contrário, quem não acolhe a novidade do Evangelho merece todas as ameaças que, na boca de Jesus, correspondem a profecias de tristeza e de infelicidade. O texto de Lucas caracteriza-se pela contraposição ente o «já» e o «ainda não», entre o presente histórico e o futuro escatológico. Obviamente a comunidade para a qual Lucas escrevia precisava de ser alertada para a necessidade de traduzir a sua fé em gestos de caridade evangélica, mas também para a de manter viva a esperança, pela total adesão à doutrina, ainda que radical, das bem-aventuranças evangélicas.

    Meditatio
    A Palavra de Deus oferece, hoje, um tema forte e actual para a nossa meditação: que é melhor para um cristão: o matrimónio ou a virgindade. O que é mandamento e o que é só conselho?
    Paulo oferece à comunidade de Corinto, e a todos nós, uma doutrina clara e equilibrada. Até que ponto a sua experiência pessoal teve influência nesta doutrina? Não sabemos. Mas sabemos que o encontro com Jesus no caminho de Damasco deu uma nova orientação à sua vida, fez nascer nele uma nova mentalidade e, portanto, uma nova capacidade de julgar.
    Uma doutrina clara: o Apóstolo leva-nos a considerar, tanto o matrimónio como a virgindade, duas opções de vida dignas da pessoa humana, ambas boas de acordo com a economia da criação, ambas em sintonia com a novidade de vida de quem acredita em Cristo, ambas ricas de espiritualidade, ambas "lugares" onde viver a caridade em sumo grau, ambas capazes de conduzirem os crentes aos cumes da santidade.
    Uma doutrina equilibrada: Paulo não impõe nada a ninguém, sabendo que se trata de uma opção pessoal livre e alegre, digna da pessoa humana. Ninguém, nem sequer Deus, pode fazer violência ao santuário da consciência humana.
    Pela profissão religiosa e pela prática dos conselhos evangélicos, concretamente do celibato consagrado, devemos ser as testemunhas por excelência, no meio do povo de Deus, desta exigência das bem-aventuranças na prática de uma autêntica vida cristã.
    Se reflectirmos com atenção, as bem-aventuranças, tal como as lemos no Evangelho de Mateus (cf. 5, 3-13), ultrapassam o campo moral, para envolverem toda a nossa vida: damos espaço a Jesus para que seja pobre em espírito na nossa pobreza, manso na nossa mansidão, sofredor pelos males do mundo na nossa aflição, faminto e sedento de justiça, misericordioso, puro de coração, obreiro de paz, perseguido em nós perseguidos...
    Se também reflectirmos no facto de que as bem-aventuranças se vivem praticando todas as virtudes teologais e morais de modo habitual, com facilidade, sob o influxo dos dons do Espírito Santo e irradiando os seus frutos saborosos (cf. Gl 5, 22), então compreenderemos como viver as bem-aventuranças seja viver o mandamento do Senhor, a caridade: o amor de Deus e o amor do próximo (cf. Mt 22, 37-39; 1Jo 4, 7-21). Se isto é válido para todos os cristãos e para todos os religiosos, é especialmente válido para os «Oblatos, Sacerdotes do Coração de Jesus» (Cst. 6), que têm como «carisma profético» (Cst. 27) a oblação de amor unida «à oblação reparadora de Cristo ao Pai pelos homens» (Cst. 6). Desse modo, também praticamos os nossos votos religiosos, nas «perspectiva espiritual» do Pe. Dehon «reconhecida pela Igreja», isto é, «procurar... como o único necessário, uma vida de união à oblação de Cristo» e realizar «o nosso carisma profético» que nos coloca «ao serviço da missão salvífica do Povo de Deus no mundo de hoje» (Cst. 27). «Professamos os conselhos evangélicos com os votos de celibato consagrado, de pobreza e de obediência (cf. LG 44, PC 1)» (Cst. 40). Mais do que os votos de pobreza e de obediência, é o voto de celibato consagrado que caracteriza o estado religioso como forma de vida. Mas também os outros votos, sendo vividos «segundo o espírito das bem-aventuranças» (Cst. 40), que são a vida de Cristo pobre, manso, aflito... em nós, são reais estados de vida, de acordo com as exigências radicais do Evangelho; não são, portanto, apenas obrigações jurídicas que temos de cumprir.
    É assim que o Pe. Dehon quer que compreendamos e vivamos os nossos votos religiosos. Escreve nas Cst de 1885: «Os votos de pobreza, de castidade e de obediência, que constituem formalmente o estado religioso, são comuns a todas as congregações; mas diversificam-se na sua aplicação prática, conforme o fim especial que se propõe cada uma das congregações. Os Sacerdotes do Coração de Jesus compreenderão que... estes votos, constituem já (por si mesmos) o religioso em estado de vítima, em união com Jesus Cristo».

    Oratio
    Senhor Jesus, obrigado por nos teres escolhido e chamado a professar os conselhos evangélicos com os votos de celibato consagrado, de pobreza e de obediência, que nos libertam para um amor autêntico, segundo o espírito das Bem-aventuranças. Agradecemos-te, hoje, de modo particular o dom do celibato consagrado, que intimamente nos aproxima da tua caridade total e oblativa. Com ele queremos expressar a nossa doação integral ao Pai, a consagração total da mente, do coração, da alma e do corpo: "Seduziste-me, Senhor, e eu deixei-me seduzir"(Jer 20, 7). Mas queremos também significar o dom de nós mesmos aos irmãos, em pobreza, mansidão, pureza de coração, trabalho pela justiça e pela paz.
    Dá-nos o teu Espírito para que, vivendo a nossa condição de redimidos e de chamados a partilhar o teu estilo de vida, e a tua missão, sejamos teus cooperadores na construção do mundo novo. Amen.

    Contemplatio
    A virgindade é mais do que a castidade. Ela dá às almas o privilégio de ter no céu uma intimidade particular com o Sagrado Coração. «As virgens, diz S. João, seguem o cordeiro onde quer que Ele vá» (Ap 14).
    A Bem-Aventurada Margarida Maria vai-nos ensinar, pelos seus exemplos, mais ainda do que pelas suas palavras, como é preciso responder ao apelo do Esposo das virgens, que modelo é preciso seguir e que meios é preciso empregar.
    O apelo que Nosso Senhor dirige a algumas almas privilegiadas, de se alistarem sob o estandarte virginal, quer no sacerdócio, quer na vida religiosa, quer no meio do mundo é uma graça de predilecção. As almas que o escutam devem apressar-se a responder-lhe, depois de terem consultado os seus directores.
    ... Felizes as almas generosas e vigilantes que, escutando o apelo do Esposo divino: Ecce sponsus venit, se levantam imediatamente para O seguirem! Fá-las-á entrar no seu divino Coração, verdadeira sala do festim nupcial: Intraverunt cum eo ad nuptias.
    Felizes também as almas que, depois de se terem dado, perseveram e progridem nesta virtude cara ao Coração de Jesus!... O templo do Senhor é a alma santificada pela virgindade. Deus queria que no templo da antiga lei tudo brilhasse pela pureza... A este preço, o Senhor estava lá especialmente presente. E o mesmo se passa com a alma virgem. Se ela é fiel, Deus promete-lhe uma presença especial de protecção e de amor.
    A alma virgem tem, portanto, como modelo a pureza do próprio Jesus e as suas imolações, simbolizadas pela branca hóstia do tabernáculo (Leão Dehon, OSP 2, p. 449s.).

    Actio
    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «O tempo é breve» (1 Cor 7, 29).
    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXIII Semana - Quinta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXIII Semana - Quinta-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    12 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXIII Semana - Quinta-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 1 Coríntios 8, 2-7.11-13
    Irmãos: A ciência incha, mas a caridade edifica. 2Se alguém pensa que sabe alguma coisa, ainda não sabe como deveria saber. 3Mas se alguém ama a Deus, esse é conhecido por Deus. 4Portanto, quanto ao consumo de carnes imoladas aos ídolos, sabemos que um ídolo não é nada no mundo, e que não há outro deus a não ser o Deus único. 5Pois, embora haja pretensos deuses, quer no céu quer na terra - e há muitos deuses e muitos senhores - 6para nós, contudo, um só é Deus, o Pai, de quem tudo procede e para quem nós somos, e um só é o Senhor Jesus Cristo, por meio do qual tudo existe e mediante o qual nós existimos. 7Mas nem todos têm esta ciência. Alguns, acostumados até há pouco ao culto dos ídolos, comem a carne como se fosse um verdadeiro sacrifício aos ídolos, e a sua consciência, fraca como é, fica manchada. 11E assim, pela tua ciência, vai perder-se quem é fraco, um irmão pelo qual Cristo morreu. 12Pecando contra os próprios irmãos e ferindo a consciência deles que é débil, é contra Cristo que pecais. 13Por isso, se um alimento for motivo de queda para o meu irmão, nunca mais voltarei a comer carne, para não causar a queda do meu irmão.
    Paulo apresenta-nos outro caminho para atingirmos a centralidade do mistério pascal de Cristo: a caridade fraterna. Havia em Corinto cristãos, seguros de si mesmos, facilmente provocavam escândalos na comunidade, sobretudo entre os crentes mais fracos. Ostentavam comer carnes sacrificadas aos ídolos, coisa que, não sendo totalmente proibida, era muito inconveniente. Assim, na comunidade, contrapunham-se "os fortes" e "os fracos", semeando escândalo e ruína espiritual. A uns e outros, Paulo lembra duas verdades fundamentais: os ídolos são deuses falsos e mentirosos, invejosos da nossa liberdade e déspotas em relação a nós, enquanto que «para nós, há um só é Deus, o Pai, de quem tudo procede e para quem nós somos, e um só é o Senhor Jesus Cristo, por meio do qual tudo existe e mediante o qual nós existimos (v. 6)». Não estamos perante um monoteísmo filosófico, fruto do esforço humano, mas perante a revelação de Deus como o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, de Quem nos vem, não só o mandamento do amor, mas também a capacidade para o observar. A segunda verdade é, mais uma vez, a do mistério pascal de Cristo: «Assim, pela tua ciência, vai perder¬ se quem é fraco, um irmão pelo qual Cristo morreu» (v. 11). A morte e a ressurreição de Jesus contrastam com a atitude de quem, na comunidade, pelo escândalo, provoca a morte, ainda que só espiritual, de um irmão na fé, talvez sem esperança de ressurreição.

    Evangelho: Lucas 6, 27-38
    Naquele tempo, Jesus disse aos seus discípulos: 27«Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, 28abençoai os que vos amaldiçoam, rezai pelos que vos caluniam. 29A quem te bater numa das faces, oferece-lhe também a outra; e a quem te levar a capa, não impeças de levar também a túnica. 30Dá a todo aquele que te pede e, a quem se apoderar do que é teu, não lho reclames. 31O que quiserdes que os outros vos façam, fazei-lho vós também. 32Se amais os que vos amam, que agradecimento mereceis? Os pecadores também amam aqueles que os amam. 33Se fazeis bem aos que vos fazem bem, que agradecimento mereceis? Também os pecadores fazem o mesmo. 34E, se emprestais àqueles de quem esperais receber, que agradecimento mereceis? Também os pecadores emprestam aos pecadores, a fim de receberem outro tanto. 35Vós, porém, amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem nada esperar em troca. Então, a vossa recompensa será grande e sereis filhos do Altíssimo, porque Ele é bom até para os ingratos e os maus. 36Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso.» 37«Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. 38Dai e ser-vos-á dado: uma boa medida, cheia, recalcada, transbordante será lançada no vosso regaço. A medida que usardes com os outros será usada convosco.»
    Esta página evangélica é uma verdadeira ressonância das bem-aventuranças, ajudando-nos mesmo a descobrir o seu fundamento.
    «Amai os vossos inimigos» (vv. 27.35): o discurso não podia ser mais claro. Jesus, como mestre e guia, distancia-se de todos os rabis do seu tempo: não só contrapõe o amor ao ódio, mas exige que o amor dos seus discípulos se concentre exactamente sobre aqueles que os odeiam. Jamais um mestre usara propor um ideal de vida tão exigente e sublime. Não se trata de um amor abstracto, mas de um amor que se concretiza, dia a dia, em inúmeros pequenos gestos, que são a prova da sua autenticidade. Seria ridículo, sob o ponto de vista de Jesus, amar só aqueles que nos amam: não teríamos qualquer mérito e, sobretudo, o nosso amor não seria sinal da nossa exclusiva e inequívoca pertença a Cristo: «Os pecadores também amam aqueles que os amam» (v. 32).
    O ensinamento de Jesus termina com a famosa expressão em que Lucas escreve "misericórdia" onde Mateus escreve "perfeição": «Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso» (v. 36). Segundo a lógica da espiritualidade evangélica, não há perfeição senão a do amor fraterno que revela a nossa identidade filial em relação a Deus; não há outra meta a perseguir, senão a de um amor que sabe perdoar porque experimentou o perdão; não há outro mandamento a observar, senão o de tender à imitação de Deus, que é amor misericordioso, por meio de gestos de bondade e de misericórdia.

    Meditatio
    As leituras de hoje falam-nos de caridade. O Evangelho lança uma preciosa luz sobre as nossas relações interpessoais, que hão-de ser vividas na caridade, que também é misericórdia, e que é o vínculo da perfeição.
    «Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso», escreve Lucas; Mateus, pelo contrário, escreve: «Sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai que está no céu» (Mt 5, 48). Será uma contradição? Será um convite a procurar outra direcção? Esta diferença pode ter a seguinte explicação: Mateus, como bom judeu convertido, tende a apontar aos seus destinatários uma meta de perfeição correspondente às exigências da nova lei, inaugurada por Jesus. Estaria assim na linha da espiritualidade veterotestamentária... Os exegetas acham que a versão de Lucas deve ser mais próxima da palavra pronunciada pelo Jesus histórico. O terceiro evangelista gosta de recordar explicitamente uma doutrina, que até já encontramos difus
    a no Antigo Testamento, e que caracteriza Deus como amor misericordioso (cfr. Ex 34, 6; Dt 4, 31; Sl 78, 38; 86, 15). Ao fim e ao cabo, é essa a mensagem central de todo o ensinamento de Jesus de Nazaré. Todas as suas palavras, todos os seus gestos, evidenciam a verdade de Deus-amor, amor imenso e misericordioso, amor paciente e indulgente, amor proveniente e incondicional.
    Sublinhemos também que, em Deus se identificam perfeição e misericórdia e que Lucas, como bom pedagogo, quer que a perfeição do discípulo atinja o nível da do Mestre: amor até ao dom de si mesmo, sem reservas nem interesses; amor até ao limite das próprias forças, sem arrependimentos e sem desforras; amor a todos e sempre, sem excepção.
    Os ensinamentos de Jesus sobre o amor e a misericórdia, são recordados por João Paulo II na Dives in misericórdia. Esse documento pontifício indica um vasto campo onde nós, dehonianos, podemos estar presentes e desenvolver a nossa missão: «A mentalidade contemporânea, talvez mais do que a do homem do passado, parece opor-se ao Deus da misericórdia e tende, por outro lado, a marginalizar da vida e a tirar do coração humano a própria ideia de misericórdia» (n. 2). Neste mundo que se orienta para ser um mundo «sem esperança» e «sem coração» nós, a exemplo do Pe. Dehon, podemos viver a nossa oblação e dar toda a nossa colaboração para testemunhar e anunciar o primado do amor.

    Oratio
    Senhor Jesus, para ti, o amor não foi conversa fiada, nem um sonho vago e abstracto; não foi simples qualidade ou ornamento para satisfazeres o ego ou Te gabares; também não foi um sentimento mais ou menos romântico. Não o definiste porque não é algo de estático. Pelo contrário. Para Ti, o amor é um arco-íris de cores que se abraçam sem barreiras entre brancos e negros, judeus e pagãos, gregos e romanos, jovens e velhos, amigos e inimigos, bons e maus. É um sentimento dinâmico e indefinível porque, como a vida, gera permanentemente algo de novo, e está na base de toda a relação: Pedro, a viúva, o ladrão, Zaqueu, os pequenos, a adúltera, Lázaro e tantos outros. Ó Senhor, para Ti, viver é amar: e é esse o maior dom que nos deixaste! Obrigado, Senhor! Amen.

    Contemplatio
    Enquanto nós estivermos nesta pobre vida, não estamos irremediavelmente perdidos. A nossa alma pode voltar a levantar-se, salvar-se, santificar-se, Nosso Senhor ama-a sempre. Ela considera-a, solicita-a, emprega as habilidades da graça para a salvar, Ele ama-a.
    Foi pelos pecadores que Ele ofereceu a sua vida. S. Paulo não cessava de admirar esta generosidade: «Com dificuldade, dizia ele, encontraria um homem que desse a sua vida por justos, mas o Homem-Deus deu a sua mesmo por culpados: Vix pro justo quis moritur, commendat autem caritatem suam Deus in nobis, quoniam cum adhuc peccatores essemus, Christus pro nobis mortuus est» (Rom 5, 8). S. Paulo repete isto aos Coríntios, aos Efésios: «Deus é tão rico em misericórdia, diz ele a estes, que por causa do seu grande amor, embora nós fôssemos pecadores, nos deu a vida da graça por Cristo, para nos mostrar toda a extensão da sua misericórdia e da sua bondade a nosso respeito: ut ostenderet abundantes divitias gratiae suae in bonitate super nos in Christo Jesu (Ef 2).
    Jesus ama-nos ainda como nos amava no Calvário, mesmo depois dos nossos pecados e das nossas recaídas. Ele daria ainda a sua vida por nós, se isso fosse necessário. Vamos, portanto, até Ele com uma confiança sem limites. (Leão Dehon, OSP 2, pp. 302-303).

    Actio
    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Pecar contra os próprios irmãos é pecar contra Cristo» (cfr. 1 Cor 8, 12).
    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXIII Semana - Sexta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXIII Semana - Sexta-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    13 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXIII Semana - Sexta-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 1 Coríntios 9, 16-19.22b-27
    Irmãos: 16Porque, se eu anuncio o Evangelho, não é para mim motivo de glória, é antes uma obrigação que me foi imposta: ai de mim, se eu não evangelizar! 17Se o fizesse por iniciativa própria, mereceria recompensa; mas, não sendo de maneira espontânea, é um encargo que me está confiado. 18Qual é, portanto, a minha recompensa? É que, pregando o Evangelho, eu faço-o gratuitamente, sem me fazer valer dos direitos que o seu anúncio me confere. 19De facto, embora livre em relação a todos, fiz-me servo de todos, para ganhar o maior número. Fiz-me tudo para todos, para salvar alguns a qualquer custo. 23E tudo faço por causa do Evangelho, para dele me tornar participante. 24Não sabeis que os que correm no estádio correm todos, mas só um ganha o prémio? Correi, pois, assim, para o alcançardes. 25Os atletas impõem a si mesmos toda a espécie de privações: eles, para ganhar uma coroa corruptível; nós, porém, para ganhar uma coroa incorruptível. 26Assim, também eu corro, mas não às cegas; dou golpes, mas não no ar. 27Castigo o meu corpo e mantenho-o submisso, para que não aconteça que, tendo pregado aos outros, venha eu próprio a ser eliminado.
    Mais uma vez, Paulo se vê obrigado a defender, não tanto a sua pessoa, mas a sua acção de apóstolo no meio da comunidade cristã de Corinto. Havia quem o acusasse de interesse próprio no exercício do seu ministério: busca de bens materiais, afirmação pessoal. O Apóstolo reage afirmando que, para ele, evangelizar é "um dever". Quem livremente se põe ao serviço de um senhor, não pode furtar-se a esse serviço. É o que acontece com Paulo. Por isso afirma: «ai de mim, se eu não evangelizar!» (v. 16b). Sabe que está sujeito ao juízo de Deus, e espera d´Ele um veredicto de fidelidade ou de infidelidade. A ameaça que pende sobre ele, longe de o inibir, estimula-o a novas iniciativas apostólicas. A única recompensa que espera é a de poder pregar gratuitamente o Evangelho que lhe foi confiado (cf. Mt 10, 8).
    A sua maior preocupação é o santo orgulho de poder dizer: «Tudo faço por causa do Evangelho» (v. 23). Paulo está concentrado física, psíquica e espiritualmente no seu ministério, cada vez mais generoso, mais desinteressado, mais consagrado (cf. 2 Cor 6, 3-10; Fil 3, 7-14). Isto é para nós instrutivo e estimulante.

    Evangelho: Lucas 6, 39-42
    Naquele tempo, Jesus disse lhes ainda esta parábola: 39«Um cego pode guiar outro cego? Não cairão os dois nalguma cova? 40Não está o discípulo acima do mestre, mas o discípulo bem formado será como o mestre. 41Porque reparas no argueiro que está na vista do teu irmão, e não reparas na trave que está na tua própria vista? 42Como podes dizer ao teu irmão: 'Irmão, deixa-me tirar o argueiro da tua vista', tu que não vês a trave que está na tua? Hipócrita, tira primeiro a trave da tua vista e, então, verás para tirar o argueiro da vista do teu irmão.»
    O argueiro e a trave: podia ser este o título da página evangélica de hoje. Jesus trata desse tema e procura alertar para o perigo da presunção de que pecavam os fariseus. A parábola não precisa de grandes explicações, pois desmascara uma possível atitude interior de quem deve exercer o ministério de guia dos seus irmãos. Em contraluz, emerge um forte convite de Jesus à humildade. O verdadeiro guia não julga os irmãos, mas submete-se à correcção fraterna.
    Do discurso em parábolas, Jesus passa ao discurso propositivo: «Não está o discípulo acima do mestre» e ao discurso provocatório: «Por que reparas no argueiro ... Como podes dizer ao teu irmão... Hipó¬crita!» (vv. 41 ss.). Jesus quer suscitar atitudes de vida comunitária naqueles a quem confia o Evangelho, isto é, a sua proposta de vida nova. A verdadeira espiritualidade cristã verifica-se na prática dos mandamentos e, mais ainda, na adesão total à novidade evangélica. Jesus convida os ouvintes a assumirem as suas responsabilidades, e a não caírem nas ratoeiras em que estavam presos os fariseus.

    Meditatio
    Impressionam, no texto evangélico de hoje, o convite a ser como o mestre e a acusação de hipocrisia que vem logo a seguir. É a tensão em que vive - e de que não é fácil libertar-se - todo o discípulo de Cristo.
    Por um lado, é convidado a pôr os olhos no mestre Jesus como o único que merece ser ouvido e seguido; por outro lado, é tentado a ver n´Ele um modelo dificilmente imitável: «Não está o discípulo acima do mestre» (v. 40). Não podemos, certamente, procurar uma perfeição divina. Seria um atrevimento impróprio do verdadeiro discípulo. Todavia, somos chamados a seguir bem de perto, e o mais possível, o nosso Mestre. O fundamental é que, quem é chamado a ser guia dos outros, persevere no seguimento de Jesus, até Jerusalém, até ao Calvário.
    Depois, Jesus chama aos fariseus guias estultas e «hipócritas», termo que na Bíblia tem amplo significado. Pode indicar dissimulação voluntária (cf. Mt 22, 18), incoerência entre o pensamento e a acção (cf. Mt 15, 7; 23, 25.27) ou, como nesta página, falsidade mais ou menos consciente naqueles a quem Jesus se dirige. Trata-se de uma falsidade repassada de soberba e que transpira presunção. A advertência é clara: só sabe mandar quem aprende a obedecer; só sabe julgar bem os outros quem se colocou docilmente à escuta do Evangelho e do Mestre.
    A lei fundamental do apostolado é: antes de "fazer", é preciso "ser"; antes de "pregar", é preciso "viver" (cf. Evangelii Nuntiandi, n. 21). O exemplo vem-nos de Cristo, que primeiro começa a "fazer" e, depois, a "ensinar" (cf. Act 1, 1).
    Tal como para o Pe. Dehon, a evangelização, realizada gratuitamente, generosamente, zelosamente, é um modo privilegiado para viver «o nosso carisma profético»" que «nos coloca ao serviço da missão salvífica do Povo de Deus no mundo de hoje (cf. LG 12)» (Cst. 27) e nos insere no «movimento de amor redentor» (Cst. 21) «na missão eclesial», e nos permite, de modo muito especial, «desenvolver as riquezas da nossa vocação» (Cst. 34) de oblatos-reparadores. Como S. Paulo, o primeiro grande missionário da Igreja, os nossos missionários devem alegrar-se por pôr em prática o preceito do Senhor: «Há maior alegria em dar do que em receber» (Act 20, 35). Assim mostram a sua amizade para com os povos que evangelizam. Como S. Paulo, cada um deles deve poder dizer: «Tenho servido o Senhor com toda a humildade e com lágrimas, no meio das provações que as ciladas dos judeus me acarretaram. Jamais recuei perante qualquer coisas que vos pudesse ser útil. Preguei e instrui-vos, tanto publicamente como em vossas casas, afirmando a judeus e a gregos a necessidade de se converterem a Deus e de acreditarem em Nosso Senhor Jesus Cristo» (Act 20, 19-21).

    Oratio
    Senhor, para Ti, servir o Pai foi uma manifestação do teu amor. Ensina-me o espírito de serviço, na abnegação, na pobreza, na perseguição, na obediência, até ao dom total de mim mesmo. Para Ti, servir os irmãos, foi a tua alegria. Ensina-me a levar lenitivo às feridas dos outros, a consolar os aflitos, a dar ânimo aos deprimidos, a acalmar os violentos, a instruir os ignorantes, a pregar o Evangelho sem presunção mas com humildade. Para Ti, servir foi uma opção que marcou a tua existência e qualificou a tua vida.
    Ensina-me a compreender que, também para mim, a decisão de servir não é opcional, mas constitutiva da minha vida cristã, da minha vida religiosa apostólica: ajuda-me a servir para levar a Cristo o maior número possível de irmãos e de irmãs. Amen.

    Contemplatio
    Amarás a Deus com toda a tua força. Isto quer dizer, em primeiro lugar, que devendo amar a Deus com toda a força que te dá a graça actual e esta graça aumentando sempre pelo exercício do amor, deves também de dia para dia amar a Deus sempre mais.
    Isto quer dizer ainda que deves consagrar a Deus todos os teus projectos, todos os teus desígnios, todas as tuas acções, não tendo outra intenção senão a de lhe agradar; cumprir por amor todos os teus deveres; empregar os teus talentos, os teus bens, o teu crédito para o fazer amar; ter um zelo ardente pela sua glória e procurá-la com todo o teu poder, tanto quanto a graça para aí te incline, o teu estado o autorize e sábios conselhos te regulem e te dirijam (Leão Dehon, OSP 2, p. 57).

    Actio
    Repete muitas vezes e vive hoje a Palavra:
    "Ai de mim se não pregar o Evangelho!" (1 Cor 9, 16).
    | Fernando Fonseca, scj |

  • Exaltação da Santa Cruz

    Exaltação da Santa Cruz


    14 de Setembro, 2024

    Foi na Cruz que Jesus consumou a sua oblação de amor para glória e alegria de Deus e nossa salvação. É, pois, justo que veneremos o sinal e o instrumento da Redenção.

    Esta festa nasceu em Jerusalém e difundiu-se por todo o Médio Oriente, onde ainda hoje é celebrada, em paralelo com a Páscoa. A 13 de Setembro foi consagrada a Basílica da Ressurreição, em Jerusalém mandada construir por Santa Helena e Constantino. No dia seguinte, foi explicado ao povo o significado profundo da igreja, mostrando-lhe o que restava da Cruz do Salvador. No século VI esta festa em honra da Santa Cruz já era conhecida em Roma. Em meados do século VII, começou a ser celebrada no dia 14 de Setembro, quando se expunham à veneração dos fiéis as relíquias da Santa Cruz.

    Lectio

    Primeira leitura: Números 21, 4b-9

    Naqueles dias, o povo de Israel impacientou e falou contra Deus e contra Moisés: «Porque nos fizestes sair do Egipto? Foi para morrer no deserto, onde não há pão nem água, estando enjoados com este pão levíssimo?» 6Mas o Senhor enviou contra o povo serpentes ardentes, que mordiam o povo, e por isso morreu muita gente de Israel. 7O povo foi ter com Moisés e disse-lhe: «Pecámos ao protestarmos contra o Senhor e contra ti. Intercede junto do Senhor para que afaste de nós as serpentes.» E Moisés intercedeu pelo povo. 😯 Senhor disse a Moisés: «Faz para ti uma serpente abrasadora e coloca-a num poste. Sucederá que todo aquele que tiver sido mordido, se olhar para ela, ficará vivo.» 9Moisés fez, pois, uma serpente de bronze e fixou-a sobre um poste. Quando alguém era mordido por uma serpente e olhava para a serpente de bronze, vivia.

    Nos capítulos 20-21 dos Números são narradas as últimas peripécias dos hebreus no deserto, antes da entrada na terra prometida. O povo murmura porque não tem o que deseja; revolta-se, não suporta o cansaço do caminho (v. 2) por causa da fome e da sede (v. 5). Já não é capaz de reconhecer o poder de Deus, já não tem fé no Senhor que agora vê como Aquele que lhe envenena a vida. Deus manifesta o seu juízo de castigo em relação ao povo, mandando serpentes venenosas (v. 6). Na experiência da morte, os hebreus reconhecem o pecado cometido contra Deus e pedem perdão. E, tal como a mordedura da serpente era letal, assim, agora, a imagem de bronze erguida sobre um poste torna-se motivo de salvação física para quem for mordido.
    S. João reconhece na serpente de bronze erguida no deserto por Moisés a prefiguração profética da elevação do Filho do homem crucificado.

    Evangelho: João 3, 13-17

    Naquele tempo, Jesus disse a Nicodemos: 3Ninguém subiu ao Céu a não ser aquele que desceu do Céu, o Filho do Homem. 14Assim como Moisés ergueu a serpente no deserto, assim também é necessário que o Filho do Homem seja erguido ao alto, 15a fim de que todo o que nele crê tenha a vida eterna. 16Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna. 17De facto, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele.

    O texto do evangelho faz parte do longo discurso com que Jesus responde a Nicodemos, apontando a necessidade da fé para obter a vida eterna e fugir ao juízo de condenação. Jesus, o Filho do homem (v. 13), provém do seio do Pai; é aquele que «desceu do Céu» (v. 13), o único que viu a Deus e pode comunicar o seu projeto de amor, que se realiza na oblação do Filho unigénito. Jesus compara-se à serpente de bronze (cf. Nm 21, 4-9), afirmando que a plena realização do que aconteceu no deserto irá verificar-se quando Ele for elevado na cruz (v. 14) para salvação do mundo (v. 17). Quem olhar para Ele com fé, isto é, quem acreditar que Cristo crucificado é o Filho de Deus, o salvador, terá a vida eterna. Acolhendo n´Ele o dom de amor do Pai, o homem passa da morte do pecado à vida eterna. No horizonte deste texto, transparece o cântico do "Servo de Javé" (cf. Is 52, 13ss.), onde encontramos juntos os verbos "elevar" e "glorificar". Compreende-se, portanto, que S. João quer apresentar a cruz, ponto supremo de ignomínia, como vértice da glória.

    Meditatio

    Jesus veio dar cumprimento à história do povo hebreu e à nossa história. Verificamo-lo todas as vezes que lemos a palavra de Deus. De facto, como Ele mesmo afirma, não veio abolir, mas dar pleno cumprimento à Lei. Jesus é Aquele que desceu do céu, Aquele que conhece o Pai, e que está em íntima união com Ele: "Eu e o Pai somos Um" (Jo 10, 30). Jesus é enviado pelo Pai para revelar o mistério da salvação, o mistério de amor que se há-de realizar com a sua morte na cruz. Jesus crucificado é a suprema manifestação da glória de Deus. Por isso, a cruz torna-se símbolo de vitória, de dom, de salvação, de amor. Tudo o que podemos entender com a palavra "cruz" - o sofrimento, a injustiça, a perseguição, a morte - é incompreensível se for olhado apenas com olhos humanos. Mas, aos olhos da fé e do amor, tudo aparece como meio de conformidade com Aquele que nos amou por primeiro. Então, o sofrimento não é vivido como fim em si mesmo, mas como participação no mistério de Deus, caminho que leva à salvação.
    Só se acreditamos em Cristo crucificado, isto é, se nos dispomos a acolher o mistério de Deus que incarna e dá a vida por todos; só se nos pomos diante da vida com humildade, livres para nos deixar amar e, por nossa vez, tornar-nos dom de amor aos irmãos, saberemos receber a salvação: participaremos na vida divina de amor. Celebrar a festa da Exaltação da Santa Cruz significa tomar consciência do amor de Deus Pai, que não hesitou em enviar-nos o seu Filho, Jesus Cristo: esse Filho que, despojado do seu esplendor divino, se tornou semelhante aos homens, deu a vida na cruz por cada um dos seres humanos, crente ou não crente (cf. Fil, 2, 6-11). A Cruz torna-se o espelho em que, refletindo a nossa imagem, podemos reencontrar o verdadeiro significado da vida, as portas da esperança, o lugar da renovada comunhão com Deus.
    Como dizem as nossas Constituições, "Do Coração de Cristo, aberto na cruz, nasce o homem de coração novo, animado pelo Espírito e unido aos seus irmãos na comunidade de amor, que é a Igreja" (n. 3).
    O Pe. Dehon adere, com toda a sua vida, ao "amor de Cristo que aceita a morte" e é trespassado na Cruz. Ele experimenta esse amor, não tanto intelectualmente, mas sobretudo com o coração, e manifesta-o e derrama-o nos irmãos, com a sua bondade. Todos o chamam o "Très bon Père".
    Ao contemplar o amor de Cristo que dá "a vida pelos homens" até morrer pela sua "salvação", em "obediência filial ao Pai", na cruz, o Pe. Dehon aprende que o único verdadeiro amor é o amor oblativo. O "Coração de Cristo, aberto na cruz" é a própria fonte do amor oblativo. E a oblação de amor, entendida como imolação, é, para o Pe. Dehon, "a própria fonte da salvação"(Cst 3), é a força do nosso apostolado (cf. Cst 5), é a alma da nossa santidade "para Glória e Alegria de Deus" (Cst 25; cf. Cst 35-39).
    "Do Coração de Cristo, aberto na cruz, nasce o homem de coração novo, animado pelo Espírito" (Cst 3). Este nascimento, preanunciado a Nicodemos (cf. Jo 3, 3.5), realizou-se na transfixão do Lado, onde a água que brota de Cristo é sinal do dom do Espírito, do Batismo, do nascimento da Igreja e, na Igreja, de cada um de nós.

    Oratio

    Divino Coração de Jesus, Tu amaste e quiseste a cruz, como nos mostras nas chamas do teu amor; não tinhas modo mais forte de nos dizer que devemos amá-la. Abraço a tua cruz. Quero carregá-la hoje e todos os dias, praticando a regra, obedecendo, trabalhando e suportando as provações que vierem. (Pe. Dehon, OSP 4, p. 254)

    Contemplatio

    Esta festa mostra-nos o valor do sinal da cruz. É o sinal da salvação... A cruz fala a Deus, apresenta-lhe tudo o que Nosso Senhor sofreu por nós. Mas a cruz é também símbolo da penitência, da reparação, do sacrifício. A cruz coroou a vida de Nosso Senhor, que foi totalmente passada na humildade, no desapego, no desprezo pelos prazeres terrestres, e na expiação dos nossos pecados. A cruz fala às nossas almas, como um sinal sagrado, como um estandarte eloquente. Ela tornou-se o sinal do cristão. Ela indica o carácter da nossa vida. Somos cruzados, somos marcados pela luta e pelo sacrifício. Uma obra não é verdadeiramente cristã se não for marcada pela cruz. As nossas ações serão santas se tiverem esse sinal, se forem feitas em espírito de humildade, de penitência, de reparação. As nossas iniciativas serão abençoadas por Deus se forem marcadas pela cruz e, sendo preciso, será o próprio Deus a marcá-las com alguma provação, sobretudo se se tratar de uma obra importante. (Leão Dehon, OSP 4, p. 254).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Quem acreditar em Jesus elevado na cruz,
    terá a vida eterna» (cf. Jo 3, 15)

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    Exaltação da Santa Cruz (14 Setembro)

    XXIII Semana - Sábado - Tempo Comum - Anos Pares

    XXIII Semana - Sábado - Tempo Comum - Anos Pares


    14 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXIII Semana - Sábado

    Lectio
    Primeira leitura: Coríntios 10, 14-22
    14Meus caros, fugi da idolatria. 15Falo-vos como a pessoas sensatas; julgai vós mesmos o que digo. 16O cálice de bênção, que abençoamos, não é comunhão com o sangue de Cristo? O pão que partimos não é comunhão com o corpo de Cristo? 17Uma vez que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, porque todos participamos desse único pão. 18Vede o Israel segundo a carne: os que comem as vítimas não estão em comunhão com o altar? 19Que vos hei-de dizer, pois? Que a carne imolada aos ídolos tem algum valor, ou que o próprio ídolo é alguma coisa? 20Não! Mas aquilo que os pagãos sacrificam, sacrificam-no aos demónios e não a Deus. E eu não quero que estejais em comunhão com os demónios. 21Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demónios; não podeis participar da mesa do Senhor e da mesa dos demónios. 22Ou queremos provocar a ira do Senhor? Acaso somos mais fortes do que Ele?
    Paulo faz considerações sobre a vida sacramental da comunidade cristã de Corinto. As coisas não correm bem. Tal como nos vv. 1-13 alertou para o carácter fundamental do baptismo, trata, agora, da celebração eucarística, a que aludem as expressões «cálice de bênção, que abençoamos» e «o pão que partimos» (v. 16).
    Em primeiro lugar, o Apóstolo, lembra as notas características da eucaristia: é sacrifício agradável a Deus, pelo qual, quem o oferece entra em comunhão com Aquele a Quem é feita a oferta. Paulo dá grande importância a esta fundamental experiência mística, sem a qual toda a celebração não passa de exterioridade e cria divisão. Em segundo lugar, a eucaristia é sacramento de unidade: por sua natureza, tende a edificar a Igreja como corpo místico de Cristo. Um só cálice e «um só pão»: portanto, uma só Igreja! Esta dimensão eclesiológica - também sacramental - está intimamente ligada à primeira: entra-se a fazer parte da Igreja porque se pertence a Deus, porque se está radicado em Cristo. A eucaristia, para Paulo, é também sinal distintivo da comunidade crente, sinal distintivo dos verdadeiros crentes.

    Evangelho: Lucas 6, 43-49
    Naquele tempo, disse Jesus aos discípulos: 43«Não há árvore boa que dê mau fruto, nem árvore má que dê bom fruto. 44Cada árvore conhece-se pelo seu fruto; não se colhem figos dos espinhos, nem uvas dos abrolhos. 45O homem bom, do bom tesouro do seu coração tira o que é bom; e o mau, do mau tesouro tira o que é mau; pois a boca fala da abundância do coração.» 46«Porque me chamais 'Senhor, Senhor', e não fazeis o que Eu digo? 47Vou mostrar-vos a quem é semelhante todo aquele que vem ter comigo, escuta as minhas palavras e as põe em prática. 48É semelhante a um homem que edificou uma casa: cavou, aprofundou e assentou os alicerces sobre a rocha. Sobreveio uma inundação, a torrente arremessou-se com violência contra aquela casa mas não a abalou, por ter sido bem edificada. 49Mas aquele que ouve as minhas palavras e não as pratica é semelhante a um homem que edificou uma casa sobre a terra, sem alicerces. A torrente arremessou-se contra ela, e a casa imediatamente se desmoronou. E foi grande a sua ruína!»
    Estes versículos podem ser considerados variações sobre o tema das bem-aventuranças. Nota-se isso no contraste entre a «árvore boa» e a «árvore má» (v. 43), tal como no da casa construída sobre a rocha e a casa construída sobre a areia (vv. 48s.)
    Para Jesus, toda a pessoa é comparável a uma árvore, seja porque pode dar «bons frutos», seja porque não se lhe podem exigir bons frutos se for «má». As palavras de Jesus orientam-se do interior para o exterior (do coração para os actos), mas também do exterior para o interior (dos actos para o coração).
    Palavras como estas devem ter feito tremer os discípulos e os outros ouvintes. Jesus sabe o que há no coração dos homens e fala com um conhecimento muito próprio. Diante d´Ele, todos se sentem como cadernos abertos. Para Jesus há, pois, um «tesouro bom» e um «tesouro mau» (v. 45): em ambos os casos se trata do coração da pessoa humana, fonte dos seus pensamentos e nascente das suas acções.
    Para concluir, observemos como Jesus exige que a profissão de fé: 'Senhor, Senhor!' (v. 46) exija concretos actos de obediência. Mas o acto de obediência também deve ser inspirado pelo dom recebido, a fé.

    Meditatio
    Aprofundemos mais um pouco a palavra central desta página evangélica: «O homem bom, do bom tesouro do seu coração tira o que é bom; e o mau, do mau tesouro tira o que é mau; pois a boca fala da abundância do coração».
    É a motivação que queremos relevar: o coração humano experimenta uma plenitude que, de certo modo, não pode conter. Sobe-lhe do coração à boca. Não é fácil separar os pensamentos das palavras. O coração é a "central" da pessoa humana. Nele nascem e dele brotam pensamentos bons e pensamentos maus, projectos bons e projectos maus, acções boas e acções más.
    Uma pessoa, que tira o bem do bom tesouro do seu coração, é «semelhante a um homem que edificou uma casa sobre a rocha». O bom coração que ele recebeu como dom, e que procura cultivar com todas as suas forças, oferece-lhe permanentemente material para construir, tijolo a tijolo, a casa onde habitar com o seu Senhor, a morada da intimidade.
    Pelo contrário, uma pessoa que tira o mal do «mau tesouro» é como aquele que constrói sobre a areia. O coração mau que construiu para si, subtraindo-se à escuta da Palavra, e negando-se ao diálogo com o Senhor, não só o afasta cada vez mais da intimidade com Deus, mas também das relações fraternas. Arranja mesmo conflitos com aqueles que Deus convoca para a Sua casa.
    A nossa união com Cristo, «no seu amor pelo Pai e pelos homens», manifesta-se, não só «na escuta da Palavra e na partilha do Pão», mas também «na disponibilidade e no amor para com todos» (cf. Cst 17-18). A "Palavra", e sobretudo a "partilha do Pão", são um convite diário, eucarístico para nós, dehonianos, a sermos pão bom, partido pelos irmãos, de modo especial para os mais fracos e carenciados: «os pequenos e os que sofrem» (Cst. 18). As palavras de Cristo na instituição da eucaristia «Fazei isto em memória de Mim» (Lc 22, 19; 1 Cor 11, 24-25), não se referem apenas à Eucaristia como memorial, mas são
    um convite para todo o discípulo de Jesus para que seja "pão partido" e "sangue derramado" por todos.
    A Eucaristia é o máximo sacramento da união com Cristo e entre nós, edifica-nos na caridade como indivíduos e como comunidade: «Testamento do amor de Cristo que se entrega para que a Igreja se realize na unidade e assim anuncie a esperança ao mundo, a Eucaristia reflecte-se em tudo o que somos e vivemos» (Cst. 81). Cada celebração eucarística deve levar a um aumento de caridade fraterna no único amor do Coração de Jesus: «O pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um só pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão» (1 Cor 10, 16-17). Se a Igreja faz a Eucaristia, também é verdade que a Eucaristia faz a Igreja. A comunidade religiosa é a nossa pequena Igreja; constrói-se, desenvolve-se e floresce à volta de um único centro: o altar do Senhor, Cristo-Eucaristia. Se a Eucaristia brotou do amor do Coração de Cristo, o amor entre nós brota da Eucaristia: «Discípulos do Padre Dehon, queremos fazer da nossa união com Cristo, no seu amor pelo Pai e pelos homens, o princípio e o centro da nossa vida» (Cst. 17).

    Oratio
    Ó Senhor, aparecer mascarado com um "eu" que não se tem, é enganar; prometer um bem que não foi cultivado, é desilusão; falar das próprias qualidades sem as traduzir em obras, é vanglória; escutar sem pôr em prática, é perda de tempo.
    Ó Senhor, só quem maturou o próprio "eu" no íntimo do seu coração, poderá propô-lo original e apetecível para bem de todos; só quem cultivou os seus pontos fortes, no silêncio do seu eu profundo, pode oferecê-los, com força e coragem, para dar apoio a quem precisa; só quem vive no silêncio pode captar e avaliar a realidade que é e a que está à sua volta, aprendendo a exteriorizá-la com poucas palavras verdadeiras e muitas acções.
    Ensina-me, Senhor, que só posso apresentar aos outros, o que recolhi na quietude, na tua presença. Amen.

    Contemplatio
    O cardeal de Lugo faz-nos observar: Toda a matéria num sacramento exprime uma graça essencial especial. Ora, na sagrada Eucaristia, há uma matéria dupla: o pão e o vinho. Portanto, uma graça muito especial está ligada a cada uma das espécies, embora cada uma delas contenha todo o corpo, todo o sangue, toda a divindade, todo o Coração de Nosso Senhor Jesus Cristo.
    Há portanto uma graça ligada à Comunhão do cálice, distinta da do pão eucarístico. O santo e sábio cardeal acrescenta que esta graça consiste na embriaguez espiritual: et calix meus inebrians quam praeclarus est, na alegria forte e generosa: bonum vinum laetificat cor hominum, na própria acção de graças, porque o padre não encontra outro meio de exprimir o seu reconhecimento pelo amor tão grande do Salvador senão tomar e beber o cálice de sangue: quid retribuam Domino pro omnibus quae retribuit mihi? Calicem salutaris accipiam...
    O corpo, a alma, a inteligência, o coração, devemos tudo esquecer diante do Sagrado Coração eucarístico e sacerdotal; porque Ele se torna louco de amor por nós, porque não O imitaríamos nesta santa loucura? O Sagrado Coração de Jesus não gera senão alegria, esta alegria que inebriava os mártires no momento dos seus suplícios, esta alegria que arrebata para fora de si mesmos as almas das crianças, cheias de simplicidade e de rectidão e que é o fruto da comunhão no Sangue do Salvador. (Leão Dehon, OSP 2, pp.503-505).

    Actio
    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Uma vez que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo.» (1 Cor 10, 17).
    | Fernando Fonseca, scj |

  • 24º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    24º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]


    15 de Setembro, 2024

    ANO B
    24.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 24.º Domingo do Tempo Comum

    Por que caminhos temos de andar para que a nossa vida seja plenamente realizada? A liturgia do 24.º Domingo do Tempo Comum responde: a realização plena do homem passa pela obediência aos projetos de Deus e pelo dom total da vida aos irmãos. Quem quiser salvar a sua tranquilidade, o seu bem-estar, os seus interesses, os seus bens materiais, destruirá a sua vida para sempre; quem aceitar servir de forma simples e humilde, cuidar dos mais frágeis e necessitados, lutar por um mundo mais justo e humano, alcançará a plenitude da existência, pois a sua vida alimenta-se de amor.

    A primeira leitura traz-nos a palavra e o drama de um profeta anónimo, que no cumprimento da sua missão, enfrenta a incompreensão, a prisão, a tortura, a condenação. Apesar de tudo isso, o profeta não sente que a sua vida tenha sido um fracasso. Está absolutamente convicto de que Deus virá em seu auxílio e fá-lo-á triunfar sobre a perseguição e a morte. Os primeiros cristãos viram neste “servo de Deus” a figura de Jesus.

    O Evangelho apresenta Jesus como o Messias de Deus, enviado pelo Pai para indicar aos homens o caminho que conduz à Vida verdadeira. Ora, segundo Jesus, o caminho da Vida plena e definitiva é o caminho da cruz, do dom da própria vida, do amor até ao extremo. Jesus vai percorrer esse caminho; e quem quiser ser seu discípulo, tem de aceitar percorrer um caminho semelhante.

    Na segunda leitura, um “mestre” cristão lembra aos seus irmãos na fé que o seguimento de Jesus não se concretiza com belas palavras ou com teorias muito bem elaboradas, mas com gestos concretos de amor, de partilha, de serviço, de solidariedade para com os irmãos.

     

    LEITURA I – Isaías 50,5-9a

    O Senhor Deus abriu-me os ouvidos
    e eu não resisti nem recuei um passo.
    Apresentei as costas àqueles que me batiam
    e a face aos que me arrancavam a barba;
    não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam.
    Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio
    e por isso não fiquei envergonhado;
    tornei o meu rosto duro como pedra,
    e sei que não ficarei desiludido.
    O meu advogado está perto de mim.
    Pretende alguém instaurar-me um processo?
    Compareçamos juntos.
    Quem é o meu adversário?
    Que se apresente!
    O Senhor Deus vem em meu auxílio.
    Quem ousará condenar-me?

     

    CONTEXTO

    A primeira leitura do vigésimo quarto domingo comum pertence ao “Livro da Consolação”, do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). “Deutero-Isaías” é um nome convencional com que os biblistas designam um profeta anónimo da escola de Isaías, que cumpriu a sua missão profética na Babilónia, entre os exilados judeus, na fase final do Exílio (talvez entre 550 e 539 a.C., aproximadamente).

    A missão do Deutero-Isaías é consolar os exilados judeus. Nesse sentido, ele começa por anunciar a iminência da libertação e por comparar a saída da Babilónia ao antigo êxodo, quando Deus libertou o seu Povo da escravidão do Egipto (cf. Is 40-48); depois, anuncia a reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).

    No meio desta proposta “consoladora” aparecem, contudo, quatro poemas (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que se diferenciam um tanto da temática desenvolvida pelo profeta no resto do livro. Referem-se a uma figura enigmática, que o próprio Deus apresenta como “o meu Servo” (Is 42,1). O nome “Servo de Javé” é, na Bíblia, um título honorífico. Refere-se, habitualmente, a alguém a quem Deus chama a colaborar no seu projeto salvador. De facto, o “Servo de Javé” que nos é apresentado pelo Deutero-Isaías, foi eleito por Deus e recebeu de Deus uma missão (cf. Is 42,1a; 49,1-5). Essa missão tem a ver com a Palavra de Deus e tem caráter universal, pois deve concretizar-se no meio das nações (cf. Is 42,1b; 49,6); será vivida pelo “servo” na humildade, no sofrimento e na obediência incondicional ao projeto de Deus (cf. Is 42,2-3). Apesar de a missão terminar num aparente insucesso (cf. Is 53,2-3.7-9), a dor do profeta não foi em vão: ela tem um valor expiatório e redentor; dela resulta o perdão para o pecado do Povo (cf. Is 53,6.10). Deus aprecia o sacrifício do profeta e recompensá-lo-á, elevando-o à vista de todos, fazendo-o triunfar dos seus detratores e adversários (cf. Is 53,11-12).

    Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma do profeta que sofre por causa da Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho da Palavra no ambiente hostil do Exílio? É um profeta desconhecido? É uma figura coletiva, que representa o Povo exilado, humilhado, esmagado, mas que continua a dar testemunho de Deus, no meio das outras nações? É uma figura representativa, que une a recordação de personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras míticas, de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não sabemos; no entanto, a figura apresentada nesses poemas vai receber uma outra iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida e do seu destino.

    O texto que nos é proposto é parte do terceiro cântico do “servo de Javé”.

     

    MENSAGEM

    Quem toma a palavra é um personagem anónimo, que tem consciência de que foi chamado por Deus para a missão. Não se designa a si próprio como “servo”; mas assemelha-se a esse “servo” de que se fala no primeiro cântico do servo de Javé (cf. Is 42,1-9). Também não se intitula “profeta”; porém, narra a sua vocação com os elementos típicos dos relatos proféticos de vocação.

    A missão que este profeta/servo recebeu de Deus tem claramente a ver com o anúncio da Palavra. O profeta é o homem da Palavra, aquele através de quem Deus fala aos homens; a proposta de redenção que Deus faz a todos aqueles que necessitam de salvação/libertação ecoa na palavra profética. Ora, o profeta/servo acolheu a missão para a qual foi convocado; sem resistência, sem discussão, numa entrega total aos desígnios de Deus (vers. 5).

    Pela sua fidelidade a Deus e à missão, o profeta conheceu a prisão, a tortura, o sofrimento. A palavra proclamada em nome de Deus é uma palavra que incomoda e provoca resistências; daí resultam para o profeta, inevitavelmente, incompreensão e perseguição. No entanto, o profeta manteve-se impassível face aos perseguidores: apresentou as costas àqueles que lhe batiam e a face aos que lhe arrancavam a barba; não desviou o rosto dos que o insultavam e cuspiam” (vers. 6). Não por insensibilidade ou masoquismo, mas porque estava decidido a tudo suportar para levar até ao fim a missão que Deus lhe tinha confiado.

    Finalmente, o profeta reconhece que Deus nunca o abandonou. Fortalecido pelo auxílio de Deus, o profeta/servo teve força para enfrentar todas as contrariedades e dores que os seus inimigos lhe infligiram. Mesmo agora, enquanto está na prisão à espera de enfrentar o tribunal que o vai julgar, continua a confiar em Deus: sabe que Deus estará ao seu lado e que nunca o desiludirá (vers 7-9). Espera serenamente o momento em que Deus o irá defender, confundindo os seus detratores.

    O que mais impressiona neste texto é a serenidade com que o profeta, prisioneiro e sofredor, enfrenta o seu destino. Essa serenidade vem-lhe, não da inconsciência, da insensibilidade ou de uma leviana indiferença perante a morte, mas de uma total confiança no Deus que não falha e que não deixa cair aqueles que ama.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Não sabemos, efetivamente, quem é este “servo de Javé”; no entanto, os primeiros cristãos vão utilizar este texto como grelha para interpretar o mistério de Jesus: Ele é a Palavra de Deus feita carne, que oferece a sua vida para trazer a salvação/libertação aos homens… A vida de Jesus realiza plenamente esse destino de dom e de entrega da vida em favor de todos; e a sua glorificação mostra que uma vida vivida deste jeito não termina no fracasso, mas na ressurreição que gera Vida nova. No entanto, talvez esta conceção da vida nos pareça estranha e incongruente face àquilo que vemos acontecer todos os dias à nossa volta… Como é que me situo face a isto? Acredito que uma vida gasta como a de Jesus ou a do profeta/servo da primeira leitura deste domingo é uma vida com sentido e que conduz à Vida nova?
    • O profeta/servo que, sem hesitar, põe a sua palavra e a sua vida ao serviço da libertação dos seus irmãos – mesmo que isso implique para si próprio sofrimento, perseguição e humilhação – deixa-nos um desafio que não podemos ignorar… Vivemos cercados por ilhas de miséria e de dor onde tantos e tantos irmãos nossos permanecem prisioneiros; passamos a cada passo por homens e mulheres abandonados, esquecidos, atirados para as margens da história, privados dos seus direitos e dignidade; assistimos diariamente à crucifixão de tanta gente que luta contra os sistemas de opressão e de morte… O que fazemos? Permanecemos indiferentes e viramos a cara para outro lado para não ver e para não sermos incomodados, ou levantamos a voz para denunciar o egoísmo, a violência, a injustiça, as mil formas de maldade que desfeiam o mundo e destroem a Vida?
    • Temos consciência que a nossa missão profética passa por sermos Palavra viva de Deus que ecoa no mundo dos homens? Nas nossas palavras, nos nossos gestos, no nosso testemunho, a proposta libertadora de Deus alcança o mundo e o coração dos homens?
    • O profeta/servo da nossa leitura garante-nos que nunca desistirá da missão que lhe foi confiada porque confia em Deus: sabe que Deus estará sempre com ele e que nunca o desiludirá. Que fantástica expressão de confiança e de fé! Seremos capazes de dizer, com convicção, a mesma coisa? Acreditamos que Deus nunca nos desiludirá?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 114 (115)

    Refrão 1: Andarei na presença do Senhor sobre a terra dos vivos.

    Refrão 2: Caminharei na terra dos vivos na presença do Senhor.

    Refrão 3: Aleluia.

    Amo o senhor,
    porque ouviu a voz da minha súplica.
    Ele me atendeu
    no dia em que O invoquei.

    Apertaram-me os laços da morte,
    caíram sobre mim as angústias do além, vi-me na aflição e na dor.
    Então invoquei o Senhor:
    «Senhor, salvai a minha alma».

    Justo e compassivo é o Senhor,
    o nosso Deus é misericordioso.
    O Senhor guarda os simples:
    estava sem forças e o Senhor salvou-me.

    Livrou da morte a minha alma,
    das lágrimas os meus olhos, da queda os meus pés.
    Andarei na presença do Senhor,
    sobre a terra dos vivos.

     

    LEITURA II – Tiago 2,14-18

    Meus irmãos:
    De que serve a alguém dizer que tem fé, se não tem obras?
    Poderá essa fé obter-lhe a salvação?
    Se um irmão ou uma irmã não tiverem que vestir
    e lhes faltar o alimento de cada dia,
    e um de vós lhe disser: «Ide em paz.
    Aquecei-vos bem e saciai-vos»,
    sem lhes dar o necessário para o corpo,
    de que lhes servem as vossas palavras?
    Assim também a fé sem obras está completamente morta.
    Mas dirá alguém:
    «Tu tens a fé e eu tenho as obras».
    Mostra-me a tua fé sem obras,
    que eu, pelas obras, te mostrarei a minha fé.

     

    CONTEXTO

    O autor da Carta de Tiago apresenta-se a si próprio como “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (Tg 1,1). Mas, na verdade, não sabemos quem é este personagem. Não será, certamente, o Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João (cf. Mc 1,19), nem sequer o “Tiago, filho de Alfeu” que também integrava a lista dos Doze apóstolos de Jesus (cf. Mc 3,18). Também é pouco provável que seja o “Tiago, irmão do Senhor” (Gl 1,19; cf. Mc 6,3; At 12,17), que presidiu à comunidade cristã de Jerusalém e que foi martirizado no ano 62. Mas parece ser um cristão de origem judaica, que fala muito bem a língua grega e que conhece bem o Antigo Testamento.

    A carta é endereçada “às Doze tribos da Dispersão”, o que poderia supor que os seus destinatários seriam cristãos de origem judaica, a viver fora da Palestina. No entanto, a expressão pode também ser entendida em sentido metafórico e referir-se às comunidades cristãs (o novo “Povo de Deus”) que vivem espalhadas pelo mundo greco-romano.

    O escrito tem um cunho marcadamente judaico. O seu pensamento está enraizado no Antigo Testamento. É daí que o autor – um mestre cristão – parte para refletir sobre a existência cristã e desafiar os seus irmãos a viverem a sua fé de forma autêntica, empenhada e coerente.

    O nosso texto pertence à segunda parte da carta (cf. Tg 2,1-26). Aí, o autor trata dois temas fundamentais: a fé concretiza-se no amor ao próximo, sem qualquer tipo de discriminação ou de aceção de pessoas (cf. Tg 2,1-13); a fé expressa-se, não através de ritos formais ou de palavras ocas, mas através de ações concretas em favor do homem (cf. Tg 2,14-26). No geral, este capítulo convida os crentes a assumir uma fé operativa, que se traduz num compromisso social e comunitário.

     

    MENSAGEM

    O nosso texto refere-se à relação entre a fé e as obras. A tese do autor da Carta de Tiago é que a fé sem obras não serve para nada (vers. 14.17).

    É uma questão candente. Diversas correntes filosóficas gregas convidavam os crentes a centrar a atenção no conhecimento de Deus; mas não se referiam à dimensão moral e à necessidade de praticar obras boas. Paralelamente, a teologia paulina afirmava que “é pela fé que o homem é justificado, independentemente das obras da Lei” (Rm 3,28). Na verdade, Paulo não está, com esta afirmação, a contrapor a fé às obras, ou a dizer que as obras não são necessárias; o que ele está a fazer é contrapor o regime da fé ao regime da Lei, o regime de Cristo ao regime de Moisés: não é na Lei e em Moisés que o homem encontra a salvação, mas sim em Cristo. De resto, Paulo está bem consciente de que a fé “atua pelo amor” (Gl 5,6); e o amor, “o caminho que ultrapassa todos os outros” (1 Co 12,31), vive-se em gestos bem concretos (cf. 1 Co 13,1-11).

    Em qualquer caso, é natural que esta questão fosse abordada nas comunidades cristãs na segunda metade do séc. I. O autor da Carta de Tiago terá pretendido envolver-se nesta discussão e arremeter contra a tese paulina? Provavelmente não é essa a sua intenção quando afirma categoricamente que “a fé sem obras está completamente morta” (vers. 17). O que ele está a fazer é deixar um aviso “às doze tribos da Dispersão” de que as obras são inerentes à própria fé: a fé deve levar a ações concretas que traduzam de forma prática aquilo em que se acredita. Se isso não acontecer, essa fé é apenas uma declaração de boas intenções, mas que não passa de uma farsa sem valor e sem conteúdo.

    A adesão a Jesus e ao seu projeto (fé) significa que o homem está disposto a acolher essa Vida nova e plena que Deus, gratuitamente e sem condições, lhe oferece (salvação). Essa vida, interiorizada e assumida, tem de transparecer em gestos concretos de amor, de solidariedade, de fraternidade, de serviço, de partilha, de perdão. Quando um seguidor de Jesus vê um irmão a necessitar de comida ou roupa e não faz nada para o ajudar, é porque ainda não acolheu essa Vida nova que Jesus lhe propôs (vers. 15-16). Nesse caso, não se pode dizer que ele tenha fé: a sua pretensa adesão a Jesus é uma mentira. Quem não vive ao estilo de Jesus, é porque não acredita n’Ele.

    Os bonitos discursos que fazemos, os conselhos muito sábios que damos, as teorias bem elaboradas que apresentamos, as reflexões muito piedosas que impingimos, não passam de belas palavras que podem não significar nada. Quando um irmão tem fome, ou não tem que vestir, ou está a sofrer, é preciso ir ao seu encontro e manifestar-lhe, com gestos concretos, o nosso amor, a nossa solidariedade, a nossa fraternidade. A nossa religião tem de manifestar-se na vida e tem de transparecer nos nossos gestos.

     

    INTERPELAÇÕES

    • O que é ser cristão? O nosso compromisso cristão é algo que se vive a nível da teoria, ou do compromisso vital? O que caracteriza um cristão não é o conhecimento de belas fórmulas que expressam uma determinada ideologia, nem o cumprimento exato de ritos vazios e estéreis, nem uma assinatura feita no livro de registos de batismo da paróquia, mas é a adesão a Cristo. Ora, aderir a Cristo (fé), significa conformar, a cada instante, a própria vida com os valores de Cristo, seguir Cristo a par e passo no caminho do amor a Deus e da entrega total aos irmãos. Não se pode fugir a isto: a nossa caminhada cristã não é um processo teórico e abstrato concretizado num reino de belas palavras; mas é um compromisso efetivo com Cristo que tem de se traduzir, a cada instante, em gestos concretos em favor dos irmãos. A nossa fé em Jesus e na Vida que Ele nos propõe traduz-se em obras concretas em favor dos nossos irmãos, especialmente dos mais necessitados?
    • Os discípulos de Cristo são aqueles que vão atrás d’Ele e que aprendem com Ele como é que se vive, como é que se ama, como é que se constrói o Reino de Deus. Ora, Cristo lutou pela justiça e pela verdade, denunciou tudo aquilo que escravizava o homem e o impedia de ser feliz, foi ao encontro dos marginalizados e manifestou-lhes o amor de Deus, realizou gestos de serviço e de partilha, distribuiu o perdão e a paz, ofereceu a sua própria vida para salvar os seus irmãos. Quem acredita em Cristo tem de viver assim: tem de lutar, objetivamente, contra as estruturas que geram injustiça e opressão; tem de acolher e amar aqueles que a sociedade marginaliza e rejeita; tem de denunciar uma sociedade construída sobre esquemas de egoísmo e de mostrar, com o seu testemunho, que só a partilha e o amor tornam o homem feliz; tem de quebrar a espiral da violência e do ódio e propor a tolerância e o amor. Que obras fazemos? As nossas obras são as mesmas que Cristo fez?
    • Por vezes, há uma profunda dicotomia entre a fé que afirmamos e a vida que levamos. O nosso compromisso cristão traduz-se na participação certa nas eucaristias dominicais, na oferta de chorudas quantias para as obras da igreja, na participação destacada em manifestações públicas de religiosidade, na pertença a movimentos eclesiais… e mais nada. Depois, na vida do dia a dia, praticamos injustiças, pactuamos com esquemas de corrupção, criticamos e rotulamos aqueles de quem não gostamos, passamos indiferentes diante das necessidades e dores dos irmãos, tratamos com sobranceria os mais humildes e fracos, dizemos palavras que ferem e que levantam muros de desentendimento, demitimo-nos das nossas responsabilidades na construção de um mundo novo e melhor… De acordo com os ensinamentos da Carta de Tiago, a nossa religião será verdadeira se não se traduzir em gestos concretos de amor e de fraternidade?

     

    ALELUIA – cf. Gal 6,14

    Aleluia. Aleluia.

    Toda a minha glória está na cruz do Senhor,
    por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo.

     

    EVANGELHO – Marcos 8,27-35

    Naquele tempo,
    Jesus partiu com os seus discípulos
    para as povoações de Cesareia de Filipe.
    No caminho, fez-lhes esta pergunta:
    «Quem dizem os homens que Eu sou?»
    Eles responderam:
    «Uns dizem João Baptista; outros, Elias;
    e outros, um dos profetas».
    Jesus então perguntou-lhes:
    «E vós, quem dizeis que Eu sou?»
    Pedro tomou a palavra e respondeu: «Tu és o Messias».
    Ordenou-lhes então severamente
    que não falassem d’Ele a ninguém.
    Depois, começou a ensinar-lhes
    que o Filho do homem tinha de sofrer muito,
    de ser rejeitado pelos anciãos,
    pelos sumos sacerdotes e pelos escribas;
    de ser morto e ressuscitar três dias depois.
    E Jesus dizia-lhes claramente estas coisas.
    Então, Pedro tomou-O à parte e começou a contestá-l’O.
    Mas Jesus, voltando-Se e olhando para os discípulos,
    repreendeu Pedro, dizendo: «Vai-te, Satanás,
    porque não compreendes as coisas de Deus,
    mas só as dos homens».
    E, chamando a multidão com os seus discípulos, disse-lhes:
    «Se alguém quiser seguir-Me,
    renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me.
    Na verdade, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á;
    mas quem perder a vida, por causa de Mim e do Evangelho,
    salvá-la-á».

     

    CONTEXTO

    O texto que nos é hoje proposto é um texto central no Evangelho segundo Marcos. Apresenta-nos os últimos versículos da primeira parte (cf. Mc 8,27-30) e os primeiros versículos da segunda parte (cf. Mc 8,31-35) deste Evangelho.

    A primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30) tem como objetivo fundamental levar à descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Ao longo de um percurso que é mais catequético do que geográfico, os leitores do Evangelho são convidados a acompanhar a revelação de Jesus, a escutar as suas palavras e o seu anúncio, a fazerem-se discípulos que aderem à sua proposta de salvação. Este percurso de descoberta do Messias que o catequista Marcos nos propõe termina, em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe (que é, evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois de ter acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): “Tu és o Messias”.

    Depois, vem a segunda parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 8,31-16,8). Nesta segunda parte, o objetivo do catequista Marcos é explicar que Jesus, além de ser o Messias libertador, é também o “Filho de Deus”. No entanto, Jesus não veio ao mundo para cumprir um destino de triunfos e de glórias humanas, mas para oferecer a sua vida em dom de amor aos homens. Ponto alto desta “catequese” é a afirmação do centurião romano junto da cruz (que Marcos convida, implicitamente, os seus cristãos a repetir): “realmente este homem era o Filho de Deus” (Mc 15,39).

    Cesareia de Filipe – o cenário geográfico onde o Evangelho deste vigésimo quarto domingo comum nos coloca – era uma cidade situada no Norte da Galileia, no sopé do Monte Hermon, junto de uma das nascentes do rio Jordão (na zona da atual Bânias). Durante o período helenístico, a cidade tinha tomado o nome de Panion, em virtude de haver lá um santuário dedicado ao deus grego Pan; mas, no ano 2 ou 3 a.C., Herodes Filipe (filho de Herodes o Grande) reconstruiu-a e deu-lhe o nome de Cesareia, em honra de César Augusto, imperador de Roma. Era, portanto, uma cidade marcada pelo paganismo e pelo culto ao imperador.

     

    MENSAGEM

    Enquanto caminha para Cesareia de Filipe, Jesus lança aos discípulos uma dupla questão (vers. 27-30): o que é que as pessoas dizem d’Ele e o que é que os próprios discípulos pensam d’Ele?

    A opinião dos “homens” sobre Jesus reflete entendimentos e visões diversas. Os contemporâneos de Jesus veem-nO em continuidade com o passado (“és João Baptista”, “Elias”, ou “algum dos profetas” – vers. 28). Eles não captam a condição única de Jesus, a sua novidade, a sua originalidade. Reconhecem apenas que Jesus é um homem convocado por Deus e enviado ao mundo com uma missão – como os profetas do Antigo Testamento… Mas não vão além disso. Na perspetiva dos “homens”, Jesus é apenas alguém bom, justo, generoso, que escutou os apelos de Deus e que Se esforçou por ser um sinal vivo de Deus, como tantos outros homens antes d’Ele. É muito, mas não é o suficiente: significa que os “homens” não entenderam a novidade de Jesus, nem a profundidade do seu mistério.

    A opinião dos discípulos acerca de Jesus vai muito além da opinião comum. Eles acompanharam Jesus por toda a Galileia, conviveram com Ele noite e dia, escutaram as suas palavras e testemunharam os seus gestos… É natural que tenham visto em Jesus uma dimensão que as outras pessoas ainda não captaram. Pedro, porta-voz do grupo dos discípulos, resume o sentir da comunidade do Reino na expressão: “Tu és o Messias” (vers. 29). Dizer que Jesus é o “Messias” (o Cristo, o “ungido de Deus”) significa dizer que Ele é esse libertador que Israel esperava, enviado por Deus para libertar o seu Povo e para lhe oferecer a salvação definitiva.

    A resposta de Pedro estava correta. No entanto, a compreensão de Jesus como Messias podia prestar-se a graves equívocos, numa altura em que o título de Messias estava conotado com esperanças político-nacionalistas. Por isso, os discípulos recebem ordens para não falarem disso a ninguém. Era preciso evitar equívocos que poderiam ter consequências nefastas.

    Aliás, Jesus está consciente de que os próprios discípulos tinham ideias erradas acerca do Messias e da sua missão. Por isso, apressa-se a explicar-lhes que o seu messianismo não passa pelos triunfos políticos ou militares, mas pela cruz e pelo dom da vida. Depois dos confrontos que teve, por toda a Galileia, com os líderes religiosos judaicos, Jesus está bem consciente daquilo que o espera, se continuar a ser fiel ao projeto que o Pai lhe confiou. As lideranças recusam o Reino de Deus e irão fazer tudo para eliminar a proposta que Jesus traz. Por isso – para que tudo fique claro – fala “claramente” aos discípulos do destino que o espera em Jerusalém. Mas deixa também claro que a sua entrega na cruz não é o ponto final da sua vida: Ele ressuscitará “três dias depois”, porque a entrega da própria vida por amor é fonte de Vida definitiva (vers. 31).

    Pedro não está de acordo com esse final, pois não entende que a cruz conduza à Vida. Assim, opõe-se, decididamente, a que Jesus caminhe em direção ao seu destino de cruz (vers. 32). A oposição de Pedro (e dos discípulos, pois Pedro continua a ser o porta-voz da comunidade) significa que a sua compreensão do mistério de Jesus ainda é muito imperfeita. Para ele, a missão do “messias, Filho de Deus” é uma missão gloriosa e vencedora; e, na lógica de Pedro – que é a lógica do mundo – a vitória não pode estar na cruz e no dom da vida.

    Jesus dirige-se a Pedro com bastante dureza, pois Pedro está entrincheirado atrás de conceções puramente egoístas e não parece disposto a abandoná-las (vers. 33). O plano de Deus não passa por triunfos humanos, nem por esquemas de poder e de domínio; mas passa pelo dom da vida e pelo amor até às últimas consequências (de que a cruz é a expressão mais radical). Ao pedir a Jesus que não embarque nos projetos do Pai, Pedro está a repetir essas tentações que Jesus experimentou no início do seu ministério (cf. Mc 1,13); por isso, Jesus responde a Pedro: “Vai-te, Satanás”. As palavras de Pedro pretendem desviar Jesus do cumprimento dos planos do Pai; e Jesus não está disposto a transigir com qualquer proposta que O impeça de concretizar, com amor e fidelidade, os projetos de Deus.

    Depois de anunciar o seu destino (que será cumprido, em obediência ao plano do Pai, no dom da própria vida em favor dos homens), Jesus convida os seus discípulos a seguir um percurso semelhante: se quiserem ser seus discípulos, têm de “renunciar a si mesmo”, de “tomar a cruz” e de segui-l’O no caminho do amor, da entrega e do dom da vida (vers. 34). Jesus não obriga ninguém, apenas apresenta a proposta; cada um, sabendo o que uma decisão desse tipo implica, tem de fazer a sua escolha.

    O que é que significa, exatamente, renunciar a si mesmo? Significa renunciar ao seu egoísmo e autossuficiência, para fazer da vida um dom a Deus e aos outros. O discípulo de Jesus não pode viver fechado em si próprio, prisioneiro dos seus interesses e critérios pessoais, preocupado apenas em concretizar os seus projetos de riqueza, de segurança, de bem-estar, de domínio, de êxito, de triunfo… Aquele que opta pelo seguimento de Jesus passa a viver como Ele, colocando toda a sua existência ao serviço do projeto de Deus e do bem dos irmãos.

    O que é que significa “tomar a sua cruz” e seguir Jesus? “Tomar a cruz” é estar disponível para fazer da própria vida, até às últimas consequências, um dom de amor. Foi isso que Jesus fez. Mas Jesus não viveu essa entrega por amor apenas no calvário; Ele gastou toda a sua vida, desde o seu nascimento até à sua morte, a fazer o bem. Tomar a própria cruz e seguir Jesus é fazer de toda a vida – diariamente, vinte e quatro horas por dia e não apenas pontualmente – um dom de amor, ao serviço de Deus e dos irmãos.

    No final desta instrução, Jesus explica aos discípulos as razões pelas quais eles devem abraçar a “lógica da cruz”. Convida-os a entender que oferecer a vida por amor não é perdê-la, mas ganhá-la. Quem é capaz de dar a vida a Deus e aos irmãos, não fracassou; mas ganhou a Vida eterna, a Vida verdadeira que Deus oferece a quem caminha acordo com as suas propostas (vers. 35).

     

    INTERPELAÇÕES

    • Quem é Jesus? Como é que os homens do séc. XXI o veem? Muitos dos nossos contemporâneos – crentes, agnósticos ou mesmo ateus – veem em Jesus um homem bom, generoso, atento aos sofrimentos dos outros, que sonhou com um mundo diferente; outros veem em Jesus um admirável “mestre” de moral, que tinha uma proposta de vida “interessante”, mas que não conseguiu impor os seus valores; alguns veem em Jesus um admirável condutor de massas, que acendeu a esperança nos corações das multidões carentes e órfãs, mas que passou de moda quando as multidões deixaram de se interessar pelo fenómeno; outros, ainda, veem em Jesus um revolucionário, ingénuo e inconsequente, preocupado em construir uma sociedade mais justa e mais livre, que procurou promover os pobres e os marginais e que foi eliminado pelos poderosos, preocupados em manter o “status quo”. Que achamos destas “visões” sobre Jesus? Consideramo-las redutoras, ou exatas? Jesus terá sido apenas um “homem” que deixou a sua pegada na história humana, como tantos outros que a história absorveu e digeriu?
    • “E vós, quem dizeis que Eu sou?” – perguntou Jesus diretamente aos seus discípulos nos arredores de Cesareia de Filipe. É uma pergunta decisiva, que deve ecoar, de forma constante, nos ouvidos e no coração dos discípulos de Jesus de todas as épocas. A nossa resposta a esta questão não pode ficar-se pela repetição papagueada de velhas fórmulas que aprendemos na catequese, ou pela reprodução impessoal de uma definição tirada de um qualquer tratado de teologia. A questão vai dirigida ao âmago do nosso ser e exige uma tomada de posição pessoal, um pronunciamento sincero, sobre a forma como Jesus toca a nossa vida. A resposta a esta questão é o passo mais importante e decisivo na vida de cada crente. Quem é Jesus para nós? Que lugar ocupa Ele na nossa existência? Que valor damos às suas propostas? Que importância assumem os seus valores nas nossas opções de vida? Jesus é, para nós, a grande referência, o vetor à volta do qual o nosso mundo se constrói? Ele é para nós, de facto, “caminho, verdade e vida”?
    • Evangelho do vigésimo quarto domingo comum coloca frente a frente a lógica dos homens (Pedro) e a lógica de Deus (Jesus). A lógica dos homens aposta no poder, no domínio, no triunfo, no êxito; garante-nos que a vida só tem sentido se estivermos do lado dos vencedores, se tivermos dinheiro em abundância, se formos reconhecidos e incensados pelas multidões, se pudermos cercar-nos de bem-estar e garantir que os nossos dias decorram tranquilos e confortáveis, se assegurarmos a nossa quota de poder e influência… A lógica de Deus aposta na entrega da vida a Deus e aos irmãos; garante-nos que a vida só faz sentido se assumirmos os valores do Reino e vivermos no amor, na partilha, no serviço, na solidariedade, na humildade, na simplicidade… Na nossa vida de cada dia estas duas perspetivas confrontam-se, a par e passo e exigem de nós um posicionamento claro. Qual é a nossa escolha? Na nossa perspetiva, qual destas duas propostas apresenta um caminho de felicidade seguro e duradouro?
    • Jesus tornou-se um de nós para concretizar os planos do Pai e propor aos homens – através do amor, do serviço, do dom da vida – o caminho da salvação. Neste texto fica claramente expressa a fidelidade radical de Jesus a esse projeto. Por isso, Ele não aceita que nada nem ninguém O afastem do caminho do dom da vida: dar ouvidos à lógica do mundo e esquecer os planos de Deus é, para Jesus, uma tentação diabólica que Ele rejeita terminantemente. Que significado e que lugar ocupam na nossa vida os projetos de Deus? Esforçamo-nos, como Jesus, por descobrir a vontade de Deus a nosso respeito e a respeito do mundo? Mantemo-nos atentos, em cada passo do nosso caminho, a esses “sinais dos tempos” através dos quais Deus nos interpela? Somos capazes de acolher e de viver com fidelidade e radicalidade as propostas de Deus, mesmo quando elas são exigentes e vão contra os nossos interesses e projetos pessoais?

     

    • O que é que faz de nós verdadeiros discípulos de Jesus? Muitos de nós receberam uma catequese que insistia em ritos, em fórmulas, em práticas de piedade, em determinadas obrigações legais, mas que nem sempre punha em relevo o essencial do cristianismo: o seguimento de Jesus. No entanto, a identidade cristã constrói-se à volta de Jesus, do seu Evangelho, da sua proposta de vida. Sentimo-nos verdadeiramente discípulos de Jesus? Estamos disponíveis, de alma e coração, para ir atrás d’Ele no caminho da doação da vida e do amor até às últimas consequências?
    • Jesus convida os seus discípulos a renunciarem a si mesmos… O que é “renunciar a si mesmo”? É não deixar que o egoísmo, o orgulho, o comodismo, a autossuficiência, a ambição, a mentira, dominem a nossa vida. O seguidor de Jesus não vive fechado na sua zona de segurança, a olhar para si mesmo, indiferente aos dramas que se passam à sua volta, insensível às necessidades dos irmãos, alheado das lutas e reivindicações dos outros homens; mas vive para Deus e na solidariedade, na partilha e no serviço aos irmãos. Até que ponto estamos disponíveis para renunciar a nós mesmos e para colocar a nossa vida ao serviço do projeto de Deus?
    • Jesus também convida os seus discípulos a tomarem a cruz… O que é “tomar a cruz”? É amar até às últimas consequências, até à morte, se for necessário; é gastar cada instante da vida a servir, a amar, a cuidar, a fazer o bem… O seguidor de Jesus é aquele que está disposto a dar a vida para que os seus irmãos sejam mais livres e mais felizes. Por isso, o cristão não tem medo de lutar contra a injustiça, a exploração, a miséria, o pecado, mesmo que isso signifique enfrentar a morte, a tortura, as represálias dos poderosos. Aceitamos tomar cada dia a nossa cruz e a viver para os outros, como Jesus?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 24.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 24.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.

    Ficamos sempre admirados ao ver Jesus proibir que falem d’Ele. A razão é simples: tem medo que os seus discípulos ou a multidão desfigurem o seu rosto de Messias. Os homens olham com os olhos da carne, e que desejam eles? Um Messias nacionalista, poderoso, libertando o seu povo da ocupação romana. Quanto a Jesus, pede que O olhem com os olhos da fé: o Messias prometido é um Messias sofredor, porque Deus quer dar aos homens o sinal do seu Amor, um Amor que vai até ao fim, até ao dom total. Pedro terão, então, necessidade de purificar a sua fé, e é após a ressurreição que os seus olhos se abrirão, reconhecendo o Messias n’Aquele que lhe mostrará as suas chagas. E Ele mesmo fará a experiência da passagem pela morte para conhecer a Vida, ele caminhará atrás do seu Mestre, ele renunciará a si próprio, ele tomará a sua cruz e seguirá Jesus até ao fim.

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.

    Como qualquer ser humano, Pedro é uma mistura muito complexa de sombra e de luz. À questão de Jesus “para vós, quem sou Eu?”, ele responde: “Tu és o Messias”. Mateus precisa que é por uma revelação do Pai que Pedro pôde reconhecer que Jesus era o Messias. Daí a necessidade que Pedro estivesse aberto e acolhedor, na escuta do Pai! É o lado-luz do apóstolo… E logo depois, quando Jesus anuncia a sua paixão e morte, Pedro muda. Aos seus olhos, é o Mestre que se engana. Pedro aqui não escuta o Pai, fecha-se. É o lado-sombra de Pedro… Pedro ficará sempre o mesmo. Conhecemos bem as suas declarações de fidelidade incondicional, seguidas, alguns horas depois, pela sua tríplice negação. Ele terá a mesma atitude após o Pentecostes. Em Antioquia, segundo os Atos dos Apóstolos, ele não hesitava em comer com os pagãos convertidos a Jesus, o que um bom judeu não podia aceitar. Eis que pessoas que andavam com Tiago chegam. Pedro tem medo: vão contestá-lo. Então, retira-se. Através de Pedro, vemos como Deus age. Jesus escolheu Pedro para que fosse o primeiro servidor da unidade dos discípulos. Ele teve nele uma confiança ainda maior após a sua negação. Jesus não muda! Ele continua a escolher e a enviar discípulos para que sejam, ao serviço da unidade da comunidade, pastores que prolongam a ação do único Pastor. Mas estes homens guardam o seu lado-luz e o seu lado-sombra. S. Paulo dirá que Deus confia o seu tesouro a vasos de argila, “para que a vossa fé repouse, não na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus”. Apesar dos limites e dos defeitos dos pastores, o Espírito Santo continua a fazer crescer o Reino! Que Ele fortaleça a nossa fé e a nossa esperança!

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    Em nome de Jesus Cristo… Nesta semana, através dalguns pequenos “atos” (gestos de gentileza, de serviço, de perdão, de partilha, etc.), procuremos seguir o caminho de Cristo, mas tendo consciência de o fazer em seu nome, em nome do amor com que nos ama. E ofereçamos-Lhe estes pequenos testemunhos na nossa oração da tarde.

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

    Nossa Senhora das Dores

    Nossa Senhora das Dores


    15 de Setembro, 2024

    A devoção a Nossa Senhora das Dores remonta aos inícios do segundo milénio, quando se desenvolveu a com-paixão para com Maria junto à cruz de Jesus, onde a Virgem vive e sente os sofrimentos do seu Filho. O primeiro formulário litúrgico desta festa surgiu em Colónia, na Alemanha, no ano de 1423. Sisto IV inseriu no Missal Romano a memória da Senhora da Piedade. A atenção à "Mãe dolorosa" desenvolve-se gradualmente sob a forma das Sete Dores, representadas nas sete espadas que Lhe trespassam o peito. Os Servos de Maria, que celebravam a memória desde 1668, favoreceram a sua extensão à igreja latina, em 1727. Pio X colocou a memória no dia 15 de Setembro.

    Lectio

    Primeira leitura: Hebreus 5, 7-9
    Nos dias da sua vida terrena, apresentou orações e súplicas àquele que o podia salvar da morte, com grande clamor e lágrimas, e foi atendido por causa da sua piedade. 8Apesar de ser Filho de Deus, aprendeu a obediência por aquilo que sofreu 9e, tornado perfeito, tornou-se para todos os que lhe obedecem fonte de salvação eterna.

    Numa memória da Virgem Maria, a liturgia oferece-nos este texto claramente cristológico retirado de um contexto em que é sublinhada a filiação divina e a identidade sacerdotal de Cristo. Mas o Filho de Deus, que foi liberto da morte e do sofrimento, através dos quais foi tornado perfeito, é também filho de Maria. Os sofrimentos e a morte fazem parte da condição humana. Maria não foi isenta deles, apesar de mãe de Deus. Como Cristo, Maria «aprendeu a obediência». Cristo obedeceu em tudo. O seu alimento era fazer a vontade do Pai. Foi a atitude fundamental da sua vida ("Eis-me aqui!"), marcada por tantas alegrias, mas também por tantos sofrimentos. Foi também a atitude fundamental de Maria ("Eis a serva do Senhor"). A vontade de Deus levou-a até ao Calvário, solidária com Jesus: "Estava a mãe dolorosa junto da Cruz lacrimosa donde pendia o Filho".

    Evangelho: Lucas 2, 33-35

    Naquele tempo, o pai e mãe do Menino Jesus estavam admirados com o que se dizia dele.34Simeão abençoou-os e disse a Maria, sua mãe: «Este menino está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição; 35uma espada trespassará a tua alma. Assim hão-de revelar-se os pensamentos de muitos corações.

    Este breve texto está no centro do relato da «apresentação de Jesus ao templo», onde é levado pelos pais, conforme prescrevia a Lei para os primogénitos. A «espada», que trespassa a alma e atinge o coração, preanuncia os sofrimentos e as dores que Maria havia de passar. Mas, à luz de Hebreus 4, 12, a palavra espada também representa a Palavra de Deus, que, tanto Cristo como a sua Mãe, escutaram, e à qual prestaram total obediência, mesmo quando foi preciso enfrentar o sofrimento e a morte.

    Meditatio

    Vivemos num mundo onde a compaixão faz imensa falta. A memória que hoje celebramos ensina-nos a compaixão verdadeira e consistente. Maria sofre por Jesus, mas também sofre com Ele. Por sua vez, a paixão de Cristo é participação no sofrimento humano, é com-paixão solidário connosco.
    A carta aos hebreus faz-nos entrever os sentimentos de Jesus na sua paixão: "Nos dias da sua vida terrena, apresentou orações e súplicas àquele que o podia salvar da morte" (v. 7). A paixão de Jesus foi impressa no coração da Mãe. O clamor e as lágrimas do Filho fizeram-na sofrer de forma atroz. Como Jesus, e talvez até mais do que Ele, desejava que a morte se afastasse, e o Filho fosse salvo. Mas, ao mesmo tempo, Maria uniu-se à piedade de Jesus, submeteu-se, como Ele, à vontade do Pai.
    Por tudo isto, a compaixão de Maria é verdadeira: carregou realmente sobre si o sofrimento do Filho e aceitou, com Ele, a vontade do Pai, numa atitude de obediência que vence o sofrimento.
    A nossa compaixão, muitas vezes, é superficial. Não temos a fé de Maria. Nem sempre vemos no sofrimento dos outros a vontade de Deus, o que está certo. Mas também não sofremos com os que sofrem.
    As leituras de hoje fazem-nos pensar no sofrimento, que continua a ser uma realidade na história individual e coletiva da humanidade, mas que, de certo modo, também existe no mundo divino. Foi, de fato, assumido por Deus na Incarnação do Filho, e partilhado pela sua Mãe, uma mulher ao mesmo tempo comum e especial. A sua experiência de sofrimento humano, pode subtrair esse mesmo sofrimento à maldição e torná-lo mediação de vida salva e serviço de amor.

    Oratio

    Ó Maria, Mãe de Deus, Rainha e Mãe dos homens, eu vos ofereço as homenagens da minha veneração e do meu amor filial. Quero viver como vosso filho dedicado, consolando-vos e obedecendo-vos em tudo. Pela vossa poderosa intercessão, fazei que todos os meus pensamentos e ações sejam conformes à vossa vontade e à do vosso divino Filho. (Leão Dehon, OSP 4, p. 338).

    Contemplatio

    Enquanto permanecestes com o vosso divino Filho, ó Rainha dos Anjos, o vosso Coração sagrado esteve à espera das dores que vos tinham sido anunciadas pelo velho Simeão: dores sem igual, porque a grandeza do vosso amor era a sua medida. A hora da Paixão chega: Jesus despede-se de vós para ir sofrer, e faz-vos compreender que, para cumprir a vontade de seu Pai, deveis acompanhá-lo ao pé da cruz, e que o vosso coração tão terno lá será trespassado pela espada da dor. S. João vem advertir-vos que o Cordeiro divino vai ser conduzido à imolação. Saís imediatamente da vossa morada, banhando com as vossas lágrimas as ruas de Jerusalém; encontrais o vosso Filho no meio de uma tropa furiosa de carrascos e de tigres, que rugem e blasfemam, pedindo a grandes gritos que o crucifiquem... Ele caminha carregado com o madeiro da cruz; vós o seguis, toda banhada com as vossas lágrimas e com o coração mergulhado numa dor imensa.
    Ele chega finalmente ao Gólgota. Com golpes de martelo enterram nos seus pés e nas suas mãos cravos que perfuram o vosso coração materno. Logo o elevam da terra no meio de blasfémias. Ó meu Deus! Todo o vosso sangue gela nas vossas veias. Durante três horas, permaneceis ao pé da cruz de Jesus, cravada pelo amor e pela dor a esta árvore sagrada, até finalmente Ele expira no meio dos mais horríveis tormentos... Depositam-no sem vida nos vossos braços. A terra nunca viu semelhante dor. (Leão Dehon, OSP 4, p. 261s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores»

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    Nossa Senhora das Dores (15  Setembro)

  • XXIV Semana - Segunda-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXIV Semana - Segunda-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    16 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXIV Semana - Segunda-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 1 Coríntios 11, 17-26
    Irmãos: 17 Não posso louvar-vos: reunis-vos, não para vosso proveito, mas para vosso dano. 18Em primeiro lugar, ouço dizer que, quando vos reunis em assembleia, há divisões entre vós, e em parte eu acredito. 19É mesmo necessário que haja divisões entre vós, para que se tornem conhecidos aqueles que de entre vós resistem a esta provação. 20Quando, pois, vos reunis, não é a ceia do Senhor que comeis, 21pois cada um se apressa a tomar a sua própria ceia; e enquanto um passa fome, outro fica embriagado. 22Porventura não tendes casas para comer e beber? Ou desprezais a Igreja de Deus e quereis envergonhar aqueles que nada têm? Que vos direi? Hei-de louvar-vos? Nisto, não vos louvo. 23Com efeito, eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: o Senhor Jesus na noite em que era entregue, tomou pão 24e, tendo dado graças, partiu-o e disse: «Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isto em memória de mim». 25Do mesmo modo, depois da ceia, tomou o cálice e disse: «Este cálice é a nova Aliança no meu sangue; fazei isto sempre que o beberdes, em memória de mim.» 26Porque, todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciais a morte do Senhor, até que Ele venha.
    Paulo recebeu da tradição apostólica o ensinamento sobre a instituição da Eucaristia por Jesus (v. 23) e deve transmiti-lo às várias comunidades, pois a celebração eucarística tem grande importância para a vida delas.
    A eucaristia é, em primeiro lugar um chamamento, uma vocação divina: não pode reduzir-se a um simples encontro de indivíduos, ainda que motivado por razões louváveis. Pelo contrário, todas as vezes que a comunidade se reúne, obedece a um convite-mandamento do Senhor Jesus. Mais ainda: celebrar a eucaristia é fazer memória do Senhor morto e ressuscitado, para entrarmos em comunhão pessoal com Ele. A fórmula: «fazei isto em memória de mim» (v. 24 s.), também usada por Lucas, não deixa margem para dúvidas. Jesus não deixa aos discípulos um simples testamento, mas um verdadeiro memorial (de acordo com a linguagem técnica hebraica: zikkarôn). Em termos mais teológicos, diríamos: "memória eficaz e actualizante", capaz de produzir o que significa.
    A eucaristia é também comer a ceia do Senhor: não pode nem deve ser alterada esta dimensão convivial da eucaristia. Foi esse o sinal escolhido por Jesus, sinal escrupulosamente respeitado pela tradição apostólica; faltando este sinal, não temos o fruto da presença sacramental de Jesus, nem a eficácia salvífica da sua morte e ressurreição.

    Evangelho: Lucas 7, 1-10
    Naquele tempo, 1Quando acabou de dizer todas as suas palavras ao povo, Jesus entrou em Cafarnaúm. 2Ora um centurião tinha um servo a quem dedicava muita afeição e que estava doente, quase a morrer. 3Ouvindo falar de Jesus, enviou-lhe alguns judeus de relevo para lhe pedir que viesse salvar-lhe o servo. 4Chegados junto de Jesus, suplicaram-lhe insistentemente: «Ele merece que lhe faças isso, 5pois ama o nosso povo e foi ele quem nos construiu a sinagoga.» 6Jesus acompanhou-os. Não estavam já longe da casa, quando o centurião lhe mandou dizer por uns amigos: «Não te incomodes, Senhor, pois não sou digno de que entres debaixo do meu tecto, pelo que 7nem me julguei digno de ir ter contigo. Mas diz uma só palavra e o meu servo será curado. 8Porque também eu tenho os meus superiores a quem devo obediência e soldados sob as minhas ordens, e digo a um: 'Vai', e ele vai; e a outro: 'Vem', e ele vem; e ao meu servo: 'Faz isto', e ele faz.» 9Ouvindo estas palavras, Jesus sentiu admiração por ele e disse à multidão que o seguia: «Digo-vos: nem em Israel encontrei tão grande fé.» 10E, de regresso a casa, os enviados encontraram o servo de perfeita saúde.
    Nesta narrativa, Lucas centra mais a sua atenção na fé, que alcança o milagre, do que no próprio milagre. A figura do centurião pagão assume um papel emblemático.
    A fé do centurião compõe-se de humildade e confiança. Essas duas atitudes tornam-no aberto ao dom que está para receber e tornam aberta a comunidade dos discípulos de Jesus, que pode receber e incluir pessoas das mais diversas origens étnicas e sociais. Há um pormenor que suscita a nossa atenção, até pela sua actualidade. Enquanto os anciãos recomendam o centurião a Jesus por alguns méritos que, a seus olhos, tinha adquirido («Ele merece que lhe faças isso, pois ama o nosso povo e foi ele quem nos construiu a sinagoga» (v. 4), o próprio centurião manda dizer a Jesus: «Não te incomodes, Senhor, pois não sou digno de que entres debaixo do meu tecto» (v. 6). Naturalmente, para Jesus são mais importantes estas palavras, que indicam uma grande e sincera humildade, do que as dos anciãos interesseiros.
    Lucas, como Mateus, considera este acontecimento um prelúdio da chegada dos pagãos à Igreja. Isso interessa-lhe ainda mais porque ele, e só ele, há-de sentir a necessidade de dedicar a segunda parte da sua obra, os Actos dos Apóstolos, a este grande evento. Vislumbra-se a dimensão universal da salvação trazida por Jesus.

    Meditatio
    Ambas as leituras de hoje nos nos levam a pensar na Eucaristia, no lugar central que ela tem na vida da Igreja, e nas disposições de fé de e amor que exige.
    Na primeira leitura, Paulo entrega às suas comunidades um precioso bem testamentário por meio de dois verbos técnico-teológicos ("receber" - "transmitir": cf. também 1 Cor 15, 3). Que podemos aprender, para sermos comunidade eucarística, com estes dois verbos?
    Em primeiro lugar, verificamos a auto-consciência apostólica de Paulo: um aspecto auto-biográfico, digamos, mas no mais elevado sentido do termo. O que interessa ao Apóstolo não é dar-se a conhecer pelas suas características pessoais, mas sim pela sua missão, de que não pode eximir-se. A transmissão da memória daquilo que o Senhor disse e fez na vigília da sua paixão é elemento essencial e irrenunciável dessa missão apostólica.
    Em segundo lugar, verificamos a centralidade da Eucaristia no tesouro de verdades que os apóstolos sentem obrigação de transmitir. É como que afirmar que as comunidades cristãs, e cada um dos discípulos, não podem viver nem testemunhar a fé, se não tiverem no centro da sua vida a Eucaristia, memória actualizante do mistério pascal, capaz de produzir a graça que significa.
    Em terceiro lugar percebe-se concretamente a verdade da expressão: "A Eucaristia faz a Igreja". Seria pouco pensar que a Igreja "faz", isto é, celebra, a Eucaristia. Há que ir mais longe, até ao evento da Páscoa de Cris
    to, de que a Eucaristia é "memória" fiel e actualizante. A celebração eucarística, memorial da Páscoa do Senhor, é o princípio da nossa comunhão fraterna e a fonte do nosso serviço apostólico, como escreve o Pe. Dehon no seu Testamento Espiritual (cf. DSP nn. 276-284).
    «A celebração do Memorial da morte e ressurreição do Senhor constitui para nós o momento privilegiado da nossa fé e da nossa vocação de Sacerdotes do Coração de Jesus», dizem as Constituições (n. 80). «Fazei isto em memória de Mim» (Lc 22, 19; cf. 1 Cor 11, 24-25). É o mandamento de Jesus para trazermos ao presente o Seu mistério pascal, para actualizarmos a última Ceia e a morte de Cristo na Cruz, para nos tornarmos participantes da Ressurreição. Tudo isto acontece por obra do Espírito Santo: «O Espírito Santo recordar-vos-á tudo aquilo que vos disse» (Jo 14, 26).
    «Fazei isto em memória de Mim» (Lc 22, 19) é um forte convite de Jesus para vivermos o mistério da Sua oblação: "constitui para nós o momento privilegiado da nossa fé e da nossa vocação de Sacerdotes do Coração de Jesus" (Cst. 80); a eucaristia é um convite a participarmos no sacerdócio de Cristo e no Seu estado de vítima: «Com um só sacrifício, - afirma o autor da Carta aos Hebreus - tornou perfeitos para sempre os que foram santificados» (10, 14; cf. Heb 5, 7-10).
    No evangelho, escutamos a oração do centurião, que a Igreja nos faz repetir antes da sagrada comunhão: «Senhor, eu não sou digno de que entres debaixo do meu tecto» (v. 6). Jesus ficou admirado com a fé do centurião (v. 9), que de tal modo acreditava no poder da sua Palavra, que julgava desnecessária a sua presença para que o servo ficasse curado. Nós acreditamos que o poder da Palavra de Jesus O torna presente sob as espécies eucarísticas.

    Oratio
    Obrigado, Senhor, pelos teus dons gratuitos. Quero, hoje agradecer-Te particularmente o dom da tua graça, que me dás sempre antecipadamente e ultrapassando as minhas expectativas. Que aprenda a alegrar-me contigo e com o meu próximo, por todos os teus dons, por todos os sinais da tua paterna bondade. A tua graça é sempre experimentada num tempo e num espaço concreto do nosso dia a dia. Que eu Te reconheça, Senhor, no caminho em que me acompanhas.
    Dá-me um coração livre de pretensões, de preconceitos, de rancores e de orgulho para estar pronto a receber a tua graça. Faz-me capaz de Te receber, de apreciar as tuas surpresas: só então poderei experimentar o teu amor. Amen.

    Contemplatio
    Olhai para Jesus à mesa da Ceia, abençoando o Pão, que Ele muda substancialmente no seu corpo. Vêde-O elevando ao céu os seus olhos divinos. Todo o seu rosto brilha com uma doçura inefável. Ele está num êxtase de amor. É que neste momento o Sagrado Coração realiza o ideal da sua vida. Ele quis oferecer-nos uma nascente de graças, onde pudéssemos colher todas as bênçãos e todas as alegrias. Quis também dar-se a nós para viver na intimidade com cada um de nós. Realiza tudo isto instituindo a Eucaristia, e está como que inebriado de alegria e de amor.
    «Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco» (Lc 22). Durante toda a sua vida, Jesus tinha fome e sede de ver o dia desta páscoa. Queria abrir-nos esta nascente de vida, queria começar esta intimidade connosco.
    A Eucaristia era a nascente de todos os dons que o seu Coração nos abria. Não é apenas um dom especial, um favor particular que este Coração liberal quer fazer às almas que ama; são todos os dons ao mesmo tempo, são todas as graças concentradas num só dom. Sejam quais possam ser as necessidades de uma alma nesta vida, é aqui que ela encontra o socorro, o remédio, os biblioteca para tudo. É um resumo de todos os seus dons que nos deixou o Deus de misericórdia, dando-nos este pão de vida: Memoriam fecit mirabilium suorum misericors et miserator dominus, escam dedit timentibus se (Leão Dehon, OSP 2, p. 416).

    Actio
    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Isto é o meu corpo entregue por vós» (1 Cor 11, 24).
    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXIV Semana - Terça-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXIV Semana - Terça-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    17 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXIV Semana - Terça-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 1 Coríntios 12, 12-14.27-31a
    Irmãos: 12Como o corpo é um só e tem muitos membros, e todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, constituem um só corpo, assim também Cristo. 13De facto, num só Espírito, fomos todos baptizados para formar um só corpo, judeus e gregos, escravos ou livres, e todos bebemos de um só Espírito. 14O corpo não é composto de um só membro, mas de muitos.
    27Vós sois o corpo de Cristo e cada um, pela sua parte, é um membro. 28E aqueles que Deus estabeleceu na Igreja são, em primeiro lugar, apóstolos; em segundo, profetas; em terceiro, mestres; em seguida, há o dom dos milagres, depois o das curas, o das obras de assistência, o de governo e o das diversas línguas. 29Porventura são todos apóstolos? São todos profetas? São todos mestres? Fazem todos milagres? 30Possuem todos o dom das curas? Todos falam línguas? Todos as interpretam? 31Aspirai, porém, aos melhores dons.
    O Apóstolo tratou dos sacramentos do baptismo e da eucaristia, como eventos centrais na vida dos cristãos. Agora, dedica três capítulos da sua carta à problemática das relações entre carismas e ministérios na comunidade, questão muito viva na comunidade de Corinto, mas sempre mais ou menos presente na vida da Igreja.
    Logo no começo do capítulo 12, Paulo afirma que a autenticidade dos carismas depende da pureza da profissão de fé: «Ninguém, falando sob a acção do Espírito Santo, pode dizer: «Jesus seja anátema», e ninguém pode dizer: «Jesus é Senhor», senão pelo Espírito Santo» (vv. 1-3). Há pluralidade de carismas, mas uma só fonte: a Trindade (vv. 4-6). Logo depois, o Apóstolo afirma que a manifestação do Espírito, por meio dos vários carismas, é dada a cada um para o bem de toda a comunidade. E começa o discurso mais genuinamente teológico. Paulo quer fazer compreender que os dons que recebemos e os serviços que somos chamados a prestar têm o seu fundamento na graça que recebemos por meio dos sacramentos, em força dos quais formamos um só corpo, o corpo de Cristo que é a Igreja. Todos, de facto, «fomos baptizados para formar um só corpo, judeus e gregos, escravos ou livres, e todos bebemos de um só Espírito» para formar um só corpo (v. 139.
    A unidade não exclui a diversidade dos membros, dos dons, dos ministérios, mas garante-a e exalta-a reconduzindo-a à sua fonte divina, à Trindade, e orientando-a para o bem da comunidade eclesial.

    Evangelho: Lucas 7, 11-17
    Naquele tempo, 11Jesus dirigiu-se a uma cidade chamada Naim, indo com Ele os seus discípulos e uma grande multidão. 12Quando estavam perto da porta da cidade, viram que levavam um defunto a sepultar, filho único de sua mãe, que era viúva; e, a acompanhá-la, vinha muita gente da cidade. 13Vendo-a, o Senhor compadeceu-se dela e disse-lhe: «Não chores.» 14Aproximando-se, tocou no caixão, e os que o transportavam pararam. Disse então: «Jovem, Eu te ordeno: Levanta-te!» 15O morto sentou-se e começou a falar. E Jesus entregou-o à sua mãe. 16O temor apoderou-se de todos, e davam glória a Deus, dizendo: «Surgiu entre nós um grande profeta e Deus visitou o seu povo!» 17E a fama deste milagre espalhou-se pela Judeia e por toda a região.
    Lucas gosta de estabelecer relações entre Jesus e o profeta Elias (cf. 1 Re 17, 10-24), entre Jesus e o profeta Eliseu (2 Re 4, 18-37). O terceiro evangelista narra a ressurreição do filho único de uma certa mãe viúva, natural de Naim. Prodígios idênticos foram também realizados por Elias e Eliseu. Sabemos que Lucas também dá particular atenção às mulheres, no terceiro evangelho e nos Actos. Também a figura da mãe viúva que perdeu o seu filho único sensibiliza Jesus que, «Vendo a, se compadeceu¬ dela e lhe disse: «Não chores» (v. 13). Este episódio não nos revela só um aspecto da psicologia de Jesus, a sua sensibilidade, mas também, a sua opção em favor dos fracos e dos marginalizados. Aquela mulher, na sociedade a que pertencia, estava incluída nessas categorias de pessoas.
    Finalmente, Jesus é aclamado como «um grande profeta» (v. 16). Para Lucas, este título tem especial significado: Jesus é profeta, não só pelo que "diz", mas também pelo que "faz" (acções, gestos, milagres) e, sobretudo, pelo modo como se comporta: sente compaixão, comove-se interiormente e partilha a dor daquela mãe. Assim se manifesta Jesus como profeta no sentido mais integral do termo: não só traz a Palavra de Deus, mas também se coloca ao lado dos homens.

    Meditatio
    Uma leitura atenta de 1 Cor 12, revela-nos a genialidade do pensamento de Paulo. Como já dissemos, o primeiro pensamento de Paulo refere-se à relação entre carismas e ministérios, por um lado, e à ortodoxia da fé, por outro lado. Deve ser este o ponto de referência da ortopraxe.
    Em segundo lugar, Paulo evidencia a relação entre os carismas recebidos e a sua origem trinitária. Estamos sempre no âmbito da fé, mas é evidente que Paulo fala, não de uma Trindade abstracta, que está acima dos céus, mas da Trindade "económica", isto, considerada na relação com a nossa vida e com a vida da comunidade. Depois tratará da relação entre a dimensão pessoal e a dimensão comunitária dos carismas: isto para deitar por terra qualquer tentativa de privatizar o dom divino ou de cada um os pôr ao serviço de si mesmo ou da sua categoria social.
    Depois da relação entre carismas, ministérios e vida sacramental, Paulo ilustra o seu pensamento com dois apólogos: no primeiro, fazendo falar os membros do corpo humano, leva-nos a compreender que a beleza e a harmonia de uma comunidade se fundamenta na variedade dos seus membros, tão solícitos em contribuir para o bem-estar da própria comunidade. Fica assim expresso o princípio da complementaridade em ordem à unidade.
    No segundo apólogo, o Apóstolo ilustra outra lei, típica do corpo humano e de toda a comunidade, também da cristã. É o princípio da subsidiariedade, pelo qual, todos os membros, também os mais nobres, precisam dos outros, mesmo dos mais humildes. Por isso, não pode haver divisões na comunidade, tal como não pode haver divisões no corpo humano (12, 15-26).
    A comunidade religiosa, tal como toda a comunidade cristã, tem Cristo como centro e constrói-se à volta do altar: é uma comunidade eucarística. Recordemos que a eucaristia, nova Páscoa, no momento da sua instituição, realiza o verdadeiro Êxodo e convida-nos a sair do nosso egoísmo, a ultrapassar todas as divisões, a curar todas as feridas. A celebração eucarística, memorial da Páscoa do Senhor, é o princípio da nossa comunh
    ão fraterna e a fonte do nosso serviço apostólico, como nos diz o Pe. Dehon no Testamento Espiritual.
    Tudo aquilo que provoque divisões na comunidade, é absurdo para nós, Oblatos-Sacerdotes do Coração de Jesus, que «fazemos profissão de tender à caridade perfeita, consagrando-nos inteiramente ao amor de Deus e dos nossos irmãos» (Cst. 14). Sem caridade nem sequer vivemos a «fé que dá fundamento à nossa esperança, a fé que orienta a nossa vida e nos inspira a deixar tudo para seguir a Cristo» (Cst. 9; cf. n. 42). Devemos implorar sempre ao Coração de Jesus que renove o nosso coração: «Do Coração de Cristo, aberto na cruz, nasce o homem de coração novo, animado pelo Espírito e unido aos seus irmãos na comunidade de amor, que é a Igreja» (n. 3).
    Os carismas são para o serviço (cf. 1 Cor 12, 7; Ef 4, 12). Daqui se compreende o espírito de serviço que deve caracterizar todo o discípulo do Senhor, não por sede de lucro ou por orgulho, mas unicamente animado pela oblação de amor: «Jesus... tendo amado os Seus, que estavam no mundo, amou-os até ao fim» (Jo 13, 1).
    Para servir, conforme o exemplo de Jesus, é preciso amar «não só com palavras e com língua, mas com obras e em verdade» (1 Jo 3, 18; Cst n. 18).

    Oratio
    Senhor, ao dar-nos a vida, confiaste-nos uma missão a realizar, mas também a defender contra quem, por ignorância ou por interesse tenta impor-nos outra. Torna-nos fortes, Senhor!
    Senhor, ao dar-nos a vida, confiaste-nos qualidades únicas e irrepetíveis, que nos tornam idóneos o serviço, que somos chamados a realizar no mundo e na Igreja, para a tua glória, para nossa realização pessoal e para o bem dos irmãos. Torna-nos disponíveis, Senhor!
    Senhor, ao dar-nos a vida, mergulhaste-nos no mundo que, cada um de nós, com as suas notas características, deve contribuir para tornar melhor, conscientes de que notas diferentes levam a uma harmonia belíssima, e são indispensáveis para a realização do teu desígnio de salvação. Torna-nos solidários, Senhor!
    Senhor, ao dar-nos a vida, tornaste-nos participantes da tua vida: tornaste-nos ícone vivo da tua vida de amor e de comunhão, senhores da criação para tua glória. Senhor, dá-nos um coração agradecido e humilde! Amen.

    Contemplatio
    O primeiro prodígio que nos impressiona no mistério da Incarnação é a habitação de Deus connosco, como um de nós: «Emmanuel: Deus nobiscum». - «Et Verbum caro factum est et habitavit in nobis». Pela sua omnipresença, Deus habita sempre connosco, mas o infinito separa-o da nossa pobre humanidade. Ele não tem um coração de homem para sentir por experiência o que é a compaixão. E eis o que o Verbo realizou fazendo-se homem; tornou-se nosso amigo, nosso companheiro, nosso irmão; é nosso Pai e como nosso Filho. Tais são os segredos que nos revelaram Belém e Nazaré. Lá, vimos o Deus omnipotente, a sabedoria eterna tornada um encantador, mas frágil menino, humilde, submisso, fazendo-se o pequeno servo das suas criaturas e mais tarde continuando na sua vida apostólica, por amor, esta servidão do seu Coração a respeito dos homens. Não era Ele o nosso servidor, aquele cuja ocupação era toda curar as doenças da nossa alma e do nosso corpo? Oh! Como é verdadeira esta palavra do nosso doce Salvador: «O Filho do Homem veio para servir, e não para ser servido!» «Desceu do céu e fez-se homem!» Eis os prodígios que este Coração adorável realizou! Não pensa senão em fazer-nos subir e Ele não sonha senão em descer até nós (Leão Dehon, OSP 2, p. 418).

    Actio
    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Vós sois o corpo de Cristo e cada um, pela sua parte, é um membro» (1 Cor 12, 27.
    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXIV Semana - Quarta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXIV Semana - Quarta-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    18 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXIV Semana - Quarta-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 1 Coríntios 12, 31-13,13
    Irmãos: 31Aspirai, porém, aos melhores dons.Aliás, vou mostrar-vos um caminho que ultrapassa todos os outros. 1Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um bronze que soa ou um címbalo que retine. 2Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas, se não tiver amor, nada sou. 3Ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me aproveita. 4O amor é paciente, o amor é prestável, não é invejoso, não é arrogante nem orgulhoso, 5nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita nem guarda ressentimento. 6Não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. 7Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. ? amor jamais passará. As profecias terão o seu fim, o dom das línguas terminará e a ciência vai ser inútil. 9Pois o nosso conhecimento é imperfeito e também imperfeita é a nossa profecia. 10Mas, quando vier o que é perfeito, o que é imperfeito desaparecerá. 11Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Mas, quando me tornei homem, deixei o que era próprio de criança. 12Agora, vemos como num espelho, de maneira confusa; depois, veremos face a face. Agora, conheço de modo imperfeito; depois, conhecerei como sou conhecido. 13Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e o amor; mas a maior de todas é o amor.
    Paulo insere o chamado "Hino do amor" no centro dos capítulos dedicados à relação entre carismas e ministérios. Este hino é, sem dúvida, uma das mais belas páginas das suas cartas e, talvez, de todo o Novo Testamento.
    O Apóstolo apresenta, em primeiro lugar, o amor como o maior carisma, como o melhor caminho. Mas o "Hino do amor" não é uma saída espiritual evasiva. Paulo insere-o no concreto de uma vida cristã pessoal e comunitária, que, além de um fundamento, precisa de um centro. É preciso aprender a amar como Deus ama: pelos mesmos motivos, com a mesma intensidade, de modo linear e incondicionado, com uma carga afectiva inesgotável.
    Em segundo lugar, os cristãos devem amar como Cristo ama: em total disponibilidade pessoal, em total abertura aos outros, no desejo de caminhar juntos. O amor cristão, ou caridade, por sua natureza, está indissoluvelmente ligado à fé e à esperança. Mas, em relação às outras duas virtudes teologais, o amor é claramente superior, devido à sua origem divina, pela sua carga cristológica e por estar destinado à comunidade.

    Evangelho: Lucas 7, 31-35
    Naquele tempo, disse Jesus: 31«A quem, pois, compararei os homens desta geração? A quem são semelhantes? 32Assemelham-se a crianças que, sentadas na praça, se interpelam umas às outras, dizendo:'Tocámos flauta para vós, e não dançastes! Entoámos lamentações, e não chorastes!' 33Veio João Baptista, que não come pão nem bebe vinho, e dizeis: 'Está possesso do demónio!' 34Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizeis: 'Aí está um glutão e bebedor de vinho, amigo de cobradores de impostos e de pecadores!' 35Mas a sabedoria foi justificada por todos os seus filhos.»
    Depois de estabelecer uma relação entre Jesus e o profeta Elias, Lucas compara-O a João Baptista. As diferenças entre os dois são evidentes e significativas. O objectivo de Lucas e sublinhar a simpatia com que o povo simples acolhe Jesus, em contraste com a atitude dos fariseus e doutores da lei. Por isso, é bom ler os vv. 29 ss. Que precedem esta página evangélica.
    Jesus usa uma comparação que deixa transparecer o seu duro juízo acerca dos seus contemporâneos. A pergunta inicial é certamente retórica. Não se refere a todos os contemporâneos de Jesus, mas apenas àqueles que, não tendo prestado atenção ao Precursor, também agora O não querem ouvir. Essas pessoas são como as crianças que se recusam a participar tanto na alegria dos casamentos como na tristeza dos funerais. Parece tratar-se da obstinação com que alguns Judeus recusaram a Palavra de Deus, personificada em Jesus. Revelam um coração impermeável a todo e qualquer convite à penitência e à conversão.
    Sob o ponto de vista histórico, demos atenção a duas expressões, uma dirigida a João: «Está possesso do demónio!» (v. 33) e outra dirigida a Jesus: «Aí está um glutão e bebedor de vinho, amigo de cobradores de impostos e pecadores!» (v. 34). Duas desculpas fáceis, que revelam uma mentalidade fechada e unicamente capaz de condenar sem piedade. A expressão final relativa à sabedoria que foi justificada «por todos os seus filhos» (Mt escreve «pelas suas obras») leva-nos a pensar noutra categoria de pessoas diametralmente oposta: aqueles que buscam a verdade e que se deixam interpelar por toda a verdadeira pregação, abrindo-se ao de espírito de Deus que actua nas palavras e nas obras de Jesus.

    Meditatio
    O «Hino do amor» suscita a nossa admiração e entusiasmo. Que belo ideal de vida cristã nos apresenta o Apóstolo! Sentimos de certo movidos a agradecer-lhe. Mas também tomamos consciência do amor que existe entre nós, e queremos dar graças ao Senhor por esse precioso carisma.
    Que significa a exortação de Paulo: «Aspirai aos melhores dons. Aliás, vou mostrar-vos um caminho que ultrapassa todos os outros»? Porque é que o Apóstolo apresenta o amor como «um caminho que ultrapassa todos os outros»? Em primeiro lugar porque, contempla, em pano de fundo, a caridade com que Cristo nos amou até à morte e à ressurreição. Estamos novamente diante do mistério pascal. É a via crucis que se torna via lucis para quem se mantém fiel às regras do discipulado e, portanto, a lei fundamental do amor. Também Lucas, nos Actos (cf 9, 2; 22, 4; 24, 22) apresenta o cristianismo, não como uma doutrina, mas como um caminho, «o caminho». A comunidade dos discípulos é formada por aqueles que escolheram avançar pelos caminhos do mundo para lembrar a todos que só Cristo Jesus é o caminho a percorrer para chegar à salvação.
    Assim compreendemos melhor todo o sentido e todo o alcance da auto-definição de Jesus: «Eu sou o caminho» (cf. Jo 14, 6). É deste modo que a reflexão teológica do Novo Testamento atinge o cume, sobretudo porque João deixa entender que Jesus é «o caminho», uma vez que é «a verdade e a vida».
    «O seu Caminho é o nosso caminho» lembram-nos as nossas Constituições (n. 12). Trata-se do caminho do
    amor oblativo percorrido por Jesus Cristo, e que passou pelo Calvário, pela imolação. É o caminho que Paulo aponta a todos os cristãos no capítulo 12 da Carta aos Coríntios e, de modo ainda mais directo, na Carta aos Efésios: «Caminhai na caridade - exorta-nos S. Paulo - como Cristo nos amou e se entregou a Si mesmo por nós, oferecendo-Se a Deus em sacrifício de suave odor» (Ef 5, 2; TOB). É a perspectiva vitimal, tão cara ao Pe. Dehon e que as Constituições nos apontam claramente (cf.Cst 12).

    Oratio
    Senhor, liberta-nos, de um coração endurecido, de um coração semelhante ao dos fariseus e doutores da lei, fechados nos seus preconceitos e na sua presunção, cegos pelo poder, pelas ambições e pelo orgulho. Abre o nosso coração à tua luz! Então, a nossa inteligência, activada por um bem melhor, já descoberto mas ainda não experimentado, poderá remover os obstáculos que a bloqueiam no seu egoísmo, e a nossa vontade poderá orientar-se para Ti, sem se perder atrás de medos injustificados.
    Dá-nos, Senhor, um coração simples! Não seremos, desse modo, comparados a crianças caprichosas que recusam todo o convite. Seremos, sim, como crianças corajosas, capazes de nos aventurar pelo mundo das tuas maravilhas, encantados com o teu amor misterioso e surpreendente.
    Dá-nos, Senhor, um coração semelhante ao teu, para que possamos conhecer os teus pensamentos, partilhar os teus projectos, percorrer os teus caminhos. Amen.

    Contemplatio
    O amor ultrapassa o temor e a esperança. O amor não destrói o temor nem a esperança, mas retira-lhes o que o amor-próprio lhe pode misturar de visões mercenárias.
    O amor não conhece habitualmente outro temor senão o temor filial, isto é, o medo de desagradar a um Pai bem-amado. Sendo filho do amor, este temor é de uma atenção e delicadeza totalmente diferentes do medo da justiça divina e dos seus castigos. Leva a evitar as mínimas faltas, as mais pequenas imperfeições voluntárias. Em vez de comprimir e de gelar o coração, alarga-o e aquece-o. Não causa nenhuma perturbação, nenhum alarme; e mesmo quando escapa alguma falta, reconduz docemente a alma ao seu Deus através de um arrependimento tranquilo e sincero. Procura acalmar-se e reparar abundantemente da mágoa que se lhe pôde causar. De resto, não se inquieta nem perde a confiança.
    O amor tira também à esperança o que ela tem de demasiado pessoal. Aquele que ama não sabe outra coisa senão contar com Deus, nem fazer boas obras principalmente com o objectivo de acumular méritos; e por este nobre desinteresse, merece incomparavelmente mais. Esquecendo tudo o que fez por Deus, não pensa noutra coisa senão em fazer ainda mais. Não se apoia sobre si mesmo; visa a recompensa celeste menos sob o título de recompensa do que como uma garantia de amar o seu Deus com todas as suas forças e de ser por Ele amado durante a eternidade. Sem excluir a esperança, que lhe é natural, considera a felicidade mais do lado do bom agrado do seu Deus e da sua glória que lhe pertence do que do lado do seu próprio interesse. E quando o amor está no seu ponto mais elevado de perfeição, estaria disposto a sacrificar a sua felicidade própria à vontade divina, se exigisse dele este sacrifício. Coloca a sua felicidade no cumprimento desta vontade (Leão Dehon, OSP 2, p. 16-17).

    Actio
    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança, o amor; mas a maior de todas é o amor» (1 Cor 13, 13).
    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXIV Semana - Quinta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXIV Semana - Quinta-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    19 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXIV Semana - Quinta-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 1 Coríntios 15, 1-11
    Irmãos: 1Lembro-vos, irmãos, o evangelho que vos anunciei, que vós recebestes, no qual permaneceis firmes 2e pelo qual sereis salvos, se o guardardes tal como eu vo-lo anunciei; de outro modo, teríeis acreditado em vão. 3Transmiti-vos, em primeiro lugar, o que eu próprio recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; 4foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; 5apareceu a Cefas e depois aos Doze. 6Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma só vez, a maior parte dos quais ainda vive, enquanto alguns já morreram. 7Depois apareceu a Tiago e, a seguir, a todos os Apóstolos. 8Em último lugar, apareceu-me também a mim, como a um aborto. 9É que eu sou o menor dos apóstolos, nem sou digno de ser chamado Apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus. 10Mas, pela graça de Deus, sou o que sou e a graça que me foi concedida, não foi estéril. Pelo contrário, tenho trabalhado mais do que todos eles: não eu, mas a graça de Deus que está comigo. 11Portanto, tanto eu como eles, assim é que pregamos e assim também acreditastes.
    Parece que circulavam, entre os cristãos de Corinto, dúvidas acerca da verdade da ressurreição de Cristo, o que punha em causa a integridade da fé e a unidade da Igreja. Paulo intervém decididamente O evento da ressurreição é objecto do testemunho apostólico: são muitos, e dignos de fé, aqueles que viram o sepulcro vazio e o Senhor Ressuscitado. O próprio Paulo fez experiência do Ressuscitado e, por isso afirma: «pela graça de Deus sou o que sou» (v. 10). O evento da ressurreição de Jesus entrou na pregação apostólica. A partir dele os Apóstolos, não só aderiram à novidade de Cristo com todas as forças, mas fizeram dele sua tarefa missionária. Se Cristo não tivesse ressuscitado, seria vã a sua pregação e o seu trabalho, como afirma o Apóstolo. O mesmo evento da ressurreição de Cristo é objecto directo e imediato da fé dos primeiros cristãos: se Cristo não tivesse ressuscitado, seria vã a nossa fé - afirma Paulo - e nós seríamos os mais infelizes do mundo: infelizes porque enganados e iludidos. É, pois, claro que, ao serviço desta verdade fundante do cristianismo, não está só a tradição apostólica, mas também o testemunho da comunidade crente e de todo o verdadeiro discípulo de Jesus.

    Evangelho: Lucas 7, 36-50
    Naquele tempo, 36Um fariseu convidou Jesus para comer consigo. Entrou em casa do fariseu, e pôs-se à mesa. 37Ora certa mulher, conhecida naquela cidade como pecadora, ao saber que Ele estava à mesa em casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com perfume. 38Colocando-se por detrás dele e chorando, começou a banhar-lhe os pés com lágrimas; enxugava-os com os cabelos e beijava-os, ungindo-os com perfume. 39Vendo isto, o fariseu que o convidara disse para consigo: «Se este homem fosse profeta, saberia quem é e de que espécie é a mulher que lhe está a tocar, porque é uma pecadora!» 40Então, Jesus disse-lhe: «Simão, tenho uma coisa para te dizer.» «Fala, Mestre» - respondeu ele. 41«Um prestamista tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos denários e o outro cinquenta. 42Não tendo eles com que pagar, perdoou aos dois. Qual deles o amará mais?» 43Simão respondeu: «Aquele a quem perdoou mais, creio eu.» Jesus disse-lhe: «Julgaste bem.» 44E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: «Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me deste água para os pés; ela, porém, banhou-me os pés com as suas lágrimas e enxugou-os com os seus cabelos. 45Não me deste um ósculo; mas ela, desde que entrou, não deixou de beijar-me os pés. 46Não me ungiste a cabeça com óleo, e ela ungiu-me os pés com perfume. 47Por isso, digo-te que lhe são perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas àquele a quem pouco se perdoa pouco ama.» 48Depois, disse à mulher: «Os teus pecados estão perdoados.» 49Começaram, então, os convivas a dizer entre si: «Quem é este que até perdoa os pecados?» 50E Jesus disse à mulher: «A tua fé te salvou. Vai em paz.»
    No evangelho de hoje, cruzam-se dois temas de fundo: em tom polémico, a oposição de Jesus a um fariseu; em tom de proposta, a relação entre Jesus e a pecadora. Mas, observando melhor, vemos que os dois temas se cruzam e se iluminam mutuamente. Ao fariseu, Jesus quer ensinar que uma pessoa não se considera só a partir do exterior, ou das suas experiências passadas. Uma mulher, notoriamente pecadora, é sempre capaz de tomar um novo rumo. Precisa apenas de encontrar irmãos, não hipercríticos e invejosos, mas alguém que a compreenda e redima. Jesus veio para isso! À mulher, Jesus quer ajudar a compreender que a vida vale, não pela soma das experiências passadas, ainda por cima negativas e deletérias, mas pelo encontro central e decisivo com a Sua pessoa, que não é só capaz de compreender e de perdoar, mas também de resgatar e de renovar. Foi para isso que Ele veio!
    A nós, destinatários do Evangelho, Jesus quer fazer-nos compreender que é a fé que nos salva: a fé n´Ele, verdadeiro homem, amigos dos homens, sobretudo dos pecadores, e verdadeiro Deus, feito homem, feito amigo dos publicanos, dos pecadores e das meretrizes, Deus capaz de remeter todos os nossos pecados, um Deus com uma palavra consoladora e eficaz para cada um de nós: «A tua fé salvou te. Vai em paz.» (v. 50).

    Meditatio
    Vamos hoje dar particular atenção à primeira leitura. Mas não podemos deixar de sublinhar a fé da mulher de que nos fala o evangelho. É uma fé viva na misericórdia de Deus. O próprio Jesus a sublinha: «A tua fé te salvou. Vai em paz» (v. 50). São muitos os obstáculos entre esta pobre mulher e Deus. Mas, graças à sua fé, Jesus pode destruí-los e devolver-lhe a paz!
    Paulo recorda o núcleo central da fé da Igreja, a Ressurreição de Jesus, que alguns pareciam estar a pôr em causa, em Corinto. Se a Eucaristia é o centro da fé cristã, a Ressurreição de Jesus é o culminar da vida de Jesus e de toda a história da salvação e, portanto, também do nosso caminho de fé. Na verdade, para usar as palavras do próprio Apóstolo, se tal evento fosse irreal, cairiam por terra o testemunho apostólico e a nossa fé. Para aprofundar esta verdade, podemos realçar algumas expressões da página paulina.
    A ressurreição é, antes de mais, um evangelho, uma alegre notícia, porque nela se manifesta, de modo estrondoso, o poder de Deus para salvação da humanidade. Esta boa notícia destina-se a tornar bela a nossa história pessoal e comunitária, e a difundir beleza e ha
    rmonia no próprio universo. A ressurreição é o ponto de chegada da vida de Jesus, e o ponto de partida da história da Igreja: é cume e fonte! Nela se enxerta a história de Cristo e a história da Igreja, criando entre elas uma unidade indissolúvel. Não acreditamos, pois, numa verdade abstracta, mas num evento histórico que nos envolve pessoalmente, comunitariamente. O evento da ressurreição de Jesus é também uma promessa, porque abre permanentemente, para todo o homem e para toda a mulher de boa vontade, uma perspectiva de novidade de vida e de renovação da história. Sob este aspecto, a ressurreição de Jesus pode ser considerada também como um evento incompleto enquanto nós próprios não ressuscitarmos.
    De acordo com as nossas Constituições, é na Eucaristia que nós, dehonianos, haurimos a inspiração e a força para anunciar a Boa Nova da Ressurreição de Cristo, para sermos testemunho de esperança entre os homens (cf. Cst. 81). É a Eucaristia, celebrada e adorada, que nos impele a lançar-nos «incessantemente, pelos caminhos do mundo ao serviço do Evangelho» (Cst. 82), para sermos testemunhas e arautos da misericórdia e do amor de Deus, «para a reconciliação dos homens com Deus» (Cst. 83) e «para promover a unidade dos cristãos e de todos os homens» (Cst. 84).

    Oratio
    Senhor, a pecadora alerta-nos, de forma forte e discreta, para um amor incondicional. Perdoaste-lhe os pecados gratuitamente, ensinando-nos a lógica do dom, sem razões nem interesses. É bonito dar, mas, sobretudo, dar-se! Senhor, é eterna a tua misericórdia!
    Perdoaste muito à pecadora apenas porque ela confiou no teu amor, e ignoraste a lógica do perdão, que avalia cada um pelo dom que é. É bonito doar, mas é bonito, sobretudo, perdoar. Senhor, é eterna a tua misericórdia!
    Ofereceste à pecadora a tua paz, porque, com fé, acreditou em Ti, ensinando-nos a lógica do abandono, que oferece compaixão a quem confia. É bonito abandonar o supérfluo, mas é bonito, sobretudo, abandonar-se a Ti! Senhor, é eterna a tua misericórdia! Amen.

    Contemplatio
    Que misericórdia o Coração sacerdotal de Jesus mostrou também pela mulher adúltera! Ela é acusada, conforme a lei. Jesus afasta habilmente os seus acusadores, depois diz-lhe: «Não há mais ninguém para te condenar, Eu também não te condenarei. Vai, mas renuncia ao pecado».
    Em todas estas circunstâncias, Jesus antecipava-nos no confessionário.
    E Madalena? Era uma grande pecadora, conhecida em toda a região pelas suas desordens e pelos seus escândalos. Foi ganha pela bondade de Jesus. Foi liberta de sete demónios. Vai sem respeito humano fazer um acto público de humildade em casa de Simão, o fariseu.
    Abraça os pés de Jesus. O celeste médico lança um olhar de compaixão nesta alma doente. Perdoa a esta penitente, que se tornará o modelo ideal do arrependimento e da gratidão.
    Ó Padres, como o nosso ministério junto dos pecadores é delicado! Como é preciso ser bom, zeloso e dedicado para os reconduzir a Jesus Cristo! (Leão Dehon, OSP 2, p. 563).

    Actio
    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Cristo morreu pelos nossos pecados, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras» (1 Cor 15, 3ss.).
    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXIV Semana - Sexta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXIV Semana - Sexta-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    20 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXIV Semana - Sexta-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 1 Coríntios 15, 12-20
    Irmãos: 12Se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como é que alguns de entre vós dizem que não há ressurreição dos mortos? 13Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. 14Mas se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã é também a vossa fé. 15E resulta até que acabamos por ser falsas testemunhas de Deus, porque daríamos testemunho contra Deus, afirmando que Ele ressuscitou a Cristo, quando não o teria ressuscitado, se é que, na verdade, os mortos não ressuscitam. 16Pois, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. 17E, se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé e permaneceis ainda nos vossos pecados. 18Por conseguinte, aqueles que morreram em Cristo, perderam-se. 19E se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens.
    Paulo afirma com total convicção que a ressurreição de Cristo é fundamento da nossa fé e da nossa esperança. Foi isso que ele intuiu no caminho de Damasco. Foi essa a certeza que o amparou na dura vida apostólica. O Apóstolo encontrou-se verdadeiramente com Cristo vivo, com Cristo vencedor da morte. Dessa vitória, brota para todo o crente o dom de esperar, para além de toda as possibilidades humanas. De facto, Cristo ressuscitado é «primícias dos que morreram», é «o primogénito de muitos irmãos» (Rm 8, 29). Todos quantos acolherem, pela fé, a Cristo como Salvador, farão a experiência da ressurreição.
    A esperança cristã baseia-se na certeza de que a morte foi vencida, de que a vida nova em Cristo foi inaugurada, de que, em Cristo, viveremos sempre a plenitude da vida, na totalidade do nosso ser humano: corpo, alma, espírito. A esperança cristã é uma esperança-dom, penhor de um bem futuro, que ultrapassará todas as previsões.

    Evangelho: Lucas 8, 1-3
    Naquele tempo, 1Jesus ia de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, proclamando e anunciando a Boa-Nova do Reino de Deus. Acompanhavam-no os Doze 2e algumas mulheres, que tinham sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demónios; 3Joana, mulher de Cuza, administrador de Herodes; Susana e muitas outras, que os serviam com os seus bens.
    Ao terminar esta secção do seu evangelho (6, 20-8,3), Lucas dá-nos algumas informações sobre quem acompanhava Jesus no seu ministério público. Acompanhavam-no os Doze, como bem sabemos. Mas, segundo uma informação exclusiva de Lucas, acompanhava-no também «algumas mulheres, que tinham sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades» (v. 2). Lucas indica os nomes delas.
    Estas notícias não devem espantar-nos. Lucas, como sabemos, devido à sua formação e à sua sensibilidade, dava grande atenção à presença das mulheres na vida de Jesus. Aqui, elas não são apenas ouvintes da sua Palavra ou destinatárias dos seus milagres: colaboram com Ele, apoiando o seu ministério. Isto tem grande interesse: Jesus sabia redimir e libertar algumas mulheres da sua situação espiritual negativa, atraindo-as para junto de si e confiando-lhes tarefas de assistência em relação a Ele e aos apóstolos.
    Jesus soube, pois, valorizar a presença e o serviço de algumas mulheres durante a sua vida pública, o que provavelmente desencadeou a crítica e a malevolência de alguns seus contemporâneos, apenas habituados a instrumentalizar e a explorar as mulheres. Também sobre este aspecto, tão actual, Jesus é apresentado por Lucas como o libertador de que a humanidade precisava.

    Meditatio
    Paulo evidencia, na primeira leitura, a solidariedade entre Cristo e nós, e entre nós e Cristo: «Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou» (v. 13). A ressurreição de Cristo não existe sem a nossa ressurreição: «Se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou» (v. 16). Ele ressuscitou por nós, tal como incarnou por nós. «Por nós». Pensemos frequentemente nesta solidariedade, que nos faz sepultados com Ele, ressuscitados com Ele, amados, com Ele, pelo Pai, e nos dá a força e a alegria para dizermos: «Por ti, Senhor!». Por ti, este trabalho, este sofrimento, esta alegria, este repouso.
    A certeza da ressurreição de Cristo é garantia da nossa esperança. A esperança é, pois, em primeiro lugar um dom, um dom do alto, um dom gratuito, imerecido, um dom que revela o coração do doador: Deus, de facto, em Jesus Cristo ressuscitado dos mortos, quer dar, dia a dia, a todos e a cada um motivos sempre novos para esperar na sua divina e omnipotente misericórdia. Acreditar na ressurreição significa refundar a nossa esperança em Deus. A esperança cristã é profundamente cristológica: «Cristo, minha esperança, ressuscitou!», exclama, segundo a liturgia, Maria Madalena, ao dirigir-se aos apóstolos. Neste seu grito, podemos reconhecer o nosso, que sai do nosso coração todas as vezes que o pecado tenta fechá-lo na tristeza.
    A esperança cristã é também uma virtude, uma atitude a assumir diante de Deus em sinal de reconhecimento e de acção de graças. Neste sentido, esperar, para nõs, significa viver em plenitude a nossa fé, mantendo-a aberta não só ao passado da ressurreição de Cristo, mas também ao futuro da nossa própria ressurreição. A esperança - foi dito - é a mais pequena, mas também a mais preciosa das virtudes: feliz apresentação de um dom excepcional de deus às suas criaturas, pelo qual podemos manter aberto o nosso coração às surpresas de Deus.
    Lemos nas nossas Constituições: «Na Igreja, fomos iniciados na Boa Nova de Jesus Cristo: «Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem» (1 Jo 4,16). Recebemos o dom da fé que dá fundamento à nossa esperança; uma fé que orienta a nossa vida e nos inspira a deixar tudo para seguir a Cristo; no meio dos desafios do mundo, devemos consolidá-la, vivendo-a na caridade...» (n. 9). Note-se a interdependência das três virtudes teologais: «o dom da fé que dá fundamento à nossa esperança», a consolidar «vivendo-a na caridade».
    A nossa esperança é marcadamente cristológica: «O Pai enviou-nos o seu Filho... Pela ressurreição, constituiu-O Senhor, Coração da humanidade e do mundo, esperança de salvação para quantos ouvem a sua voz» (Cst. 19).

    Oratio
    Obrigado, Senhor, porque, desafiando a mentalidade do teu tempo, arrancaste a mulher do túmulo da desumanização, restabelecendo o seu valor de pessoa humana. Obrigado, Senhor, porque, ul
    trapassando os preconceitos e os abusos da cultura em que vivias, libertaste a mulher do túmulo da subordinação, valorizando a sua presença e o seu serviço. Obrigado, Senhor, porque, envolvendo a mulher no teu ministério público, a ergueste do túmulo da descriminação, prevendo o seu actual papel profético no campo social, Professional, político, eclesial. Obrigado, Senhor, por todas aquelas mulheres que, seguindo o teu exemplo, colaboraram na obra de redenção, restituindo à mulher o lugar que lhe fora dado por Deus. Que eu saiba olhar a mulher com olhos semelhantes aos teus. Amen.

    Contemplatio
    O terceiro fruto da devoção às cinco chagas é a esperança. Jesus Cristo está preso à cruz para nos esperar, as suas mãos querem-nos abraçar, o seu lado aberto deixa escaparem-se correntes de sangue de graça. Devemos portanto alegrar-nos, porque destas chagas santas saem a salvação, a vida e a ressurreição. S. Tomé, ao meter os dedos nestas chagas santas, delas retirou a fé e graças abundantes. Nós também, delas retiraremos todos os socorros de que temos necessidade.
    Ao adorarmos, ao contemplarmos as chagas do Salvador, mesmo a do lado, não entramos ainda necessariamente na via do amor, se não subirmos até ao Coração de Jesus, fonte de todos os seus sacrifícios. É lá que devemos entrar, se quisermos imolar uma hóstia plena e inteiramente agradável a Deus.
    Para nós, o amor tudo abarca, domina e contém todas as outras devoções. Não as exclui, mas transforma-as todas em devoção de amor.
    Nosso Senhor mesmo dizia à Bem-Aventurada Margarida Maria: «Não penses nem te apliques senão a amar perfeitamente, a agradar-me em tudo e em todas as ocasiões. Que o meu amor seja o objecto de todas as tuas acções, de todos os teus pensamentos e de todos os teus desejos. Não estejas aplicada a amar-me senão para te tornares digna de me amar todos os dias cada vez mais. Asseguro-te que, sem te inquietares com outra coisa, far-me-ás ainda mais pelo exercício do santo amor do que pelo que me prometeste pelos teus votos. A unidade do meu puro amor te proporcionará lugar de atenção na multiplicidade de todas estas coisas». (Leão Dehon, OSP 2, p. 353-355).

    Actio
    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram» (1 Cor 15, 20).
    | Fernando Fonseca, scj |

  • S. Mateus, Apóstolo

    S. Mateus, Apóstolo


    21 de Setembro, 2024

    S. Mateus era um cobrador de impostos, profissão pouco bem conceituada. Jesus chamou-o a segui-lo. É o próprio Mateus que, de modo muito simples, nos conta a sua conversão (cf. Mt 9, 1-9). Lucas evidencia o banquete oferecido por Mateus, em que Jesus está presente e revela o seu amor misericordioso pelos pecadores. Dotado de certa cultura, Mateus foi o primeiro a recolher por escrito os acontecimentos da vida de Jesus, que testemunhara, agrupando-lhe nesse quadro os ensinamentos do Mestre. O seu evangelho, escrito entre os anos 62 e 70, é especialmente destinado aos seus compatriotas judeus. Apresenta Jesus como o novo Moisés, aquele que dá ao novo Povo de Deus a nova lei do amor. Mateus dá também grande atenção à Igreja que Jesus convoca, salva e institui.

    Lectio

    Primeira leitura: Efésios 4, 1-7.11-13

    Eu, o prisioneiro no Senhor, exorto-vos, pois, a que procedais de um modo digno do chamamento que recebestes; 2com toda a humildade e mansidão, com paciência: suportando-vos uns aos outros no amor, 3esforçando-vos por manter a unidade do Espírito, mediante o vínculo da paz. 4Há um só Corpo e um só Espírito, assim como a vossa vocação vos chamou a uma só esperança; 5um só Senhor, uma só fé,um só baptismo;  6um só Deus e Pai de todos, que reina sobre todos, age por todos e permanece em todos. 7Mas, a cada um de nós foi dada a graça, segundo a medida do dom de Cristo. 11E foi Ele que a alguns constituiu como Apóstolos, Profetas, Evangelistas, Pastores e Mestres, 12em ordem a preparar os santos para uma actividade de serviço, para a construção do Corpo de Cristo, 13até que cheguemos todos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, ao homem adulto, à medida completa da plenitude de Cristo.

    Paulo exorta os cristãos a uma vida digna da sua vocação, formando "um só corpo" em Cristo Jesus. A condição de prisioneiro dava-lhe maior autoridade para fazer uma tal exigência. A harmonia, a paz, são indispensáveis para viver em unidade. Esta unidade espiritual entre os cristãos é motivada pela sociabilidade e comunitariedade próprias da vida cristã: a Igreja é "um só corpo" animado por "um só Espírito" e por "uma só esperança" na salvação eterna a que a fé em Cristo nos convida. "Um só" é o Senhor, Jesus, que derrubou o muro da separação e da inimizade, e deu a todos a fé e o batismo, como meios de salvação. Acima de tudo, está a única paternidade divina: há "um só Deus e Pai de todos" (v. 6).

    Evangelho: Mateus 9, 9-13
    Naquele tempo, Jesus ia a passar quando viu um homem chamado Mateus, sentado no posto de cobrança, e disse-lhe: «Segue-me!» E ele levantou-se e seguiu-o. 10Encontrando-se Jesus à mesa em sua casa, numerosos cobradores de impostos e outros pecadores vieram e sentaram-se com Ele e seus discípulos. 11Os fariseus, vendo isto, diziam aos discípulos: «Porque é que o vosso Mestre come com os cobradores de impostos e os pecadores?»12Jesus ouviu-os e respondeu-lhes: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. 13Ide aprender o que significa: Prefiro a misericórdia ao sacrifício. Porque Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores.

    Meditatio

    Ao narrar o seu chamamento por Jesus, o primeiro evangelista, conforme observa S. Jerónimo, usa o seu próprio nome, Mateus. Os outros três evangelistas, ao narrarem o mesmo episódio, chamam-no Levi, o seu segundo nome, provavelmente menos conhecido, talvez para esconder o seu nome de publicano. Mateus, pelo contrário, reconhece-se como publicano, um grupo de pessoas pouco honestas e desprezadas, porque colaboradores dos ocupantes romanos. Mas, Jesus chamou-o, com escândalo de muitos "bem-pensantes".
    Mateus apresenta-se como um publicano perdoado e chamado por Jesus. A vocação de apóstolo não se baseia em méritos pessoais, mas unicamente na misericórdia do Senhor. Só quem se dá conta da sua pobreza, da sua pequenez, aceitando-a como o "lugar" onde Deus derrama a sua misericórdia infinita, está em condições de se tornar apóstolo, de tocar as almas em profundidade, porque comunica o amor de Deus, o seu amor misericordioso: "Prefiro a misericórdia ao sacrifício. Porque Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores." (v. 13). Como diz Paulo, o verdadeiro apóstolo está cheio de humildade, de mansidão, de paciência, uma vez que experimentou em si mesmo a paciência, a mansidão e a humildade divina, que se inclina sobre os pecadores e os ergue com paciência da sua situação.
    O Deus revelado pela palavra e pela ação de Jesus é um Deus misericordioso, que acolhe os que andam perdidos, oferecendo-lhes uma nova ocasião para se reconstruírem, por meio da graça, até atingirem a perfeita unidade da fé, que na primeira leitura é a "medida completa da plenitude de Cristo".

    Oratio

    Pai misericordioso, concede-nos a graça de reconhecer na nossa história pessoal o chamamento fundamental da vida, que o teu Filho e nosso Senhor nos dirige com amor. Que te respondamos com um "sim" pronto e generoso, nas pequenas e grandes ocasiões da nossa vida. Assim poderemos concretizar aquela obra pessoal e comunitária que devemos realizar na Igreja. Que o nosso testemunho de cristãos e de Igreja possa contribuir para a conversão do nosso mundo ao teu amor misericordioso. Ámen.

    Contemplatio

    Mateus/Levi era publicano ou cobrador de impostos. Os homens desta profissão eram muito desprezados entre os Judeus, abusavam muito das suas funções para oprimirem as populações! Nosso Senhor quis, no entanto, escolher um dos seus apóstolos de entre eles. Levi estava no seu escritório, junto do lago de Genesaré, quando Jesus dele se apercebeu e lhe disse para o seguir. O publicano abandonou imediatamente o lugar lucrativo que ocupava, para se ligar a Nosso Senhor. Todo feliz e reconhecido pela sua vocação, convidou o divino Salvador e os seus discípulos para virem tomar uma refeição em sua casa. Convidou ao mesmo tempo vários publicanos seus amigos para os atrair a Jesus. Os fariseus ficaram escandalizados e disseram aos discípulos do Salvador: «Porque é que o vosso mestre come com os publicanos e os pecadores?». Jesus, ouvindo as suas murmurações, deu esta bela resposta: «Os médicos são para os doentes, e não para aqueles que estão de boa saúde. Eu vim chamar, não os justos, mas os pecadores». Palavra encorajadora caída do Coração de Jesus! Não percamos confiança, embora sejamos pecadores. (L. Dehon, OSP 4, p. 275).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Eu não vim chamar os justos,
    mas os pecadores" (Mt 9, 13).

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    S. Mateus, Apóstolo (21 Setembro)

    XXIV Semana - Sábado - Tempo Comum - Anos Pares

    XXIV Semana - Sábado - Tempo Comum - Anos Pares


    21 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXIV Semana - Sábado
    Lectio

    Primeira leitura: 1 Coríntios 15, 35-37.42-49

    Irmãos: 35Mas dir-se-á: Como ressuscitam os mortos? Com que corpo regressam? 36Insensato! O que semeias não volta à vida, se primeiro não morrer. 37E o que semeias não é o corpo que há-de vir, mas um simples grão, por exemplo, de trigo ou de qualquer outra espécie. 42Assim também acontece com a ressurreição dos mortos: semeado corruptível, o corpo é ressuscitado incorruptível; 43semeado na desonra, é ressuscitado na glória; semeado na fraqueza, é ressuscitado cheio de força; 44semeado corpo terreno, é ressuscitado corpo espiritual. Se há um corpo terreno, também há um corpo espiritual. 45Assim está escrito: o primeiro homem, Adão, foi feito um ser vivente e o último Adão, um espírito que vivifica. 46Mas o primeiro não foi o espiritual, mas o terreno; o espiritual vem depois. 47O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre; o segundo vem do céu. 48Tal como era o terrestre, assim são também os terrestres; tal como era o celeste, assim são também os celestes. 49E assim como trouxemos a imagem do homem da terra, assim levaremos também a imagem do homem celeste.

    Ao concluir o ensinamento sobre a ressurreição de Jesus e sobre a nossa ressurreição, Paulo faz uma pergunta: «como ressuscitam os mortos? Com que corpo regressam?» (v.35). Nota-se a tristeza do Apóstolo, motivada pela mentalidade materialista em que se tinham deixado envolver alguns cristãos de Corinto, e que os levava a dissociar o corpo do espírito. Não tinham em conta a ressurreição de Cristo, nem dela tiravam as devidas consequências. Isto era insuportável para Paulo, para quem o mistério pascal era uma verdade irrenunciável
    A ressurreição inaugura uma novidade absoluta na vida de Cristo e dos cristãos: a passagem de um corpo animal a um corpo espiritual estava prevista no desígnio salvífico de Deus. Não podemos, pois, reflectir sobre o corpo espiritual à maneira como, a partir das nossas experiências, pensamos o nosso corpo animal. A relação entre o primeiro homem, Adão e Cristo, último Adão, ilumina-nos: a novidade de Cristo não consiste em ter a vida, mas em dar a vida nova a todos. Será um dom integral, que envolverá todo o homem - corpo, alma e espírito - numa experiência d vida nova e eterna. Depois de termos sido irmãos do primeiro homem, Adão, tendo levado connosco a imagem do homem terreno, também seremos irmãos do último Adão, Cristo, levando connosco a imagem do homem celeste.

    Evangelho: Lucas 8, 4-15

    Naquele tempo, 4Como estivesse reunida uma grande multidão, e de todas as cidades viessem ter com Ele, disse esta parábola: 5«Saiu o semeador para semear a sua semente. Enquanto semeava, uma parte da semente caiu à beira do caminho, foi pisada e as aves do céu comeram-na. 6Outra caiu sobre a rocha e, depois de ter germinado, secou por falta de humidade. 7Outra caiu no meio de espinhos, e os espinhos, crescendo com ela, sufocaram-na. 8Uma outra caiu em boa terra e, uma vez nascida, deu fruto centuplicado.»Dizendo isto, clamava: «Quem tem ouvidos para ouvir, oiça!» 9Os discípulos perguntaram-lhe o significado desta parábola. 10Disse-lhes: «A vós foi dado conhecer os mistérios do Reino de Deus; mas aos outros fala-se-lhes em parábolas, a fim de que, vendo, não vejam e, ouvindo, não entendam.» 11«O significado da parábola é este: a semente é a Palavra de Deus. 12Os que estão à beira do caminho são aqueles que ouvem, mas em seguida vem o diabo e tira-lhes a palavra do coração, para não se salvarem, acreditando. 13Os que estão sobre a rocha são os que, ao ouvirem, recebem a palavra com alegria; mas, como não têm raiz, acreditam por algum tempo e afastam-se na hora da provação. 14A que caiu entre espinhos são aqueles que ouviram, mas, indo pelo seu caminho, são sufocados pelos cuidados, pela riqueza, pelos prazeres da vida e não chegam a dar fruto. 15E a que caiu em terra boa são aqueles que, tendo ouvido a palavra, com um coração bom e virtuoso, conservam-na e dão fruto com a sua perseverança.»

    Lucas transmite-nos abundantes ensinamentos de Jesus em parábolas. Aqui, apresenta-nos a primeira e, para ele, a mais importante: a parábola do bom semeador. Com maior rigor, diríamos: a "parábola da semente". De facto, a atenção do narrador parece concentrar-se, não tanto nos gestos do semeador, mas no destino das sementes lançadas. O começo da parábola leva-nos também nessa linha: «A semente é a palavra de Deus» (v. 11).
    Porque terá Jesus querido marcar o começo do seu ministério público com esta parábola? Já se teria dado conta da dificuldade dos seus contemporâneos em escutar a sua pregação? Parece que sim... Mas a parábola talvez tenha um alcance mais vasto: nos diferentes destinos da semente lançada, podemos entrever, não só os diferentes modos de reacção dos seus ouvintes à sua Palavra, mas também as diferentes atitudes com que, ao longo da história da salvação, a humanidade reagiu e reage à presença das testemunhas de Deus e à sua pregação. Lida assim, a parábola da semente prolonga a sua mensagem ao longo de todos os séculos, antes e depois de Cristo, e chega até nós.

    Meditatio

    Neste dia de sábado, para renovarmos o nosso interesse por esta parábola, podemos invocar Maria. Ela foi «terra boa», em que a semente da Palavra produziu precioso fruto. Maria é, na verdade, modelo «daqueles que, tendo escutado a Palavra com um coração bom e perfeito, produzem fruto na perseverança» Um fruto que se multiplica, porque Maria é mãe de todos os discípulos de Cristo, e forma em cada um de nós atitudes de vida cristã, levando-nos a produzir fruto na adesão à vontade de Deus.
    Depois de uma referência, sempre útil a Maria, voltamo-nos para a mensagem de Paulo sobre a ressurreição de Cristo. A ressurreição do Senhor envolve todo o homem e o homem todo. Por isso, pode levar-nos a meditar sobre o valor do corpo na vida cristã e na história da salvação. É uma meditação oportuna, pois vivemos numa sociedade que, se, por um lado, exalta o corpo humano até idolatrá-lo, por outro, o instrumentaliza e explora até destruí-lo. Por isso, é bom e oportuno recordar a mensagem bíblica sobre o corpo humano.
    O corpo é, em primeiro lugar, um bem da criação: Deus deu-o a nós como sinal da sua bondade paterna, capaz de falar d´Ele, além de ser capaz de falar de nós. Segundo a mente do Criador, nós somos o nosso corpo: somos um corpo animado, ou também um espírito encarnado. Já sob este ponto de vista o corpo humano é um bem precioso e digno do máximo respeito. O corpo humano também está no ce
    ntro da nossa fé, desde que Deus, para remir a humanidade, quis encarnar, isto é, assumir, de uma mulher (cf. Gal 4, 4), um corpo em tudo semelhante ao nosso. A encarnação de Deus é a mais clara prova de que, também depois do pecado original, e depois de todos os pecados da humanidade, o corpo humano constitui para Ele um instrumento sempre válido para alcançar os mais elevados objectivos da sua providência.
    O corpo humano, em força da ressurreição de Cristo, também está no vértice da nossa fé. Enquanto corpo ressuscitado, o corpo de Cristo é primícias de todos os nossos corpos destinados à novidade de vida pela ressurreição final. O corpo humano leva em si os germes da esperança de vida sem fim. É uma realidade sacrossanta por causa das bênçãos recebidas, e por causa do destino que o espera.
    Para nós religiosos, o nosso corpo consagrado, dado completamente a Cristo, torna-se o "lugar" de uma sua especial presença. Paulo diz que «a virgem se preocupa com as coisas do Senhor para ser santa (isto é, consagrada, reservada para Cristo) no corpo e no espírito» (1Cor 7, 34). Assim, «o corpo é para o Senhor e o Senhor é para o corpo» (1 Cor 6, 13), isto é, na castidade consagrada, o corpo é sinal e efeito do amor por Cristo e do amor de Cristo.
    No corpo do consagrado renova-se, de algum modo, o mistério da Encarnação. O corpo de Cristo era o lugar e a manifestação da Sua divindade. Além disso, Jesus ofereceu o Seu corpo como oblação santa ao Pai: «Não quiseste sacrifícios nem holocaustos, mas deste-Me um corpo... Então Eu disso: Eis-Me aqui, ó Deus... para fazer a Tua vontade» (Hbr 10, 5.7). Em Cristo, o consagrado é, com o seu corpo, uma oblação santa ao Pai; pode realizar permanentemente a exortação de Paulo «a oferecer os vossos corpos, como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus; este é o vosso culto espiritual» (Rom 12, 1). Dizem as nossas Constituições «queremos unir-nos a Cristo presente na vida do mundo e, em solidariedade com Ele... oferecer-nos ao Pai como oblação viva, santa e agradável (cf. Rom 12,1)... como oferenda e sacrifício de agradável odor» (Ef 5,2).

    Oratio

    Senhor, a tua palavra cai no meu caminho para me mostrar o rumo a dar à minha vida. Mas os meus pontos de vista não me permitem escutá-la e acolhê-la no íntimo do coração, no centro da minha existência. A tua palavra quer germinar na minha vida, mas os meus medos, muitas vezes, sufocam-na e matam-na. A tua palavra bate à porta do meu coração, mas uma densa rede de negatividade não a deixa respirar.
    Senhor, torna fértil este meu terreno, para que a tua palavra possa viver em mim e, por meio de mim, nos outros, no ambiente em que vivo e procuro servir a causa do Reino. Alimenta esta minha existência, para que a tua palavra cresça em mim e à minha volta, para bem do meu próximo e para glória do teu nome. Reforça a minha vontade e a minha perseverança, para que a tua palavra produza frutos abundantes e duradouros neste segmento da minha existência e no horizonte amplo da história presente e futura, tal como os produziu na vida de tantos santos e santas, na vida de Leão Dehon.
    Senhor, a tua palavra é luz dos meus passos e fogo que inflama; é água que refresca e sacia, é espada afiada e penetrante, é viático para o meu caminho: obrigado, Senhor!

    Contemplatio

    O reino dos céus é semelhante a um campo onde o mestre lança uma semente fecunda. Toda a vida terrestre de Jesus foi um tempo de sementeira, como Ele mesmo nos disse na sua parábola. Ele semeava os seus méritos, semeava as suas orações, os seus labores, as suas lágrimas, os seus suores e o seu sangue, semeava todas as graças; e o campo da Igreja tem diante dele todos os séculos da cristandade, até ao fim dos tempos, para ver desabrochar e crescer as searas.
    Jesus semeava a graça do martírio todos os dias da sua vida, em todos os seus labores e em todas as suas provações, mas Ele quis colher logo um ramo de flores destes mártires, e este ramo, é o grupo destas crianças que são a alegria do Cordeiro divino no céu atirando-se aos pés do seu altar glorioso. A liturgia, inspirando-se no Apocalipse e no profeta Jeremias, colocou a bela festa dos santos Inocentes logo muito próxima da do Natal.
    Estes pequenos mártires são também as primícias das vítimas do Sagrado Coração. Foram vítimas inocentes. O espírito de vítima de Jesus transbordava sobre as suas jovens almas e revestia-as com a graça do martírio. Jesus há-de ajudar-nos também, mas Ele pede a nossa cooperação. Correspondamos à graça de vítimas do Sagrado Coração que Ele nos quer dar.
    O celeste semeador, ao colher este ramo de rosas purpúreas, entrevia a santidade nas crianças em todos os séculos da Igreja. Ele preparava as graças dos santos crianças. Ele preparava para si um cortejo celeste no qual haviam de brilhar S. Ciro de Tarso, o intrépido menino de três anos, S. Tarcísio e S. Pancrácio de Roma, Sto. Agapito de Palestrina, S. Sinfório de Autun, os santos Donaciano e Rogaciano de Nantes; Inês, a jovem virgem de Roma; Filomeno, o taumaturgo do séc. XIX, e tantos outros mártires; pois todas estas crianças santas que conservaram na adolescência a inocência das crianças, S. Estasnislau, S. Luís de Gonzaga, S. Berchmans, S. Carlos Espínola de Génova, S. Casimiro da Polónia, Santa Hermenegilda de Espanha, S. Pedro de Luxemburgo, e, nos nossos dias, os veneráveis Gabriel das Dores, Núncio Sulpício, etc..
    (Leão Dehon, OSP 2, p. 223-224).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Como trouxemos a imagem do homem da terra, assim levaremos também a imagem do homem celeste» (1 Cor 15, 20).

    | Fernando Fonseca, scj |

  • 25º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    25º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]


    22 de Setembro, 2024

    ANO B
    25.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 25.º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia do 25.º Domingo do Comum convida-nos a escolher entre a “sabedoria do mundo” e a “sabedoria de Deus”. A “sabedoria do mundo” talvez nos torne importantes, humanamente falando; mas apenas nos proporciona uma felicidade efémera. A “sabedoria de Deus”, por outro lado, não nos assegura glórias e triunfos humanos; mas leva-nos ao encontro de algo infinitamente mais valioso: a Vida verdadeira e eterna.

    No Evangelho Jesus, imbuído da lógica de Deus, apresenta aos discípulos o caminho que se dispõe a percorrer: é o caminho do dom da vida, do amor até ao extremo, da entrega na cruz. Jesus está plenamente convencido de que esse caminho é o caminho que conduz à Vida plena. Mas os discípulos, impregnados da lógica do mundo, têm dificuldade em comprometerem-se com essa opção: preferem as honras, os privilégios, o poder. Jesus, no entanto, não está disposto a baixar a fasquia; e avisa-os de que quem não estiver disponível para abraçar a “loucura da cruz”, não terá lugar na comunidade do Reino.

    Na segunda leitura, um “mestre” cristão do primeiro século exorta os discípulos de Jesus a viverem de acordo com a “sabedoria do alto”, que é fonte de paz, de misericórdia e de frutos bons. A recusa em viver de acordo com a “sabedoria do alto” gera divisões, conflitos, ciúmes, discórdias, que causam sofrimento pessoal e impedem a comunhão dos irmãos.

    A primeira leitura desvenda a estratégia dos “ímpios” para lidarem com os “justos” que os incomodam. Os “justos”, incompreendidos, desprezados, hostilizados a cada passo pelos “ímpios”, não terão uma vida fácil e indolor; mas, coerentes com a sua fé, viverão com o coração cheio de paz e saberão que Deus está do lado deles.

     

    LEITURA I – Sabedoria 2,12.17-20

    Disseram os ímpios:
    «Armemos ciladas ao justo,
    porque nos incomoda e se opõe às nossas obras;
    censura-nos as transgressões à lei
    e repreende-nos as faltas de educação.
    Vejamos se as suas palavras são verdadeiras,
    observemos como é a sua morte.
    Porque, se o justo é filho de Deus,
    Deus o protegerá e o livrará das mãos dos seus adversários.
    Provemo-lo com ultrajes e torturas
    para conhecermos a sua mansidão
    e apreciarmos a sua paciência.
    Condenemo-lo à morte infame,
    porque, segundo diz, Alguém virá socorrê-lo».

     

    CONTEXTO

    Os biblistas situam a redação do livro da Sabedoria por volta do ano 50 a.C., o que o torna o mais recente de todos os livros do Antigo Testamento. Foi escrito em grego por um judeu de língua grega, nascido e educado na Diáspora. Exprimindo-se em termos e conceções do mundo helénico, o autor faz o elogio da “sabedoria” israelita, traça o quadro da sorte que espera o “justo” e o “ímpio” no mais-além e descreve – com exemplos tirados da história do Êxodo – as sortes diversas que tiveram os pagãos (idólatras) e os hebreus (fiéis a Javé).

    O “berço” da reflexão proposta pelo autor é, provavelmente, a cidade de Alexandria. Por essa altura, a cultura helénica marca o ritmo da vida da cidade e dos seus habitantes. As outras culturas – nomeadamente a judaica – são desvalorizadas e hostilizadas. A enorme colónia judaica residente no Egito conhece mesmo, sobretudo nos reinados de Ptolomeu Alexandre (106-88 a.C.) e de Ptolomeu Dionísio (80-52 a.C.), uma dura perseguição. Os sábios helénicos procuram demonstrar, por um lado, a superioridade da cultura grega e, por outro, a incongruência do judaísmo e da sua proposta de vida. Os judeus são encorajados a deixar a sua fé, a “modernizar-se” e a abrir-se aos brilhantes valores da cultura helénica.

    É neste contexto que o sábio autor do Livro da Sabedoria se propõe fazer a defesa dos valores da fé e da cultura do seu Povo. O seu objetivo é duplo: dirigindo-se aos seus compatriotas judeus (mergulhados no paganismo, na idolatria, na imoralidade), convida-os a redescobrir a fé dos pais e os valores judaicos; dirigindo-se aos pagãos, convida-os a constatar o absurdo da idolatria e a aderir a Javé, o verdadeiro e único Deus. Para uns e para outros, o autor pretende deixar este ensinamento fundamental: só Javé garante a verdadeira “sabedoria” e a verdadeira felicidade.

    O texto que a primeira leitura deste domingo nos propõe integra a primeira parte do livro da Sabedoria (cf. Sb 1-5), que apresenta uma reflexão sobre o destino dos “justos” e o destino dos “ímpios”. O autor descreve a forma de pensar e de agir dos ímpios, analisa os seus raciocínios (cf. Sb 1,16-2,9) e as suas reações de desprezo face aos “justos” (cf. Sb 2,10-20). Depois conclui: os ímpios, agindo assim, estão longe de Deus e do prémio que Ele reserva para aqueles que vivem nos seus caminhos (cf. Sb 2,21-24).

    Mostrando o sem sentido da conduta dos “ímpios”, ele pretende dizer aos seus concidadãos que vale a pena ser “justo” e manter-se fiel aos valores tradicionais da fé de Israel.

     

    MENSAGEM

    Os “ímpios”, entrincheirados atrás da sua arrogância e insolência, olham com desprezo para os “justos”. A vida dos “justos” parece-lhes um contrassenso, um absurdo, uma tolice, uma aposta ilógica e irracional.

    Concretamente, quem são esses “ímpios”, cujas opiniões sobre os “justos” o autor do livro da Sabedoria aqui reproduz? São, certamente, os pagãos hostis, que zombavam dos costumes e dos valores religiosos judaicos e que levavam uma vida de corrupção, de materialismo e de imoralidade; mas são também os judeus apóstatas, que se tinham deixado contaminar pela cultura grega, que haviam abandonado as tradições dos antepassados e que consideravam a religião judaica um conjunto de tradições obscurantistas e ultrapassadas, completamente desfasadas de uma visão “moderna” e racional da vida.

    Ora, os “impios” sentem a vida dos “justos” como uma provocação e um incómodo. Essa gente que procura preservar os seus valores e viver de forma consequente com a sua fé, irrita e desconcerta os “ímpios”. A coerência, a honestidade, a verticalidade, a fidelidade dos “justos” são um espinho permanente que não deixa os “ímpios” sentirem-se em paz com a sua consciência.

    A essa “ameaça”, os “ímpios” respondem com a força e a violência. Sentem que é preciso silenciar os “justos” e o desafio que eles representam. Por isso, armam ciladas aos “justos”, multiplicam os ultrajes, inventam calúnias, servem-se da tortura, chegam mesmo ao assassínio… Os “justos” de todas as épocas conhecem bem estes mecanismos de perseguição e de morte; é o preço que têm de pagar pela sua coerência, pela sua fidelidade a Deus e às suas propostas.

    A existência dos “justos” estará, então, condenada ao fracasso? Valerá a pena enfrentar a perseguição e conservar-se fiel a Deus e aos seus valores? As opções dos “justos” fazem sentido, num mundo onde, tantas vezes, são os “impios” que parecem prevalecer? O texto que a liturgia deste vigésimo quinto domingo comum nos propõe como primeira leitura não responde a estas questões; no entanto, o autor do Livro da Sabedoria dirá, mais à frente, que a fidelidade do “justo” será recompensada e que a sua vida desembocará nessa Vida plena e definitiva que Deus reserva para aqueles que seguem os seus caminhos.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Deixemos de lado a classificação de “ímpios” e “justos”, utilizada pelo “sábio”, que é um tanto redutora e rotuladora… Fixemo-nos antes no confronto – bem claro no texto – entre os valores de Deus e os valores do mundo, entre a “sabedoria de Deus” e a “sabedoria do mundo”. Trata-se de um “frente-a-frente” que conhecemos bem e que atravessa cada momento do caminho histórico que a humanidade vai percorrendo… Há quem tente simplificar as coisas resumindo tudo isto à mera opção entre valores antiquados e valores atuais, valores passados de moda e valores condizentes com o quadro civilizacional do nosso tempo… Na realidade, não é assim tão simples. O confronto é entre valores eternos e valores passageiros, entre valores que asseguram Vida verdadeira e valores que apenas proporcionam flashes de felicidade efémera. Neste confronto, em que campo nos situamos?
    • O que é a “sabedoria do mundo”? A “sabedoria do mundo” é a atitude de quem, fechado no seu orgulho, arrogância e autossuficiência, resolve prescindir de Deus e dos seus valores; é a opção de quem vive para o “ter”, de quem põe em primeiro lugar o dinheiro, o poder, o êxito, a fama, a ambição, os valores efémeros. Trata-se de uma “sabedoria” que, em lugar de conduzir o homem à sua plena realização, o deixa vazio, frustrado, deprimido, escravo. A “sabedoria do mundo” pode apresentar-se com as cores sedutoras da felicidade efémera, com o brilho da filosofia que está na moda, com a respeitabilidade das construções intelectuais mais sólidas, com o selo de garantia dos influencers de serviço; mas não assegurará ao homem uma felicidade duradoura. Que papel joga a “sabedoria do mundo” nas nossas vidas?
    • O que é a “sabedoria de Deus”? A “sabedoria de Deus” é a atitude daqueles que assumiram e interiorizaram as propostas de Deus e se deixam conduzir por elas. Atentos à vontade e aos desafios de Deus, procuram escutá-l’O e seguir os seus caminhos; tendo como modelo de vida Jesus Cristo, vivem a sua existência no amor, na partilha, no serviço simples e humilde aos irmãos; estão sempre atentos a quem chora, a quem sofre, a quem necessita de amor e cuidado; comprometem-se com a construção de um mundo mais fraterno e lutam pela justiça e pela paz; não se conformam com as injustiças e as violências que desfeiam o mundo, e esforçam-se por construir o Reino de Deus. Os que se deixam conduzir pela “sabedoria de Deus” nem sempre são compreendidos e aceites. Às vezes chamam-lhes “fracos”, “perdedores”, “incapazes”, “retrógrados”, e colocam-nos em guetos onde podem ser controlados. Mas eles, mesmo desautorizados e incompreendidos, procuram ser sal que dá sabor ao mundo e luz viva que ilumina os caminhos que a humanidade percorre. Que papel joga a “sabedoria de Deus” no nosso projeto de vida?
    • Quem escolhe a “sabedoria de Deus”, não tem uma vida fácil. Com frequência será incompreendido, caluniado, escarnecido, desautorizado, perseguido, torturado – como aconteceu com Jesus. É claro que o sofrimento, a incompreensão, a perseguição, são assustadores; mas devem ser vistos como consequência natural da fidelidade a Deus e aos seus valores. Não devemos ficar preocupados quando o mundo nos persegue; devemos ficar preocupados quando somos aplaudidos e adulados por aqueles que escolheram a “sabedoria do mundo”. Alguma vez o medo de sermos incompreendidos e perseguidos nos impediu de sermos testemunhas coerentes da “sabedoria de Deus”?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 53 (54)

    Refrão: O Senhor sustenta a minha vida.

    Senhor, salvai-me pelo vosso nome,
    pelo vosso poder fazei-me justiça.
    Senhor, ouvi a minha oração,
    atendei às palavras da minha boca.

    Levantaram-se contra mim os arrogantes
    e os violentos atentaram contra a minha vida.
    Não têm a Deus na sua presença.

    Deus vem em meu auxílio,
    o Senhor sustenta a minha vida.
    De bom grado oferecerei sacrifícios,
    cantarei a glória do vosso nome, Senhor.

     

    LEITURA II – Tiago 3,16-4,3

    Caríssimos:
    Onde há inveja e rivalidade,
    também há desordem e toda a espécie de más ações.
    Mas a sabedoria que vem do alto
    é pura, pacífica, compreensiva e generosa,
    cheia de misericórdia e de boas obras,
    imparcial e sem hipocrisia.
    O fruto da justiça semeia-se na paz
    para aqueles que praticam a paz.
    De onde vêm as guerras?
    De onde procedem os conflitos entre vós?
    Não é precisamente das paixões que lutam nos vossos membros?
    Cobiçais e nada conseguis: então assassinais.
    Sois invejosos e não podeis obter nada:
    então entrais em conflitos e guerras.
    Nada tendes, porque nada pedis.
    Pedis e não recebeis, porque pedis mal,
    pois o que pedis é para satisfazer as vossas paixões.

     

    CONTEXTO

    A chamada “Carta de Tiago” é uma exortação de um mestre cristão do séc. I, que se apresenta como “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (Tg 1,1). Ainda não foi possível identificar concretamente este “Tiago”. Em qualquer caso parece ser um personagem de origem semita, que conhece bem as escrituras sagradas judaicas, mas que é capaz de se expressar muito bem em língua grega, recorrendo inclusive a recursos retóricos muito apreciados pelos literatos helénicos.

    O escrito é endereçado às “doze tribos da Diáspora”. A expressão designa, provavelmente, as comunidades cristãs de origem judaica existentes fora da Palestina (Síria, Egito, Ásia Menor); mas também pode ser uma expressão metafórica utilizada para designar as comunidades cristãs em geral, dispersas pelo mundo greco-romano.

    O objetivo do autor desta “carta encíclica” será ajudar os cristãos a viverem a sua fé com coerência e autenticidade, dentro de um estilo de vida que reflita os valores do Evangelho de Jesus. Os temas abordados na carta são diversos e vão-se sucedendo sem uma ordem ou plano doutrinal previamente definido. Avultam as indicações de caráter prático, às vezes num estilo que lembra a reflexão sapiencial: um “mestre” cristão deixa aos seus “discípulos” conselhos práticos sobre a arte de viver de acordo com o espírito cristão nas mais diversas circunstâncias.

    Depois de convidar os crentes à autenticidade e coerência da fé (cf. Tg 1,2-27) e de os exortar a expressar a fé em atitudes concretas (cf. Tg 2,1-24), o autor da Carta de Tiago reflete, na terceira parte do seu escrito (cf. Tg 3,1-4,10), sobre alguns aspetos bem concretos onde deve transparecer a opção que os seguidores de Jesus fizeram. O primeiro aspeto particular a que o autor se refere é ao cuidado a ter com a língua (cf. Tg 3,1-12); o segundo alude à necessidade de os crentes rejeitarem a “sabedoria do mundo” e de acolherem a “sabedoria que vem do alto” (cf. Tg 3,13-18); o terceiro aponta a origem das discórdias que envenenam a vida das comunidades cristãs (cf. Tg 4,1-10). O texto que nos é proposto junta alguns versículos do segundo com alguns versículos do terceiro dos referidos pontos. O objetivo é sempre exortar os crentes a pautarem as suas vidas pelos valores cristãos autênticos.

     

    MENSAGEM

    As primeiras considerações do texto (cf. Tg 3,16-18) vão no sentido de exortar os crentes a viverem de acordo com a “sabedoria que vem do alto”.

    A “sabedoria do mundo” gera inveja, contendas, falsidade (cf. Tg 3,14), rivalidade, desordem e toda a espécie de más ações (cf. Tg 3,16). Não é uma boa base para construir uma vida com sentido. Destrói a pessoa e cria continuamente obstáculos que impedem a convivência e a comunhão com os outros irmãos. Trata-se de uma “sabedoria” incompatível com as exigências da autêntica adesão a Cristo.

    Ao contrário, a “sabedoria que vem do alto” é “pura, pacífica, compreensiva, generosa, cheia de misericórdia e boas obras, imparcial e sem hipocrisia” (Tg 3,17). São sete as “qualidades” da “sabedoria” aqui enumeradas. Como, no universo judaico, o número sete significa “perfeição”, “plenitude”, o autor da Carta de Tiago está a propor aos crentes um caminho de perfeição, de realização total, de Vida plena. A “sabedoria” dos cristãos é a “sabedoria” que brota da cruz de Cristo e que leva a viver no amor. As “boas obras” são a expressão prática desse amor.

    Na segunda parte do texto (cf. Tg 4,1-3), o autor da Carta de Tiago convida a uma reflexão sobre as causas dos conflitos e discórdias que afetam a vida das comunidades cristãs. Para ele, as coisas são bem evidentes: muitos dos membros da comunidade cristã não aderiram, de facto, a Jesus e à proposta de vida que Ele veio trazer. A sua fé, apesar de todas as declarações de circunstância, não é autêntica. Vivem ainda a vida velha do homem preso ao pecado. Estão dominados pelo egoísmo, pelo orgulho, pela ambição, pela inveja, pela cobiça, pela vontade de se sobreporem aos outros… E essas “paixões”, deixadas à solta, traduzem-se em atitudes de luta, em sentimentos de inveja e de rivalidade, em manifestações de ciúme, de arrogância e de ira. Vivem ainda agarrados à “sabedoria do mundo” e não de acordo com a “sabedoria do alto”, com a sabedoria do Evangelho.

    Vivendo assim, estes cristãos de nome e não de facto ficam de mãos vazias e constroem vidas sem sentidos. Deus não escuta os seus pedidos, pois o que pedem destina-se só a satisfazer os seus desejos egoístas. E Deus não dá nada para esse peditório. Uma oração que assenta em interesses egoístas não pode ser escutada por Deus.

     

    INTERPELAÇÕES

    • O Batismo é, para todos os crentes, o momento em que se encontram com Jesus e optam por Ele (mesmo que esse momento tenha ocorrido numa idade em que não tinham plena consciência das implicações dessa opção, entretanto renovada posteriormente); é o momento em que os crentes escolhem a “sabedoria do alto” e passam a conduzir a sua vida pelos critérios de Deus. Ungidos no batismo com o óleo do crisma, os batizados são escolhidos para serem sinais de Deus e rostos vivos dessa Vida nova que Deus quer propor ao mundo e aos homens. Coerentes com a sua opção batismal, os crentes fazem a diferença e anunciam – com as suas palavras, com os seus gestos, com a sua vida – um mundo mais humano, mais justo, mais fraterno, mais feliz para todos os filhos e filhas de Deus. Vivemos conscientes de que esta é a vocação a que são chamados todos os batizados? Procuramos viver de forma coerente com os compromissos que assumimos no dia do nosso Batismo? Os valores que conduzem a nossa vida e que testemunhamos são os valores que brotam da “sabedoria do alto”?
    • O autor da Carta de Tiago considera que muitos batizados, seduzidos pela “sabedoria do mundo”, instalam-se no egoísmo e na autossuficiência, vivem para o “ter”, deixam que a sua existência seja dirigida por critérios de ambição e de ganância, recusam-se a fazer da sua vida uma partilha generosa com os irmãos… Essa opção – diz ele – traz inevitáveis consequência negativas: não lhes assegura a sua plena realização, não enche de sentido as suas vidas; e destrói a vida das comunidades onde eles caminham, pois gera desordem, guerras, rivalidades, conflitos, divisões. A forma de se derrotar a “sabedoria do mundo” passa por nos mantermos em contínuo processo de conversão, sempre disponíveis para nos questionarmos sobre as nossas opções erradas e para voltarmos a escutar Deus e a sua “sabedoria”. É nesse sentido que caminhamos? Estamos acomodados à “sabedoria do mundo”, ou estamos continuamente dispostos a rever as nossas opções, a voltar para Deus e a viver de acordo com as propostas que Ele nos faz?
    • Finalmente, o autor da Carta de Tiago avisa que, quando o nosso coração está cheio da “sabedoria do mundo”, a nossa oração torna-se um monólogo egoísta, uma pedinchice de coisas que se destinam a satisfazer as nossas “paixões”, as nossas ambições egoístas, os nossos interesses pessoais. Ora, Deus não está disponível para esse tipo de conversa. Deixa-nos a falar sozinhos. A nossa oração é, nesse caso, inconsequente. Antes de falar com Deus, precisamos de mudar o nosso coração, de reequacionar os valores que priorizamos, de aprender a ver o mundo e a vida com os olhos de Deus, de nos aproximar de Deus. Então, sim, a nossa oração será um verdadeiro diálogo com Deus… Através desse diálogo, tornamo-nos mais conscientes do que Deus quer, dos planos que Ele tem para nós e para o mundo; ao mesmo tempo, partilhamos com Deus as nossas dificuldades, as nossas esperanças, os nossos sonhos, e entregamos tudo nas mãos d’Ele. A nossa oração será, então, um diálogo de amor entre Pai e filho, que encherá de paz e de esperança o nosso coração. Como é o nosso diálogo com Deus? É um monólogo que serve para atirar a Deus as nossas reivindicações e pedidos, ou é um diálogo sereno e cheio de amor com o nosso Pai do céu?

     

    ALELUIA – cf. 2Tes 2,14

    Aleluia. Aleluia.

    Deus chamou-nos por meio do Evangelho,
    para alcançarmos a glória de Nosso Senhor Jesus Cristo.

     

    EVANGELHO – Marcos 9,30-37

    Naquele tempo,
    Jesus e os seus discípulos caminhavam através da Galileia,
    mas Ele não queria que ninguém o soubesse;
    porque ensinava os discípulos, dizendo-lhes:
    «O Filho do homem vai ser entregue às mãos dos homens
    e eles vão matá-l’O;
    mas Ele, três dias depois de morto, ressuscitará».
    Os discípulos não compreendiam aquelas palavras
    e tinham medo de O interrogar.
    Quando chegaram a Cafarnaum e já estavam em casa,
    Jesus perguntou-lhes:
    «Que discutíeis no caminho?»
    Eles ficaram calados,
    porque tinham discutido uns com os outros
    sobre qual deles era o maior.
    Então, Jesus sentou-Se, chamou os Doze e disse-lhes:
    «Quem quiser ser o primeiro será o último de todos
    e o servo de todos».
    E, tomando uma criança, colocou-a no meio deles,
    abraçou-a e disse-lhes:
    «Quem receber uma destas crianças em meu nome
    é a Mim que recebe;
    e quem Me receber
    não Me recebe a Mim, mas Àquele que Me enviou».

     

    CONTEXTO

    Alguns dias antes, nos arredores de Cesareia de Filipe, Jesus já tinha avisado os discípulos de que devia, em breve, dirigir-se para Jerusalém; e que aí seria rejeitado pelas autoridades religiosas, preso, condenado à morte e crucificado (cf. Mc 8,31-32). Pedro tinha reagido mal às indicações de Jesus e tentara demover Jesus desses passos. Os outros discípulos, por sua vez, não tinham dado mostras de ter processado aquilo que Jesus tinha dito: estavam demasiado agarrados a sonhos antigos de grandeza, de poder e de prestígio para que as palavras de Jesus fizessem sentido. Aquela conversa parecia-lhes despropositada e incongruente; ainda acreditavam que Jesus, chegado a Jerusalém, iria entrar na cidade na pele de um Messias político, poderoso e invencível, capaz de libertar Israel, pela força das armas, do domínio romano.

    Entretanto, a viagem pela Galileia continuou. Jesus apercebeu-se, nos dias seguintes, que os discípulos não tinham levado a sério aquele primeiro anúncio sobre o destino de morte que o esperava em Jerusalém. Consciente de que era necessário deixar as coisas bem claras, aproveitou uma altura em que caminhava a sós com os discípulos e voltou a referir-se à sua morte próxima, às mãos das autoridades de Jerusalém. Ele não queria equívocos e não pretendia que os discípulos andassem atrás d’Ele pelas razões erradas. Este é o ponto de partida para o texto do Evangelho que a liturgia nos propõe neste vigésimo quinto domingo comum.

    O evangelista Marcos, pela sua parte, está interessado em dizer aos seus leitores que Jesus é o Messias, o Filho de Deus (cf. Mc 1,1); no entanto, nunca lhes oculta que esse Filho de Deus não veio ao mundo para cumprir um destino de triunfos e de glórias humanas, mas para cumprir a vontade do Pai e oferecer a sua vida em dom de amor aos homens. Ao apresentar, num breve espaço, os três anúncios da paixão de Jesus (cf. Mc 8,31-32; 9,30-31; 10,32-34), Marcos está a preparar-nos para o que vai contar na segunda parte do seu Evangelho; e para que também nós repitamos aquilo que disse o centurião romano destacado junto da cruz onde Jesus entregou a vida nas mãos do Pai: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus” (Mc 15,39).

     

    MENSAGEM

    Na primeira parte do texto, Jesus está a caminhar com os discípulos pela Galileia, descendo de Cesareia de Filipe para Cafarnaum. Desta vez as multidões não estão presentes. Marcos diz mesmo que Jesus quis manter o itinerário que seguiam em segredo, porque pretendia “ensinar” os seus discípulos (vers. 30-31).

    Ora, o primeiro passo desse “ensino” é precisamente sobre aquilo que o espera em Jerusalém: “O Filho do homem vai ser entregue às mãos dos homens e eles vão matá-l’O; mas Ele, três dias depois de morto, ressuscitará”. É a segunda vez que Jesus lhes faz este anúncio. As palavras de Jesus com que Jesus lhes descreve o futuro que o espera denotam tranquilidade e uma serena aceitação desses factos que irão concretizar-se em Jerusalém. Jesus recebeu do Pai a missão de propor aos homens o amor e o dom da vida como caminho de realização plena; e, para isso, Ele dispõe-se a morrer na cruz: ao dar a vida até ao extremo, Ele irá apresentar aos homens, de forma viva e contundente, a proposta de Deus. Nada o afastará do projeto do Pai.

    Em contrapartida, os discípulos não entendiam esta linguagem “e tinham medo de o interrogar” (vers. 32). Porque é que não entendiam? Por falta de clareza de Jesus? Não. As palavras de Jesus são claras; o que não é claro, para a mentalidade desses discípulos, é que o caminho do Messias tenha de passar pelo amor que se dá totalmente, até à última gota de sangue. O “não entendimento” é, aqui, o mesmo que discordância: intimamente, eles discordam do caminho que Jesus escolheu seguir, pois acham que o caminho da cruz – o caminho do amor proposto pelo Pai – é um caminho de fracasso. Ora, eles não contavam com o fracasso; contavam com o triunfo, a glória, o poder, as honras humanas.

    Apesar de discordarem de Jesus, os discípulos ficam calados, não se atrevem a criticá-l’O abertamente. Ainda recordam, com toda a certeza, a dura reação de Jesus quando Pedro quis afastá-lo do cumprimento do plano do Pai (cf. Mc 8,32-33). Mas o medo que sentem também resulta do facto de saberem que a resposta de Jesus será contrária aos projetos que eles próprios alimentam.

    A segunda parte do Evangelho deste domingo situa-nos já em Cafarnaum, “em casa” (esta “casa”, de acordo com a tradição de Marcos, será a casa de Pedro). A cena começa com uma pergunta de Jesus: “Que discutíeis pelo caminho?” (vers. 33). Mais uma vez os discípulos ficaram calados, provavelmente com medo da reação de Jesus. O contexto sugere, no entanto, que Jesus sabe claramente qual tinha sido o tema da discussão. Provavelmente, captou qualquer coisa da conversa e ficou à espera da oportunidade certa – na tranquilidade da “casa” – para esclarecer as coisas e para continuar a instrução dos discípulos.

    Só neste ponto Marcos informa os seus leitores de que os discípulos tinham discutido, pelo caminho, “sobre qual deles era o maior” (vers. 34). O problema da hierarquização dos postos e das pessoas era um problema de importância capital na sociedade palestina de então. Nas assembleias, na sinagoga, nos banquetes, a “ordem” de apresentação das pessoas estava rigorosamente definida e, com frequência, geravam-se conflitos graves por causa de pretensas infrações ao protocolo hierárquico. Os discípulos estavam profundamente imbuídos desta lógica. Uma vez que se aproximava o triunfo do Messias e iam ser distribuídos os postos-chave na cadeia de poder do reino messiânico, convinha ter o quadro hierárquico claro. Apesar do que Jesus lhes tinha dito pouco antes acerca do seu caminho de cruz, os discípulos recusavam-se a abandonar os seus próprios sonhos materiais e a sua lógica humana de ambição e de poder.

    Jesus senta-se, como faziam os “mestres” de Israel quando se preparavam para propor uma lição aos discípulos. Depois, ataca o problema de frente e com toda a clareza, pois o que está em jogo afeta a essência da sua proposta: “quem quiser ser o primeiro será o último de todos e o servo de todos” (vers. 35). Na comunidade de Jesus não há uma cadeia de grandeza, com uns no cimo e outros na base… Na comunidade de Jesus, só é grande aquele que é capaz de servir, de oferecer a vida aos seus irmãos, de amar até ao dom total da própria vida (vers. 35). Dessa forma, Jesus deita por terra qualquer pretensão de poder, de domínio, de grandeza, na comunidade do Reino. O discípulo que raciocinar em termos de poder e de grandeza (isto é, segundo a lógica do mundo) não poderá integrar a comunidade do Reino.

    Jesus completa a instrução aos discípulos com um gesto… Toma uma criança, coloca-a no meio do grupo, abraça-a e convida os discípulos a acolherem as “crianças”, pois quem acolhe uma criança acolhe o próprio Jesus e acolhe o Pai (vers. 36-37). Na sociedade palestina de então, as crianças não tinham direitos e não contavam do ponto de vista legal. Eram, portanto, um símbolo bem expressivo dos débeis, dos pequenos, dos pobres, dos indefesos, dos insignificantes, dos marginalizados. São esses, precisamente, que devem estar no centro da comunidade de Jesus; são esses que a comunidade de Jesus deve abraçar, acolher e amar. Quem se dispuser a pôr a sua vida ao serviço dos mais pequenos, dos mais humildes, dos mais desprezados, daqueles que o mundo desconsidera e põe de lado, esse será o maior, o mais importante. A comunidade de Jesus não é lugar de honras, mas lugar de serviço e de amor. Enquanto não entenderem isto, os discípulos estarão bem longe de entenderem Jesus.

     

    INTERPELAÇÕES

    • O Evangelho deste vigésimo quinto domingo comum põe frente a frente dois sistemas de valores, duas formas radicalmente diferentes de encarar a existência. De um lado está Jesus e a sua forma de viver e de priorizar os valores que dão sentido à vida; do outro lado estão os discípulos, cujos interesses parecem ser opostos aos de Jesus. Jesus vive imbuído dos valores de Deus. Não está preocupado com o seu êxito pessoal; interessa-lhe apenas cumprir o projeto de Deus e mostrar aos homens como o caminho do amor e do serviço conduzem à Vida verdadeira, à felicidade sem fim. Para dizer isso aos homens, Jesus está mesmo disposto a dar a sua vida até ao extremo, até à última gota de sangue, na cruz. Mas os discípulos, escravos da “sabedoria do mundo”, acreditam piamente que a felicidade está nos bens materiais, no poder, nas honras, nos privilégios; e fazem “orelhas moucas” quando Jesus os convida a segui-l’O nesse caminho que Ele vai percorrer, o caminho da vida dada por amor. Neste confronto de caminhos opostos, onde nos situamos?
    • Passaram-se dois mil anos, desde que Jesus andou pelos caminhos da Galileia e da Judeia a apresentar a sua proposta e a convidar os homens a construir um mundo mais justo e mais fraterno; e, mesmo depois desse tempo todo, parece que ainda não nos convencemos de que Jesus tinha razão. A corrida às honras, a priorização dos bens materiais, a luta pelos postos de poder e de influência, a ambição desmedida, a apetência pelos títulos e honrarias, a sobreposição dos interesses pessoais ao bem comum, continuam a marcar o ritmo de vida de muitos homens e mulheres do séc. XXI… Mais: isto não acontece apenas em ambientes “civis”, afastados de Jesus e das suas propostas; mas também acontece em contextos marcadamente cristãos, na comunidade dos discípulos. Que sentido é que isto faz? Poderemos apresentar-nos como discípulos de Jesus se ignoramos o caminho que Ele nos aponta? Uma Igreja que se organiza e estrutura tendo em conta os esquemas do mundo poderá considerar-se a Igreja de Jesus?
    • De acordo com Jesus, a importância de uma pessoa não se mede pelo dinheiro que possui, nem pelo poder que conquistou, nem pela influência social que adquiriu, nem pelo sucesso profissional que obteve, nem pelo estilo com que se veste, nem pelos títulos civis ou canónicos que ostenta, nem pelo seu aspeto físico, mas sim pela forma como serve e como ama os seus irmãos, sobretudo os mais frágeis e desprezados. De acordo com Jesus, a única grandeza é a grandeza de quem, com humildade e simplicidade, faz da própria vida um serviço aos irmãos. É isto que se passa nas nossas comunidades cristãs? Quem são, entre nós, os mais importantes, os que mais consideramos, reverenciamos e admiramos, aqueles a quem sentamos nos lugares mais distintos?
    • Jesus, para ilustrar a sua lição sobre o amor, tomou uma criança – símbolo de fragilidade, de pequenez, de pobreza, de simplicidade – colocou-a no meio dos discípulos e abraçou-a. Quis dizer, com esse gesto, que na sua comunidade são os mais pequenos, os mais pobres, os mais desprezados, os mais desconsiderados, os mais humildes que devem estar no centro; e que todos os outros membros da comunidade devem cuidar deles, abraçá-los, servi-los, ajudá-los, defendê-los. O frágil, o pequeno, o pobre é o próprio Jesus; e quem o acolhe, abraça o próprio Jesus… Como é que as nossas comunidades cristãs acolhem os pobres, os mais humildes, aqueles que o resto da sociedade rejeita e ignora, aqueles que ninguém quer e ninguém ama? Como é que são tratados nas nossas comunidades as pessoas vítimas de doenças incuráveis, os irmãos e irmãs que a moral condena, os refugiados, os sem abrigo, os que a vida feriu irremediavelmente? Há lugar para eles? São tratados com respeito e amor? São cuidados, abraçados e ajudados?
    • Marcos diz-nos que os discípulos “tinham medo de interrogar” Jesus. É verdade: por vezes sentimo-nos pouco cómodos com a frontalidade, a radicalidade, a exigência, a verdade de Jesus. Ele não se contenta com “meias tintas”, com verdades parciais, com escolhas que não são quente nem frio; Ele não se conforma com a nossa preguiça, a nossa acomodação, a nossa cobardia; Ele desafia-nos continuamente a um compromisso firme, à doação total da vida, ao amor até ao extremo, à conversão e à renovação. Seria mais fácil, para nós, refugiarmo-nos nas nossas orações decoradas, nas nossas devoções particulares, nos nossos solenes rituais litúrgicos, na nossa religião vivida como cumprimento de leis… Mas Jesus pede mais: pede que o sigamos no caminho de Jerusalém, no caminho do amor e do dom da vida… A exigência de Jesus deixa-nos pouco à vontade, ou é, para nós, uma decisão assumida e que procuramos viver com coerência e radicalidade? O seguimento de Jesus dá-nos medo, ou é um caminho libertador?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 25.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 25.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.

    Nunca os discípulos teriam ousado discutir diante do seu Mestre para saber quem era o maior. Eis a razão pela qual eles preferem calar-se. Que contraste entre a discussão dos discípulos sobre a sua promoção social e o anúncio de Jesus sobre o seu abaixamento! Como as suas palavras não parecem ser compreendidas pelos seus amigos, Ele vai fazer-lhes sinal através de um gesto: coloca uma criança no meio deles. A criança não conhece o prestígio, é desconsiderada pela sociedade… Jesus identifica-Se com esta criança: “Quem receber uma destas crianças em meu nome é a Mim que recebe”. Jesus não Se identifica com os grandes, mas com os pequenos. Ele vai mais longe, identifica-Se com o seu Pai: “Quem Me receber não Me recebe a Mim, mas Àquele que Me enviou”. O evangelista não descreve as reações dos discípulos, mas, naquele dia, estes compreenderam certamente que, se queriam ser seus discípulos, não deveriam procurar ser maiores que o seu Mestre.

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.

    “Que discutíeis no caminho? Eles ficaram calados, porque tinham discutido uns com os outros sobre qual deles era o maior”. Ser o maior, o primeiro, o melhor, o mais forte… É a terrível tentação do poder! Ela nunca abandonou o próprio Jesus. As suas três tentações, no deserto, andam à volta do poder. Em toda a sua vida, até à cruz, esta tentação vai acompanhá-l’O sempre… Variadas vezes, Jesus repreende os seus discípulos, coloca-os de aviso contra a tentação do poder: “Se alguém quer ser o primeiro, que ele seja o último de todos e o servidor de todos”. Jesus pregou tudo isso com palavras e com atos. Basta recordar o episódio do lava-pés na última ceia. O poder, para Jesus, é serviço ao crescimento do amor e da vida. É preciso reconhecer que, na sua história, a Igreja agiu muitas vezes ao contrário do Evangelho… Apesar dos progressos notáveis, em particular depois do Concílio Vaticano II, há ainda muito caminho a fazer. É preciso intensificar a nossa súplica, para que o Espírito não deixe nenhum membro da Igreja tranquilo, a fim de que todos sejamos interpelados pelo Evangelho. Daí depende a credibilidade do testemunho cristão no mundo!

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    Fazer o ponto da situação… É-nos dada a ocasião, nesta semana, para fazer o ponto sobre os nossos valores, sobre o que é importante para nós na vida: o que conta verdadeiramente para mim? A segunda leitura e o Evangelho podem ajudar-nos a refletir nisso. Tomar o tempo para se questionar simplesmente, em verdade, diante do Senhor: no fundo, o que é que eu procuro, o que espero da vida?

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

    Beato João Maria de Cruz, Presbítero e Mártir

    Beato João Maria de Cruz, Presbítero e Mártir


    22 de Setembro, 2024

    Padroeiro das Vocações Dehonianas

    (Próprio de Congregação dos SCJ, Dehonianos)
    No dia 25 de setembro de 1891 nasceu em Santo Esteban de los Patos (Ávila) Mariano Garcia Méndez. A sua família era simples, mas rica em virtudes e profundamente cristã. Aos 10 anos de idade, sentiu-se chamado por Cristo para o sacerdócio. Viveu o seu sacerdócio, primeiro como pároco e, depois de muita busca, também como religioso da nossa Congregação dos Padres do Sagrado Coração de Jesus, Dehonianos, tomando o nome de João Maria da Cruz. Dotado de profundo zelo apostólico e foi também o "anjo protetor" do Seminário Dehoniano de Puente La Reina e promotor vocacional da Congregação em Espanha. A Guerra Civil Espanhola levou-o a testemunhar a fé e sua condição de sacerdote, protestando fortemente contra o incêndio da igreja dos Santos Juanes, em Valência. Preso, permaneceu um mês no cárcere, onde exerceu um intenso apostolado. No dia 23 de Agosto de 1936, era já noite, foi fuzilado em Silla (Valência). Reconhecidas as suas virtudes e o seu martírio pela Igreja, foi beatificado pelo Papa João Paulo II, no dia 11 de março de 2001.

    Lectio

    Primeira leitura: Romanos 8, 31b-39

    Irmãos: Se Deus está por nós, quem pode estar contra nós? 32Ele, que nem sequer poupou o seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como não havia de nos oferecer tudo juntamente com Ele? 33Quem irá acusar os eleitos de Deus? Deus é quem nos justifica!34Quem irá condená-los? Jesus Cristo, aquele que morreu, mais, que ressuscitou, que está à direita de Deus é quem intercede por nós. 35Quem poderá separar-nos do amor de Cristo?A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada? 36De acordo com o que está escrito: Por causa de ti, estamos expostos à morte o dia inteiro, fomos tratados como ovelhas destinadas ao matadouro.37Mas em tudo isso saímos mais do que vencedores, graças àquele que nos amou. 38Estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem as potestades, 39nem a altura, nem o abismo, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus que está em Cristo Jesus, Senhor nosso.

    Depois de ter explicado vários aspetos da vida nova em Cristo e as motivações que fundamentam a fé cristã, Paulo conclui esta secção da sua carta com um hino ao amor de Deus. O hino brota-lhe do coração como uma torrente, provocada pela sua experiência do amor de Deus na sua vida e na da comunidade dos santos. Conhecedor do desígnio do Pai, o Apóstolo canta o papel de Cristo Salvador e Senhor. Nada poderá afastar o cristão do amor que Cristo tem por nós: nem tribulação, nem a angústia, nem a perseguição, nem a a fome, nem a nudez, nem o perigo, a espada. Mas em tudo isso saímos mais do que vencedores, graças àquele que nos amou. (cf. v. 36s.). Nenhuma força terrena e nenhum espírito hostil ao homem poderá separar-nos do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus. O amor é o fundamento indestrutível da vida e da esperança cristãs.

    Evangelho: João 15, 18-21

    Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: Se o mundo vos odeia, reparai que, antes que a vós, me odiou a mim. 19Se viésseis do mundo, o mundo amaria o que é seu; mas, como não vindes do mundo, pois fui Eu que vos escolhi do meio do mundo, por isso é que o mundo vos odeia. 20Lembrai-vos da palavra que vos disse: o servo não é mais que o seu senhor. Se me perseguiram a mim, também vos hão-de perseguir a vós. Se cumpriram a minha palavra, também hão-de cumprir a vossa. 21Mas tudo isto vos farão por causa de mim, porque não reconhecem aquele que me enviou.

    Jesus acabara de falar do amor que havia entre Ele e os discípulos, e que devia haver também entre eles (Jo 15, 9-17). Mas os discípulos vivem no mundo que odeia Jesus e odiará os seus discípulos. Amados por Jesus, e amigos de Jesus, são odiados pelo mundo.
    A primeira experiência da Igreja foi a perseguição iniciada pelos judeus e prosseguida pelos gentios. A perseguição é algo de normal na vida dos cristãos, porque não são do mundo, não lhe pertencem, e estão acima dele porque dão testemunho contra ele, contra os seus pecados. Além disso, "o servo não é mais do que o seu senhor". Não pode ter melhor sorte.

    Meditatio

    Quem ama, imita. O melhor modo de corresponder ao amor de Cristo é imitá-lo. Os mártires seguiram-no até à efusão do sangue, até assemelhar-se a Ele na paixão. Foram muitos que, ao longo dos séculos, como supremo testemunho da sua fé em Jesus Cristo e no seu Evangelho, derramaram o seu sangue. Foi o que aconteceu também em Espanha, entre 1936 e 1939, durante a guerra civil, que ensanguentou aquele país. Uma das vítimas foi o P. João Maria da Cruz, da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus, Dehonianos. Nas suas cartas, conversas e comentários, o P. João falava das dificuldades que encontrava durante a guerra civil, quando andava de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, a pedir ajudas e a procurar vocações. Nas suas notas pessoais verifica-se claramente que se preparava para o martírio: "oxalá pudesse ser mártir", dizia ele a uma senhora idosa de Puente la Reina, onde era muito popular e conhecido como o "santinho". A 10 de Agosto de 1936, poucos dias antes de ser fuzilado, escrevia, do Cárcere Modelo de Valência, ao Superior Geral da Congregação, P. L. Philippe: "Deus seja bendito! Cumpra-se em tudo a sua santíssima vontade. Considero-me muito feliz por poder sofrer alguma coisa por Ele, que tanto sofreu por mim, pobre pecador... Seja tudo pelo Coração Sacratíssimo de Jesus e pela sua Santíssima Mãe, em espírito de amor e de reparação".
    O P. João tinha experimentado o amor de Deus revelado co Coração trespassado de Cristo. Nada o assustava. O seu desejo íntimo era deixar-se imolar a si mesmo, em união com Cristo, como oblação santa e agradável a Deus, "em espírito de amor e de reparação".
    O sacrifício de Cristo não pode permanecer isolado, não partilhado. Pelo contrário, o martírio do Senhor Jesus é um apelo ao nosso martírio. É por isso que Paulo, na carta aos Romanos, escreve: "Exorto-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos (isto é, vós mesmos) como sacrifício, vivo, santo e agradável a Deus; é este o vosso culto espiritual" (Rom 12, 1). Cristo foi consagrado e imolado ao Pai, em favor dos homens. Também os cristãos, e particularmente os religiosos e sacerdotes são consagrados e imolados, para se tornarem, com Cristo, construtores do Reino de Deus entre os homens, isto é, reparadores com Cristo reparador. Como dehonianos, é assim que estamos abertos ao "acolhimento do Espírito", damos "uma resposta ao amor de Cristo por nós", estamos em "comunhão no Seu amor pelo Pai" e cooperamos "na sua obra redentora no coração do mundo" (Cst 23).

    Oratio

    Pai santo, que deste ao Beato João Maria da Cruz a graça do sacrifício de amor unitivo, infunde em nós o Espírito Santo. Animados pela sua força divina, queremos corresponder ao teu amor, e dar a nossa vida por aqueles que devem ser edificados. Assim testemunharemos a nossa piedade para com todos, e confessaremos a nossa fé em Jesus Cristo, Senhor. Acolhendo o martírio quotidiano, ou o martírio do sangue, queremos ser advogados e consoladores, oblatos e intercessores, em favor dos nossos irmãos e da humanidade inteira. Ámen.

    Contemplatio

    O bom Mestre propõe aos seus discípulos motivações para sofrerem corajosamente as provações e o próprio martírio, se tal acontecer. Estas motivações são, ainda hoje, a força dos nossos missionários, que, com tanta boa vontade, enfrentam todos os perigos, com o secreto desejo de derramarem o seu sangue pelo Salvador. O primeiro encorajamento que nos dá o bom Mestre é o seu próprio exemplo: «O discípulo, diz, não está acima do Mestre; se me perseguiram, também vos hão-de perseguir a vós». Depois do exemplo de Nosso Senhor, diz S. Bernardo, já não há perseguições nem sofrimentos que possam assustar um cristão; torná-lo participante do cálice do seu divino Filho é uma honra que Deus lhe faz. Nosso Senhor acrescenta que não devemos temer, porque a verdade sairá sempre vitoriosa da mentira e da calúnia; e, aliás, se os nossos inimigos podem atingir o nosso corpo, são impotentes contra a nossa alma e não podem separá-la de Deus. Além disso, a Providência divina vela sobre os seus servos e em particular sobre os apóstolos do Evangelho. Nosso Senhor confessará e glorificará diante de seu Pai os que o tiverem confessado sobre a terra. O último encorajamento e o mais tocante é a alta dignidade dos apóstolos, que são os representantes de Nosso Senhor e outros Ele mesmo. Ele vingá-los-á contra os seus inimigos, tal como recompensará os que os receberem, os que lhes testemunharem respeito e dedicação. (L. Dehon, OSP 2, pp. 311-312).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Quem poderá separar-nos do amor de Cristo?" (Rm 8, 35).

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    Beato João Maria de Cruz, Presbítero e Mártir, Padroeiro das Vocações Dehonianas (22 Setembro)

  • XXV Semana - Segunda-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXV Semana - Segunda-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    23 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXV Semana - Segunda-feira

    Lectio

    Primeira leitura: Provérbios 3, 27-35
    Meu filho: 27Não negues um benefício a quem dele precisa, se estiver nas tuas mãos oder concedê-lo. 28Não digas ao teu próximo: «Vai, e volta depois, amanhã te darei», quando o puderes logo atender. 29Não maquines o mal contra teu próximo, quando ele deposita confiança em ti. 30Não litigues contra ninguém, sem motivo, quando não te fez mal algum. 31Não invejes o homem violento, nem adoptes o seu procedimento, 32porque o Senhor abomina o homem perverso, mas reserva para os rectos a sua intimidade. 33A maldição do Senhor cai sobre a casa do ímpio, mas Ele abençoa a morada dos justos. 34Ele escarnece dos escarnecedores, mas concede a sua graça aos humildes. 35A glória será a herança dos sábios, mas os insensatos suportarão a ignomínia.
    O Livro dos Provérbios, cobre vários séculos de história, durante os quais os sábios se dedicaram à reflexão sapiencial. Por isso, se nota um certo progresso doutrinal. Aparentemente trata-se de um livro humilde. Perpassa nele a convicção de que a sabedoria presente no mundo, nas coisas e nos homens, é um traço da sabedoria de Deus. As próprias formas da sabedoria humilde e quotidiana - as do bom senso, da razão, da experiência - vêm de Deus. Segui-las é obedecer a Deus; ignorá-las é atraiçoar o projecto de Deus. A esta, luz profundamente religiosa, é que devemos compreender as máximas do Livro dos Provérbios, reconhecendo o valor de imperativo moral, não só às palavras dos profetas, mas também ao significado das coisas e à força da experiência.
    O texto de hoje insiste nas relações com o próximo: não negar um benefício, não dizer «amanhã to darei» (v. 28), não adiar, não litigar, não invejar, não seguir o perverso (vv. 29-32). No meio destes imperativos, aparece, repentinamente, uma afirmação muito bonita: «Deus reserva para os rectos a sua intimidade» (v. 32b). Fica assim traçado o esboço do sábio nas suas coordenadas fundamentais: a correcção e a benevolência nas relações com o próximo, a convicção de que a amizade de Deus vale mais do que tudo.

    Evangelho: Lucas 8, 16-18
    Naquele tempo, Jesus disse à multidão: 16«Ninguém acende uma candeia para a cobrir com um vaso ou para a esconder debaixo da cama; mas coloca-a no candelabro, para que vejam a luz aqueles que entram. 17Porque não há coisa oculta que não venha a manifestar-se, nem escondida que não se saiba e venha à luz. 18Vede, pois, como ouvis, porque àquele que tiver, ser-lhe-á dado; mas àquele que não tiver, ser-lhe-á tirado mesmo o que julga possuir.»
    A perícopa que escutamos inclui três pequenas unidades, recolhidas por Lucas, e incluídas numa sessão (8, 4-21) que tem por tema a Palavra de Deus. É nesta perspectiva que as lemos.
    A primeira unidade (v. 16) parece temer o risco do anonimato: não se põe a luz debaixo da cama. É uma advertência aos cristãos que - por medo ou porque julgam inútil fazê-lo - não se expõe publicamente. A Palavra é pública e visível: escondê-la é fazê-la morrer. A segunda unidade (v. 17) parece temer o risco do segredo. É uma advertência aos grupos de cristãos que se fecham em si mesmos, anunciando a Palavra em segredo, apenas aos iniciados. Mas a Palavra é para todos, pela sua natureza missionária. A terceira unidade (v. 18) é mais difícil. É certo que chama a atenção para a importância da escuta, ou para o modo como se escuta: «Vede, pois, como ouvis». Há quem não escuta, mas também há quem escuta mal. Que significa a expressão: «porque àquele que tiver, ser-lhe-á dado; mas àquele que não tiver, ser lhe á tirado mesmo o que julga possuir»? E que significa o "porque"? (v. 18) que condiciona o crescimento ou a perda da palavra? Significa talvez que é preciso escutar bem, porque é a escuta que enriquece. Quem não escuta ou escuta mal, empobrece. Não só não cresce, mas também perde o que julga possuir. A escuta da Palavra é, pois, o caminho necessário para crescer na fé. Se falta a escuta, a fé definha e morre.

    Meditatio
    Com a primeira leitura de hoje, iniciamos o Livro dos Provérbios. Jesus também usa provérbios susceptíveis de várias aplicações. «Não há coisa oculta que não venha a manifestar-se, nem escondida que não se saiba e venha à luz», lemos no evangelho de hoje. É necessário iluminar. Mas, antes, é preciso acender o candeeiro. O discípulo deve iluminar o mundo. Mas só o pode fazer com a luz que vem de Cristo Senhor, pois não tem luz própria. Se assim não for, corre-se o risco de confundir as ideias próprias, os gostos próprios, as opções próprias com as de Cristo e de propor coisas e realidades que nada têm a ver com o Senhor. É preciso acender, cada dia, a própria lâmpada, na lâmpada de Cristo. É o lumen Christi (luz de Cristo) que ilumina o mundo, não a minha luz. A minha luz só ilumina se for reflexo da de Cristo.
    Notemos também que a luz de que fala Cristo não é só doutrina, mas também testemunho, isto é, doutrina que se torna vida, que transforma a vida: que toca o meu modo de ser, de julgar as coisas. Eu sou luz quando difundo a luz de Cristo, com os critérios de Cristo, isto é, com humildade e pobreza. Quando, por exemplo, não falo de humildade a partir de uma posição de poder, quando não anuncio a pobreza com meios que revelam abundância de bens... Sou luz sobre o candelabro quando represento, o mais aproximadamente possível, o modo de ser, de agir, de pensar, de falar de Jesus. É bom pensarmos nisto, porque podemos cair em grandes ilusões. Pensar que iluminamos só porque repetimos palavras de Jesus, sem deixar iluminar a nossa vida pela de Jesus, é como cobrir a lâmpada com um alqueire. É doutrinar, não evangelizar.
    Os Santos são aqueles que melhor reflectem a luz de Cristo. As nossas Constituições recordam-nos a vocação à santidade. Recordam-na numa perspectiva ampla e eclesial: «Com todos os nossos irmãos cristãos...» (Cst 13). A vocação à santidade é universal (Cf. 1 Tes 4, 7; 1 Pe 2, 21; LG 40). Mas nós, religiosos, devemos ser as testemunhas, os "especialistas" da santidade junto dos nossos irmãos cristãos. Mergulhados nas preocupações da vida de cada dia, do trabalho, das necessidades diárias, facilmente esquecem a sua vocação à santidade. Por "vocação", por "um dom particular" (n. 13), nós religiosos devemos brilhar diante deles com a santidade da nossa vida: «Brilhe a vossa luz diante dos
    homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus» (Mt 5, 16), para que se lembrem da sua meta suprema: a transformação em Cristo da sua vida.

    Oratio
    Senhor, olha como estou mais preocupado em transmitir doutrina, do que em testemunhá-la com a minha vida. Olha como esqueço o teu modo de ser, que tanto impacto deu às tuas palavras, pensando que evangelizar, que guiar os meus irmãos e irmãs, é questão de conhecimentos e de transmissão de ideias.
    Mas és tu que deves viver em mim, para que eu possa dizer as tuas palavras e guiar os outros. Se Tu, meu amigo e Senhor, não viveres em mim, as tuas palavras sairão sem efeito dos meus "lábios impuros", porque o meu coração não será semelhante ao teu, e os meus critérios, não serão os teus. Que eu Te encontre, antes de procurar as tuas palavras; que eu me torne semelhante a Ti, antes de Te usar para dizer aquilo que devo dizer.
    É por isso que preciso de Te sentir junto a mim, mais íntimo, mais amigo, mais familiar, mais presente na minha vida. Não me abandones, não me deixes nas minhas ilusões, não me deixes perder nos atalhos, na tentação de Te reduzir a uma ideia ou a simples mensagem. Amen.

    Contemplatio
    Instruir e exortar não era suficiente; era preciso ainda ganhar os corações e prender os homens a Deus por um laço de amor. Aqui estava a obra própria do Coração sacerdotal de Jesus. É verdade que Jesus tinha a seu favor o encanto da sua pessoa e da sua beleza divina. Ele semeava os milagres e distribuía os benefícios. Mas também expunha muitas vezes toda a bondade de Deus no mistério da redenção e é isto que nós podemos imitar. Todo o ensinamento de Jesus se resume na palavra Evangelho que significa «a boa nova»; prega o evangelho do reino, isto é, a feliz notícia da salvação pela redenção, de todos os benefícios da misericórdia divina. S. João reteve melhor que os outros estes apelos do Coração sacerdotal de Jesus. Repete-os várias vezes. «Deus amou de tal modo o mundo, que enviou o seu Filho único para o salvar» (Jo 3, 16). «Como o meu Pai me amou, eu vos amo; permanecei no nosso amor» (Jo 15, 9). Como Nosso Senhor mesmo o disse, era o seu Coração que falava pela sua boca: Ex abundantia cordis os loquitur (Mt 12, 34); e o seu Coração ganhava todos os corações. Cabe a nós mostrar também como a bondade divina resplandece nos mistérios da Incarnação e da Redenção. É isto pregar o Sagrado Coração. Esta era a força de S. Paulo. Quantas vezes repete: «Cristo amou-me até ao ponto de se entregar por mim!» Preguemos o Sagrado Coração e ganharemos as almas para Jesus Cristo. (Leão Dehon, OSP 2, p. 554).

    Actio
    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Vede como ouvis» (Lc 8, 18).
    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXV Semana - Terça-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXV Semana - Terça-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    24 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXV Semana - Terça-feira

    Lectio

    Primeira leitura Provérbios 21, 1-6.10-13
    1O coração do rei é como água corrente nas mãos do Senhor,Ele o dirigirá para onde quiser. 2Os caminhos do homem parecem-lhe sempre rectos, mas é o Senhor quem pesa os corações. 3A prática da justiça e da equidade é mais agradável ao Senhor que os sacrifícios. 4Olhares altivos, coração soberbo: a lâmpada dos ímpios é o pecado. 5Os projectos do homem diligente têm êxito, mas quem se precipita cai certamente na ruína. 6Os tesouros adquiridos pela mentira são vaidade passageira e laço de morte. 10A alma do ímpio deseja o mal; não terá compaixão do seu próximo. 11Com o castigo do insolente, o ingénuo ficará mais sábio; quando se adverte o sábio, ele adquire mais saber. 12O justo está atento à família do ímpio, e precipita os maus na desventura. 13Aquele que se faz surdo ao clamor do pobre, também um dia clamará e não será ouvido.
    O Livro dos Provérbios é uma ampla recolha de máximas e de sentenças, independentes entre si, sem qualquer espécie de fio condutor ideológico, onde está depositada a sabedoria das várias gerações de Israel. O seu objectivo é fazer de todo o israelita um verdadeiro homem: forte, senhor de si mesmo, interiormente livre, trabalhador, hábil, leal. Não é ainda o retrato do homem evangélico. Mas é a base para o ser. Não nos tornamos discípulos sem ser homens. Está aqui o valor deste livro. É bom fazer esta verificação porque, à primeira vista, muitos provérbios poderiam deixar-nos desiludidos. Que valer têm hoje? Há muitos, que espelham o simples bom-senso e que continuam actuais. Mas é importante, sobretudo, o seu valor global. Sugerem comportamentos próprios da fase anterior à Aliança e à sua moral. Mas estamos perante um são humanismo que tem por objectivo criar um homem apto para as opções morais e para os compromissos da Aliança.
    As virtudes sugeridas no texto de hoje são as habituais: não presumir de si mesmo, nem da própria rectidão; praticar a justiça, a humildade e a diligência; não ser mentiroso nem violento nos negócios, não fechar os ouvidos ao grito dos pobres. Na Bíblia, o grito do pobre é sempre dirigido ao Senhor. Escutá-lo é, pois, responder em nome do Senhor.

    Evangelho: Lucas 8, 19-21
    Naquele tempo, 19sua mãe e seus irmãos vieram ter com Ele, mas não podiam aproximar-se por causa da multidão. 20Anunciaram-lhe: «Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e querem ver-te.» 21Mas Ele respondeu-lhes: «Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática.»
    Lucas apresenta-nos um quadro de rara finura e profundidade. Não denota polémica em relação à família de Jesus, como acontece nos textos paralelos de Mateus e de Marcos. A atenção de Lucas vai para aquilo que, de facto, interessa: a escuta e a prática da Palavra, que criam e definem o verdadeiro sentido de família de Jesus.
    Um dia, «Sua mãe e seus irmãos vieram ter com Ele» (v. 19). Lucas usa um verbo que exprime o desejo de ver Jesus. A forma singular realça a figura da Mãe, que é o sujeito. Para o evangelista, a vinda dos familiares é uma ocasião que permite a Jesus pronunciar a sentença sobre os seus verdadeiros parentes: a escuta e a prática da Palavra cria laços mais fortes do que os do sangue. Esta possibilidade, todavia, não exclui os parentes que vieram visitá-l´O. Lucas exalta a família gerada pela Palavra. Mas não menospreza os laços com a família de sangue.

    Meditatio
    As palavras de Jesus dirigidas àqueles que Lhe anunciam a chegada da sua mãe e dos seus familiares, parecem duras. Mas explicam-se com a sua missão de semeador da Palavra de Deus. Naquele momento, mais do que atender àqueles que Lhe são familiares pelos laços do sangue, o Mestre queria sublinhar os laços que realizam a sua nova «família»: a escuta da Palavra, e o pô-la em prática. São essas atitudes que produz o milagre de nos tornar mãe, irmãos e irmãs de Jesus. Tal como Maria escutou a Palavra e, depois, de tornou Mãe, o mesmo pode acontecer comigo hoje, se acolher a Palavra que me é dirigida. Jesus quer crescer no mundo e o caminho privilegiado sou eu, porque quer crescer em mim, quer que a minha existência seja cada vez mais cristiforme, quer que eu O represente cada vez melhor. Se acolho a sua Palavra, se a contemplo, se a conservo, se lhe deixo espaço, se procuro não esquece-la durante o dia, se faço dela a luz dos meus caminhos, Jesus cresce em mim, à minha volta, no mundo. E posso adquirir a dignidade de Maria, porque O gerarei novamente para o nosso tempo. Quero, pois, ser devoto da Virgem, para que me ensine a receber a Palavra, a dar-lhe carne, a dar-lhe vida, a transformar toda a minha acção em nova geração, em novo crescimento de Jesus em mim e à minha volta.
    Maria é o modelo de como se escuta e acolhe na vida a Palavra e: «Feliz d´Aquela que acreditou no cumprimento das palavras do Senhor...» (Lc 1, 45). É a primeira bem-aventurança que ecoa no Evangelho e desce sobre Maria, por meio da palavra de Isabel, cheia de Espírito Santo; é a bem-aventurança da fé, que acolhe a Palavra de Deus e adere a ela com toda a vida. É a bem-aventurança que Jesus, um dia, proclamará: «Felizes... aqueles que escutam a Palavra de Deus e a põe em prática!» (Lc 11, 28); é a «melhor parte» que Maria de Betânia escolheu, sentada aos pés do Senhor, na escuta da sua palavra, e que não lhe será tirada (cf. Lc 10, 38-42).
    Não é suficiente escutar a Palavra, é preciso guardá-la e pô-la em prática, como fez a Virgem Maria: «Eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a Tua palavra» (Lc 1, 38). «Sede daqueles que põem em prática a palavra - exorta S. Tiago - e não apenas ouvintes, enganando-vos a vós mesmos» (1, 22). É inútil ver-se ao espelho, ver o próprio rosto e depois esquecer-se dele (cf. Tg 1, 23-24).
    "Escutar", em sentido bíblico, é "compreender", "acolher" na vida, "ir a Jesus"; é "acreditar", "guardar no coração"; é "obedecer" e "fazer". A verdadeira "escuta da Palavra" realiza-se quando se ama, não por palavras, mas "com obras e em verdade" (1 Jo 3, 18).

    Oratio
    Quero, suplicar-Te, hoje, ó Virgem Santa Maria, que me ajudes a receber a Palavra para lhe dar carne, para lhe dar vida. Sabes como estou longe deste ideal de ver a minha vida como geração de Jesus no mundo. Eu, pobre pecador, mergulhado em tantas coisas, posso aproximar-me de Ti, Mãe do meu Salvador, e tornar-me também "mãe" d&acut
    e;Aquele que me salva! Parece-me um ideal demasiado elevado, inatingível!
    Conduz-me docemente por esse mistério, abre os meus olhos para que vejam as maravilhas que a Palavra pode realizar em mim; dá-me um coração capaz de compreender este mundo novo em que são introduzidos os ouvintes da Palavra. Fica junto a mim, ó Mãe, para que possa continuar, sem medo nem tremor, mas com espanto e gratidão, a tua obra, no começo do novo milénio. Amen.

    Contemplatio
    O abandono a Deus e à vontade divina é a regra de vida de Maria e nós vemo-la na perturbação e na dúvida fixar-se nesta disposição: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra». Estas palavras exprimem o abandono, a docilidade à graça, a conformidade à vontade divina, o sacrifício e a imolação. Com esta resposta, com o seu consentimento, Maria aceitava a dignidade e a honra da maternidade divina, mas ao mesmo tempo também os sofrimentos, os sacrifícios que lhe estavam ligados. Declarava-se pronta a cumprir a vontade de Deus em tudo como sua serva. Era como um voto de vítima e de abandono. Esta disposição é a mais perfeita, é a fonte dos maiores méritos e das melhores graças. Maria proclamou-o mesmo no seu Magnificat: A minha alma louva o Senhor, porque olhou com favor a humildade da sua serva. Deus encontrou muita alegria nesta disposição de Maria. Ela acrescentava: Todas as gerações me hão-de proclamar bem-aventurada.
    Durante a sua vida mortal, poucas pessoas a proclamaram bem-aventurada, excepto Isabel e aquela mulher que ergueu a voz no meio do povo, e à qual Jesus respondeu: Bem-aventurados são aqueles que escutam a minha palavra e que a praticam.
    A felicidade de Maria durante a sua vida mortal era o sacrifício com Jesus, por Jesus e pelas almas. Ela não era, como o seu Filho, senão um objecto de desprezo, de humilhação e de ignomínia da parte dos inimigos de Deus. Para aqueles que estavam bem dispostos, era um objecto de compaixão e de piedade. O ecce Ancilla era a disposição do seu coração em todos os sacrifícios que teve de fazer: quando da Apresentação no Templo, quando ofereceu o seu Filho em sacrifício e escutou a profecia do velho Simeão; na fuga para o Egipto e assim por diante, em todas as ocasiões, até debaixo da cruz do seu Filho moribundo. Do mesmo modo para o resto da sua vida, consentiu em ser a mãe da Igreja nova fundada no sangue do seu Filho.
    A sua graça e os seus méritos aumentavam sempre pela sua fiel cooperação, pela sua pureza, pelo santo e perfeito amor com o qual cumpria a missão que se tornara a sua. (Leão Dehon, OSP 3, p. 328 s.).

    Actio
    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática» (Lc 8, 21).
    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXV Semana - Quarta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXV Semana - Quarta-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    25 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXV Semana - Quarta-feira

    Lectio

    Primeira leitura Provérbios 30, 5-9

    5Toda a palavra de Deus é provada ao fogo, é um escudo para aqueles que confiam ele. 6Nada acrescentes às suas palavras, para que não te repreenda e sejas achado mentiroso. 7Peço-te duas coisas, não mas negues antes da minha morte: 8Afasta de mim a falsidade e a mentira, não me dês pobreza nem riqueza, concede-me o pão que me é necessário, 9para que, saciado, não te renegue, e não diga: «Quem é o Senhor?» Ou, empobrecido, não roube e não profane o nome do meu Deus.
    A nossa leitura começa com uma reflexão sobre a palavra de Deus. Depois, vem uma prece sapiencial que tem por tema a pobreza e a riqueza. O Livro dos Provérbios reflecte atentamente sobre a pobreza e sobre a riqueza. O ideal da sabedoria não é a pobreza, mas o bem-estar, que é uma bênção de Deus. Procurá-lo é um dever. O Livro dos Provérbios condena duramente a preguiça e a falta de empenho. Mas, se o bem-estar é uma bênção, não quer dizer que o pobre seja um maldito ou castigado. São muitas, no Livro dos Provérbios as recomendações em favor dos pobres. Ajudá-los é um dever. É preciso também lembrar que a felicidade não se encontra só na riqueza, mas na riqueza acompanhada pelo temor de Deus, pela justiça e pela concórdia: «Na casa do justo há riqueza abundante; mas o rendimento dos maus é fonte de perturbação» (15, 6). Finalmente, o Livro dos Provérbios admite que a excessiva riqueza pode trazer grandes perigos morais, tais como a auto-suficiência, que julga não precisar de Deus nem dos outros. A riqueza material facilmente se torna riqueza de espírito. Por isso, o sábio pede a Deus que, nem lhe dê a miséria que leva à rebelião nem lhe dê excessiva riqueza que leva a esquecê-l´O.

    Evangelho: Lucas 9, 1-6
    Naquele tempo, Jesus, 1tendo convocado os Doze, deu-lhes poder e autoridade sobre todos os demónios e para curarem doenças. 2Depois, enviou-os a proclamar o Reino de Deus e a curar os doentes, 3e disse-lhes: «Nada leveis para o caminho: nem cajado, nem alforge, nem pão, nem dinheiro; nem tenhais duas túnicas. 4Em qualquer casa em que entrardes, ficai lá até ao vosso regresso. 5Quanto aos que vos não receberem, saí dessa cidade e sacudi o pó dos vossos pés, para servir de testemunho contra eles.» 6Eles puseram-se a caminho e foram de aldeia em aldeia, anunciando a Boa-Nova e realizando curas por toda a parte.
    Jesus pregou a conversão, expulsou demónios e curou os doentes. Essa é também a tarefa do discípulo missionário (v. 1s.).
    Antes de mais nada, Jesus ordena ao missionário que leve consigo apenas o estritamente necessário, e nada mais (v. 3). É um convite à pobreza entendida como liberdade (deixar para seguir) e fé (o próprio Senhor tomará conta dos seus discípulos). Depois, vem uma norma de bom senso: o discípulo itinerante não ande de casa em casa, mas escolha uma casa digna e hospitaleira, ficando nela o tempo necessário (v. 4). Finalmente, uma sugestão sobre o comportamento em caso de recusa. A recusa está, de facto, prevista: é confiado ao discípulo uma missão; mas não lhe é garantido o sucesso. Diante da recusa, deve comportar-se como Jesus: quando é recusado num lugar, vai para outro (v. 5). «Sacudir o pó» é um gesto de juízo, não de maldição: serve para sublinhar a gravidade da recusa, da ocasião perdida.

    Meditatio
    O Livro dos Provérbios ensina-nos, hoje, a pedir a Deus o dom da verdade, da sinceridade: «afasta de mim a falsidade e a mentira» (v. 8). Ensina-nos também a pedir o dom da moderação, que não exige privilégios espectaculares, nem presume dispensar os dons de Deus: «não me dês pobreza nem riqueza» (v. 8). O sábio está consciente da sua fragilidade e dos perigos da riqueza, mas também dos perigos da pobreza. Por isso, pede o pão da cada dia, para que não chegue a renegar a Deus nem se torne ladrão. Uma bela oração, cheia de equilíbrio, de bom senso. Tudo o que pedirmos a Deus há-de ter por objectivo aumentar a nossa união com Ele!
    Felizes os Doze que tinham «poder e autori¬dade sobre todos os demónios e para cura¬rem doenças». E nós, por que razão temos tão pouco poder e autoridade? Talvez porque levamos connosco demasiadas coisas? Não estará o poder do Senhor amarrado por tantas coisas de que nos rodeamos e nas quais confiamos mais do que n´Ele? Ate onde deve ir a nossa confiança em Deus? Onde começa o nosso empenho pessoal? São questões que nos deixam pensativos e que parecem sem resposta, a não ser que surja uma lufada do Espírito Santo. Uma coisa é certa: fazer apostolado não é fácil, uma vez que estamos expostos a tantos ventos e marés, a tantas modas e tentações. Se nos sentimos fracos, somos tentados a lançar mão de apoios humanos ou a refugiar-nos em falsas seguranças. Se a acção apostólica é "poderosa", facilmente caímos na auto-complacência, como se tudo fosse mérito nosso. É fácil deprimir-se nos fracassos e exaltar-se nos sucessos. A nossa fraqueza está, talvez, no individualismo: só o que eu faço é bem feito, só o que eu penso está certo. Uma comunidade, com que nos confrontemos, pode ajudar-nos a crescer e a avaliar a qualidade evangélica das nossas acções, não de modo abstracto, mas na realidade do dia a dia.
    Jesus realiza a missão na pobreza. Aliás, a sua pobreza é em vista da missão. Ele vive em efectivo despojamento voluntário: «que não tem onde reclinar a cabeça» (Lc 9, 58) e é no absoluto despojamento da cruz que é professado como Filho de Deus (cf. Mc 15, 39).
    Longe de depender do ter, o poder do homem, é, antes mais, dom do Pai a quem é suficientemente pobre para o receber: «Eu Te bendigo, ó Pai, porque revelaste estas coisas aos pobres...» (Mt 11, 25ss).
    Quanto à importância da comunidade, na missão, as nossas Constituições lembram-nos que, na escolha dos compromissos apostólicos concretos, devem ser salvaguardadas duas exigências: a comunhão com a própria comunidade: «cada um, na sua função, tenha consciência de ser o enviado da sua comunidade e que todos se considerem interessados e comprometidos na actividade e na missão de cada um, sobretudo quando uma comunidade deve assumir diversos serviços» (n. 62); a comunhão com os responsáveis da Igreja local: realizamos assim «o nosso serviço do Evangelho na Igreja universal, em comunhão com os responsáveis das Igrejas locais» (n. 34).
    São princípios muito genéricos, mas que é importante ter presentes para nos inserirmos com o «nosso carisma profético» na «missão salvífica do Povo de Deus n
    o mundo de hoje» (Cst. 27), para a realização da «nossa oblação reparadora» (Cst. 6). É também assim que acolhemos o Espírito (cf. Cst. 23), que é uno e é princípio de unidade, para a «edificação do Corpo de Cristo», «para Glória e Alegria de Deus» (Cst. 25).

    Oratio
    Senhor, olha como nós, teus discípulos nos sentimos desarmados diante do mundo. Sentimo-nos desorientados, não sabemos por onde começar, nem sempre somos tomados a sério, especialmente quando dizemos as tuas palavras. Os nossos grupos de catequese, os nossos grupos de jovens são muito reduzidos. A maior parte dos adolescentes e jovens preferem outras ocupações à catequese, preferem outros conhecimentos ao conhecimento de Ti. Os que vêm, muitas vezes não se apresentam com verdadeiro interesse. Vêm porque são mandados, porque querem receber um sacramento, que dá direito a uma festa de família. Não nos deixes cair na tentação do desânimo. Dá-nos o dom do discernimento, para que saibamos descobrir a tua vontade nas próprias dificuldades que se nos apresentam, e encontrar os meios para tornar cativante a apresentação da tua Palavra. Mais do que de meios técnicos, precisamos de Ti, do teu Espírito. Que a nossa voz, ao anunciarmos a tua ressurreição, tenha o timbre da do Anjo do sepulcro vazio.
    Livra-nos da tentação do sucesso humano. Ilumina-nos! Salva-nos! Faz-nos instrumentos eficazes da tua salvação. Amen.

    Contemplatio
    «Ide, diz aos seus discípulos, anunciai o reino de Deus. Não leveis nem ouro nem dinheiro. Confiai-vos à Providência. Se não vos receberem, sacudi o pó das vossas sandálias, e passai adiante... Abençoarei aqueles que vos receberem em meu nome, nem que vos dessem apenas um copo de água... Tende confiança, Deus cuida dos pardais, terá cuidado de vós» (Mt 10).
    E ainda: «Não podeis procurar ao mesmo tempo Deus e o dinheiro. Não estejais inquietos com o que haveis de comer, nem com o vestuário que levareis. Deus alimenta os pássaros e dá às flores o seu vestido. Deixai os pagãos viver para o dinheiro. O vosso Pai celeste sabe o que vos faz falta. Procurai antes de mais o reino de Deus e a sua justiça, e o resto vos será dado por acréscimo» (Mt 6, 24 ss).Jesus põe em prática o que aconselha. Vai pelas cidades e pelas aldeias a pregar o reino de Deus. Os seus doze apóstolos estão com Ele. Levam pouca coisa consigo: algumas provisões para comerem nos lugares desertos, e uma pequena bolsa mais para fazer esmola do que para comprar víveres. Pessoas generosas oferecem-lhes o necessário. Há também algumas benfeitoras.
    Algumas mulheres que tinha curado, diz S. Marcos, Maria Madalena, Joana, mulher de Cusa procurador de Herodes, Susana e várias outras seguiam o Mestre e os seus apóstolos para os escutarem, e ajudavam-nos com os seus bens (cf. Mc 8). (Leão Dehon, OSP 2, pp. 573s.).

    Actio
    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Nada leveis nada para o caminho» (Lc 8, 21).
    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXV Semana - Quinta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXV Semana - Quinta-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    26 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXV Semana - Quinta-feira

    Lectio

    Primeira leitura: Qohélet 1, 2-11
    2Ilusão das ilusões - disse Qohélet- ilusão das ilusões: tudo é ilusão. 3Que proveito pode tirar o homem de todo o esforço que faz debaixo do Sol? 4Uma geração passa, outra vem; e a terra permanece sempre. 5O Sol nasce e o Sol põe-se e visa o ponto donde volta a despontar. 6O vento vai em direcção ao sul, depois ruma ao norte; e gira, torna a girar e passa, e recomeça as suas idas e vindas. 7Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche. Para onde sempre correram, continuam os rios a correr. 8Todas as palavras estão gastas, o homem não consegue já dizê-las. A vista não se sacia com o que vê, nem o ouvido se contenta com o que ouve. 9Aquilo que foi é aquilo que será; aquilo que foi feito, há-de voltar a fazer-se: e nada há de novo debaixo do Sol! 10Se de alguma coisa alguém diz: «Eis aí algo de novo!», ela já existia nas eras que nos precederam. 11Não há memória das coisas antigas; e também não haverá memória do que há-de suceder depois; nem ficará disso memória entre aqueles que hão-de vir mais tarde.
    Ao interrogar-se sobre o sentido da vida, o Livro de Qohélet responde: «Tudo é ilusão» (v. 2), ou, mais exactamente, «vacuidade». As traduções gregas e latinas da Bíblia escrevem «vaidade». Mas a palavra hebraica hevel, traduzida em português por ilusão, ou por vaidade, significa neblina, fumo, algo de vácuo, de inconsistente: ao longe pode encantar, mas, ao perto, desilude. Tal é a vida do homem: realidade enganosa, caduca, absurda. O Qohélet é realmente drástico e provocador. Porquê? Porque, de facto, é grande o contraste entre a precariedade do homem e o permanecer da natureza: «Uma geração passa, outra vem; e a terra permanece sempre» (v. 4). Todos dizem que o homem é mais importante do que as coisas; mas as coisas permanecem e o homem passa. Se olharmos para além das aparências, verificamos que o homem como que se debate dentro de um círculo do qual não consegue sair. Tudo se move, mas tudo continua igual. Tudo volta ao ponto de partida, tal como o sol no seu movimento diurno, tal como o vento ou a água dos rios. Também o afadigar-se do homem é como que um rodopiar à volta de si mesmo, fazendo e desfazendo, sem jamais chegar à meta definitiva. O mundo novo que o homem procura construir escapa-lhe continuamente das mãos, como areia por entre os dedos.
    Talvez Qohélet esteja a falar da própria esperança messiânica. Era uma esperança religiosa, mas rodeada de muitas conotações terrenas. Por isso Qohélet a contesta. Haverá sempre o limite da morte. O homem jamais se saciará de ver, de ouvir. Sempre lhe escapará o sentido do conjunto. Portanto, tudo é vaidade? O Novo Testamento irá esclarecer-nos devidamente: tudo é vaidade, excepto a caridade.

    Evangelho: Lucas 9, 7-9
    Naquele tempo, 7o tetrarca Herodes ouviu dizer tudo o que se passava; e andava perplexo, pois alguns diziam que João ressuscitara dos mortos; outros, 8que Elias aparecera, e outros, que um dos antigos profetas ressuscitara. 9Herodes disse: «A João mandei-o eu decapitar, mas quem é este de quem oiço dizer semelhantes coisas?» E procurava vê-lo.
    Herodes está perplexo: quem é Jesus de quem todos falam? Fazem-se diversas conjecturas: é João ressuscitado, é Elias, é um profeta. O povo apercebe-se da grandeza de Jesus. Mas erra ao compará-lo com figuras do passado. Jesus é uma novidade absoluta. Para compreendê-lo é preciso olhar para Ele, e mais ninguém.
    Herodes é um homem culto e prático. Quer encontrar Jesus e dar-se pessoalmente conta da sua identidade. Se fosse movido por boas intenções, como no caso de Zaqueu (cf. Lc 19, 3), seria uma atitude positiva. Mas não era esse o caso. Já o confessar a si mesmo, cinicamente e sem remorsos, ter matado João Baptista, para calar a sua voz incómoda, mostra como a sua vontade de ver Jesus era apenas curiosidade superficial. Tudo isso ficará claro na narrativa da paixão (cf. Lc 23, 8-10). Herodes representa o homem curioso que não quer tornar-se discípulo de Jesus, mas apenas quer ver fenómenos extraordinários, talvez até realizados por Jesus. É o prurido de ouvir novidades, que também Paulo condenará.

    Meditatio
    Como compreender a página do Qohélet, que hoje escutamos? Essa compreensão não dependerá da situação em que nos encontramos. Se estamos cheios de forças, ou empenhados em tarefas muito absorventes, parece-nos amarga e até inoportuna. Se nos sentimos desconfortáveis, em fase de avaliação da nossa existência, parece-nos impiedosamente verdadeira. Mas, para além dos estados de espírito, revela-se uma página realista e necessária, porque fotografa a situação do que existe e está destinado a passar, a desvanecer-se, a não deixar rasto. Trata-se de uma página que os poetas e pensadores retomaram, e muitas vezes actualizaram com acentos tocantes, por vezes, desesperados. Mas, para o cristão é apenas o primeiro passo, necessariamente seguido pelo segundo: a certeza de que é a partir deste nada, que se pode construir tudo, se o recebermos de Deus e o usarmos de acordo com a sua vontade. Podemos pois fazer uma dupla meditação: sobre o nada e sobre o tudo; sobre o modo como não nos deixarmos absorver pelo nada e sobre o modo como dar consistência a estas aparências tão frágeis. Esta meditação é possível com o concurso do realismo da razão e do realismo da fé. O livro do Qohélet é importante para a formação da consciência cristã. Desde que não seja o único. O mistério pascal, fundamento da fé, junta a morte e a ressurreição, derrota e vitória, fracasso e reconhecimento da perenidade de quem permanece fiel a Deus.
    O texto evangélico mostra-nos como Jesus suscitava interrogações à sua volta. Levanta-se até a questão da ressurreição: terá João ressuscitado dos mortos? Terá aparecido Elias? Terá ressuscitado um dos antigos profetas? Estamos perante um conceito de ressurreição que daria razão a Qohélet: seria um regresso a coisas já vistas. Os profetas voltariam a viver a vida que já viveram. Mas a ressurreição de Cristo é algo de completamente novo e abre-nos a uma esperança nova. Não voltaremos à vida mortal, mas seremos transformados pela força do Espírito que ressuscitou Jesus: «Se alguém está em Cristo, é uma nova criação. O que era antigo passou; eis que sugiram coisas novas» (2 Cor 5, 17).
    O Qohélet dizia que não havia novidades sobre a terra. No nosso tempo até há muitas novidades: viagens interplanetárias, descobertas científicas, novos meios de comunicação e transporte.... Mas o homem continua o mesmo, e usa tudo isso
    para objectivos que são os de sempre: afirmar-se, dominar os outros, acumular bens para si, que acabam por ser roubados, apodrecer ou ser deixados a outros que nada fizeram por eles... Mas há uma novidade maravilhosa, que dá gosto à vida, que dá optimismo e alegria ao coração e nos enche de profunda confiança: Jesus Cristo ressuscitado, Coração da Humanidade e do Mundo, Princípio de um Mundo Novo! Conhecendo esta novidade, capaz de transformar o mundo, temos o dever de a comunicar a todos os que, como o Qohélet proclamam: «tudo é ilusão» (v. 2). Cristo Ressuscitado é uma novidade maravilhosa, que dá gosto novo à vida e enche o coração de optimismo, de alegria, de confiança.

    Oratio
    Senhor, são muitas as ocasiões que pões ao meu dispor para meditar na "infinita vaidade de todas as coisas". Não queres que me agarre a nada porque, fora de Ti, tudo é inconsistente. Agradeço-te porque, hoje, Te serviste do Qohélet para mo lembrar. Quero louvar-te e dar-te graças por tudo quanto me ofereces na natureza e nos irmãos. Quero louvar-te e dar-te graças por tudo quanto de bom pões ao meu dispor. Mas só Tu és a minha verdadeira e definitiva riqueza, a minha verdadeira e única felicidade.
    Faz-me sentir o teu amor eterno, para que não me detenha em nada deste mundo, e mantenha o olhar fixo em Ti, origem e fim de todas as coisas. Não me deixes cair no pessimismo em que a caducidade das coisas e da vida me podem induzir. Se me fizeres sentir a vacuidade de quanto me rodeia, que eu busque preenchê-la em Ti, e só de Ti, que és o meu Ontem, o meu Hoje e o meu Amanhã! Amen.

    Contemplatio
    O que é o pó e a cinza? É o sinal da destruição; é o selo que o tempo, o incêndio e a morte imprimem nas coisas da terra. Que resta dos monumentos mais famosos da antiguidade, das capitais mais ilustres, da Roma antiga, de Atenas, de Tebas, de Babilónia? Cinza e pó. Onde estão estes edifícios sumptuosos, estas obras-primas da arte que se chamava as maravilhas do mundo? Cinza e pó. Onde estão os restos dos heróis e dos sábios de outrora? Cinza e pó.
    A Igreja quer que... nos recordemos da vaidade das coisas humanas; mas quer sobretudo que meditemos sobre a nossa origem, sobre a nossa criação, sobre o pecado do primeiro homem e das suas consequências: «Lembra-te que saíste do pó e que a ele tornarás». É a sentença divina depois da queda. O homem foi tirado do barro, não devia voltar a ele. Devia ser confirmado em graça e glorificado no seu corpo tal como na alma. Pecou e com o pecado a morte entrou no mundo: Per peccatum, mors (Rom 5, 12). Que estragos! ... Que sou eu? Cinza e pó. O pó é levado pelo vento. Assim acontece com a minha pobre natureza. Sou acessível a todo o vento da tentação. A minha vontade é tão móvel como o pó. Em que é então que me posso orgulhar? Que lição de humildade!
    Porque é que o barro e a cinza se orgulham, pergunta o Sábio (Eccli 10, 8). Todos os homens, diz ainda, são apenas terra e cinza (17, 31). Os povos, depois de um rápido brilho, são como um amontoado de cinza depois do incêndio, diz Isaías (33, 12).
    A nossa vida desaparecerá como se extingue uma faúlha, diz o Sábio, e o nosso corpo cairá feito em cinzas (Sab 2, 3).
    Abraão dizia: «Ousarei falar a Deus, eu que não sou senão cinza e pó?» (Gen 18, 27). No entanto, falou a Deus com humildade e confiança... Sou apenas nada, no entanto irei ter com Deus... Irei com a consciência da minha fraqueza, mas mesmo assim confiante, porque Deus é bom, porque o Filho de Deus tomou um coração para me amar... (Leão Dehon, OSP 2, pp. 195 ss.).

    Actio
    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Dai-me, Senhor, a sabedoria do coração» (Lc 8, 21).
    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXV Semana - Sexta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXV Semana - Sexta-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    27 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXV Semana - Sexta-feira

    Lectio

    Primeira leitura: Qohélet 3, 1-11
    1Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu: 2tempo para nascer e tempo para morrer, tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou, 3tempo para matar e tempo para curar, tempo para destruir e tempo para edificar, 4tempo para chorar e tempo para rir, tempo para se lamentar e tempo para dançar, 5tempo para atirar pedras e tempo para as ajuntar, tempo para abraçar e tempo para evitar o abraço, 6tempo para procurar e tempo para perder, tempo para guardar e tempo para atirar fora, 7tempo para rasgar e tempo para coser, tempo para calar e tempo para falar, 8tempo para amar e tempo para odiar, tempo para guerra e tempo para paz. 9Que proveito tira das suas fadigas aquele que trabalha? 10Eu vi a tarefa que Deus impôs aos filhos dos homens para que dela se ocupem. 11Todas as coisas que Deus fez, são boas a seu tempo. Até a eternidade colocou no coração deles, sem que nenhum ser humano possa compreender a obra divina do princípio ao fim.
    A primeira leitura, que hoje escutamos, é, para alguns autores, uma meditação sobre a morte, que marca antecipadamente toda a nossa vida, ou, para outros, uma meditação sobre o «tempo propício» para cada coisa. Outros ainda acham que se trata de uma reflexão sobre a irreversibilidade do curso do tempo, com o seu carácter fatídico e incoerente. Não há dúvida que Qohélet está impressionado com o mistério do tempo. Tudo tem a sua duração e para tudo há o momento próprio, a ocasião propícia... Mas, como conhecer esse momento, essa ocasião? O homem parece incapaz de influir na engrenagem do tempo. No fundo, a existência é simples, feita de poucas atitudes de base que se repropõem permanentemente; nascer e morrer, amar e odiar, sofrer e gozar, juntar-se e separar-se, calar e falar, salvar e perder, etc... O homem, com todo o seu afã e desejos, está encerrado na trama destas situações que se sucedem irreversivelmente. A existência humana está encerrada num círculo inquebrável.
    Haverá um sentido para tudo, mas o homem não o alcança. Deus pôs-lhe no coração a exigência de uma visão de conjunto e a necessidade de se interrogar sobre a sua existência, para além da caducidade dos momentos que se sucedem. Mas é um anseio que continuar por satisfazer. Há contradições de que o homem se dá conta. O presente nem sempre corresponde ao passado. Sonha-se e deseja-se antecipar o futuro, mas ele escapa-nos. Resta confiar em Deus. Nisso consiste, para o Qohélet, o temor de Deus. Mas é uma atitude sábia não perder o presente, o único tempo que possuímos. O passado é passado; o futuro ainda não é nosso.

    Evangelho: Lucas 9, 18-22
    18Um dia, quando Jesus orava em particular, estando com Ele apenas os discípulos, perguntou-lhes: «Quem dizem as multidões que Eu sou?» 19Responderam-lhe: «João Baptista; outros, Elias; outros, um dos antigos profetas ressuscitado.» 20Disse-lhes Ele: «E vós, quem dizeis que Eu sou?» Pedro tomou a palavra e respondeu: «O Messias de Deus.»
    Lucas apresenta-nos um dos relatos mais centrais da tradição cristã. Para isso, retoma o tema do evangelho de ontem. A pergunta é idêntica. Agora, porém, é o próprio Jesus que a faz aos discípulos. Quem é Jesus? A resposta do povo é variada: anda no ar a suspeita de um qualquer "mistério", mas não há quem consiga sair dos esquemas religiosos comuns. Também os discípulos respondem de modo incompleto: pelo menos, a sua resposta pode ser mal entendida; por isso, Jesus lhes proíbe falar cf. V. 21). De facto, não é suficiente reconhecer Jesus como Messias. Que Messias? Só a cruz afastará qualquer mal-entendido. «O Filho do Homem tem de sofrer muito» (v. 22): a cruz não foi um acidente de percurso, mas de querido, de planeado por Deus. É esta a novidade inesperada e que escandalizará tanta gente. A presença de Deus manifestou no caminho da cruz, isto é, no dom de Si mesmo, não por uma qualquer imposição, mas por um amor que aceita ser contradito e derrotado. Se esse dom de Si tivesse sido inútil e definitivamente derrotado, não seria certamente um sinal de Deus. Mas a ressurreição fez dele esse sinal. É no dom de Si mesmo, que não recua perante o sofrimento e a morte, que está encerrada a vitória de Deus.

    Meditatio
    Qohélet continua a reflectir, com um sentido de desilusão, sobre a vaidade das coisas. Na Terra não há estabilidade: ao tempo de alegria, segue o tempo de sofrimento, ao nascimento segue a morte. E assim acontece com todas as coisas, situações, acções. A sorte humana sofre alternância: um dia está em cima, outro está em baixo; um dia há prosperidade, e no outro há carestia; num dia é-se aclamado, e noutro é-se esquecido. Os ecrãs da televisão são palco deste tipo de vaidade: pessoas aplaudidas e invejadas são lançadas à lama de um momento para o outro. Os rostos aparecem e desaparecem. Novos rostos fazem esquecer os anteriores, que talvez até lhes preparam o caminho. De vez em quando, chega a notícia da morte deste ou daquela. Há uns momentos de comoção e... o espectáculo continua! Terá valido a pena aparecer tanto, para desaparecer tão rapidamente? O circo dos meios de comunicação social precisa de mitos para exaltar e esquecer; precisa de personagens novas e interessantes, que respondam aos gostos do momento e mudem quando os gostos mudarem. A mobilidade dos sentimentos marca igualmente a mobilidade da sorte de quem os acaricia. Quantas vezes nos sentimos ridículos por nos termos deixado levar por este ou por aquele sentimento. Queira Deus que, um dia, não seja obrigado a rever o filme da minha vida, com as minhas vaidades e o meu auto comprazimento. Por isso, é bom reflectir sobre a fragilidade e a fugacidade do que é humano, para nos aproximarmos um pouco da sabedoria do coração.
    A fé diz-nos que o mistério pascal, com os seus diferentes tempos, ilumina todos os tempos da vida humana. O Filho do homem «ressuscitará ao terceiro dia» e o projecto de Deus irá realizar-se. Em todas as peripécias humanas há sempre o tempo da graça, porque o mistério de Cristo em todas colocou graças profundas. Caminhemos pois na luz, unidos ao seu mistério de morte e de vida, para a eternidade feliz que o nosso coração deseja e Ele já nos conquistou.
    Qohélet oferece-nos pensamentos salutares sobre a caducidade das coisas e sobre a nossa própria caducidade que tem a sua máxima expressão na morte. Assim nos podemos tornar pensadores e sábios, sem ficarmos desconsolados ou, pior ainda, desesperados, porque «fomos salvos na esperança» (Rm 8, 24), e «a esperança não desilude» (Rm 5, 5). Cristo em nós é «esperança da glória» (Col 1, 27). Nós vivemos «em vista da esperança que (nos) espera nos c&
    eacute;us» (Col 1, 5).

    Oratio
    Senhor, também eu sou tentado a lançar-me avidamente para aproveitar as ocasiões em que a vida parece poder dar-me algo que me satisfaz, ainda que momentaneamente, pois tudo parece caminhar para se desfazer como bola de sabão. Mas, hoje, apontas-me uma rocha segura a que me agarrar, a rocha de «Cristo Deus», perenemente proclamada por Pedro, no meio das ondas do tempo, das modas, dos pensamentos, da variedade das aventuras humanas. Tudo na vida pode mudar. Mas o teu Filho, «o Cristo de Deus», permanece. Contemplando-o, Cordeiro degolado, mas de pé, morto e ressuscitado, estou certo de que vale a pena viver.
    Imprime no meu coração a profissão de fé de Pedro. Vencerá as minhas angústias e os meus medos. Não me deixará afogar no turbilhão do inexorável fluir e do imprevisível correr de todas as coisas. Amen.

    Contemplatio
    O Coração de Jesus é o nosso doce refúgio. É desde os Padres da Igreja que a tradição interpreta neste sentido o nosso texto do Cântico dos Cânticos (Cant 2, 13-14). Santo Agostinho diz no seu Manual (c. 2): «Longuinhos abriu-me com a sua lança o lado de Jesus, e eu entrei e repouso lá em segurança». - S. Bernardo tem páginas deliciosas no seu tratado da Paixão (c. 3): «O vosso coração foi ferido, diz a Nosso Senhor, para que eu possa nele e em vós habitar... como é bom habitar neste coração!...». S. Boaventura dizia: «Penetrando nas chagas de Jesus, chego até ao fundo do seu amor... entremos lá todos inteiros, aí encontraremos o nosso repouso e uma inefável doçura» (Stim. Div. Amoris, c.1). Nosso Senhor dizia a Santa Matilde: «Dar-te-ei o meu coração como um lugar de refúgio». S. Francisco de Sales escrevia a uma visitandina (Carta 64): «Não sei onde estareis nesta Quaresma, segundo o corpo; segundo o espírito, espero que estejais na caverna da rola e no lado ferido de Nosso Senhor; quero esforçar-me por estar lá muitas vezes convosco; Deus, pela sua soberana bondade, nos faça essa graça!... Como este Senhor é bom, minha muito querida filha, como o seu coração é amável! Permaneçamos nesse santo domicílio!». O P. Cláudio de la Colombière tem portanto razão ao dizer que o Coração de Jesus é o retiro de todas as almas santas. (Leão Dehon, OSP 2, pp. 195 ss.).

    Actio
    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «O meu Coração é o teu refúgio» (Jesus a Santa Matilde).
    | Fernando Fonseca, scj |

  • XXV Semana - Sábado - Tempo Comum - Anos Pares

    XXV Semana - Sábado - Tempo Comum - Anos Pares


    28 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXV Semana - Sábado

    Lectio

    Primeira leitura: Qohélet 11, 9-12,8
    9Jovem, regozija-te na tua mocidade e alegra o teu coração na flor dos teus anos. Segue os impulsos do teu coração e o que agradar aos teus olhos, mas sabe que, de tudo isso, Deus te pedirá contas. 10Lança fora do teu coração a tristeza, poupa o sofrimento ao teu corpo: também a meninice e a juventude são ilusão. 1Lembra-te do teu Criador nos dias da tua juventude, antes que venham os dias maus e cheguem os anos, dos quais dirás: «Não sinto neles prazer algum»; 2antes que escureçam o Sol e a luz, a Lua e as estrelas, e voltem as nuvens depois da chuva; 3quando os guardas da tua casa começarem a tremer, e os homens robustos, a vergar; quando as mós deixarem de moer por serem poucas, e se escurecer a vista dos que olham pela janela; 4quando se fecham as portas da rua, quando enfraquece a voz do moinho, quando se acorda com o piar de um pássaro e emudecem as canções. 5Então, também haverá o medo das subidas, e haverá sobressaltos no caminho, enquanto a amendoeira abre em flor, o gafanhoto engorda, e a alcaparra perde as suas propriedades. Então, o homem encaminha-se para a sua casa da eternidade, e as carpideiras percorrem as ruas; 6antes que se rompa o cordão de prata e se quebre a bacia de oiro; antes que se parta a bilha na fonte, e se desenrole a roldana sobre a cisterna. 7Então o pó voltará à terra de onde saiu e o espírito voltará para Deus que o concedeu. 8Ilusão das ilusões - disse Qohélet - tudo é ilusão.
    Que sentido tem a vida, se tudo corre tão depressa para a velhice e para a morte? É a questão posta por Qohélet, que descreve impiedosamente o irromper da velhice. Numa das páginas mais célebres, usa a imagem de um palácio nobre, outrora cheio de vida e actividade, e agora inexoravelmente em ruínas.
    Naturalmente a velhice também é um risco, e pode apresentar-se com um rosto dramático, sobretudo se for a conclusão de uma vida vazia, dispersa. Por isso, Qohélet começa por dizer: «Lembra-te do teu Criador nos dias da tua juventude» (12, 1). Não se trata de um carpe diem em sentido hedonístico e pagão. Mas sempre é verdade que a vida é uma só. É preciso vivê-la intensamente. Uma velhice que concluiu uma vida cheia é qualitativamente diferente de uma velhice que encerra uma vida vazia.
    Com maior profundidade, o homem bíblico, a começar por Qohélet, sabe que não só a velhice constitui uma situação de risco. O mesmo pode suceder com o resto da vida. A velhice está envolta num problema mais geral. É uma janela virada para a vida contemplada na sua verdade. A velhice não é isolável. Só se resolve o problema da velhice, se se resolver o problema da vida.

    Evangelho: Lucas 9, 43b-45
    Naquele tempo, Jesus disse aos seus discípulos: 44«Prestai bem atenção ao que vou dizer-vos: o Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens.» 45Eles, porém, não entendiam aquela linguagem, porque lhes estava velada, de modo que não compreendiam e tinham receio de o interrogar a esse respeito.
    O povo, e os próprios discípulos, estão admirados com as maravilhas que Jesus faz. Mas Ele interrompe a euforia dos mais próximos, os Apóstolos, para lhes falar novamente da cruz que O espera. A diferença é clamorosa: o que deve interessar aos discípulos não é a glória do Mestre, mas o seu «ser entregue nas mãos dos homens» (v. 44). É isso que devem compreender, sob pena de não perceberem correctamente a identidade de Jesus e a verdade da sua revelação. Compreender a cruz significa compreender o lado mais luminoso, novo e imprevisível do rosto de Deus revelado em Jesus. Não se trata de um qualquer pormenor, mas do centro, do essencial.

    Meditatio
    As leituras de hoje dão razão a S. Inácio de Loiola, que, no livro do Exercícios Espirituais, nos ensina que, no tempo da consolação, havemos de preparar o da desolação. Qohélet fala a um jovem e faz-lhe entrever a velhice, a morte, o juízo de Deus, com uma descrição cheia de melancolia. Jesus experimentou durante a sua vida tempos de consolação, por exemplo, quando todos se maravilhavam com as suas obras (cf. Lc 8, 12). Mas exactamente neles, pensava na sua paixão: «o Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens» (v. 44).
    Mas também é certo que a brevidade da vida e a perspectiva de dias tristes não podem nem devem tirar-nos a capacidade de apreciar as pequenas e grandes alegrias, que havemos de receber com reconhecimento e gratidão. Joga-se aí muita da plausibilidade da nossa fé. O desafio com o novo paganismo joga-se também na questão da "felicidade": somos mais "felizes" com fé ou sem fé? Podemos apreciar melhor a criação, olhando o Criador, ou fixando-nos exclusivamente na criatura? Mais: existe, de verdade, "o bem-estar da fé"? O cristão está destinado a ser um eterno choramingas ou desmancha-prazeres, ou é chamado a espalhar a boa nova, a alegria de se sentir envolvido, acolhido e amado pelo Mistério adorável que o rodeia? A difusão e aceitação do Evangelho também dependem da capacidade do cristão em testemunhar alegria. Mas isso comporta uma correcta relação com as criaturas, uma capacidade de gozar com as coisas boas e belas que nos são dadas, de viver com espírito alegre, grato, exultante, louvando o Criador. Comporta a maturidade da fé, que não idolatra nem teme as criaturas, companheiras da nossa viagem rumo à plenitude.
    O texto evangélico mostra-nos, mais uma vez, que o sucesso da vida pública de Jesus é apenas a primeira etapa para o Reino de Deus. A vitória virá pela Paixão. No seu ministério, não procura o sucesso, mas a vontade de Deus, que hoje quer o sucesso e amanhã quer os sofrimentos e a morte. Por isso, quando chega «a sua hora», Jesus enfrenta-a com coragem e com o mesmo amor.
    Fixemo-nos, pois, nos valores fundamentais, e não nos superficiais e efémeros. Se procuramos observar o mandamento do amor de deus e do próximo, e progredir nesse amor, jamais seremos desiludidos.
    A radicalidade da nossa "adesão" a Cristo consiste em segui-l´O «virgem e pobre», ele «que, pela sua obediência até à morte de cruz, redimiu e santificou os homens (PC 1)»: casto (renuncia aos bens da pessoa), pobre (renuncia aos bens materiais), obediente (renuncia à própria livre vontade). Mas Jesus não nos quer pobres para ser pobres, mortificados para sofrermos. Não seria uma boa proposta! O homem que compra o campo com o tesouro escondido faz um bom negócio, tal como o mercador que compra a «pérola de grande valor», renunciam efectivamente a todos os seus "haveres" (Mt 13, 44-46). Mas sentem «grande alegria» (Mt 13, 44), porque obtêm algo de mais precioso. Evangelho é uma alegre notícia, não um anúncio fúnebre; é vid
    a e não morte. Jesus propõe-nos a renúncia a bens inferiores, transitórios, efémeros, para nos dar bens superiores, estáveis, eternos; propõe-nos que demos lugar ao que vale mais, ao melhor, ao Tudo, ao Amor: «Quem perder a sua vida por causa de Mim e do Evangelho, salvá-la-á» (Mc 8, 35; Cf. Mt 10, 39; Lc 17, 33; Jo 12, 25).
    Escreve S. Paulo: «A paz de Deus (isto é, o conjunto de todos os bens messiânicos), que sobrepuja todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus» (Fil 4, 7).

    Oratio
    Obrigado, Senhor, pela beleza, pela grandeza e pela riqueza da tua criação. Ela fala-me de Ti. Obrigado porque «maravilhosamente criaste, e mais maravilhosamente renovaste» este nosso mundo. Louvo-te e admiro-te em cada criatura. Mas não quero deixar-me amargurar pelo facto de que tudo passa. Agradeço-te o que me dás, porque mo ofereces. Agradeço-te a alegria e a utilidade de quanto me dás. Que jamais me esqueça que tudo vem de Ti e me leva para Ti. Então, a minha felicidade será plena, porque participarei na tua alegria, agora e sempre. Amen.

    Contemplatio
    Lemos duas vezes no Evangelho que Jesus chorou e só lemos uma vez que se alegrou no Espírito Santo (Lc 10, 21). Chorou junto ao túmulo de Lázaro e sobre a ingrata Jerusalém. Alegrou-se dando graças ao seu Pai, porque tinha revelado os mistérios do seu reino aos humildes e aos pequenos.
    Também o padre terá mais motivos de tristeza do que de alegria, o discípulo não se encontra acima do seu mestre. Se o seu olhar esclarecido pela fé lhe descobre a torpeza dos pecados que se cometem no mundo e se tem um coração bastante compassivo para se emocionar perante o aspecto dos desastres que o pecado e a morte produzem nos corpos e nas almas, o padre participará necessariamente nas angústias do nosso divino Redentor.
    Mas trinta e três anos de mágoas interiores, misturadas com sofrimentos físicos e provações não tiveram por efeito tornar o nosso divino Mestre soturno ou melancólico. Os frutos do Espírito Santo enchiam-no em toda a sua amplitude, e estes frutos são «a caridade, a alegria e a paz» (Gal 5, 22). Jamais algum rosto humano brilhou de amor divino e de uma alegria celeste como o rosto do Homem-Deus. E nós não nos pareceríamos ao nosso Mestre, se o nosso espírito fosse sombrio e a nossa voz lúgubre. (Leão Dehon, OSP 2, p. 601).

    Actio
    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Dai-me, Senhor, a verdadeira sabedoria» (da Liturgia).
    | Fernando Fonseca, scj |

  • 26º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    26º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]


    29 de Setembro, 2024

    ANO B

    26.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 26.º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia do 26.º Domingo do Tempo Comum apresenta várias sugestões para que os crentes possam purificar a sua opção e viver como autênticos discípulos de Jesus. Uma das mais significativas pede-lhes que não se considerem donos exclusivos do bem e da verdade, mas sejam capazes de reconhecer e aceitar a presença e a ação do Espírito de Deus através das pessoas de boa vontade que, independentemente da sua situação e enquadramento eclesial, são sinais vivos do amor de Deus no meio do mundo.

    A primeira leitura, a partir de um episódio ocorrido enquanto o Povo de Deus caminhava pelo deserto do Sinai, convida-nos a reconhecer e a acolher a ação do Espírito de Deus no mundo e na vida dos homens, mesmo quando essa ação se concretize através de pessoas que nos parecem “improváveis”. O verdadeiro crente aceita sempre a iniciativa de Deus, seja como for que ela se apresente, e acolhe-a com um coração agradecido.

    No Evangelho Jesus desafia os discípulos a porem de lado os interesses pessoais e de grupo e a viverem na lógica do Reino de Deus. Exorta-os a não serem uma comunidade fechada, sectária, intransigente, ciumenta, arrogante, e a acolherem de braços abertos todos aqueles que se dispõem a trabalhar por um mundo mais humano e mais livre; exorta-os também a não excluírem da dinâmica comunitária os pequenos e os pobres; pede-lhes, finalmente, que arranquem da própria vida todos os sentimentos e atitudes que são incompatíveis com a opção pelo Reino.

    Na segunda leitura, um “mestre” cristão do séc. I, previne os crentes de que apostar a vida nos bens materiais é um mau negócio: eles desaparecem e não asseguram Vida definitiva. De resto, a obsessão com os bens materiais é fonte de injustiças e de sofrimento; e Deus nunca abençoará quem, por cobiça e ambição, explora e fere os seus irmãos.

     

    LEITURA I – Números 11,25-29

    Naqueles dias,
    o Senhor desceu na nuvem e falou com Moisés.
    Tirou uma parte do Espírito que estava nele
    e fê-lo poisar sobre setenta anciãos do povo.
    Logo que o Espírito poisou sobre eles,
    começaram a profetizar;
    mas não continuaram a fazê-lo.
    Tinham ficado no acampamento dois homens:
    um deles chamava-se Eldad e o outro Medad.
    O Espírito poisou também sobre eles,
    pois contavam-se entre os inscritos,
    embora não tivessem comparecido na tenda;
    e começaram a profetizar no acampamento.
    Um jovem correu a dizê-lo a Moisés:
    «Eldad e Medad estão a profetizar no acampamento».
    Então Josué, filho de Nun,
    que estava ao serviço de Moisés desde a juventude,
    tomou a palavra e disse:
    «Moisés, meu senhor, proíbe-os».
    Moisés, porém, respondeu-lhe:
    «Estás com ciúmes por causa de mim?
    Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta
    e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles!»

     

    CONTEXTO

    O “Livro dos Números” é assim designado na versão grega da Bíblia Hebraica pelas frequentes listas de censos, de registos e de listas, que aparecem ao longo do livro (começando inclusive com os números do recenseamento do Povo de Deus, tribo por tribo, feito por Moisés por mandato de Deus – cf. Nm 1,1-47). Apresenta, sem grande preocupação de coerência e de lógica, um conjunto de tradições sobre a estadia no deserto dos hebreus libertados do Egipto. São tradições de origem diversa, que os teólogos das escolas javista, elohista e sacerdotal utilizaram com fins catequéticos.

    No seu estado atual, o livro está dividido em três partes. A primeira narra os últimos dias da estadia do Povo de Deus no Sinai, junto do “monte da Aliança” (cf. Nm 1,1-10,10); a segunda descreve a caminhada do Povo pelo deserto, em diversas etapas, desde o Sinai à planície de Moab, num trajeto geográfico difícil de seguir e de identificar (cf. Nm 10,11-21,35); a terceira apresenta a comunidade dos filhos de Israel instalada na planície de Moab, preparando a sua entrada na Terra Prometida (cf. 22,1-36,13).

    Mais do que uma crónica de viagem do Povo de Deus desde o Sinai, até às portas da Terra Prometida, o Livro dos Números é um livro de catequese. Pretende mostrar que a essência de Israel é ser um Povo reunido à volta de Deus e da Aliança. Com algum idealismo, os autores do Livro dos Números vão descrevendo como, por ação de Javé, esse grupo informe de nómadas libertado do Egipto foi ganhando progressivamente uma consciência nacional e religiosa, até chegar a formar a “assembleia santa de Deus”. Ao longo do percurso geográfico pelo deserto, Israel vai fazendo também uma caminhada espiritual, durante a qual se vai libertando da mentalidade de escravo, para adquirir uma cultura de liberdade e de maturidade. O autor mostra como, por ação de Deus (que está sempre presente no meio do Povo que caminha para a Terra Prometida), Israel vai progressivamente amadurecendo, renovando-se, transformando-se, alargando os horizontes, tornando-se um Povo mais responsável, mais consciente, mais adulto e mais santo.

    O episódio que a liturgia deste vigésimo sexto domingo comum nos apresenta como primeira leitura acontece pouco depois da partida do Sinai. Num lugar chamado Tabera (cf. Nm 11,3), o Povo revoltou-se por não ter comida em abundância e murmurou contra Javé. Moisés, cansado e desiludido, queixou-se ao Senhor de não conseguir aguentar o fardo da condução deste Povo rebelde (cf. Nm 11,11-15); então, Javé propôs a Moisés escolher setenta anciãos que, depois de ungidos pelo Espírito de Deus, ajudariam nas tarefas inerentes à condução do Povo (cf. Nm 11,16-24). É precisamente neste ponto que começa o nosso texto.

     

    MENSAGEM

    Os “anciãos” (em hebraico: “tzequenîm”) eram uma instituição no universo político e social do Povo de Deus. Eram os “chefes de família” que formavam, em cada cidade, uma espécie de “conselho” e que presidiam à comunidade. Possuíam um prestígio ímpar e participavam ativamente nas deliberações e tomadas de decisão importantes. Alguns veem nesta “instituição” o embrião do futuro “Sinédrio”.

    Ora, o livro dos Números faz remontar à época do deserto a instituição dos “anciãos” como figura de referência comunitária: por indicação de Deus, foram designados setenta anciãos para ajudar Moisés na governação do Povo. Porquê setenta? Trata-se de um número simbólico para expressar a totalidade. Eles representam a totalidade do Povo.

    Particularmente sugestiva é a descrição da forma como se deu a designação dos setenta anciãos: Deus tirou “uma parte” do Espírito que estava em Moisés e derramou-o sobre os anciãos designados. Entenda-se: Moisés possuía a plenitude do Espírito enquanto dirigia sozinho o Povo de Deus; porém, quando a responsabilidade da governação foi dividida com os setenta anciãos, também o Espírito que repousava em Moisés foi repartido por todos. A descrição, ainda que bizarra, dá a ideia, por um lado, da unidade do Espírito e, por outro, da partilha do mesmo Espírito por todos aqueles que Deus chama a uma missão em benefício da comunidade.

    A presença do Espírito de Deus nos anciãos manifesta-se na capacidade de profetizar. Contudo, o exercício profético destes “anciãos” não se traduz na comunicação à comunidade de uma mensagem escrita ou falada, na linha dos grandes profetas pregadores e escritores que Israel conhecerá mais tarde; mas exprime-se por manifestações extáticas – arrebatamento, delírio coletivo, êxtase, exaltação – que eram percecionadas pela comunidade como sinais da presença e da força de Deus. Com os seus gestos e palavras arrebatados, esses anciãos-profetas mostram ao Povo que Deus está ali; e isso é, para o Povo, garantia de que Deus continua interessado em Israel e a conduzir Israel.

    A história tem, contudo, um epílogo inesperado: Eldad e Medad, dois anciãos que faziam parte da lista dos setenta escolhidos, mas que não estavam presentes no momento da receção do Espírito, começaram também a profetizar. Josué, ajudante de Moisés, interpreta isso como uma usurpação de competências que lesa a autoridade da liderança; e pede a Moisés que lhe ponha cobro… A resposta que Moisés dá a Josué é a resposta de um homem magnânimo, livre, de espírito aberto: “estás com ciúmes por causa de mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles!” (vers. 29). A reação de Moisés mostra que ele não está minimamente preocupado em guardar para si próprio os mecanismos de controle do poder; a sua única preocupação é que esse Povo que avança dificilmente pelo deserto em direção à liberdade possa fazer uma experiência forte de Deus e sinta a presença e a ajuda de Deus. Assim, “quantos mais, melhor”: quantos mais membros do Povo experimentarem e sinalizarem a presença de Deus, mais facilmente a comunidade irá atrás de Deus e das suas propostas.

    O carisma profético não é um bem particular, propriedade pessoal de determinado líder; é um dom que Deus distribui como entender. Moisés aceita que Deus atue onde quer, como quer, e através de quem quer; aceita que Deus, na sua soberana liberdade e generosidade, escolha os seus colaboradores, até os mais “improváveis” para concretizar o seu projeto para o mundo e para os homens.

    O desejo expresso por Moisés – um Povo inteiro que recebe o Espírito de Deus e que é animado por Ele – concretizar-se-á muitos anos mais tarde, no dia do Pentecostes, quando o Espírito de Deus se derramar sobre a totalidade do Povo da Nova Aliança (cf. At 2,16-21).

     

    INTERPELAÇÕES

    • A imagem fundamental que o livro dos Números nos deixa – e que também está presente, de alguma forma, na primeira leitura deste vigésimo sexto domingo comum – é a imagem de um Povo que enfrenta as vicissitudes e crises do seu caminho histórico sob o olhar atento, solícito e cheio de amor do seu Deus. Israel não caminha sozinho pelo deserto da vida, apenas entregue ao acaso de um jogo de sorte ou azar; caminha com Deus, guiado por Deus, alimentado por Deus, levado ao colo por Deus… Ora, o caminho do Povo de Deus não terminou com a chegada à Terra da Promessa, mas continua hoje, neste tempo histórico que nos toca viver. Ao longo do caminho, continuamos a deparar-nos a cada passo com obstáculos de todo o tipo, que nos assustam, que nos roubam as forças, que nos impedem de avançar; mas, hoje como ontem, continuamos a contar com a presença de Deus, com a proteção de Deus, com a orientação de Deus, com o cuidado paternal de Deus. Nos momentos mais difíceis e decisivos, quando a tentação do desânimo nos roubar as forças, nos apertar o coração e nos encher os olhos de lágrimas, temos de levantar os olhos e de descobrir a presença de Deus ao nosso lado. Como é que enfrentamos o caminho que todos os dias temos de percorrer? Confiamos em Deus e sentimos que Ele nos acompanha com amor e cuidados de Pai?
    • O episódio do livro dos Números que escutamos este domingo refere o dom do Espírito a “setenta anciãos do Povo”. Os setenta anciãos representam a totalidade do Povo de Deus. O Povo de Deus é um Povo que vive e caminha animado pelo Espírito. Portanto, o Espírito de Deus não é privilégio exclusivo de alguns, não está reservado aos membros da hierarquia, mas é um dom que Deus oferece a todos. Ora, se o Espírito de Deus está presente e atua em todos os membros do Povo de Deus, a comunidade cristã deve ser o lugar e o espaço onde todos têm voz, onde todos devem participar nas tomadas de decisão, onde todos devem ser escutados no processo de descoberta dos caminhos e dos desafios de Deus. É isso que acontece de facto nas nossas comunidades cristãs? Estamos disponíveis para percorrer, em Igreja, um caminho de sinodalidade?
    • Mais: o Espírito de Deus não se cinge às fronteiras que definimos, às regras que inventamos ou aos interesses que defendemos pessoalmente… Na sua liberdade, Ele atua como quer e em quem quer. Nenhuma Igreja tem o monopólio do Espírito, nenhuma instituição pode controlá-lo ou acorrentá-lo. Por vezes, somos testemunhas da ação do Espírito no mundo através de pessoas em que não apostaríamos. Não temos que sentir-nos melindrados ou ciumentos se Deus age no mundo através de pessoas que não pertencem à nossa Igreja, ou mesmo através de pessoas cujas vidas não são política ou religiosamente corretas; temos é de reconhecer a presença de Deus nos gestos de amor, de paz, de justiça, de solidariedade, de partilha que todos os dias testemunhamos e agradecer ao nosso Deus a sua presença, a sua ação, o seu amor pelos homens e pelo mundo. Aceitamos, não apenas sem ciúmes, mas até com alegria e esperança, que o Espírito de Deus possa agir para além das fronteiras em que nos movemos, enquanto crentes?
    • A constatação de que ninguém tem o exclusivo do Espírito convida-nos a pôr de lado qualquer atitude de fanatismo, de intransigência ou de intolerância face às perspetivas diferentes com que somos confrontados. Os preconceitos, os tiques autoritários, as condenações à priori, os julgamentos apressados, os rótulos que colocamos nas pessoas, podem ser maneiras de amordaçar o Espírito. Como lidamos com as opiniões e perspetivas que não coincidem com a nossa forma de ver as coisas? Conseguimos abordar cada opinião diferente sem preconceitos, dispostos a perceber o ponto de vista do outro?
    • Moisés, o líder que levou o Povo de Deus até às portas da Terra da Promessa, foi capaz de reconhecer a sua debilidade e a sua incapacidade de “fazer tudo” e aceitou a ajuda da comunidade. Não teve medo de perder o controle do processo, nem dificuldade em aceitar a partilha das tarefas que o Senhor lhe tinha confiado. Com o seu exemplo, ele anima os responsáveis das nossas comunidades – tantas vezes sobrecarregados por uma imensidade de tarefas e funções – a aceitar a ajuda dos irmãos, a partilhar com outros a responsabilidade de conduzir a comunidade. Quando achamos que só nós somos capazes de fazer tudo bem, quando sentimos que a intervenção de outras pessoas é uma ameaça ao nosso poder, quando queremos controlar tudo porque não estamos dispostos a renunciar à nossa forma muito pessoal de ver as coisas, podemos estar a impedir os outros de crescer e a dificultar a ação do Espírito. Já pensámos nisso?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 18 (19)

    Refrão: Os preceitos do Senhor alegram o coração.

    A lei do Senhor é perfeita,
    ela reconforta a alma.
    As ordens do Senhor são firmes,
    dão sabedoria aos simples.

    O temor do Senhor é puro
    e permanece eternamente;
    Os juízos do Senhor são verdadeiros,
    todos eles são retos.

    Embora o vosso servo se deixe guiar por eles
    e os observe com cuidado,
    quem pode, entretanto, reconhecer os seus erros?
    Purificai-me dos que me são ocultos.

    Preservai também do orgulho o vosso servo,
    para que não tenha poder algum sobre mim:
    então serei irrepreensível
    e imune de culpa grave.

     

    LEITURA II – Tiago 5,1-6

    Agora, vós, ó ricos, chorai e lamentai-vos,
    por causa das desgraças que vão cair sobre vós.
    As vossas riquezas estão apodrecidas
    e as vossas vestes estão comidas pela traça.
    O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se,
    e a sua ferrugem vai dar testemunho contra vós
    e devorar a vossa carne como fogo.
    Acumulastes tesouros no fim dos tempos.
    Privastes do salário os trabalhadores
    que ceifaram as vossas terras.
    O seu salário clama;
    e os brados dos ceifeiros
    chegaram aos ouvidos do Senhor do Universo.
    Levastes na terra uma vida regalada e libertina,
    cevastes os vossos corações para o dia da matança.
    Condenastes e matastes o justo
    e ele não vos resiste.

     

    CONTEXTO

    O mestre cristão do séc. I, “servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (Tg 1,1), que escreveu a “Carta de Tiago” para desafiar os seus irmãos na fé a viverem de forma autêntica o seu compromisso com Jesus e com o Evangelho, oferece-nos este domingo, como segunda leitura, um anúncio profético de castigo para os ricos. É uma das mais violentas condenações dos ricos que encontramos na Sagrada Escritura. Lembra alguns textos proféticos do Antigo Testamento (cf. Am 2,6-8; 5,11; 6,1-7; 8,4-8; Is 5,8-10; Jr 5,26-28; 22,13-14).

    O texto integra e conclui um bloco (cf. Tg 4,11-5,6) onde o autor da Carta elenca, de forma muito prática, atitudes que devem ser evitadas por aqueles que pretendem viver com verdade os compromissos assumidos no dia em que foram batizados: falar mal dos irmãos (cf. Tg 4,11-12), viver no orgulho e na autossuficiência face a Deus (cf. Tg 4,13-17), viver para os bens materiais e praticar injustiças contra os pobres (cf. Tg 5,1-6).

    Este “aviso” aos ricos deve ser colocado no quadro geral de uma época de profundas desigualdades e injustiças: ao lado de uma riqueza desmesurada e sem limites, vive e sofre a miséria mais aguda. A exploração do pobre e a violência contra os humildes eram, na época, fenómenos demasiado frequentes e que os cristãos conheciam bem. Aparentemente, os “ricos” referidos nesta admoestação são pessoas de fora e não pessoas que fazem parte da comunidade cristã.

     

    MENSAGEM

    A primeira parte do nosso texto (vers. 1-3), refere-se ao destino infeliz que espera os ricos. Como numa visão profética, o autor contempla o final dos tempos e descreve a sorte daqueles cujo objetivo principal na vida foi o acumular bens. Será que os bens, o poder, a consideração que eles gozaram neste mundo lhes servirá de alguma coisa, quando chegar o juízo final, o momento em que se joga o destino definitivo do homem?

    Obviamente que não. Esses bens nos quais os ricos depositam agora toda a sua segurança e esperança são perecíveis (“as vossas riquezas estão apodrecidas e as vossas vestes estão comidas pela traça. O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se…” – vers. 2-3a); é completamente insensato basear neles toda a existência. Quando eles desaparecerem, que ficará? Pior ainda: os bens materiais serão uma testemunha de acusação, que denunciará o orgulho e a autossuficiência dos ricos, a leviandade com que viveram, as injustiças e as violências que eles praticaram para os acumular (vers. 3b.c). Então, o destino final dos ricos será o mesmo dos bens que eles endeusaram: desaparecerão numa nuvem de nada. Os ricos, os que apostaram tudo nos bens precários, não terão acesso à Vida plena e eterna.

    Na segunda parte do nosso texto (vers. 4-6), o autor refere-se à origem dos bens acumulados pelos ricos. A análise que faz não admite dúvidas nem meios-termos: a riqueza provém sempre da exploração dos pobres. Como exemplo, o autor cita o não pagamento dos salários devidos aos trabalhadores que ceifaram os campos dos ricos (vers. 4). Trata-se de um pecado que a Lei condena de forma veemente (cf. Lv 19,13; Dt 24,14-15). Não pagar o salário ao trabalhador é condená-lo à morte, bem como a toda a sua família (vers. 6). Os luxos e os prazeres dos ricos vivem assim da morte dos pobres.

    Naturalmente, Deus não pode pactuar com a injustiça e, por isso, não ficará indiferente ao sofrimento do pobre e do oprimido. O clamor dos injustiçados sobe da terra até junto de Deus e faz com que Deus atue. Com ironia mordaz, o autor compara o rico ao cevado que, engordando, apressa o dia da sua própria matança (vers. 5): os ricos, vivendo no luxo e nos prazeres à custa do sangue dos pobres, estão a preparar para si próprios um destino de desgraça e de castigo.

    A linguagem do autor da Carta de Tiago é violenta e sarcástica, bem ao estilo dos pregadores da época. Mas, para além da veemência das palavras e do colorido das imagens utilizadas, fica esta mensagem essencial: quem vive para os bens materiais e coloca neles o sentido da sua existência, dificilmente terá disponibilidade para acolher os dons de Deus e para acolher essa Vida plena que Deus quer oferecer aos homens. Por outro lado, Deus não tolera a exploração, a opressão do pobre; e quem conduzir a sua vida por caminhos de injustiça, não poderá fazer parte da família de Deus.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Os bens materiais são intrinsecamente maus? É claro que não. Os bens materiais são coisas ou objetos que usamos para satisfazer as nossas necessidades e para tornar mais confortável a nossa vida. O problema não está nos bens em si, mas na forma como lidamos com eles. Para muitas pessoas, os bens tornam-se uma obsessão. Põem neles a sua segurança e a sua realização. Ter mais e mais é, para elas, o grande objetivo, o critério decisivo para definir o êxito da sua existência. O autor da Carta de Tiago denuncia veementemente este tipo de aposta e de visão: “as vossas riquezas estão apodrecidas e as vossas vestes estão comidas pela traça”. São bens perecíveis, precários, que não garantem vida eterna. Colocar neles toda a esperança é uma aposta que revela vistas curtas, uma compreensão muito rasteira e materialista da existência. O ouro, a conta bancária, o carro de luxo, a casa de sonho, o equipamento de tecnologia de última geração, dão-nos satisfações imediatas e, talvez, um certo estatuto aos olhos do mundo; mas não saciam a nossa sede de Vida eterna. Como é que vemos os bens materiais? Que espaço ocupam eles nas nossas vidas? Até que ponto as nossas opções e comportamentos são condicionados pelo desejo de acumular bens materiais?
    • A priorização dos bens materiais conduz, muitas vezes, à exploração dos irmãos e torna-se fonte de injustiça. Acumular bens à custa da miséria e da exploração dos irmãos é, na perspetiva do autor da Carta de Tiago, um crime abominável e que Deus não deixará impune: “privastes do salário os trabalhadores que ceifaram as vossas terras. O seu salário clama; e os brados dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do Universo”. Deus não aprova aqueles que não pagam o salário justo aos seus trabalhadores, mesmo que depois ofereçam somas consideráveis para a construção de uma igreja; Deus não fica do lado de quem especula com bens de primeira necessidade, mesmo que essa pessoa esteja envolvida nos nossos grupos paroquiais; Deus não entende e não abençoa quem inventa esquemas para não pagar impostos, mesmo que essa pessoa use o dinheiro que economizou para “pagar promessas” ou organizar as festas do padroeiro da paróquia. O desejo imoderado dos bens materiais alguma vez nos levou a cometer injustiças ou nos impediu de cumprir as obrigações que temos para com os nossos irmãos?
    • A obsessão com os bens materiais pode fazer-nos esquecer uma coisa fundamental: os bens vêm de Deus e são colocados por Deus à disposição de todos os seus filhos. Servem para que todos os filhos e filhas de Deus – e não apenas algumas – tenham uma vida digna. Trabalhamos para ter os bens necessários para viver, e isso está certo. Mas quando nos deixamos levar pela tentação de acumular mais do que o necessário, estamos a sonegar recursos que se destinam a todos. O açambarcamento egoísta de bens é uma injustiça que se dirige contra os outros filhos e filhas de Deus. Estamos conscientes disso? Estamos disponíveis para partilhar o pouco ou o muito que temos para que todos tenham o necessário para viver dignamente?

     

    ALELUIA – cf. Jo 17,17b.a

    Aleluia. Aleluia.

    A vossa palavra, Senhor, é a verdade;
    santificai-nos na verdade.

     

    EVANGELHO – Marcos 9,38-43.45.47-48

    Naquele tempo,
    João disse a Jesus:
    «Mestre,
    nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome
    e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco».
    Jesus respondeu:
    «Não o proibais;
    porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome
    e depois dizer mal de Mim.
    Quem não é contra nós é por nós.
    Quem vos der a beber um copo de água, por serdes de Cristo,
    em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa.
    Se alguém escandalizar algum destes pequeninos
    que creem em Mim,
    melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço
    uma dessas mós movidas pró um jumento
    e o lançassem ao mar.
    Se a tua mão é para ti ocasião de escândalo, corta-a;
    porque é melhor entrar mutilado na vida
    do que ter as duas mãos e ir para a Geena,
    para esse fogo que não se apaga.
    E se o teu pé é para ti ocasião de escândalo, corta-o;
    porque é melhor entrar coxo na vida
    do que ter os dois pés e ser lançado na Geena.
    E se um dos teus olhos é para ti ocasião de escândalo,
    deita-o fora;
    porque é melhor entrar no reino de Deus só com um dos olhos
    do que ter os dois olhos e ser lançado na Geena,
    onde o verme não morre e o fogo não se apaga».

     

    CONTEXTO

    Estamos ainda em Cafarnaum (cf. Mc 9,33), a cidade de pescadores situada na margem ocidental do Lago de Tiberíades, base de onde Jesus partia e chegava durante o seu ministério na Galileia. Jesus está “em casa” (provavelmente a casa de Pedro) rodeado pelos discípulos. A ida para Jerusalém está próxima, mas os discípulos continuam a dar mostras de não terem interiorizado os valores do Reino. Pouco antes Jesus tinha-lhes falado sobre os critérios que definem quem tem o primeiro lugar na comunidade do Reino (cf. Mc 9,33-34); e tinha-os convidado a viver de olhos voltados para os mais pequeninos, os mais débeis, os mais abandonados (cf. Mc 9,35-37). Será que a “lição” de Jesus tornou as coisas mais claras e varreu definitivamente do coração dos discípulos as pretensões de triunfos humanos, de prestígio, de honrarias, de privilégios?

    Aparentemente não. João falou a Jesus de uma intervenção dos discípulos junto de um homem desconhecido, mas que pretendia atuar em nome de Jesus. Marcos conta-nos como é que Jesus reagiu à ação unilateral dos seus discípulos naquele caso concreto.

    Mas o texto do Evangelho que a liturgia nos propôs neste vigésimo sexto domingo comum não se fica por aí. Acrescenta alguns outros versículos onde Marcos juntou “ditos” de Jesus sobre outras matérias. Provavelmente são “palavras” de Jesus, inicialmente independentes e pronunciadas em contextos diversos. Une-as o facto de serem exigências que os discípulos devem ter em conta se quiserem integrar a comunidade do Reino de Deus.

     

    MENSAGEM

    Num primeiro momento, ouvimos João expor a Jesus a situação que tinha acontecido um pouco antes e a forma como os discípulos lidaram com ela: “Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco”. Na opinião de João, a atuação dos discípulos parece perfeitamente justificável: a utilização do nome de Jesus por parte de alguém que não pertence ao grupo é um abuso que não pode ser tolerado (vers. 38-41). João parece muito decidido e cheio de certezas. Nem sequer está a pedir a opinião de Jesus; está apenas a informá-lo de algo que os discípulos decidiram e fizeram.

    Este quadro deixa-nos perplexos. Antes de mais, porque João fala de forma impositiva e arrogante, como se o grupo tivesse o direito de tomar as decisões que achasse bem sem consultar o “Mestre”. Mas, mais grave ainda, porque a atuação dos discípulos apresenta laivos de autoritarismo e sectarismo que parecem estar em contradição total com aquilo que era a proposta de Jesus. Em que é que a ação daquele exorcista anónimo beliscava o “bom nome” de Jesus ou prejudicava o projeto do Reino? O que era mais importante: o prestígio do grupo ou a libertação dos seres humanos das cadeias que os impediam de ter Vida?

    Tudo se torna mais claro se tivermos em conta que aqueles discípulos andavam permanentemente obcecados com os primeiros lugares, os postos de importância, as honras, os privilégios, os sonhos de poder e domínio. Tinham apostado tudo no seguimento de Jesus e queriam ter o exclusivo de Jesus para serem compensados pelo investimento feito. Por isso, não estavam dispostos a partilhar Jesus com eventuais concorrentes. Aquele desconhecido que atuava em nome de Jesus poderia vir a revelar-se um concorrente que lhes disputaria os primeiros lugares na estrutura política do Reino. Portanto, era preciso neutralizá-lo. Sejamos claros: os discípulos de Jesus apenas estavam preocupados em proteger os seus interesses pessoais ou de grupo. A atitude que tomaram mostra sectarismo, intransigência, intolerância, ciúmes, mesquinhez, inveja. Ora, esses valores são incompatíveis com o projeto do Reino e com o dinamismo do Reino.

    Jesus, com paciência infinita, procura levar os discípulos a ultrapassar esta visão sectária e egoísta da missão: “não o proibais; porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome e depois dizer mal de Mim. Quem não é contra nós é por nós” (vers. 39-40). A Jesus só o preocupa a libertação do homem de tudo aquilo que o desumaniza e lhe rouba a Vida. Quem luta pela justiça e faz obras em favor do homem, está do lado de Jesus e vive na dinâmica do Reino, mesmo que não esteja formalmente dentro de determinado grupo. Quem for capaz de fazer qualquer gesto, por mais humilde que seja, em favor de um seu irmão, pertence à comunidade do Reino e está vinculado a Jesus (vers. 41).

    A comunidade de Jesus não pode ser uma comunidade fechada, exclusivista, monopolizadora, que amua e sente ciúmes quando alguém de fora faz o bem; nem pode sentir-se atingida nos seus privilégios e direitos pelo facto de o Espírito de Deus atuar fora das fronteiras institucionalmente definidas… A comunidade de Jesus deve ser uma comunidade que põe, acima dos seus interesses, a preocupação com o bem do homem; e deve ser uma comunidade que sabe acolher, apoiar e estimular todos aqueles que atuam em favor da libertação dos irmãos. O bem dos irmãos deve ser o fator decisivo, não a defesa de interesses pessoais ou corporativos.

    Depois disto, a “lição” de Jesus orienta-se para outras temáticas (vers. 42-48). Como dissemos atrás, Marcos junta aqui diversos “ditos” de Jesus que nem sempre apresentam uma linha de continuidade temática

    O primeiro desses “ditos” é um aviso àqueles que “escandalizam” os “pequeninos” (vers. 42). Na nossa cultura, “escandalizar” é protagonizar um mau exemplo ou um facto revoltante que melindra ou fere a suscetibilidade daqueles que testemunham essa ação. Na linguagem de Marcos, no entanto, “escandalizar” tem um significado um tanto diferente… O verbo grego “scandalidzô” está relacionado, em Marcos, com ser “pedra de tropeço”, com ser obstáculo para que alguém tome determinada atitude. Neste contexto, “escandalizar” seria fazer algo que impedisse alguém de aderir a Jesus, de seguir Jesus. Os “pequeninos” de que Jesus fala são os membros da comunidade que estão numa situação de dependência, de debilidade, de necessidade… Os membros da comunidade do Reino devem, portanto, abster-se de qualquer atitude que possa afastar alguém (especialmente os pequenos, os débeis, os pobres) da adesão a Jesus e ao caminho que Ele veio propor. Fazer algo que afaste uma dessas pessoas de Cristo e da comunidade é algo verdadeiramente inadmissível e impensável (a quem fizer isso, “melhor seria que lhe atassem ao pescoço uma dessas mós movidas por um jumento e o lançassem ao mar” – vers. 42).

    O segundo “dito” de Jesus (vers. 43-48) refere-se à absoluta necessidade de arrancar da própria vida todos os sentimentos e atitudes que são incompatíveis com a opção por Cristo e pela sua proposta. Quando Jesus fala em cortar a mão (a mão é, nesta cultura, o órgão da ação, através do qual se concretizam os desejos que nascem no coração) ou de cortar o pé ou de arrancar o olho que é ocasião de pecado (o olho é, nesta cultura, o órgão que dá entrada aos desejos), está a sublinhar, com toda a veemência, a necessidade de atuar, lá onde as ações más do homem têm origem e eliminar na fonte as raízes do mal. Estando em jogo o destino último do homem, não se pode protelar ou adiar “cortes” importantes nas atitudes de egoísmo e de autossuficiência que afastam os homens de Deus e da Vida plena.

    Há ainda, neste segundo “dito”, referências sucessivas a um castigo na “Geena”, “onde o verme não morre e o fogo não se apaga”, para aqueles que recusarem cortar com as atitudes e os sentimentos incompatíveis com o seguimento de Jesus. A palavra “Geena” vem do hebraico “Ge Hinnon” (“Vale do Hinnon”). Refere-se a um vale situado a sudoeste de Jerusalém, onde eram enterrados os mortos e onde, dia e noite, era queimado o lixo produzido pelos habitantes da cidade. Era considerado, portanto, um lugar maldito, impuro, tenebroso, que convinha evitar. Jesus usa aqui a imagem do “Ge Hinnon”, para falar de uma vida perdida, frustrada, destruída, maldita, sem sentido. Quem não for capaz de cortar com o egoísmo, o orgulho, a autossuficiência, é como se, em lugar de viver num lugar livre e feliz, estivesse condenado a viver no “Ge Hinnon”.

    O que é que une estes “ditos” de Jesus e porque é que eles foram agrupados neste lugar? Marcos entendeu-os como indicações dirigidas aos discípulos sobre a necessidade de purificarem os seus critérios de vida e os seus valores, de forma a poderem integrar a comunidade do Reino. Os discípulos que não conformarem as suas vidas pelas orientações dadas por Jesus, não podem seguir atrás d’Ele no caminho para Jerusalém – isto é, no caminho que leva à cruz e à Vida nova da ressurreição.

     

    INTERPELAÇÕES

    • A cada momento encontramos homens e mulheres de boa vontade que trabalham por um mundo mais justo e mais humano. São como aquele exorcista anónimo de que se fala no Evangelho deste domingo, que age para libertar os homens das escravidões que os prendem. Alguns deles são gente “improvável”, que não se identifica com nenhum grupo religioso, que não entra nas nossas igrejas, que não se revê na nossa moral católica, mas que, com generosidade e entrega, vai abrindo caminho ao Reino de Deus e à sua justiça. Como olhamos para esses irmãos que talvez se declarem agnósticos ou até mesmo ateus, mas que são capazes de gestos enormes de humanidade, de solidariedade, de compromisso, de entrega, de partilha, de amor? Com ciúme? Com ressentimento? Com hostilidade? Com desconfiança? Com admiração? Com gratidão? Aceitamos – com Jesus – que quem não é contra nós é por nós?
    • A reação dos discípulos diante daquele homem que “expulsava demónios” em nome de Jesus, revela ciúme, inveja, intolerância, fanatismo, intransigência, mesquinhez… Mas Jesus não cauciona a atitude dos discípulos. Quando intervém, deixa claro que não admite uma comunidade de discípulos fechada, exclusiva, apostada na defesa de interesses egoístas em detrimento do bem do ser humano, desconfiada em relação a tudo aquilo que está fora do espaço limitado em que o grupo se move, mais voltada para a proibição e a condenação do que para o acolhimento e a misericórdia, com tiques de autoritarismo e que se considera dona absoluta da verdade… Temos a posição de Jesus bem clara e definida? Como lidamos, enquanto Igreja de Jesus, com “o mundo”, essa realidade que nos desafia, que nem sempre nos entende, e que muitas vezes não concorda connosco? Posicionamo-nos decididamente contra o mundo, ou pretendemos aceitar o desafio de ser, no meio do mundo, “sal” que dá sabor e “luz” que ilumina e aquece?
    • Os discípulos de Jesus, no caso relatado no Evangelho deste domingo, parecem mais apostados em defender os seus interesses pessoais e corporativos do que em construir o Reino de Deus; parecem mais preocupados com a salvaguarda do seu estatuto e do seu prestígio do que em cuidar da libertação dos seres humanos escravos do sofrimento e da morte. Esta “tentação” pode hoje tornar-se presente de diversas formas nas nossas comunidades cristãs… Quando condenamos alguém pela forma como vive, estamos a defender a integridade da fé e os valores do Evangelho, ou estamos a impor a nossa visão pessoal do mundo e da vida? Quando julgamos aqueles que desafiam a comunidade a purificar-se e a procurar novos caminhos para responder aos desafios de Deus, estamos a manter a unidade da fé e a comunhão eclesial, ou estamos a defender o nosso comodismo, a nossa tranquilidade, o nosso bem-estar?
    • Com expressões algo radicais (“se a tua mão é para ti ocasião de escândalo, corta-a”; “se o teu pé é para ti ocasião de escândalo, corta-o”; “se um dos teus olhos é para ti ocasião de escândalo, deita-o fora”), Jesus exige dos discípulos o corte radical com os valores, os sentimentos, as atitudes que são incompatíveis com a opção pelo Reino. O verdadeiro discípulo de Jesus não vive acomodado e conformado, apenas preocupado com o seu bem-estar e a sua tranquilidade; mas está sempre atento e vigilante, procurando detetar e eliminar da sua existência tudo aquilo que lhe impede o acesso à Vida plena. Naturalmente, a renúncia ao egoísmo, ao comodismo, ao orgulho, aos esquemas pessoais, à vontade de poder e de domínio, ao apelo do êxito, é um processo difícil e doloroso; mas é também um processo libertador e gerador de Vida nova. O que é que precisamos de “cortar” da nossa vida, para nos identificarmos mais com Jesus e para merecermos integrar a comunidade do Reino?
    • O apelo de Jesus à sua comunidade no sentido de não “escandalizar” (afastar da comunidade do Reino) os pequenos, faz-nos pensar na forma como lidamos, enquanto pessoas e enquanto comunidade, com os pobres, os humildes, as crianças, os mais vulneráveis, aqueles que têm uma fé pouco consistente, aqueles que a vida marcou negativamente, aqueles que a sociedade marginaliza e rejeita… Eles descobrem, connosco, a alegria de integrar a comunidade de Jesus, ou o sofrimento de serem rejeitados, incompreendidos e magoados?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 26º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 26º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.

    Quando Jesus chama, pede para deixar tudo para O seguir. Quando Jesus fala do Reino, anuncia um mundo totalmente novo. Quando Jesus pede para amar, propõe um regresso radical. Mas será necessário tempo aos seus discípulos para compreender tudo isso, e sobretudo para vivê-lo. Eles conhecerão hesitações, procurarão compromissos, porão condições. Ora, para Jesus, nada deve ser obstáculo à entrada no Reino de Deus. Jesus coloca o homem face à sua liberdade, ele deve escolher. Se ele escolheu o Reino, deve aceitar as suas exigências, que se resumem numa única palavra AMAR. O homem é convidado a amar com todo o seu ser: as suas mãos para partilhar, os seus pés para reencontrar, os seus olhos para olhar. Cabe ao homem fazer com que todo o seu ser responda à sua vontade de amar.

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.

    “Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco»”. João quer delimitar as fronteiras do grupo dos discípulos, pôr em ordem, classificar os bons de um lado, os maus de outro, separar aqueles que estão “em regra” daqueles que estão à margem. Esta tentação de erguer barreiras entre os homens em nome de Deus é uma tentação mortal. É a tentação de todos aqueles que pretendem agir em nome de Deus, que se declaram, eles e apenas eles, detentores da Verdade e reivindicam serem eles os únicos verdadeiros fiéis de Deus. Todos os outros, que não pensam, que não agem como eles devem ser rejeitados, condenados. Essa tentação gera o fanatismo. Isso não é em vista do espírito! É uma realidade bem concreta no nosso mundo e também na história, antiga e atual, de praticamente todas as religiões. Mas Jesus conduz-nos para além disso. Sem dúvida diz Ele: “Eu sou a Verdade”, mas não reivindica qualquer poder. Recusa entrar no jogo de João: “Não impeçais este homem de expulsar os demónios em meu nome”. Porquê? Porque Jesus veio para reunir na unidade os filhos de Deus dispersos e, como dirá São Paulo, para destruir a barreira que separava os Judeus e os pagãos, para fazer a paz e reconciliar todos os homens com Deus e entre eles.

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    Com Maria, humilde serva… Para nos ajudar a amar sem orgulho, em quase início de mês de outubro, mês do Rosário: peçamos o apoio e a intercessão de Maria. Ela que foi a humilde serva do Senhor, pode ensinar-nos a humildade, o serviço, a disponibilidade, o amor.

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

    S. Miguel, S. Gabriel e S. Rafael, Arcanjos

    S. Miguel, S. Gabriel e S. Rafael, Arcanjos


    29 de Setembro, 2024

    No século V, já se celebrava em Roma, a 29 de Setembro, o aniversário da dedicação de uma basílica em honra do Arcanjo S. Miguel. Depois da reforma litúrgica recomendada pelo Concílio Vaticano II, acrescentou-se a memória de outros Arcanjos e de "todas as potências incorpóreas".

    Honrando os Arcanjos, exaltemos o poder de Deus, Criador do mundo visível e invisível, pois - como diz o Prefácio da Missa de hoje - "resulta em glória para Vós a honra que prestamos a eles como criaturas dignas de Vós; e a sua inefável beleza, Vós mostrais como sois grande e digno de ser amado sobre todas as coisas". S. Miguel é um dos padroeiros da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus, Dehonianos.

    Lectio

    Primeira leitura: Daniel 7, 9-10.13s.

    Eu estava a olhar, quando foram preparados uns tronos, e um Ancião sentou-se. Branco como a neve era o seu vestuário, e os cabelos da cabeça eram como de lã pura; o trono era feito de chamas, com rodas de fogo flamejante. 10Corria um rio de fogo que jorrava da parte da frente dele. Mil milhares o serviam, dez mil miríades lhe assistiam.O tribunal reuniu-se em sessão e foram abertos os livros. 11Eu olhava. Por causa do ruído das palavras arrogantes que o chifre proferia, esse animal foi morto e o seu corpo desfeito e atirado às chamas do fogo. 12Quanto aos outros animais, também lhes foi tirado o poderio; no entanto, a duração da sua vida foi-lhes fixada a um tempo e uma data. 13Contemplando sempre a visão nocturna, vi aproximar-se, sobre as nuvens do céu, um ser semelhante a um filho de homem. Avançou até ao Ancião, diante do qual o conduziram. 14Foram-lhe dadas as soberanias, a glória e a realeza. Todos os povos, todas as nações e as gentes de todas as línguas o serviram. O seu império é um império eterno que não passará jamais, e o seu reino nunca será destruído.

    A perícopa que escutamos hoje é tirada do chamado Apocalipse de Daniel (Capítulos 7-12). Ao profeta é concedida a visão dos eventos futuros (vv. 1-8) e, sobretudo, a participação no juízo de Deus sobre eles e sobre toda a história (vv. 9s.). Para além das aparências, os poderosos deste mundo não são nada; o Senhor é o único e verdadeiro rei (v. 9s.). Serve-O uma imensa corte de anjos que também O assiste na realização do seu desígnio. O profeta pode mesmo entrever esse desígnio: aparece-lhe um "Homem" de origem divina a quem Deus confia a soberania universal, um poder eterno e o seu próprio reino que as forças do mal jamais poderão destruir (v. 14). O «Filho do homem» é, pois, o centro e o fim do projeto de Deus acerca da história. Mas a sua realização - agora antecipada na profecia - acontecerá no tempo estabelecido e com a cooperação dos anjos.
    Evangelho João 1, 47-51

    Naquele tempo, Jesus viu Natanael, que vinha ao seu encontro, e disse dele: «Aí vem um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento.» 48Disse-lhe Natanael: «Donde me conheces?» Respondeu-lhe Jesus: «Antes de Filipe te chamar, Eu vi-te quando estavas debaixo da figueira!» 49Respondeu Natanael: «Rabi, Tu és o Filho de Deus! Tu és o Rei de Israel!» 50Retorquiu-lhe Jesus: «Tu crês por Eu te ter dito: 'Vi-te debaixo da figueira'? Hás-de ver coisas maiores do que estas!» 51E acrescentou: «Em verdade, em verdade vos digo: vereis o Céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo por meio do Filho do Homem.

    Há uma visão da realidade que vai além da imediata perceção. É o que nos revela Jesus no texto que escutamos hoje: «Vem e vê», dissera Filipe a Natanael. E Jesus, ao ver Natanael aproximar-se, exclama: «Vi (à letra) um israelita...». O seu ver é um conhecimento profundo do homem e da sua história. É deste ser visto/conhecido que nasce a abertura à fé e a disponibilidade para o seguimento (v. 49). Só então Jesus pode prometer ao discípulo a entrada numa visão da realidade semelhante à que Ele mesmo tem: «Maiores coisas do que estas hás-de ver!» ... «Em verdade, em verdade vos digo: vereis o Céu aberto e os Anjos de Deus subindo e descendo pelo Filho do Homem.» (vv. 50s.). O discípulo poderá compreender a imensa profundidade do mistério de Cristo que abrange o cosmos e dá sentido à história, e a cujo serviço cooperam miríades de anjos.
    O mundo transcendente de Deus - o céu - está agora aberto: em Jesus, Filho do homem, Deus desce ao meio dos homens e os homens podem subir até Deus. Os anjos são ministros deste «admirável comércio», desta inesperada comunhão.

    Meditatio

    Os anjos são seres misteriosos. O profeta Daniel também fala deles misteriosamente no texto que hoje escutamos na primeira leitura. Nós costumamos representá-los como homens de rosto suave e doce. Mas, na Sagrada Escritura, aparecem, muitas vezes como seres terríveis, que incutem temor, porque são manifestação do poder e da santidade de Deus, e nos ajudam a adorá-lo dignamente. Na visão de Daniel, o mais importante não são os Anjos, mas o "ser semelhante a um filho de homem" (v. 13), que é introduzido até ao trono de Deus, e a quem são "dadas soberania, glória e realeza" (v. 14), e a quem "as gentes de todas as línguas" servem (v. 14).
    O evangelho também nos mostra os Anjos subirem e descerem ao serviço do Filho do homem.
    Os Anjos estão, portanto, ao serviço do Filho do homem, isto é, de Jesus de Nazaré. A nossa adoração é, pois, dirigida a Deus e ao Filho de Deus.
    Todos nós entramos num projeto sonhado por Deus. Mergulhados num cosmos animado por invisíveis presenças que, tal como nós, participam no projeto de Deus, somos construtores de uma história que tem Cristo no centro e no fim. A caminhada avança na luta, com conflito implacável com as forças do mal que, todavia, jamais poderão destruir o reino que Deus confiou ao Filho do homem. O combate durará até ao fim dos tempos, tendo à frente, na primeira linha, os santos anjos de Deus: os arcanjos, guiados por Miguel, e todas as criaturas espirituais fiéis ao Senhor.
    Esta realidade que os nossos olhos não sabem ver foi-nos revelada para que, pela fé, esperança e caridade, combatamos o bom combate e apressemos a realização do reino de Deus. Se oferecermos o nosso humilde contributo, receberemos um olhar interior puro. Então contemplaremos a Misericórdia que abriu os céus e veio morar entre nós para nos abrir o caminho para o Pai onde, com os anjos, partilharemos a sua intimidade. Ele revelou-nos o mistério do homem para que, com os anjos, aprendemos a ir ao encontro dos irmãos. Introduziu-nos no seu Reino, para que, tornados voz de todas as criaturas, cantemos eternamente, com o coro angélico, a glória de Deus.

    Oratio

    Ó santo arcanjo Miguel, tão amigo do Coração de Jesus e tão amado por Ele, ajudai-me a fazê-lo reinar na sociedade e nas almas. Protegei particularmente os amigos e os apóstolos do Sagrado Coração. Terei gosto em vos invocar muitas vezes durante o dia, com Maria, José e S. João, para que me leveis ao Coração de Jesus. (Leão Dehon OSP 4, p. 298s.).
    Anjo glorioso, S. Gabriel, ensinai-me a bem servir a Jesus e a Maria. O que amais, são oshomens de desejo, assim o dissestes a Daniel. Pedi por mim a Jesus e a Maria, para que eu seja um homem de desejo. Unir-me-ei particularmente a vós para dizer a Ave Maria, e saudar o Coração de Jesus na sua Incarnação. (Leão Dehon OSP 3, p. 303).
    Arcanjo S. Rafael, vinde em nossa ajuda nas horas de medo e nas horas de doença. Tomai-nos pela mão e conduzi-nos pelo caminho certo e seguro da salvação.

    Contemplatio

    O anjo Gabriel veio a Nazaré e cumpriu o mistério que tomou o nome da Anunciação. Saudou Maria com estas palavras celestes que nós chamamos a saudação angélica: Eu vos saúdo, ó cheia de graça, o Senhor está convosco, bendita sois entre todas as mulheres.
    S. Gabriel é o anjo de Jesus e de Maria, o seu mensageiro, o seu camareiro. É o anjo da redenção, o anjo do Sagrado Coração... Ensinou-nos a bela saudação a Maria, que repetimos tantas vezes por dia. Unamo-nos muitas vezes a ele. Digamos com ele a saudação angélica... Anunciando a incarnação, foi o primeiro a saudar o Sagrado Coração de Jesus no seio de Maria. (Leão Dehon, OSP 3, p. 302s.)
    S. Miguel é o anjo de Jesus, o anjo da Igreja, e deve ser o anjo do Coração de Jesus, o porta-estandarte do Sagrado Coração... (Leão Dehon, OSP 4, p 298).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    «Quem como Deus?»

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    S. Miguel, S. Gabriel e S. Rafael, Arcanjos (29 Setembro)

  • XXVI Semana - Segunda-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    XXVI Semana - Segunda-feira - Tempo Comum - Anos Pares


    30 de Setembro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares

    XXVI Semana - Segunda-feira

    Lectio

    Primeira leitura: Job 1, 6-22
    6Um dia em que os filhos de Deus se apresentavam diante do Senhor, o acusador, Satan, foi também junto com eles. 7O Senhor disse-lhe: «Donde vens tu?» Satan respondeu: «Venho de dar uma volta ao mundo e percorrê-lo todo.» ? Senhor disse-lhe: «Reparaste no meu servo Job? Não há ninguém como ele na terra: homem íntegro, recto, que teme a Deus e se afasta do mal.» 9Satan respondeu ao Senhor: «Porventura Job teme a Deus desinteressadamente? 10Não rodeaste Tu com uma cerca protectora a sua pessoa, a sua casa e todos os seus bens? Abençoaste o trabalho das suas mãos, e os seus rebanhos cobrem toda a região. 11Mas se estenderes a tua mão e tocares nos seus bens, verás que te amaldiçoará, mesmo na tua frente.» 12Então, o Senhor disse a Satan: «Pois bem, tudo o que ele possui deixo-o em teu poder, mas não estendas a tua mão contra a sua pessoa.» E Satan saiu da presença do Senhor. 13Ora, um dia em que os filhos e filhas de Job estavam à mesa, e bebiam vinho na casa do irmão mais velho, 14um mensageiro foi dizer a Job: «Os bois lavravam e as jumentas pastavam perto deles. 15De repente, apareceram os sabeus, roubaram tudo e passaram os servos a fio de espada. Só escapei eu para te trazer a notícia.» 16Estava ainda este a falar, quando chegou outro e disse: «Um fogo terrível caiu do céu; queimou e reduziu a cinzas ovelhas e pastores. Só escapei eu para te trazer a notícia.» 17Falava ainda este, e eis que chegou outro e disse: «Os caldeus, divididos em três grupos, lançaram-se sobre os camelos e levaram-nos, depois de terem passado os servos a fio de espada. Só eu consegui escapar, para te trazer a notícia.» 18Ainda este não acabara de falar, e eis que entrou outro e disse: «Os teus filhos e as tuas filhas estavam a comer e a beber vinho na casa do irmão mais velho 19quando, de repente, um furacão se levantou do outro lado do deserto e abalou os quatro cantos da casa, que desabou sobre os jovens. Morreram todos. Só eu consegui escapar, para te trazer a notícia.» 20Então, Job levantou-se, rasgou as vestes e rapou a cabeça. Depois, prostrado por terra em adoração, 21disse: «Saí nu do ventre da minha mãe e nu voltarei para lá. O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou; bendito seja o nome do Senhor!» 22Em tudo isto, Job não cometeu pecado, nem proferiu contra Deus nenhuma insensatez.
    Mais que do sofrimento, o livro de Job trata do comportamento do justo na provação. É a provação que revela o coração do homem e a gratuidade da sua fé. A provação é para todos, também para os melhores. Job era «um homem íntegro e recto, que temia a Deus e se afastava do mal» (1, 1). Não havia razão para ser tentado. Mas a provação bateu-lhe à porta. Experimenta a sua fé. Mostra se Job procura a Deus com fé «pura» ou se, pelo contrário, busca a si mesmo. Job sai vencedor da provação: «Em tudo isto, Job não cometeu pecado» (v. 22ª).
    O texto começa por narrar uma assembleia de anjos no céu, descrita à maneira das assembleias reais nas cortes, ou à dos deuses nas montanhas. As personagens são três: Job, homem justo e rico, que vivia em Uz, fora de Israel, e que até ao momento tinha sido abençoado por Deus; Satanás, que se apresenta para acusar os homens; Deus, que acompanha os homens e as suas acções. - «Porventura Job teme a Deus desinteressadamente?» (v. 9) - pergunta Satanás. .» E acrescenta: «Se estenderes a tua mão e tocares nos seus bens, verás que te amaldiçoará, mesmo na tua frente» (v. 11). Verás se Job Te ama gratuitamente. Deus condescende com Satanás, mas não deixa de confiar em Job.
    Segue um rol de desgraças (vv. 13-22) que submetem Job a dura provação. Perde os bens, os filhos, os servos. Mas, com desgosto para Satanás, Job continua a bendizer a Deus e vence a prova. A sua fé não vacila. Prostra-se por terra e diz: «Saí nu do ventre da minha mãe e nu voltarei para lá. O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou; bendito seja o nome do Senhor!» (v. 21). Satanás perde a aposta.

    Evangelho: Lucas 9, 46-50
    Naquele tempo, 46veio-lhes então ao pensamento qual deles seria o maior. 47Conhecendo Jesus os seus pensamentos, tomou um menino, colocou-o junto de si 48e disse-lhes:«Quem acolher este menino em meu nome, é a mim que acolhe, e quem me acolher a mim, acolhe aquele que me enviou; pois quem for o mais pequeno entre vós, esse é que é grande.» 49João tomou a palavra e disse: «Mestre, vimos alguém expulsar demónios em teu nome e impedimo-lo, porque ele não te segue juntamente connosco.» 50Jesus disse-lhe: «Não o impeçais, pois quem não é contra vós é por vós.»
    O evangelho de hoje lembra-nos duas atitudes fraternas muito comuns na vida dos santos, também do Pe. Dehon. A primeira atitude é a da humildade, que se opõe a toda a ambição (vv. 46-48). Outra é a tolerância (cf. Vv. 49 ss.). São temas frequentes nos evangelhos que, no fundo, sublinham a necessidade de ultrapassar a auto-suficiência de quem aspira a títulos e dignidades, bem como o orgulho de grupo, que se pode encontrar em algumas comunidades cristãs e mesmo nas comunidades de consagrados. Põe vezes, pensa-se que os mais importantes são os que possuem mais dotes ou responsabilidades na gestão dessas comunidades. Por outro lado, é bastante espontâneo o desejo de ser o primeiro num grupo. Também os apóstolos caem nesse engano. Discutem sobre o lugar que ocupam e sobre quem é o primeiro entre eles. Mas Jesus não embarca nesse tipo de discussões. Toma uma criança e coloca-a ao seu lado, no lugar de maior dignidade, afirmando: «quem for o mais pequeno entre vós, esse é que é grande» (v. 48b). O pequeno é grande porque é fraco e pobre: é pequeno de corpo, precisa dos outros, não tem liberdade de acção, é inútil. É símbolo do discípulo último e pobre. Mas também é imagem de Jesus que se abandona nos braços do Pai: «Quem acolher este menino em meu nome, é a mim que acolhe, e quem me acolher a mim, aco¬lhe aquele que me envio» (v. 48ª).
    Perante a atitude ciumenta dos apóstolos, Jesus ensina a tolerância: «Mestre, vimos alguém expulsar demónios em teu nome e impedimo lo, por¬que ele não te segue juntamente connosco.» (v. 49). Mas Jesus não está de acordo: «Não o impeçais» (v. 50). O discípulo deve ter um coração aberto e tolerante. Deus envia quem quer a anunciar a palavra e a fazer o bem. Não tem necessariamente que pertencer ao grupo de Jesus ou que ser importante. Não conta o arauto: conta a mensagem, o evangelho anunciado. Deus tem muitos modos de falar aos homens.

    Meditatio
    A contemplação de Jesus crucificado, a que somos convidados pelas leituras de hoje, tem consequências em toda a situação humana. De Job, aprendemos que a nossa verdadeira grandeza se revela em amar sempre, e em todas as situações, o «desmesurado amor» (Ef 2, 4) de Deus, mesmo no meio dos maiores sofrimentos.
    Job dá-nos um maravilhoso exemplo de adoração, numa situação de extremo sofrimento. É, talvez, mais fácil reconhecer a Deus, quando tudo corre bem, porque é mais espontâneo pensarmos num deus ao nosso serviço, do que em Deus em Quem podemos confiar e confiar-nos quando parece longe de nós, e até contra nós. Job sabe que depende de Deus e confia n´Ele na fortuna e na desgraça. Ao contrário do que pensa Satanás, é capaz de um amor gratuito. Por isso, despojado de todos os bens, confia-se totalmente a Deus: «Saí nu do ventre da minha mãe e nu voltarei para lá. O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou; bendito seja o nome do Senhor!» (v. 21). Job resistiu à tentação e abriu o coração a Deus. Por isso, adora.
    Despojado de todos os bens, Job torna-se imagem viva da palavra de Jesus: «quem for o mais pequeno entre vós, esse é que é grande» (v. 48b). Só quando está completamente «nu» diante de Deus e do Amor Crucificado, é que o homem se torna realmente grande. Job ainda não o podia compreender completamente, mas permaneceu igualmente fiel. Nós, que já contemplamos Cristo Crucificado, podemos compreendê-lo e compreender o sentido da adoração. Só o pobre é capaz de adorar, como Cristo adorou na cruz. É certamente um ideal difícil. Mas é possível, com a força do Senhor. O importante é não esquecermos Jesus Crucificado.
    Cada um de nós, cada uma das nossas comunidades, está sujeito a sofrimentos e a provações no corpo, no espírito, na comunidade, no apostolado. Cada um de nós está sujeito à experiência da fraqueza e da fragilidade. Mas, na medida em que nos abrirmos ao Espírito, poderemos, em qualquer circunstância da vida, experimentar os Seus preciosos dons, tais como a sabedoria e o santo temor de Deus, bem como os Seus saborosos frutos, tais como a caridade, a alegria, a paz, a paciência, a bondade, a benevolência, a mansidão, a humildade, a fidelidade a Cristo e o abandono de amor ao Espírito (cf. Gl 5, 22.25). Assim, podemos praticar as bem-aventuranças e tornar-nos, na nossa pequenez, antecipadamente, parte dos «novos céus» e da «nova terra», nos quais «habita a justiça» (2 Pe 3, 13). Assim contribuiremos para a realização da «civilização do amor», em harmonia com a experiência de fé e a vida do P. Dehon, bem como com os ideais das nossas Constituições.

    Oratio
    Senhor Jesus Crucificado, dá-nos a graça de experimentar o teu amor no sofrimento e nas provações. Abre-nos o coração e mostra-nos o sentido oculto das experiências dolorosas, com que despedaças a nossa ignorância. Que na prosperidade ou no infortúnio, no sucesso ou no insucesso, na saúde ou na doença, experimentemos a presença do teu "desmesurado amor". Que a contemplação do teu Lado aberto e do teu Coração trespassado nos permita entrever o coração do Pai. Que na nossa pobreza e humilhação resplandeça o seu amor.
    Dá-nos a graça de acolhermos os sofrimentos e as provações como ocasiões para entrarmos, de mente e coração, no teu mistério inefável de amor. Que a nossa pobreza e pequenez seja acolhida como graça que nos dás para nos conhecermos cada vez mais e crescermos na confiança em Ti. Nós to pedimos por intercessão de Maria que, tão provada pelo sofrimento, soube permanecer profundamente crente e fiel. Amen.

    Contemplatio
    O amor não vos permite nem perturbação nem inquietude quanto ao futuro; interdita-vos uma vã curiosidade; prescreve-vos uma humilde e firme confiança.
    Diz-nos o Salvador: Eu vos inspiro mesmo um generoso abandono, colocando-vos na persuasão íntima de que, se amais o vosso Deus, é impossível que sejais infelizes. Ora, nada pode, nem neste mundo nem no outro, arrebatar-vos o tesouro do amor divino, excepto a vossa própria vontade; e quando este amor é um pouco ardente, embora possamos absolutamente sempre perdê-lo por própria culpa, temos horror apenas em pensar que alguma vez queiramos nisso consentir. Podemos também dizer com confiança como S. Paulo: «Quem me separará do amor de Cristo?» (Rom 8, 38). (Leão Dehon, OSP 2, p. 62).

    Actio
    Repete frequentemente e vive hoje a Palavra:
    «Mostrai-me, Senhor, as maravilhas do vosso amor» (cf. Sl 16, 7ª)
    | Fernando Fonseca, scj |

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