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  • 03º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    03º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    21 de Janeiro, 2024

    Ano B

    3.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 3.º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia do 3.º Domingo do Tempo Comum lembra-nos que Deus conta connosco para sermos arautos, no mundo, da sua Vida e da sua salvação; e desafia-nos a acolher de braços abertos o chamamento que, nesse sentido, Deus nos dirige.

    A primeira leitura diz-nos – através da história do envio do profeta Jonas a pregar a conversão aos habitantes de Nínive – que Deus ama todos os homens e a todos chama à salvação. Jonas, mesmo contra vontade, vai ser o instrumento de Deus para que os ninivitas repensem o caminho que estão a seguir e deem um novo sentido às suas vidas.

    No Evangelho, Marcos descreve-nos os primeiros passos de Jesus no anúncio do Reino de Deus; e, na sequência, mostra-nos o convite que Jesus deixa a alguns discípulos no sentido de colaborarem com Ele na construção do Reino.

    A segunda leitura convida o cristão a ter consciência de que “o tempo é breve” – isto é, que as realidades e valores deste mundo são passageiros e não devem ser absolutizados. Deus convida cada cristão, em marcha pela história, a viver de olhos postos no mundo futuro – quer dizer, a dar prioridade aos valores eternos, a converter-se aos valores do “Reino”.

     

    LEITURA I – Jonas 3,1-5.10

    A palavra do Senhor foi dirigida a Jonas nos seguintes termos:
    «Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive
    e apregoa nela a mensagem que Eu te direi».
    Jonas levantou-se e foi a Nínive,
    conforme a palavra do Senhor.
    Nínive era uma grande cidade aos olhos de Deus;
    levava três dias a atravessar.
    Jonas entrou na cidade, caminhou durante um dia
    e começou a pregar nestes termos:
    «Daqui a quarenta dias, Nínive será destruída».
    Os habitantes de Nínive acreditaram em Deus,
    proclamaram um jejum
    e revestiram-se de saco, desde o maior ao mais pequeno.
    Quando Deus viu as suas obras
    e como se convertiam do seu mau caminho,
    desistiu do castigo com que os ameaçara
    e não o executou.

     

    CONTEXTO

    O “Livro de Jonas” foi, muito provavelmente, escrito na segunda metade do séc. V a.C., entre 440 e 410 a.C. Conta-nos uma história bonita e edificante, mas que provavelmente não é real. Trata-se de um texto que poderíamos classificar no género “ficção didática”. Dito de outra forma: o Livro de Jonas não é uma coleção de oráculos proféticos proferidos por um homem chamado Jonas, nem sequer um relato de caráter histórico; mas é uma obra de ficção, escrita com a finalidade de ensinar e educar.

    Estamos nos anos posteriores ao Exílio na Babilónia. A política dos líderes judaicos – especialmente Esdras e Neemias – favorecia o nacionalismo e o fechamento do Povo de Deus aos outros povos. Por um lado, sublinhava-se o facto de Judá ser o Povo Eleito de Deus, o povo preferido de Deus, um povo diferente de todos os outros; por outro, considerava-se que todos os outros povos eram inimigos de Deus, odiados por Deus, que deviam ser inapelavelmente condenados e destruídos por Deus.

    Reagindo contra a ideologia dominante, o autor do “Livro de Jonas” apresenta Javé como um Deus universal, cuja bondade e misericórdia se estendem a todos os povos, sem exceção. A escolha de Nínive como a cidade destinatária da ação salvadora de Deus não é casual: Nínive, situada na margem oriental do rio Tigre, capital do império assírio a partir de Senaquerib, tinha ficado na consciência dos habitantes de Judá como símbolo do imperialismo e da mais cruel agressividade contra o Povo de Deus (cf. Is 10,5-15; Sof 2,13-15).

    É precisamente esta cidade que Javé quer salvar. Por isso, chama Jonas e convida-o a ir a Nínive pregar a conversão. No entanto, Jonas, como os outros seus contemporâneos, não está interessado em que Javé perdoe aos opressores do Povo de Deus e recusa-se a cumprir o mandato divino. Em lugar de se dirigir para Nínive, no Oriente, toma o barco para Társis, no Ocidente. Na sequência de uma tempestade, Jonas é atirado ao mar e engolido por um peixe. Mais tarde, o peixe vai depositá-lo em terra firme. Jonas é, de novo, chamado por Deus para a missão em Nínive.

    MENSAGEM

    O texto começa com Jonas a receber o segundo mandato de Javé para ir a Nínive. Jonas aceita, desta vez, a missão, vai a Nínive e anuncia aos ninivitas a destruição da sua cidade. Contra todas as expectativas, os ninivitas escutam-no e fazem penitência. Constatando a boa vontade dos ninivitas e a forma como eles acolhem o convite à conversão, Deus desiste do castigo.

    A primeira lição da “parábola” é a da universalidade do amor de Deus. Deus ama todos os homens, sem exceção, e sobre todos quer derramar a sua bondade e a sua misericórdia. Mais: Deus ama mesmo os maus, os injustos e opressores e até a esses oferece a possibilidade de salvação. Deus não ama o pecado, mas ama os pecadores. Ele não quer a morte do pecador, mas que este se converta e viva.

    A segunda lição da nossa “parábola” brota da resposta dada pelos ninivitas ao desafio de Deus. Ao descrever a forma imediata e radical como os ninivitas “acreditaram em Deus” e se converteram “do seu mau caminho” (ao contrário do que, tantas vezes, acontecia com o próprio Povo de Deus), o autor sugere, com alguma ironia, que esses pagãos, considerados como maus, prepotentes, injustos e opressores são capazes de estar mais atentos aos desafios de Deus do que o próprio Povo eleito. Desta forma, o autor desta história denuncia uma certa visão nacionalista, particularista, exclusivista e xenófoba, que estava em moda na sua época entre os seus contemporâneos. Desafia o seu Povo a aceitar que Javé seja um Deus misericordioso, que oferece o seu amor e a sua salvação a todos os homens, até aos maus. Desafia, ainda, os habitantes de Judá a assumirem a mesma lógica de Deus – lógica de bondade, de misericórdia, de perdão, de amor sem limites – e a não verem nos outros homens inimigos que merecem ser destruídos, mas irmãos que é preciso amar.

    Uma terceira lição resulta do chamamento de Jonas e da forma como o profeta responde ao apelo de Deus. Lembra-nos que Deus, para intervir no mundo, conta connosco. Por isso, Ele chama-nos e envia-nos. É através de nós, seus profetas, que Ele fala aos homens e lhes aponta os caminhos que conduzem à Vida. Se nós não aceitarmos a missão, estaremos a defraudar o projeto de Deus e a impedir que a salvação de Deus chegue aos homens e mulheres que caminham ao nosso lado. O profeta – aquele que Deus chama a ser sua voz no mundo – não tem o direito de se esconder, de se demitir, de se afastar quando Deus precisa dele. Quando o profeta ousa vencer os seus medos e resolve comprometer-se na missão, Deus fará coisas extraordinários, apesar da fragilidade e da debilidade do mensageiro.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Nesta catequese que nos é oferecida pelo autor do Llivro de Jonas tomemos nota, antes de mais, daquilo que se sugere sobre Deus. Segundo o nosso catequista, Deus ama todos os homens e mulheres, sem exceção e de forma incondicional. Ele ama até os maus e os opressores; no seu coração de Pai, todos têm lugar. Esta lógica exclui, naturalmente, a eliminação do pecador: Deus não quer a morte de nenhum dos seus filhos; o que quer é que eles se convertam e percorram, de mãos dadas com Ele, o caminho que conduz à Vida plena, à felicidade sem fim. É este Deus que somos chamados a descobrir, a aceitar e a amar. O nosso caminho é mais leve e mais feliz quando sabemos que, seja qual for a amplitude dos nossos fracassos, o nosso Deus nunca nos descartará.
    • Nós temos, por vezes, alguma dificuldade em aceitar esta lógica de Deus. Em certas circunstâncias, preferíamos um Deus mais duro e exigente, que se impusesse decisivamente aos maus, que frustrasse os seus projetos de violência e de injustiça, que não desse qualquer hipótese àqueles que ameaçam o nosso bem-estar e a nossa segurança, que condenasse ostensivamente aqueles que não partilham a nossa visão da fé… A Palavra de Deus que hoje nos é servida apresenta-nos um Deus de coração misericordioso, que escancara as portas a todos e que ama até aqueles que consideramos maus. Deus deve converter-se à nossa lógica, ou seremos nós que devemos converter-nos à lógica de Deus? Diante desse Deus que nunca fecha a porta a ninguém, fará algum sentido olharmos para o mundo que está para além das portas das nossas igrejas como um mundo que nos ameaça e diante do qual temos de assumir uma atitude defensiva e condenatória?
    • O texto sugere também que aqueles que consideramos “maus” estão, por vezes, mais disponíveis para acolher os desafios de Deus e para escutar o seu chamamento, do que os “bons”. Muitas vezes, aqueles que têm comportamentos “certinhos”, religiosamente corretos, podem estar de tal forma instalados nas suas certezas absolutas, que já não tenham espaço para se deixarem questionar por Deus. Teremos disponibilidade para pôr em causa as nossas seguranças e as nossas certezas inabaláveis para nos deixarmos desafiar pela contínua novidade de Deus e pelo seu sempre renovado convite à conversão?
    • Há também neste texto uma severa denúncia do racismo, da exclusão, da marginalização, da xenofobia. A Palavra de Deus alerta-nos para a necessidade de ver em cada pessoa que caminha ao nosso lado um irmão, independentemente da sua raça, da cor da sua pele, da sua cultura, das suas diferenças, ou até da sua bondade ou maldade. Como vemos e como acolhemos os nossos irmãos imigrantes que a vida trouxe até nós e que colaboram connosco na construção do mundo: como inimigos, culpados por todos os males do universo, ou como irmãos por quem somos responsáveis e que Deus nos convida a acolher e a amar? Como nos situamos face aos nossos irmãos diferentes – pela raça, pela cultura, pelos valores, pelos hábitos de vida: como gente que nos incomoda e que temos de afastar para o mais longe possível, ou como irmãos que nos podem ajudar a questionar as nossas cómodas certezas, as nossas seguranças absolutas, os nossos preconceitos inabaláveis?
    • Jonas, o homem que Deus chamou, mas que procurou evitar comprometer-se na missão, convida-nos a reflectir sobre a resposta que temos dado ao chamamento de Deus. O nosso comodismo, o nosso bem-estar, os nossos medos, o nosso egoísmo, a nossa miopia, alguma vez nos impediram de acolher o chamamento de Deus e de abraçar a missão que Deus nos entregou? E temos consciência de que ignorar os desafios de Deus é, em boa parte, falhar o sentido da nossa vida?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 24 (25)

    Refrão: Ensinai-me, Senhor, os vossos caminhos.

    Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos,
    ensinai-me as vossas veredas.
    Guiai-me na vossa verdade e ensinai-me,
    porque Vós sois Deus, meu Salvador.

    Lembrai-Vos, Senhor, das vossas misericórdias
    e das vossas graças, que são eternas.
    Lembrai-Vos de mim segundo a vossa clemência,
    por causa da vossa bondade, Senhor.

    O Senhor é bom e reto,
    ensina o caminho aos pecadores.
    Orienta os humildes na justiça
    e dá-lhes a conhecer os seus caminhos.

     

    LEITURA II – 1 Coríntios 7,29-31

    O que tenho a dizer-vos, irmãos,
    é que o tempo é breve.
    Doravante,
    os que têm esposas procedam como se as não tivessem;
    os que choram, como se não chorassem;
    os que andam alegres, como se não andassem;
    os que compram, como se não possuíssem;
    os que utilizam este mundo, como se realmente não o utilizassem.
    De facto, o cenário deste mundo é passageiro.

     

    CONTEXTO

    As Cartas de Paulo aos Coríntios – e particularmente a primeira – refletem a realidade de uma comunidade jovem, viva e entusiasta, mas com problemas e dificuldades muito particulares… As luzes e sombras da comunidade cristã de Corinto resultam, em parte, de ser uma comunidade que provém do mundo grego – isto é, de um mundo animado e estruturado por dinamismos muito próprios, com uma grande vitalidade, mas ao mesmo tempo com valores e dinâmicas que tornam difícil o acolhimento dos valores de Jesus. Na comunidade cristã de Corinto, vemos as dificuldades da fé cristã em se inserir num ambiente hostil, marcado por uma cultura pagã e por um conjunto de valores que estão em profunda contradição com a pureza da mensagem evangélica.

    Um dos sectores onde se nota particularmente o choque entre a fé cristã e a cultura helénica é nas questões de ética sexual. Neste âmbito, a cultura coríntia balouçava entre dois extremos: por um lado, um grande laxismo (como era normal numa cidade marítima, onde chegavam marinheiros de todo o mundo e onde reinava Afrodite, a deusa grega do amor); por outro lado, um desprezo absoluto pela sexualidade (típico de certas escolas influenciadas pela filosofia platónica, que consideravam a matéria um mal e que faziam do não casar um ideal absoluto).

    O desejo de Paulo é o de apresentar um caminho equilibrado, face a estes exageros: condenação sem apelo de todas as formas de desordem sexual, defesa do valor do casamento, elogio do celibato (cf. 1 Cor 7).

    Provavelmente, os coríntios tinham consultado Paulo acerca do melhor caminho a seguir – o do matrimónio ou o do celibato. Paulo responde-lhes na primeira carta que lhes dirige (cf. 1 Cor 7). O texto da segunda leitura deste domingo é parte dessa resposta. Paulo considera que não tem, a este propósito, “nenhum preceito do Senhor”; no entanto, o seu parecer é que quem não está comprometido com o casamento deve continuar assim e quem está comprometido não deve “romper o vínculo” (1 Cor 7,25-28).

    MENSAGEM

    Na perspetiva de Paulo, os cristãos não devem esquecer que “o tempo é breve”, quando tiverem que fazer as suas opções – nomeadamente, quando tiverem que fazer a sua escolha entre o casamento ou o celibato. Em concreto, o que é que isto significa?

    O cristão vive mergulhado nas realidades terrenas, mas não vive para elas. Ele sabe que as realidades terrenas são passageiras e efémeras e não devem ser absolutizadas. Para o cristão, o que é fundamental e deve ser posto em primeiro lugar são as realidades eternas… E o cristão, embora estimando e amando as realidades deste mundo, pode renunciar a elas em vista de um bem maior. O mais importante, para um cristão, deve ser sempre o amor a Cristo e a adesão ao Reino. Tudo o resto, mesmo que seja muito importante, deve subjugar-se a isto.

    Na sua catequese aos coríntios, o apóstolo aplica estes princípios à questão do casamento/celibato. Para ele, o casamento é uma realidade importante (ele considera que tanto o casamento como o celibato são dons de Deus – cf. 1 Cor 7,7); mas não deixa de ser uma realidade terrena e efémera, que não deve, por isso, ser absolutizada. Paulo nunca diz que o casamento seja uma realidade má ou um caminho a evitar; mas é evidente, nas suas palavras, uma certa predileção pelo celibato… Na sua perspetiva, o celibato leva vantagem enquanto caminho que aponta para as realidades eternas: anuncia a vida nova de ressuscitados que nos espera, ao mesmo tempo que facilita um serviço mais eficaz a Deus e aos irmãos (cf. 1 Cor 7,32-38).

    Para percebermos melhor a lógica de Paulo, devemos ter em conta o ambiente escatológico que se respirava nas primeiras comunidades. Para os crentes a quem a Primeira Carta aos Coríntios se destinava, a segunda e definitiva vinda de Jesus estava iminente; era preciso, portanto, relativizar as realidades transitórias e efémeras, entre as quais se contava o casamento.

    INTERPELAÇÕES

    • A todo o instante somos colocados diante de realidades diversas e contrastantes e temos de fazer as nossas escolhas. A mentalidade dominante, a moda, o politicamente correto, os nossos preconceitos e interesses egoístas interferem frequentemente com as nossas opções e impõem-nos valores que nem sempre são geradores de liberdade, de paz, de vida verdadeira. Mais grave, ainda: muitas vezes, endeusamos determinados valores efémeros e passageiros, que nos fazem perder de vista os valores autênticos, verdadeiros, definitivos. O texto sugere um princípio a ter em conta, a propósito desta questão: os valores deste mundo, por mais importantes e interessantes que sejam, não devem ser absolutizados. Não se trata de desprezar as coisas boas que o mundo coloca à nossa disposição; mas trata-se de não colocar nelas, de forma incondicional, a nossa esperança, a nossa segurança, o objetivo último da nossa vida. Como me situo face a isto? Até que ponto os valores efémeros a que dou importância me condicionam e me impedem de olhar para horizontes mais vastos e mais puros?
    • Na verdade, o cristão deve viver com a consciência de que “o tempo é breve”. Ele sabe que a sua vida não encontra sentido pleno e absoluto nesta terra e que a sua passagem por este mundo é uma peregrinação ao encontro dessa vida verdadeira e definitiva que só se encontra na comunhão plena com Deus. Para chegar a atingir esse objetivo último, o cristão deve converter-se a Cristo e segui-l’O no caminho do amor, da entrega, do serviço aos irmãos. Tudo aquilo que deixa um espaço maior para essa adesão a Cristo e ao seu caminho deve ser valorizado e potenciado. É aí que deve ser colocada a nossa aposta.

     

    ALELUIA – Marcos 1,15

    Aleluia. Aleluia.

    Está próximo o reino de Deus;
    arrependei-vos e acreditai no Evangelho.

     

    EVANGELHO – Marcos 1,14-20

    Depois de João ter sido preso,
    Jesus partiu para a Galileia
    e começou a proclamar o Evangelho de Deus, dizendo:
    «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus.
    Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».
    Caminhando junto ao mar da Galileia,
    viu Simão e seu irmão André,
    que lançavam as redes ao mar, porque eram pescadores.
    Disse-lhes Jesus:
    «Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens».
    Eles deixaram logo as redes e seguiram-n’O.
    Um pouco mais adiante,
    viu Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João,
    que estavam no barco a consertar as redes;
    e chamou-os.
    Eles deixaram logo seu pai Zebedeu no barco com os assalariados
    e seguiram Jesus.

     

    CONTEXTO

    A primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30) tem como objetivo fundamental levar à descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Ao longo de um percurso que é mais catequético do que geográfico, os leitores do Evangelho são convidados a acompanhar a revelação de Jesus, a escutar as suas palavras e o seu anúncio, a fazerem-se discípulos que aderem à sua proposta de salvação. Este percurso de descoberta do Messias que o catequista Marcos nos propõe termina em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe (que é, evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois de ter acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): “Tu és o Messias”.

    O texto que nos é hoje proposto aparece, exatamente, no princípio desta caminhada de encontro com o Messias e com o seu anúncio de salvação. Neste texto, Marcos apresenta aos seus leitores os primeiros passos da ação do Messias libertador.

    O lugar geográfico em que o texto nos situa é a Galileia: uma região situada a norte da Palestina, em permanente contacto com os territórios pagãos e, por isso, considerada pelas autoridades religiosas de Jerusalém uma terra de onde “não podia vir nada de bom”. Terra insignificante e sem especial relevo na história religiosa do Povo de Deus, a “Galileia dos gentios” parecia condenada a continuar uma região esquecida, marginalizada, por onde nunca passariam os caminhos de Deus e a proposta libertadora do Messias.

    Uma referência ainda ao “mar”, chamado “da Galileia”, em cujas margens Jesus encontrou os seus primeiros discípulos: trata-se de um lago de água doce, com cerca de 21 km de comprimento e 11 de largura máxima, na época de Jesus rico em peixe e com as margens cobertas de vegetação abundante, incluindo vinhedos. Era também chamado “mar de Kineret”, ou “mar de Tiberíades”. Nas suas margens situavam-se diversas cidades referidas nos evangelhos: Magdala, Corozaim, Betsaida e Cafarnaum.

    MENSAGEM

    O texto evangélico deste dia divide-se em duas partes. Na primeira, Marcos faz uma espécie de resumo da pregação inicial de Jesus (cf. Mc 1,14-15); na segunda, apresenta os primeiros passos da comunidade dos discípulos – a comunidade do Reino (cf. Mc 1,16-20).

    No breve resumo da pregação inicial de Jesus, Marcos coloca na boca de Jesus as seguintes palavras: “cumpriu-se o tempo e está próximo o Reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1, 15). Na expressão “cumpriu-se o tempo”, a palavra grega utilizada por Marcos e que traduzimos por “tempo” (“kairós”) refere-se a um tempo bem distinto do tempo material (“chronos”), que é o tempo medido pelos relógios. Poderia traduzir-se como “de acordo com o projeto de salvação que Deus tem para o mundo, chegou a altura determinada por Deus para o cumprimento das suas promessas”.

    Que “tempo” é esse que “se aproximou” dos homens e que está para começar? É o “tempo” do “Reino de Deus”. A expressão – tão frequente no Evangelho segundo Marcos – leva-nos a um dos grandes sonhos do Povo de Deus… A catequese de Israel referia-se, com frequência, a Javé como a um rei que, sentado no seu trono, governa o seu Povo. Mesmo quando Israel passou a ter reis terrenos, esses eram considerados apenas como homens escolhidos e ungidos por Javé para governar o Povo, em lugar do verdadeiro rei que era Deus. O exemplo mais típico de um rei/servo de Javé, que governou Israel submetendo-se à vontade de Deus, foi David. A saudade deste rei ideal e do tempo ideal de paz e de felicidade em que Javé reinava, através de David, sobre o seu povo vai marcar toda a história futura de Israel. Nas épocas de crise e de frustração nacional, quando reis medíocres conduziam a nação por caminhos de morte e de desgraça, o Povo sonhava com o regresso aos tempos gloriosos de David. Os profetas, por sua vez, vão alimentar a esperança do Povo anunciando a chegada de um tempo, no futuro, em que Javé vai voltar a reinar sobre Israel e vai restabelecer a situação ideal da época de David. Essa missão, na perspetiva profética, será confiada a um “ungido” que Deus vai enviar ao seu Povo. Esse “ungido” (em hebraico “messias”, em grego “cristo”) estabelecerá, então, um tempo de paz, de justiça, de abundância, de felicidade sem fim – isto é, o tempo do “reinado de Deus”.

    O “Reino de Deus” é, portanto, uma noção que resume a esperança de Israel num mundo novo, de paz e de abundância, preparado por Deus para o seu Povo. Esta esperança está bem viva no coração de Israel na época em que Jesus aparece a dizer: “o tempo completou-se e o Reino de Deus aproximou-se”. Certas afirmações de Jesus, transmitidas pelos Evangelhos sinópticos, mostram que Ele tinha consciência de estar pessoalmente ligado ao Reino e de que a chegada do Reino dependia da sua ação.

    Jesus começa, precisamente, a construção desse “Reino” pedindo aos seus conterrâneos a conversão (“metanoia”) e o acolhimento da Boa Nova (“evangelho”).

    “Converter-se” significa transformar a mentalidade e os comportamentos, assumir uma nova atitude de base, reformular os valores que orientam a própria vida, reequacionar a vida, de modo a que Deus passe a estar no centro da existência da pessoa e ocupe sempre o primeiro lugar. Na perspetiva de Jesus, não é possível que esse mundo novo de amor e de paz se torne uma realidade, sem que a pessoa renuncie ao egoísmo, ao orgulho, à autossuficiência e passe a escutar de novo Deus e as suas propostas. “Acreditar”, por sua vez, não é apenas aceitar um conjunto de verdades intelectuais; mas é, sobretudo, aderir à pessoa de Jesus, escutar a sua proposta, acolhê-la no coração, fazer dela o guia da própria vida; é escutar essa “Boa Notícia” de salvação e de libertação (“evangelho”) que Jesus propõe e fazer dela o centro à volta do qual se constrói toda a existência.

    “Conversão” e “adesão ao projeto de Jesus” são duas faces de uma mesma moeda: a construção de um Homem Novo, com uma nova mentalidade, com novos valores, com uma postura vital inteiramente nova. Esse Homem Novo, formado nos valores de Jesus, será capaz de amar o próximo (Mt 22,39), mesmo aquele que é adversário ou inimigo (Lc 10,29-37); não viverá para a riqueza e para os bens materiais, mas sim para a partilha (Mc 6,32-44); não se deixará prender pelo desejo do poder e do domínio, mas optará pelo serviço e pela entrega da vida (Mc 9,35). Então, sim, teremos um mundo novo, o “Reino de Deus”.

    Depois de dizer qual a proposta inicial de Jesus, Marcos apresenta-nos os primeiros discípulos. Pedro e André, Tiago e João são – na versão de Marcos – os primeiros a responder positivamente ao desafio do Reino.

    A descrição da vocação dos primeiros discípulos – modelo de toda a vocação cristã – apresenta algumas linhas fundamentais que importa pôr em relevo. Em primeiro lugar, notemos que o chamamento é uma iniciativa apenas de Jesus. Não são os discípulos que o escolhem a Ele, mas é Ele que se dirige aos discípulos e que os convida a segui-l’O. É uma iniciativa soberana de Jesus, que faz pensar na maneira como o próprio Deus chamava os seus profetas (cf. Ex 3,7-10; Am 7,15; Jr 1.5.10; 1 Re 19,19-21). Em segundo lugar, registemos que o chamamento de Jesus é dirigido a simples pescadores do mar da Galileia e não a pessoas com nomes sonantes ou com qualificações excecionais. É com pessoas assim – simples, comuns, “normais” – que Jesus conta para construir o Reino de Deus. Em terceiro lugar reparemos que o chamamento de Jesus é imperativo e decisivo: Ele “passa” e chama, sem dar explicações, sem dar garantias e sem sequer ficar a olhar para trás para ver se aqueles homens aceitaram ou não o desafio. Tudo isso sugere a gravidade do compromisso a que os discípulos são chamados. Em quarto lugar, notemos que os discípulos são convidados a colocar-se atrás de Jesus (“Vinde atrás de mim”). É esse o lugar do discípulo. Ele deve seguir o seu Mestre, percorrer o caminho que Ele vai traçando. Estamos bem distantes dos discípulos dos rabis judaicos da época, que se limitavam a frequentar as aulas do seu mestre para aprender e depois repetir uma determinada doutrina. Os discípulos de Jesus devem ir atrás dele, aderir à sua pessoa, fazer com Ele uma experiência de vida, caminhar com Ele até ao fim – até à cruz, até ao dom da vida. Em quinto lugar, observemos que a resposta ao chamamento é imediata, total e incondicional. Pedro, André, Tiago e João não pedem tempo para pôr em ordem os negócios pendentes ou para se despedir da família: limitam-se a deixar toda a sua vida em suspenso e a ir atrás de Jesus. É dessa forma decidida e radical que o verdadeiro discípulo responde a Jesus.

    Uma última nota para a missão confiada aos discípulos: ser “pescadores de homens”. A metáfora estará, provavelmente, relacionada com a ideia que o “mar” evocava na mentalidade semita: as águas abissais, o caos, o horror do mundo do mal. Os discípulos, enquanto “pescadores de homens”, teriam como missão salvar os homens do mar do sofrimento e da opressão em que eles estavam afogados. Deviam anunciar, com gestos concretos, um Deus Pai Bom e Amigo da Vida. Ser “pescador de homens” é ser enviado de um Deus que cura e que dá vida. Afinal, essa era a missão do próprio Jesus.

    INTERPELAÇÕES

    • A nossa experiência de todos os dias mostra-nos a existência de sombras que desfeiam o mundo e que ameaçam a nossa existência tranquila. E nós, ameaçados por essas sombras, deixamos que a angústia, a desilusão e o desespero se apossem de nós. Para onde caminhamos? Para um beco sem saída? Para um qualquer final dramático e infeliz? Jesus veio dizer-nos que, no projeto de Deus, está um mundo diferente – um mundo de harmonia, de justiça, de reconciliação, de amor e de paz. A esse mundo novo, Jesus chamava o “Reino de Deus”. E foi essa a realidade que Ele colocou no horizonte da história dos homens. Ora, esse Reino não morreu naquela cruz onde tentaram calar Jesus e o seu projeto. Reparemos nos sinais da presença do Reino de Deus na nossa história do séc. XXI. Por cada gesto de violência e de maldade que desfeia o nosso mundo, há mil outros gestos de amor, de partilha, de perdão, de cuidado que tornam o mundo mais bonito, mais humano e mais feliz. O Reino está a fazer-se, todos os dias. Somos testemunhas desse Reino? Somos arautos da esperança?
    • Para que o “Reino de Deus” se torne uma realidade cada vez mais impactante, o que é necessário fazer? Na perspetiva de Jesus, o “Reino de Deus” exige, antes de mais, a “conversão”. Converter-se implica alterar as nossas atitudes de egoísmo, de orgulho, de autossuficiência, de comodismo e de voltar a escutar Deus e as suas propostas, para que aconteça, na nossa vida e à nossa volta, uma transformação radical – uma transformação no sentido do amor, da justiça e da paz. Pessoalmente, o que devo mudar na minha maneira de pensar e de agir para que o Reino de Deus seja uma realidade mais presente na minha vida e na vida dos que me rodeiam? E, no que diz respeito aos valores que a sociedade de que faço parte cultiva, quais favorecem e quais impedem a construção do Reino de Deus?
    • Para que o Reino aconteça é preciso também “acreditar” no Evangelho. Em concreto, isso significa aderir a Jesus, acolher o seu projeto, escutar as suas palavras, aprender com os seus gestos de amor, de serviço, de doação, de perdão. As palavras e os gestos de Jesus estão integrados na minha vida e transparecem na minha forma de tratar, de servir e de cuidar aqueles irmãos e irmãs que caminham ao meu lado? Os meus gestos e palavras dão testemunho desse mundo mais humano e mais fraterno que Jesus nos veio ensinar a construir?
    • Desde que começou a anunciar o Reino de Deus, Jesus rodeou-se de discípulos. Pedro, André, Tiago, João e alguns outros cruzaram-se com Jesus, ouviram o seu chamamento e foram com Ele. Eram homens simples, com defeitos e virtudes, como qualquer um de nós; mas tiveram a coragem de corresponder ao convite de Jesus e de embarcar com Ele na aventura de construir o Reino de Deus. A nós, Jesus lança todos os dias o mesmo convite. Estamos dispostos a fazer da construção do Reino a nossa prioridade? Estamos dispostos a ir atrás de Jesus, mesmo que isso implique deixarmos para trás certos projetos pessoais? Aquele compromisso que, no dia do nosso batismo, assumimos com Jesus, está a ser concretizado na nossa vida?
    • Jesus confia aos seus discípulos – quer àqueles que chamou nas margens do mar da Galileia, quer a nós – a missão de serem “pescadores de homens”. É uma missão que não passou de moda: hoje, como ontem, há muitos irmãos nossos que vivem mergulhados nas águas revoltas do egoísmo, da violência, da exploração, da solidão, da doença… E Jesus conta connosco para lhes dar a mão, para aliviar o seu sofrimento, para lhes levar esperança, para humanizar as suas vidas. Sentimos a responsabilidade desta missão? Sentimo-nos responsáveis por levar alívio e esperança a cada homem ou a cada mulher que sofre? Sabemos que também por aí passa a construção do Reino de Deus?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 3.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA meditada ao longo da semanA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 3.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. PALAVRA DE VIDA.

    Troca de olhares… Diz-se muita coisas nestes olhares trocados! João Baptista põe o seu olhar em Jesus e diz quem Ele é. Jesus olha André e o seu companheiro, interroga-os e convida-os a vir e a ver. Estes veem onde Ele mora e ficam com Ele. André leva o seu irmão a Jesus que põe nele o seu olhar e dá-lhe um novo nome, o que constitui todo um programa de vida. Olhares que interrogam, olhares que nomeiam, olhares que convidam, olhares que dizem a amizade. Se Jesus olha os homens, é porque Deus os olha. Deixemo-nos olhar por Deus e aceitemos olhá-l’O, olhando o seu Filho Jesus. Então pode-se estabelecer a relação.

    3. UM PONTO DE ATENÇÃO.

    Sublinhar a unidade das três leituras. Em cada domingo são propostos três textos diferentes, em que o primeiro e o Evangelho têm uma ligação particular. É, pois, útil sublinhar este aspeto, para que esta sucessão de leituras encontre, aos olhos dos fiéis, uma certa unidade. Na meditação da Palavra de Deus de hoje (não necessariamente na celebração da Eucaristia), pode-se ler a primeira leitura, o salmo responsorial e o Evangelho, deixando a segunda leitura para mais tarde.

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    Voltarmo-nos para Cristo… Em comunidade, é bom ouvir o apelo à conversão: as nossas maneiras de viver e de trabalhar devem também, sem cessar, ser regeneradas para melhor corresponder àquilo que Cristo espera de nós. É preciso que, juntos, nos viremos para Ele. E o Evangelho deste domingo é a ocasião para um tempo de discernimento que muito raramente fazemos.

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    Proposta para Escutar, Partilhar, Viver e Anunciar a Palavra

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

  • III Semana - Segunda-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    III Semana - Segunda-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    22 de Janeiro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares III Semana - Segunda-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 2 Samuel 5, 1-7.10

    1Todas as tribos de Israel foram ter com David a Hebron e disseram-lhe: «Aqui nos tens: não somos nós da tua carne e do teu sangue? 2Tempos atrás, quando Saul era nosso rei, eras tu quem dirigia as campanhas de Israel e o Senhor disse-te: 'Tu apascentarás o meu povo de Israel e serás o seu chefe.'» 3Vieram, pois, todos os anciãos de Israel ter com o rei a Hebron. David fez com eles uma aliança diante do Senhor, e eles sagraram-no rei de Israel. 4David tinha trinta anos quando começou a reinar e reinou quarenta anos: 5sete anos e seis meses sobre Judá, em Hebron, e trinta e três anos em Jerusalém, sobre todo o Israel e Judá. David em Jerusalém (1 Cr 11,4-9; 14,1-7) - 6O rei marchou com os seus homens para Jerusalém, contra os jebuseus, que habitavam aquela terra. Estes disseram a David: «Não entrarás aqui; serás repelido até por cegos e coxos.» Isto queria dizer: «Nunca entrarás aqui.» 7Contudo, David apoderou-se da fortaleza de Sião, que é a Cidade de David. 10Deste modo, David ia-se fortificando e o Senhor, Deus do universo, estava com ele.

    A unção de David por Samuel espelha o sentido profundamente religioso e carismático que sempre teve a autoridade em Israel. Mas essa unção não parece ter sido obra de Samuel, mas dos homens de Judá, primeiro (2 Sam 2, 4) e, depois, dos anciãos de Israel (5, 3). David entrou no exército de Saul como chefe de mercenários (1 Sam 18, 5); depois passou ao serviço dos filisteus, que o fizeram príncipe de Ciclag (1 Sam 27, 6); finalmente fui ungido rei pelas tribos do sul em Hebron, onde reinou sete anos e meio (2 Sam 5, 5). Num segundo momento foi reconhecido como rei das tribos do norte e, uma vez conquistada Jerusalém, estabeleceu nela a capital. A conquista de Jerusalém impunha-se por razões políticas: situada entre os territórios de Israel e de Judá, não pertencia a nenhum deles, mas aos Jebuseus e, por isso, podia ser aceite por ambas as partes do novo reino. A cidade foi tomada pela milícia pessoal de David, sublinhando que não ficava integrada nem em Israel nem em Judá, mas permanecia como cidade neutral, centro autónomo do poder do rei. O v. 10 repete o refrão teológico, e poderia representar a conclusão original da história de David, do seu sinuoso caminho desde as pastagens de Belém até ao domínio de Sião. Com a conquista de Jerusalém, as tribos unificadas sentem-se seguras e podem dedicar-se a outras actividades, inclusivamente culturais. Na escola de escribas, surge o movimento Javista que compõe a primeira síntese histórico-salvífica, a fim de assinalar a missão e o destino de Israel como paradigma e fonte de salvação para todos os povos da terra.

    Evangelho: Mc 3, 22-30

    22E os doutores da Lei, que tinham descido de Jerusalém, afirmavam: «Ele tem Belzebu!» E ainda: «É pelo chefe dos demónios que expulsa os demónios.» 23Então, Jesus chamou-os e disse-lhes em parábolas: «Como pode Satanás expulsar Satanás? 24Se um reino se dividir contra si mesmo, tal reino não pode perdurar; 25e se uma família se dividir contra si mesma, essa família não pode subsistir. 26Se, portanto, Satanás se levanta contra si próprio, está dividido e não poderá subsistir; é o seu fim. 27Ninguém consegue entrar em casa de um homem forte e roubar-lhe os bens sem primeiro o amarrar; só depois poderá saquear-lhe a casa. 28Em verdade vos digo: todos os pecados e todas as blasfémias que proferirem os filhos dos homens, tudo lhes será perdoado; 29mas, quem blasfemar contra o Espírito Santo, nunca mais terá perdão: é réu de pecado eterno.» 30Disse-lhes isto porque eles afirmavam: «Tem um espírito maligno.»

    O «tribunal» vindo de Jerusalém, não podendo negar a evidência prodígios que Jesus operava, insinua que é por Belzebu que expulsa os demónios. Jesus enfrenta decidida e corajosamente os seus caluniadores, ainda que «em parábolas», para os refutar. Evidencia as suas contradições: se fosse Satanás a expulsar Satanás, não era preciso estar preocupados com ele, porque o seu poder tinha chegado ao fim. As palavras de Jesus, cheias da ironia que Marcos várias vezes anota, são uma profecia: efectivamente o reino de Satanás estava prestes a findar, porque se aproximava o reino dos céus, ou melhor, já estava presente. Libertar os pecadores do poder de Satanás e da escravidão do pecado era um sinal claro de que Jesus actuava em nome de Deus. Dizer que actuava pelo poder do «espírito maligno» era blasfemar contra o Espírito Santo.

    Meditatio

    David fez tudo pela unidade de Israel. Foi generoso e leal com Saul, que o perseguia, vestiu-se de luto quando soube da sua morte e matou os assassinos dos parentes do rei. Estas atitudes levaram as tribos de Israel a reconhecê-lo como rei. Se assim não fosse, David não seria mais do que senhor de Judá. Agindo como agiu, assumiu o poder sobre as tribos do Norte e do Sul e, ao conquistar Jerusalém, ergueu o reino de Israel, que havia de governar durante 40 anos, e que é figura do reino messiânico. No evangelho, Jesus fala do reino dividido de Satanás para mostrar o poder do Espírito. A figura do reino dividido e rebelde, do homem forte amarrado e espoliado, contrasta com o Reino eterno do perdão, contra o qual ninguém consegue opor-se com êxito, e onde todos serão acolhidos e salvos. Só o mau uso da nossa liberdade poderá excluir-nos do Reino, se nos levar a blasfemar contra o Espírito Santo, confundindo o Filho do Homem com Satanás. Meditando nos esforços de David para realizar a unidade do reino de Israel, e no Espírito Santo como força de união, rezemos pela unidade da Igreja. Apesar da vontade de Jesus, e da sua oração para «que todos sejam um» (Jo 17, 21), a Igreja continua dividida, dificultando que «o mundo creia» (Jo 17, 23) A união e a caridade entre os cristãos podem ser vividas a vários níveis. O mais perfeito é expresso por Jesus em forma de oração, quando pede que os seus discípulos se amem uns aos outros como as Três Pessoas da Santíssima Trindade se amam: "Não rogo só por estes, mas também por aqueles que, graças à sua palavra, hão-de acreditar em Mim, para que todos sejam um. Como Tu, ó Pai, estás em Mim e Eu em Ti, sejam também eles uma só coisa, para que o mundo creia que Tu Me enviaste" (Jo 17, 20-21). A união e a caridade são, por si mesmas, um poderoso apostolado. A falta delas dificulta a eficácia apostólica. O "Sint unum" (Jo 17, 21) é um mote caro ao Pe. Dehon, e proposto a quantos partilham o seu carisma e a sua missão. «Unidos... à intercessão de Cristo, somos chamados a colocar toda a nossa vida ao serviço da Aliança de Deus com o seu Povo e a promover a unidade dos cristãos e de todos os ho mens. "Porque há um único pão, nós todos formamos um só corpo, pois todos participamos desse único pão" (1 Cor 10,17)» (Cst 84). Queremos, deste modo, responder ao convite de encontro e de comunhão que Cristo nos faz por meio do sinal privilegiado da sua presença, que é a Eucaristia, que celebramos, comungamos e adoramos (cf. Cst 84)

    Oratio

    Senhor Jesus, Tu disseste: «Todo o reino, dividido contra si mesmo, fica devastado; e toda a cidade ou casa, dividida contra si mesma, não poderá subsistir» (Mt 12, 25). Hoje quero pedir-te pela unidade da tua Igreja. Que sejamos todos «um só», como Tu e o Pai são «um só», «para que o mundo creia». Que a unidade da Igreja esteja sempre, pelo menos, nos nossos desejos, para que não comprometamos a união e a comunhão entre nós, os que acreditamos em Ti. Amen.

    Contemplatio

    «Meu Pai, dizia Nosso Senhor na sua oração, aqueles que me destes, quero que onde eu estiver eles também estejam comigo, para que vejam a glória que me destes. Reconheceram que me enviastes. Dei-lhes a conhecer o vosso nome, as vossas divinas perfeições, a vossa santidade, a vossa misericórdia/485, o vosso amor inefável, e pelo dom do Espírito Santo dá-los-ei a conhecer ainda mais, para que vos conheçam melhor, vos amem mais e se tornem sempre mais dignos do vosso amor e assim o amor com o qual me amastes esteja neles e ameis neles as imagens do vosso Filho bem-amado, os membros do corpo místico do qual sou o chefe...» Nesta oração ao seu Pai, Nosso Senhor indicava toda a união que devemos ter com a santa Trindade e particularmente com ele. Do seu lado, ele está unido a nós: deu-nos a conhecer o seu Pai, o Deus do amor, manifestavi nomem tuum hominibus, quos dedisti mihi de mundo. Comunicou-nos a palavra de seu Pai, a revelação divina, os segredos do seu conselho divino, Verba quae dedisti mihi, dedi eis. Nós também estamos unidos a ele. Como seus discípulos, recebemos a sua palavra e conservámo-la nos nossos corações com fidelidade, sermonem tuum acceperunt et servaverunt. Reconhecemos que a sua palavra era a palavra de Deus mesmo. Acreditámos na sua natureza divina e na sua missão, cognoverunt quia a te exivi et crediderunt quia tu me misisti (Jo 17). Esta união consumar-se-á no céu (Leão Dehon, OSP 3, p.484s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra: «Que todos sejam um» (Jo 17, 21).

    | Fernando Fonseca, scj |

  • III Semana - Terça-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    III Semana - Terça-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    23 de Janeiro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares III Semana - Terça-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 2 Samuel 6, 12b-15.17-19

    12Disseram ao rei que o Senhor abençoara a casa de Obededom e todos os seus bens por causa da Arca de Deus. Foi, pois, David e transportou-a da casa de Obededom para a Cidade de David, com grande regozijo. 13E a cada seis passos que davam os que transportavam a Arca do Senhor, sacrificavam um boi e um carneiro. 14David, cingindo a insígnia votiva de linho, dançava com todas as suas forças diante do Senhor. 15O rei e todos os israelitas conduziram a Arca do Senhor, soltando gritos de alegria e tocando trombetas. 17Introduziram a Arca do Senhor e colocaram-na no seu lugar, no centro do tabernáculo que David construíra para ela; e David ofereceu holocaustos e sacrifícios de comunhão diante do Senhor. 18Quando David acabou de oferecer holocaustos e sacrifícios de comunhão, abençoou o povo em nome do Senhor do universo 19e distribuiu alimentos a toda a multidão dos israelitas, homens e mulheres, dando a cada pessoa, um bolo, um pedaço de carne assada e uma filhó. Depois, toda a multidão se retirou, indo cada um para a sua casa.

    Os centros de culto tradicionais eram Siquém, Betel, Guilgal, Mambré, Bersabé, entre outros. Jerusalém fora pagã até ontem. Daí o interesse de David em rodeá-la com uma aura religiosa. Nada melhor que torná-la sede da Arca da Aliança. A Arca da Aliança continha as tábuas da Lei dadas por Deus a Moisés, no Sinai. Era símbolo da presença de Javé no meio do seu povo. Por isso, o tinha acompanhado nas peregrinações pelo deserto, até à conquista da Terra, e durante a guerra com os filisteus. O transporte da Arca para Jerusalém é ocasião de festa para o povo e para o rei: David manifesta abertamente a sua alegria dançando, cingido com o efod, a veste sagrada dos sacerdotes. Como ainda não há o templo, a Arca é colocada numa tenda, sinal da mobilidade do povo e do próprio Deus, que recorda aos Israelitas que não podem apoderar-se da presença de Deus, fazendo-o como que prisioneiro. Os holocaustos, os sacrifícios de comunhão e a refeição sagrada - o pão, a carne, as uvas - distribuídos por David a todos selam a cerimónia. A Arca instrumento de batalha durante a guerra contra os filisteus, torna-se sinal de paz e de prosperidade. A partir de David, Jerusalém torna-se uma referência fundamental para o judaísmo e, mais tarde também para o cristianismo e para o islamismo.

    Evangelho: Mc 3, 31-35

    31Nisto chegam sua mãe e seus irmãos que, ficando do lado de fora, o mandam chamar. 32A multidão estava sentada em volta dele, quando lhe disseram: «Estão lá fora a tua mãe e os teus irmãos que te procuram.» 33Ele respondeu: «Quem são minha mãe e meus irmãos?» 34E, percorrendo com o olhar os que estavam sentados à volta dele, disse: «Aí estão minha mãe e meus irmãos. 35Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe.»

    Depois do julgamento do «tribunal» de Jerusalém, vem o julgamento dos «seus», conterrâneos e parentes, que dizem que Ele está louco. Alguns autores vêem neste texto ecos de uma desconfiança que existia em relação à comunidade judeo-cristã de Jerusalém, cujo bispo era Tiago, «irmão» do Senhor, pertencente ao grupo de Nazaré, cuja hostilidade para com o Senhor é sublinhada por Marcos (cf. 6, 3). Os parentes do Senhor lideravam a igreja de Jerusalém e também há quem veja no texto de Marcos resíduos de uma polémica contra o perigo do nepotismo na Igreja. Como quer que seja, não podemos ver neste texto qualquer atitude de menosprezo pela Mãe, nem pelos afectos humanos. Marcos não trata desses temas, mas aproveita o ensejo para criar uma situação paradoxal que dá maior realce aos vv. 34s., que são o cume do episódio. Todos quantos rodeiam Jesus, ainda que simples curiosos, discípulos hesitantes ou apóstolos tardos em compreender, ou mesmo traidores, são mãe e irmãos. Ser irmão de Jesus, não é questão de sangue, de mérito, mas de graça: «Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe», por que se torna «filho de Deus».

    Meditatio

    A Arca da Aliança, recebida em casa de Obedon, um estrangeiro, torna-se fonte de bênçãos para ele. Por isso, David decide levá-la para Jerusalém, recentemente conquistada aos jebuseus. Transporta-a com manifestações de grande alegria e oferecendo vários sacrifícios a Deus. Colocada na tenda, oferece holocaustos e sacrifícios de comunhão. E todo o povo participa na festa, comendo bolos, carne e filhós. Somos inclinados a ver o sacrifício como privação, como algo que nos faz sofrer. Na primeira leitura, o sacrifício aparece-nos como alegria, festa, exultação. David, enquanto transporta a Arca, e já em Jerusalém, oferece sacrifícios com grande alegria para ele e para todo o povo. O verdadeiro sacrifício não é privação, mas um acto positivo, uma oferta a Deus. E quando oferecemos algo a uma pessoa a quem queremos bem, a eventual privação é secundária para nós. O mais importante é a satisfação de oferecer. O sacrifício é uma oferta a Deus. Como pode ser algo de triste? Se pensarmos melhor, todo o sacrifício oferecido a Deus, é um dom do próprio Deus para nós. Ao fim e ao cabo, é Ele que nos torna capazes de oferecer sacrifícios. O autor da Carta aos Hebreus diz-nos que Jesus «por um Espírito eterno ofereceu a Si mesmo sem mancha, a Deus" (Heb 9, 14). Só o Espírito Santo é capaz de nos animar para o sacrifício e de tornar sagradas (sacrum facere) as nossas oferendas. Os sofrimentos são realidades negativas. Só quando Deus as transforma pela sua graça é que se tornam gestos de generosidade e de amor. Além disso, o sacrifício, oferta a Deus, não inclui necessariamente o sofrimento. Todas as nossas alegrias podem e devem tornar-se ofertas a Deus para serem alegrias santas e não apenas humanas. As nossas alegrias, as nossas satisfações, as coisas boas da vida, o bem que recebemos, podem e devem tornar-se oblação santa e agradável a Deus. O acolhimento da Arca em casa de Obedon, um estrangeiro, trouxe-lhe as bênçãos de Deus. O acolhimento do Evangelho cria uma familiaridade com Jesus superior à dos simples laços de sangue. A simplicidade com que David sabe reconhecer sem ciúmes os sinais da graça do Senhor na casa de Obedon, e a clareza com que Jesus define quem são os seus familiares, devem tornar-nos atentos ao essencial, e disponíveis a entregar-nos sem preconceitos ao louvor de Deus e ao acolhimento e cumprimento da sua vontade. David dança pelo caminho como um homem qualquer; quem quer que escute a Palavra de Jesus e a ponha em prática, torna-se «irmã, ir mão e mãe» d´Ele. As nossas Constituições indicam-nos "como o único necessário, uma vida de união à oblação de Cristo" (n. 26). A matéria desta oblação somos nós mesmos. Por carisma, dom do Espírito Santo, oferecemo-nos a Deus em castidade, pobreza e obediência, vivendo em comunidade, ao serviço da missão da Igreja, solidários com os pequenos e pobres. A Eucaristia é modelo e forma da nossa oblação: "neste sacrifício da Nova Aliança, unimo-nos à oblação perfeita que Cristo oferece ao Pai, para fazê-la nossa, pelo sacrifício espiritual das nossas vidas» (Cst 81). Um sacrifício espiritual, isto é, animado pelo Espírito, só pode ser feito na alegria.

    Oratio

    Senhor, dá-me um coração capaz de acolher os sinais da tua presença, capaz de acolher e cumprir a tua vontade. Que a tua Palavra, acolhida na alegria, ocupe sempre um lugar de honra no meu coração. Então serei capaz de reconhecer como irmãs e irmãos todos quantos cumprem a vontade do Pai, sem me abandonar a preconceitos de qualquer espécie. Então serei capaz de me oferecer e oferecer com alegria tudo quanto vivo, realizo e sofro, fazendo da minha vida e da minha morte uma oblação santa e agradável a Deus. Amen.

    Contemplatio

    Deus enviou o seu filho à terra, para que seja o seu sacerdote, para que o glorifique no seu coração sacerdotal. Nosso Senhor foi sacerdote desde a sua incarnação. Recebeu com a união hipostática a unção sacerdotal. O seu coração foi desde então um coração de sacerdote. Ofereceu-se imediatamente em holocausto e pronunciou o seu Ecce venio. Mas foi no Templo que teve lugar o primeiro acto exterior da sua oblação. É feita pelos seus pais e pelo sacerdote, mas o seu Coração sacerdotal ratifica-a. Oferece-se ao seu Pai, dá-se. Aniquilou-se pela incarnação, humilhar-se-á por uma vida toda de obediência, de trabalho e de pobreza; consumará o seu sacrifício pela sua paixão e pela sua morte. O sacerdote apresenta-o a Deus e coloca-o sobre o altar. Jesus repete no seu coração o Ecce venio da sua incarnação: Eis-me aqui, diz de novo ao seu Pai, eis-me aqui para fazer a vossa vontade, eis-me aqui para suprir às hóstias e aos holocaustos que já não quereis. - Tem em vista todos os fins do sacrifício. A oblação do seu coração é um acto de religião infinito. É simultaneamente um acto de adoração, de acção de graças, de reparação e de oração. Mas a nossa fraca inteligência não se dá conta da perfeição desta oblação senão supondo actos distintos e sucessivos. Nós vemos primeiro no Coração sacerdotal de Jesus um acto de adoração e para exprimir esta adoração aniquilamentos infinitos. Nosso Senhor confessa a absoluta dependência na qual se encontra diante da infinita Majestade do seu Pai. Proclama que lhe deve tudo e, /124 para lhe fazer um sacrifício de tudo o que é, abaixa-se até ao nada, como diz S. Paulo, porque é exactamente nada esta natureza humana tomada na sua pobreza, na sua infinita pequenez, com a carga de todos os pecados dos homens e a espera da morte. Mas mais o Verbo de Deus se abaixa, mais nós devemos exaltá-lo com os nossos louvores (Leão Dehon, OSP 3, p. 123s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra: «Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe» (Mc 3, 35).

    | Fernando Fonseca, scj |

  • III Semana – Quarta-feira – Tempo Comum – Anos Pares

    III Semana – Quarta-feira – Tempo Comum – Anos Pares

    24 de Janeiro, 2024

    III Semana – Quarta-feira – Tempo Comum – Anos Pares

    Lectio

    Primeira leitura: 2 Samuel 7, 4-17

    4Mas, naquela mesma noite, o Senhor falou a Natan, dizendo-lhe: 5«Vai dizer ao meu servo David: Diz o Senhor: "És tu que me vais construir uma casa para Eu habitar? 6Desde que tirei da terra do Egipto os filhos de Israel até ao dia de hoje, não habitei em casa alguma; mas peregrinava alojado numa tenda que me servia de morada. 7E, durante todo o tempo em que andei no meio dos israelitas, disse, porventura, a algum dos chefes de Israel que encarreguei de apascentar o meu povo: ‘Porque não me edificais uma casa de cedro?’ 8Dirás, pois, agora, ao meu servo David: Diz o Senhor do universo: Eu tirei-te das pastagens onde apascentavas as tuas ovelhas, para fazer de ti o chefe de Israel, meu povo. 9Estive contigo em toda a parte por onde andaste; exterminei diante de ti todos os teus inimigos e fiz o teu nome tão célebre como o nome dos grandes da terra. 10Fixarei um lugar para Israel, meu povo; nele o instalarei, e ali habitará, sem jamais ser inquietado; e os filhos da iniquidade não mais o oprimirão, como outrora, 11no tempo em que Eu estabelecia juízes sobre o meu povo, Israel. A ti concedo uma vida tranquila, livrando-te de todos os teus inimigos. Além disso, o Senhor faz hoje saber que será Ele próprio quem edificará uma casa para ti. 12Quando chegar o fim dos teus dias e repousares com teus pais, manterei depois de ti a descendência que nascerá de ti e consolidarei o seu reino. 13Ele construirá um templo ao meu nome, e Eu firmarei para sempre o seu trono régio. 14Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho. Se ele cometer alguma falta, hei-de corrigi-lo com varas e com açoites, como fazem os homens, 15mas não lhe tirarei a minha graça, como fiz a Saul, a quem afastei diante de ti. 16A tua casa e o teu reino permanecerão para sempre diante de mim, e o teu trono estará firme para sempre".» 17Foi segundo estas palavras e esta visão que Natan falou a David.

    A profecia de Natan vem desfazer as desconfianças e as reticências perante a monarquia. Até aí o povo de Israel estava organizado em tribos, que gozavam de certa autonomia. Com monarquia, o poder foi concentrado nas mãos do rei e em Jerusalém, capital do reino e cidade santa. Era uma inovação que nem todos aceitavam pacificamente. A profecia de Natan funciona como um referendo divino à instituição monárquica e, de modo muito especial, à dinastia de David: «A tua casa e o teu reino permanecerão para sempre diante de mim, e o teu trono estará firme para sempre» (v. 16). David está consciente da solidez eterna da sua casa e do seu trono pois, ao morrer, pronuncia as seguintes palavras: «A minha casa está firme diante de Deus, porque Ele fez comigo uma aliança eterna» (2 Sam 23, 5). Este pacto de Deus com David manterá elevada a moral e a esperança do povo nos momentos difíceis.
    O oráculo de Natan começa com uma pergunta retórica: «És tu que me vais construir uma casa para Eu habitar?» (v. 5). Esta pergunta faz um todo com a afirmação antitética do v. 11: «será Ele próprio (o Senhor), quem edificará uma casa para ti». Só depois da morte de David o Senhor suscitará o seu descendente (cf. v. 12). Como frequentemente acontece nos oráculos proféticos, são possíveis dois níveis de leitura: a referência imediata a Salomão que construirá o Templo em Jerusalém e a vinda do futuro Messias. O Messias construirá uma casa ao Nome de Deus, o seu reino será eterno, e aplica-se a ele a fórmula de adopção: «Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho» (v. 14).

    Evangelho: Mc 4, 1-20

    1De novo começou a ensinar à beira-mar. Uma enorme multidão vem agrupar-se junto dele e, por isso, sobe para um barco e senta-se nele, no mar, ficando a multidão em terra, junto ao mar. 2Ensinava-lhes muitas coisas em parábolas e dizia nos seus ensinamentos: 3«Escutai: o semeador saiu a semear. 4Enquanto semeava, uma parte da semente caiu à beira do caminho e vieram as aves e comeram-na. 5Outra caiu em terreno pedregoso, onde não havia muita terra e logo brotou, por não ter profundidade de terra; 6mas, quando o sol se ergueu, foi queimada e, por não ter raiz, secou. 7Outra caiu entre espinhos, e os espinhos cresceram, sufocaram-na, e não deu fruto. 8Outra caiu em terra boa e, crescendo e vicejando, deu fruto e produziu a trinta, a sessenta e a cem por um.» 9E dizia: «Quem tem ouvidos para ouvir, oiça.»
    10Ao ficar só, os que o rodeavam, juntamente com os Doze, perguntaram-lhe o sentido da parábola. 11Respondeu: «A vós é dado conhecer o mistério do Reino de Deus; mas, aos que estão de fora, tudo se lhes propõe em parábolas, 12para que ao olhar, olhem e não vejam, ao ouvir, oiçam e não compreendam, não vão eles converter-se e ser perdoados.»
    13E acrescentou: «Não compreendeis esta parábola? Como compreendereis então todas as outras parábolas? 14O semeador semeia a palavra. 15Os que estão ao longo do caminho são aqueles em quem a palavra é semeada; e, mal a ouvem, chega Satanás e tira a palavra semeada neles. 16Do mesmo modo, os que recebem a semente em terreno pedregoso, são aqueles que, ao ouvirem a palavra, logo a recebem com alegria, 17mas não têm raiz em si próprios, são inconstantes e, quando surge a tribulação ou a perseguição por causa da palavra, logo desfalecem. 18Outros há que recebem a semente entre espinhos; esses ouvem a palavra, 19mas os cuidados do mundo, a sedução das riquezas e as restantes ambições entram neles e sufocam a palavra, que fica infrutífera. 20Aqueles que recebem a semente em boa terra são os que ouvem a palavra, a recebem, dão fruto e produzem a trinta, a sessenta e a cem por um.»

    O reino de Deus é proclamado pela palavra. Marcos, na secção que hoje abre, oferece-nos uma teologia da palavra do reino. Jesus começa a falar «em parábolas». Era o método usado pelos rabinos. As parábolas são «histórias» aparentemente simples, mas com um elemento-surpresa e uma conclusão inesperada que convidam a procurar um segundo significado, para além do imediato.
    A parábola começa por estar orientada para o semeador, extremamente generoso na sementeira. Mas logo centra a nossa atenção na semente. Vem, depois, a tipologia dos terrenos que recebem a semente. Há um evidente exagero ao falar da «boa terra». A imagem da colheita sugere o fim dos tempos. A parábola, ao fim e ao cabo, diz-nos que o Messias está próximo e descreve a abundância de graça do Reino messiânico.
    No diálogo com «os que o rodeavam», a semente é claramente identificada com a Palavra, e os terrenos correspondem às diferentes reacções suscitadas pela pregação dos apóstolos.

    Meditatio

    Quantas vezes concebemos, como David, grandes projectos de acção em favor de Deus e do seu Reino. Mas Deus baralha-nos quando nos faz perceber que é Ele que tem grandes projectos em nosso favor, e que, antes de manifestarmos o nosso a
    mor, é Ele que quer manifestar o seu amor por nós: «não fomos nós que amámos a Deus, mas foi Ele mesmo que nos amou e enviou o seu Filho» (1 Jo 4, 10). A David, Deus disse pelo profeta: «És tu que me vais construir uma casa para Eu habitar? … Eu próprio edificarei uma casa para ti» (cf 1 Sam 7, 5.11).
    Se pusermos a nossa generosidade à frente da generosidade de Deus, se pusermos o nosso amor antes do amor de Deus, invertemos a ordem das coisas e manifestarmos a pretensão de sermos os primeiros a amar. O primado do amor pertence a Deus, como ficamos a perceber se escutarmos e acolhermos a sua palavra, que, em primeiro lugar, uma promessa. Deus quer cumular-nos de dons. Iniciou uma relação e um diálogo connosco para nos encher de dons.
    A fecundidade da palavra que Deus manda transmitir a David é extraordinária: produz verdadeiramente trinta, sessenta, cem por um. E a palavra que Deus dirige a cada um de nós? Somos terra boa? Que fazemos com a nossa vocação cristã e com a nossa vocação específica? Terra boa foi Maria, foram os apóstolos, foram os mártires e os santos. Terra boa foi o Pe. Dehon. Mas o fruto da palavra não depende apenas com o nosso esforço, das nossas obras, talvez grandiosas aos olhos dos homens. Tudo o que fazemos está nas mãos de Deus. Só Ele pode tornar estável a nossa «casa» e fecundo o nosso «terreno», muito para além dos nossos desejos e projectos. De facto, os projectos de Deus são bem mais maravilhosos, amplos e profundos do que podemos esperar. Basta-nos abrir-lhe o coração.
    A primeira bem-aventurança que ecoa no Evangelho é dirigida a Maria: “Feliz d´Aquela que acreditou no cumprimento das palavras do Senhor…” (Lc 1, 45). É a bem-aventurança da fé, que acolhe a Palavra de Deus e adere a ela com toda a vida. É a bem-aventurança que o próprio Jesus, um dia, proclamará: “Felizes… aqueles que escutam a Palavra de Deus e a põe em prática!” (Lc 11, 28). A Palavra de Deus é, em primeiro lugar, um dom do seu amor ao qual havemos de corresponder com uma vida de amor a Deus: “Sede daqueles que põem em prática a palavra e não apenas ouvintes, enganando-vos a vós mesmos” (Tg 1, 22

    Oratio

    Senhor, ensina-me a submeter os meus projectos aos teus. Ensina-me a deixar-me amar por Ti, antes de pretender amar-te. Ensina-me a acolher a tua palavra, antes de querer falar-Te. Ela é um dom do teu amor, que deve encher a minha vida. Que, nos momentos difíceis, seja para mim um rochedo de salvação. Ensina-me que ela é sempre eficaz, mas não do modo que eu pretendo.
    Dá-me um coração disponível e acolhedor. Lança generosamente em mim a tua palavra e torna-a fecunda pelo teu Espírito. Amen.

    Contemplatio

    O grande semeador é Deus, é Jesus. Deus semeou os seus benefícios desde a criação. Cristo semeia as suas graças e semeia-as quotidianamente desde a sua incarnação. E muitas destas graças e destes benefícios não encontraram nem gratidão nem fidelidade.
    Mas reflectirei sobretudo nas graças que recebi pessoalmente: o baptismo, a primeira comunhão, a vocação, os retiros, as confissões, as comunhões, as leituras espirituais, os acontecimentos providenciais, a minha vocação especial de amigo do Sagrado Coração.
    O divino semeador semeou sem descanso o bom grão no campo da minha alma, mas que é que daí resultou? – Há grãos que caem sobre os caminhos e as aves apoderam-se deles. É demasiadas vezes o que me acontece. A minha alma é um grande caminho pela dissipação, pela a curiosidade, pela ligeireza. O bom grão não consegue ter aí raiz. – Outros grãos caem sobre uma terra pedregosa ou cheia de espinhos. É ainda a minha alma, endurecida pela tibiez e ocupada pelos espinhos dos cuidados materiais e terrestres, estranhos à minha vocação. Estes grãos não produzirão nada de durável. – Há, finalmente, boas terras que produzem o cêntuplo. A minha alma deveria ser destas. Como hei-de fazer para a dispor? É-lhe necessário o labor profundo da penitência e do retiro, a guarda da modéstia e do recolhimento, a emenda da reparação e do sacrifício. Que farei?… Ó minha alma, dispõe-te a receber as sementeiras do bom grão, as sementeiras da graça fecunda do Sagrado Coração (Leão Dehon, OSP 3, p. 57s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Não fomos nós que amámos a Deus; foi Ele que nos amou e enviou o seu Filho» (cf. 1 Jo 4, 10)».

    | Fernando Fonseca, scj |

    S. Francisco de Sales, Bispo e doutor da Igreja

    S. Francisco de Sales, Bispo e doutor da Igreja


    24 de Janeiro, 2024

    Nasceu em Thorans, pequena aldeia da Saboia francesa, em 1567. Tendo recebido uma boa educação na família, estudou num colégio de Jesuítas, em Paris e, depois, frequentou a universidade de Pádua, onde se formou em Direito. Contrariando as expetativas do pai, abraçou a vida eclesiástica e dedicou-se com sucesso à evangelização. Nomeado bispo de Genebra, desenvolveu grande atividade na reforma da diocese e exerceu profícuo apostolado entre os protestantes. Para além da sua iluminada atividade pastoral, dedicou-se à direção espiritual de muitas pessoas, escrevendo as preciosas obras de espiritualidade para todos, particularmente para os leigos, intituladas Filoteia, ou Introdução à vida devota, e Teotimo, ou tratado do amor de Deus. Com Santa Joana de Chantal, fundou a Visitação. Faleceu em 1622. É padroeiro da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus, Dehonianos, e dos jornalistas católicos.
    Lectio
    Primeira leitura: Efésios 3, 8-12

    Irmãos, a mim, o menor de todos os santos, foi dada a graça de anunciar aos gentios a insondável riqueza de Cristo 9e a todos iluminar sobre a realização do mistério escondido desde séculos em Deus, o criador de todas as coisas 10para que agora, por meio da Igreja, seja dada a conhecer, aos Principados e às Autoridades no alto do Céu, a multiforme sabedoria de Deus, 11de acordo com o desígnio eterno que Ele realizou em Cristo Jesus Senhor nosso. 12Em Cristo, mediante a fé nele, temos a liberdade e coragem de nos aproximarmos de Deus com confiança.

    Paulo apresenta-se como ministro do mistério de Cristo, não por iniciativa própria, mas por vocação e graça. O seu trabalho de evangelizador dos pagãos é um dom recebido e uma missão a realizar. Deus tinha um desígnio arcano (mysterium), preparado longamente e agora revelado, na sua realização, a Paulo, de modo particular. Por meio dele, Deus quer revelá-lo a todos, especialmente aos pagãos. O conteúdo do mistério é o seguinte: todos são chamados a conhecer a extraordinária sabedoria de Deus, que também representa a extraordinária riqueza de Cristo.
    Evangelho: João 10, 11-18

    Naquele tempo, Jesus disse: "Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas. 12O mercenário, e o que não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, vê vir o lobo e abandona as ovelhas e foge e o lobo arrebata-as e espanta-as, 13porque é mercenário e não lhe importam as ovelhas. 14Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas conhecem-me, 15assim como o Pai me conhece e Eu conheço o Pai; e ofereço a minha vida pelas ovelhas. 16Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil. Também estas Eu preciso de as trazer e hão-de ouvir a minha voz; e haverá um só rebanho e um só pastor. 17É por isto que meu Pai me tem amor: por Eu oferecer a minha vida, para a retomar depois. 18Ninguém ma tira, mas sou Eu que a ofereço livremente. Tenho poder de a oferecer e poder de a retomar. Tal é o encargo que recebi de meu Pai.»

    A figura do pastor é comum na tradição hebraica para indicar o rei de Israel e a relação do crente com Deus, o pastor por excelência. Jesus identifica-se com essa imagem, aprofundando-a e levando-a à sua plena realização. Ele é o pastor belo (kalós) e bom não só na aparência, mas também na qualidade. É o autêntico pastor. O termo "belo" ou "bom" significa suave e afável, mas, sobretudo, autêntico. Jesus é o novo David, chefe e guia conforme o coração de Deus. É pastor, não só de Israel, mas também de "outras ovelhas" como os samaritanos e os pagãos, que são filhos de Deus dispersos e devem ser reconduzidos ao redil e à salvação, conforme o desígnio do Pai.
    Meditatio

    S. Francisco de Sales foi o pastor belo e bom que tornou amável o rosto da Igreja num tempo de grandes contrastes e lutas. Como Cristo, entregou-se e consumiu a sua vida, não só pelas ovelhas do redil, mas também pelas que andavam perdidas. Foi esse dar a vida por todos que abriu os olhos a muitas ovelhas "perdidas". S. Francisco de Sales foi, nos séculos XVI e XVII, o pastor autêntico, preocupado exclusivamente em dar a própria vida, arriscando-a em situações por vezes muito difíceis para evangelizar, servir a sua diocese e restaurar a vida da Igreja nas dioceses de Genebra e Annecy. Em tudo se deixa conduzir pelo princípio do amor puro, como disponibilidade incondicional ao projeto de Deus. É isso que também ensina às pessoas sedentas de perfeição cristã.
    É um verdadeiro repouso para a alma contemplar este santo, ler os seus escritos, tal é a sua caridade, a paciência e o otimismo que exala. A fonte de tudo isto está na esperança em Deus, ao qual se entrega para servir sem reservas o seu povo.
    Francisco de Sales exultava de alegria ao pensar que toda a lei se resume no mandamento do amor e que não devemos ter medo de amar excessivamente.
    O P. Dehon aponta-o como um "santo do Coração de Jesus". E justifica: "A grande obra da sua piedade foi a fundação da Visitação donde saiu a devoção ao Sagrado Coração", uma evidente alusão a Santa Margarida Maria, visitandina, favorecida com extraordinárias revelações de Jesus e apóstola do seu Coração.
    Oratio

    Amável santo, vós sois um dos mestres da devoção ao Sagrado Coração. Haveis formado tão bem a Ordem da Visitação, que Nosso Senhor aí encontrou um campo bem preparado para lá semear esta bela devoção. Preparai também os nossos corações. Por vossa intercessão, purificai-nos e formai-nos ao apostolado do Coração de Jesus. (Leão Dehon, OSP 3, p. 103).
    Contemplatio

    S. Francisco de Sales é modelo de mansidão. É a característica da sua vida. Foi suave como o bom Mestre. Não o era por natureza, mas tornou-se pelos seus esforços e pela graça de Deus. Imagem perfeita do Bom Pastor, vai através de todas as fadigas procurar as ovelhas perdidas. Fala às pessoas pobres, aos pastores das montanhas com uma bondade que os enternece. Entra nas suas necessidades e nas suas mágoas e assiste-os com a sua bolsa e os seus bens. A sua reputação de mansidão é conhecida longe... A sua caridade sem limites punha em desespero o seu ecónomo, mas o caro santo mostrava-lhe o crucifixo e dizia-lhe: "Como é que hesitaremos em despojar-nos, quando vemos o que um Deus fez por nós". A doçura era a sua virtude dominante. Dizia um dia que tinha estado três anos a estudar na escola de Jesus Cristo e que não podia contentar-se lá em cima. Algumas pessoas tendo-o um dia censurado por causa da sua indulgência para com os pecadores, respondeu-lhes: "Se houvesse alguma coisa melhor que a mansidão, Deus no-la teria ensinado. Mas ele não nos recomenda senão duas coisas, ser mansos e humildes de coração. Quereis impedir-me de observar o mandamento de Deus e de imitar o mais que puder a virtude da qual nos deu o exemplo?" (Leão Dehon, OSP 3, p. 102).
    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "O bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas" (Jo 10, 11b).
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    S. Francisco de Sales, Bispo e doutor da Igreja (24 Janeiro)

  • Conversão de S. Paulo

    Conversão de S. Paulo


    25 de Janeiro, 2024

    Saulo, cidadão romano por privilégio da sua cidade natal, Tarso, era um judeu convicto, formado na escola de Gamaliel, em Jerusalém. Opôs-se decididamente à nova fé que começava a propagar-se na Palestina e arredores. Clamou pela morte de Estêvão, e tomou parte nela, guardando as capas dos que apedrejavam o protomártir. Perseguiu violentamente os crentes em Jesus Cristo. O seu nome causava terror nas comunidades cristãs. Ao dirigir-se para Damasco para prender os cristãos que lá encontrasse e conduzi-los a Jerusalém, encontrou Jesus ressuscitado. Esse encontro mudou-lhe para sempre a vida, com a sua forma de crer e de pensar. Jesus ressuscitado, que ele perseguia, tornou-se o centro da sua espiritualidade e da sua teologia. Em Antioquia, Saulo faz a sua primeira experiência de vida cristã. Tornado apóstolo do Evangelho, com o nome de Paulo, Antioquia será também o ponto de partida para as suas viagens missionárias. Funda diversas comunidades na Ásia e na Europa. Escreve-lhes cartas que testemunham o seu amor a Jesus Cristo e à Igreja, e nos dão elementos importantes da sua teologia. Como apóstolo verdadeiro e autêntico, Paulo tem sempre o cuidado de voltar a Jerusalém para se confrontar com os outros apóstolos e não correr em vão.

    Há muitos séculos que a festa da conversão de S. Paulo foi fixada no dia 25 de Janeiro, talvez por causa da data da transladação do seu corpo, que atualmente repousa na Basílica de S. Paulo Fora dos Muros, em Roma.
    Lectio

    Primeira Leitura: Act 22, 3-16

    Naqueles dias, Paulo disse ao povo: "Sou judeu, nascido em Tarso da Cilícia, mas fui educado nesta cidade, instruído aos pés de Gamaliel, em todo o rigor da Lei dos nossos pais e cheio de zelo pelas coisas de Deus, como todos vós sois agora. 4Persegui de morte esta «Via», algemando e entregando à prisão homens e mulheres, 5como o podem testemunhar o Sumo Sacerdote e todos os anciãos. Recebi até, da parte deles, cartas para os irmãos de Damasco, onde ia para prender os que lá se encontrassem e trazê-los agrilhoados a Jerusalém, a fim de serem castigados. 6Ia a caminho, e já próximo de Damasco, quando, por volta do meio dia, uma intensa luz, vinda do Céu, me rodeou com a sua claridade. 7Caí por terra e ouvi uma voz que me dizia: 'Saulo, Saulo, porque me persegues?' 8Respondi: 'Quem és Tu, Senhor?' Ele disse-me, então: 'Eu sou Jesus de Nazaré, a quem tu persegues.' 9Os meus companheiros viram a luz, mas não ouviram a voz de quem me falava. 10E prossegui: 'Que hei-de fazer, Senhor?' O Senhor respondeu-me: 'Ergue-te, vai a Damasco, e lá te dirão o que se determinou que fizesses.' 11Mas, como eu não via, devido ao brilho daquela luz, fui levado pela mão dos meus companheiros e cheguei a Damasco. 12Ora um certo Ananias, homem piedoso e cumpridor da Lei, muito respeitado por todos os judeus da cidade, 13foi procurar-me e disse: 'Saulo, meu irmão, recupera a vista.' E, no mesmo instante, comecei a vê-lo. 14Ele prosseguiu: 'O Deus dos nossos pais predestinou-te para conheceres a sua vontade, para veres o Justo e para ouvires as palavras da sua boca, 15porque serás testemunha diante de todos os homens, acerca do que viste e ouviste. 16E agora, porque esperas? Levanta-te, recebe o batismo e purifica-te dos teus pecados, invocando o seu nome.

    Este é um dos três relatos com que Lucas enriquece a história da primitiva comunidade cristã. Sem se preocupar com o rigor histórico, - alguns pormenores são mesmo improváveis -, o autor do livros dos Atos pretende personificar em Paulo a justificação do cristianismo e a falta de razão do judaísmo.
    O evento de Damasco articula-se em três momentos: um diálogo de reconhecimento mútuo entre Jesus Ressuscitado e Saulo de Tarso; a conversão de Saulo revelada na pergunta: "Que hei de fazer, Senhor?"; a missão: quem conheceu a vontade de Deus e viu o Justo recebendo a palavra da sua boca, torna-se testemunha do que viu e ouviu. Doravante, para Paulo, a única forma de vida é ser missionário.
    Evangelho: Marcos 16, 15-18

    Naquele tempo, Jesus apareceu aos Onze e disse-lhes: «Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura. 16Quem acreditar e for batizado será salvo; mas, quem não acreditar será condenado. 17Estes sinais acompanharão aqueles que acreditarem: em meu nome expulsarão demónios, falarão línguas novas, 18apanharão serpentes com as mãos e, se beberem algum veneno mortal, não sofrerão nenhum mal; hão de impor as mãos aos doentes e eles ficarão curados.»

    Paulo não pertenceu ao grupo dos Doze. Mas a Liturgia aplica-lhe também as palavras de Jesus aos Doze, no momento em que subia ao céu: "Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura" (v. 15). Paulo, depois da sua experiência de fé e de comunidade, torna-se verdadeiro apóstolo de Jesus. Desde sempre a Igreja entendeu que o mandato missionário do Ressuscitado se dirigia também a ele. Paulo submete-se e obedece.
    Deus quer salvar a humanidade com a colaboração da própria humanidade. Jesus precisa de missionários-testemunhas. A salvação é fruto da pregação e realiza-se pelo ato de fé de quem a escuta: "Quem acreditar e for batizado será salvo" (v. 16). Deus, que nos criou sem nós, não nos salva sem a nossa colaboração.
    Os sinais e prodígios que acompanham a pregação dos apóstolos manifestam a presença consoladora de Deus no meio de nós.
    Meditatio

    Em S. Paulo revela-se verdadeiramente o poder de Deus. Inimigo acérrimo do nome de Cristo, Saulo encontra-se com o Senhor no caminho de Damasco, acolhe-o na fé e torna-se seu Apóstolo entusiasta, com uma fecundidade extraordinária, que ainda não terminou. O seu itinerário de fé é símbolo do nosso.
    Acreditar implica, antes de mais, encontrar pessoalmente Jesus de Nazaré, Deus feito homem. O cristão não se acredita numa doutrina, num sistema, mas numa pessoa, a pessoa humano-divina de Jesus. Ter fé é aderir vitalmente a Jesus, de tal modo que já não se pode viver sem Ele.
    Realizado o encontro, passa-se ao diálogo, uma vez que a fé é encontro e adesão entre pessoas inteligentes e livres. A quem se dispõe ao diálogo, Deus revela a Si mesmo, revela a sua vontade e os seus projetos. Este diálogo vital leva aqueles que o realizam a uma forma de vida cada vez mais elevada.
    Mas a fé cristã também é obediência, submissão, abandono total da criatura ao Criador. Obedecer não significa abdicar da própria liberdade ou dos próprios direitos. Significa, sim, perceber a imensa distância que existe entre si o interlocutor e, ao mesmo tempo, intuir que a adesão à vontade divina leva à total satisfação e realização de si mesmo.
    Finalmente, a fé cristã é também missão. Não se pode privatizar um bem que, por sua natureza, é comunitário. Quem recebeu de Cristo o dom da salvação em Cristo, sente-se intimamente obrigado a fazer dele um dom para os outros.
    O Apóstolo Paulo é nosso guia em tempos de aprofundamento espiritual e de renovação apostólica. Como ele, o apóstolo dos tempos novos deve procurar, em primeiro lugar, a inteligência do Mistério de Cristo num apego inquebrantável ao seu Amor (cf. Ef 3, 4; Rm 8, 35; Fl 3, 8-10). É apóstolo, em primeiro lugar, pelo testemunho da visão de Cristo (At 26, 1) e tornando-se no Espírito imagem viva do Salvador morto e ressuscitado. É a caridade do Senhor que vive nele e que o impele em direção aos homens para lhes anunciar o Evangelho de Deus, o Evangelho que todos podem ler na sua vida e nos seus escritos. Ensina-nos o serviço ardente e inteligente em favor do Reino. Vivendo de Cristo, a ponto de ser identificado com Ele pela graça (Gl 2, 20), lembra-nos que o serviço apostólico enraíza numa verdadeira consagração a Deus e dá à nossa oblação capacidade para se manifestar e aprofundar no trabalho generoso para que a humanidade se torne «uma oblação agradável santificada pelo Espírito Santo (XV Capítulo Geral, DOC VII, n. 167).
    Oratio

    Apóstolo S. Paulo, na tua juventude, deixaste-te levar por um zelo ardente mas errado em favor da unidade do povo de Deus. Por isso, perseguiste duramente os cristãos. Deus converteu-te e introduziu-te na Igreja, Corpo de Cristo, onde deve integrar-se quem quiser viver na verdadeira fé. Mas a tua adesão a Cristo e a tua integração na Igreja não te fizerem esquecer o teu povo, pelo qual sentias uma dor profunda e permanente. Que a minha alegria de estar em Cristo não me faça esquecer a situação do antigo Povo de Deus, nem a dos cristãos divididos, que tardam em chegar à unidade que Deus quer. Ámen.
    Contemplatio

    S. Paulo recolhe-se alguns dias, depois começa a pregar a divindade de Jesus Cristo. Será um dos mais poderosos apóstolos pela palavra e pelo sofrimento. «Escolhi-o, dizia Nosso Senhor, para levar o meu nome diante das nações e dos reis e dos filhos de Israel, e hei de mostrar-lhe quanto terá de sofrer pelo meu nome». A sua conversão e a sua vocação são devidas à misericórdia do Coração de Jesus. O Coração de Jesus ama as almas ardentes, zelosas, dedicadas. Mas a oração de Santo Estêvão contribuiu para estas grandes graças. Santo Estêvão rezava pelos seus perseguidores, entre os quais S. Paulo era o mais ardente. Se soubermos rezar e sofrer pelas almas, obteremos grandes graças, ilustres conversões, vocações poderosas. Ofereçamos as nossas orações, as nossas cruzes, os nossos sofrimentos ao Coração de Jesus para que envie à sua Igreja, nestes tempos difíceis, apóstolos poderosos em palavras e em obras (L. Dehon, OSP 3, p. 90s.).
    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Que hei de fazer, Senhor?" (At 22, 10).

     

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    Conversão de S. Paulo (25 Janeiro)

    III Semana - Quinta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    III Semana - Quinta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    25 de Janeiro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares III Semana - Quinta-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 2 Samuel 7, 18-19.24-29

    18Então, David foi apresentar-se diante do Senhor e disse-lhe: «Quem sou eu, Senhor Deus, e quem é a minha família, para que me tenhas conduzido até aqui? 19E, como se isto fosse pouco para ti, Senhor Deus, Senhor Deus, fizeste também promessas à família do teu servo para os tempos futuros! Porque esta é a lei do homem, ó Senhor Deus! 24Estabeleceste solidamente o teu povo, Israel, para ser eternamente o teu povo, e Tu, Senhor, seres o seu Deus. 25Agora, pois, Senhor Deus, cumpre para sempre a promessa que fizeste ao teu servo e à sua casa e faz como disseste. 26O teu nome será exaltado para sempre e dir-se-á: 'O Senhor do universo é o Deus de Israel. E permanecerá estável diante de ti a casa do teu servo David. 27Porque Tu próprio, ó Senhor do universo, Deus de Israel, fizeste ao teu servo esta revelação: 'Eu te construirei uma casa.' Por isso, o teu servo se animou a dirigir-te esta prece. 28Agora, ó Senhor Deus, só Tu és Deus, e as tuas palavras são a própria verdade. Já que prometeste ao teu servo estes bens, 29abençoa, desde agora, a sua casa, para que ela subsista para sempre diante de ti: porque Tu, Senhor Deus, falaste e, graças à tua bênção, a casa do teu servo será abençoada eternamente.»

    Depois das promessas de Deus em relação a David, à sua descendência e a todo o povo (na primeira parte de 2Sam 7), o rei toma a palavra e pronuncia uma oração de louvor e de acção de graças. A oração é repetitiva e redundante: os conceitos «casa», «Senhor Deus» (Adonai Yahveh), «servo», «falar», «palavra» «eternamente», repetem-se várias vezes. Mas essa repetição acentua claramente as ideias principais nela expressas. Entre elas sobressai o conceito de «palavra»: promessa feita a David por meio de Natan; palavra eficaz e fonte de esperança nos momentos difíceis da história. As razões pelas quais Deus recusa a construção do templo por David não estão muito claras. Mas o rei aceita a anulação dos seus projectos para que se realizem os de Deus: «Quem sou eu, Senhor Deus, e quem é a minha família, para que me tenhas conduzido até aqui?». Esta submissão e esta humildade aparecem nos relatos bíblicos de vocação (cf. Ex 3, 11; Jz 6, 15; Jer 1, 6). A confiança de David apoia-se na memória das obras de Deus em favor do seu povo. David põe-se em sintonia com a palavra do Senhor, pedindo que ela se realize. Deus é fiel. É na fidelidade que se revela a sua grandeza. Uma vez que o Senhor «falou», não há que hesitar: «a casa do teu servo será abençoada eternamente», conclui David.

    Evangelho: Mc 4, 21-25

    21Disse-lhes ainda: «Põe-se, porventura, a candeia debaixo do alqueire ou debaixo da cama? Não é para ser colocada no candelabro? 22Porque não há nada escondido que não venha a descobrir-se, nem há nada oculto que não venha à luz. 23Se alguém tem ouvidos para ouvir, oiça.» 24E prosseguiu: «Tomai sentido no que ouvis. Com a medida que empregardes para medir é que sereis medidos, e ainda vos será acrescentado. 25Pois àquele que tem, será dado; e ao que não tem, mesmo aquilo que tem lhe será tirado.»

    Depois da parábola do semeador, Marcos apresenta-nos dois pares de breves sentenças. O Evangelho é para todos na comunidade. Por isso, deve ser colocado «no candelabro». Se alguém cair na tentação de o guardar ciosamente para si, então ser-lhe-á tirado. A Sagrada Escritura não é privilégio só para alguns, mas é para todos. Por isso, deve ser posta ao alcance de todos. A fé recebida por mim deve ser posta ao serviço da minha comunidade e de todos os homens. No primeiro par de sentenças, a imagem da lâmpada que deve ser exposta sobre o candelabro é desenvolvida por duas antíteses paralelas: o que está escondido há-de ser descoberto, o que está oculto há-de vir à luz. O Reino, ainda que, por enquanto, seja anunciado em parábolas, depressa virá à luz na sua glória, e o Evangelho será anunciado a todos os povos. No segundo par de sentenças, a antítese volta-se para a condição interna da comunidade: a imagem da medida insinua a proibição de julgar os outros; a segunda sentença está mais ligada à parábola do semeador: «aquele que tem» corresponde à «boa terra», que acolhe a palavra e lhe permite produzir fruto.

    Meditatio

    As sentenças de Jesus que Marcos nos apresenta hoje vêm logo depois da parábola do semeador, e ajudam-nos a compreendê-la. A semente é, sem dúvida, a Palavra de Deus. Daí a insistência de Jesus: «Se alguém tem ouvidos para ouvir, oiça»... «Tomai sentido no que ouvis. » (cf. Mc 4, 23-24). Um bom acolhimento da Palavra, alcança graças mais abundantes. David, ao acolher a Palavra do Senhor, alcança a bênção e a promessa da estabilidade da sua casa: «Tu, Senhor Deus, falaste e, graças à tua bênção, a casa do teu servo será abençoada eternamente» (2 Sam 7, 29). Esta estabilidade não consiste tanto na glória ou no sucesso político da dinastia davídica, mas mais na solidez na fé e na correspondência ao desígnio de Deus sobre o seu povo. E isto é fruto de graça. David tinha um bom projecto, o melhor que um homem pode conceber: construir um templo para Deus, isto é, ocupar-se com a sua glória, esquecendo a si mesmo. A recusa de Deus poderia causar-lhe desilusão. Mas, em vez disso, o jovem rei põe de parte o seu projecto e acolhe a Palavra de Deus. Um belo exemplo para nós, mas difícil de seguir! Quantas vezes nos agarramos a projectos que julgamos bons e até inspirados por Deus. E que dramas, quando a vontade do Senhor se mostra diferente! David, não se deixa cair na desilusão, no desânimo. Pelo contrário, pede a Deus que cumpra a sua promessa: «Só Tu és Deus, e as tuas palavras são a própria verdade... Tu, Senhor Deus, falaste e, graças à tua bênção, a casa do teu servo será abençoada eternamente» (cf. 2 Sam 7, 28-29). Desde muito jovem, e ainda antes de entrar no seminário, o Pe. Dehon dava grande importância à "escuta da Palavra", como testemunham os dois primeiros cadernos do seu "Diário". Quase todos os conteúdos das suas notas têm a sua raiz na Escritura. As citações são tomadas sem qualquer diferença tanto do Antigo como do Novo Testamento. Em 138 páginas manuscritas contamos 210 citações da Sagrada Escritura. A sua preferência vai para S. João (57 vezes) e para S. Paulo (38 vezes). Preparado pela "escuta da Palavra&rdquo ;, meditada e assimilada, Leão Dehon está preparado para viver o espírito de abandono e de imolação que o caracteriza. Não hesita em pôr de parte projectos e interesses pessoais, para fazer o que se lhe apresenta como vontade de Deus. «Ecce venio», «Fiat» são seus motes preferidos. Como Cristo, Leão Dehon não hesita em oferecer-se, em imolar-se por amor, chegando a emitir o voto de vítima, para reviver o sacerdócio e o sacrifício de Cristo, Vítima divina, e alargar o seu "Reino nas almas e na sociedade" (Cst 4).

    Oratio

    Senhor, dá-me a graça de saber sempre renunciar corajosamente aos meus projectos, ainda que os julgue bons, para acolher a tua vontade onde, como e quando se revelar. Só o teu projecto é força de vida, é semente capaz de originar uma grande árvore, enquanto os projectos humanos são efémeros. Enche-me de confiança em Ti para realizar o que me pedires, sem me deixar tomar pela ansiedade e pela angústia de não me sentir à altura dos projectos em que me queres envolver. Que eu reconheça sempre a grandeza do teu Nome, e não me orgulhe pelas bênçãos com que vais cumulando ao longo da vida. Amen.

    Contemplatio

    Jesus quis ser o nosso modelo até nas tentações. Quis passar pelas diversas tentações que podem assaltar a nossa alma. Satanás começa por lhe propor mudar pedras em pão, para satisfazer o seu apetite... Jesus responde a esta tentação e às outras com frases da Sagrada escritura. Indica-nos assim qual é o objecto das suas meditações na solidão e como devemos procurar a nossa força na palavra de Deus. Está escrito, responde, que o homem não vive só de pão, mas também da palavra divina» (Dt 7, 3). Em toda a sua vida, Jesus abandonar-se-á à divina Providência para tudo o que lhe concerne e não fará nenhuma concessão à sensualidade. Oh! Quanto tenho a fazer a este respeito! Como sou fraco e inclinado a procurar mil satisfações! O remédio está na união com Nosso Senhor, na meditação assídua da sua palavra e dos seus mistérios. Enquanto o nosso coração não estiver fortemente agarrado ao Coração de Jesus e bem apaixonado pelo seu amor, deixar-se-á seduzir pelas satisfações sensuais (Leão Dehon, OSP 3, p. 225).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra: «Só Tu és Deus, e as tuas palavras são a própria verdade» (cf. 2 Sam 7, 28).

    | Fernando Fonseca, scj |

  • III Semana - Sexta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    III Semana - Sexta-feira - Tempo Comum - Anos Pares

    26 de Janeiro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares
    III Semana - Sexta-feira

    Lectio

    Primeira leitura: 1 Samuel 11, 1-4a.5-10a.13-17

    1No ano seguinte, na época em que os reis saem para a guerra, David enviou Joab com os seus oficiais e todo o Israel; eles devastaram a terra dos amonitas e sitiaram Rabá. David ficou em Jerusalém. 2E aconteceu que uma tarde David levantou-se da cama, pôs-se a passear no terraço do seu palácio e avistou dali uma mulher que tomava banho e que era muito formosa. 3David procurou saber quem era aquela mulher e disseram-lhe que era Betsabé, filha de Eliam, mulher de Urias, o hitita. 4Então, David enviou emissários para que lha trouxessem. Ela veio e David dormiu com ela, depois de purificar-se do seu período menstrual. Depois, voltou para sua casa. 5E, vendo que concebera, mandou dizer a David: «Estou grávida.» 6Então, David mandou esta mensagem a Joab: «Manda-me Urias, o hitita.» E Joab enviou Urias, o hitita, a David. 7Quando Urias chegou, David pediu-lhe notícias de Joab, do exército e da guerra. 8E depois disse-lhe: «Desce à tua casa e lava os teus pés.» Urias saiu do palácio do rei, e este, em seguida, enviou-lhe comida da sua mesa real. 9Mas Urias não foi a sua casa e dormiu à porta do palácio com os outros servos do seu senhor. 10E contaram-no a David, dizendo-lhe: «Urias não foi a sua casa.» David perguntou a Urias: «Não voltaste, porventura, de uma viagem? Porque não foste a tua casa?» 13David convidou-o a comer e beber com ele, e embriagou-o. Mas à noite, Urias não foi a sua casa; saiu e deitou-se com os outros servos do seu senhor. 14No dia seguinte de manhã, David escreveu uma carta a Joab e enviou-lha por Urias. 15Dizia nela: «Coloca Urias na frente, onde o combate for mais aceso, e não o socorras, para que ele seja ferido e morra.» 16Joab, que sitiava a cidade, pôs Urias no lugar onde sabia que estavam os mais valentes guerreiros do inimigo. 17Os assediados fizeram uma surtida contra Joab, e morreram alguns homens de David, entre os quais Urias, o hitita.

    Apesar de grave, o pecado de David com Betsabé, está dentro do que se poderia considerar normal no século X a. C. Se a solução tentada por David tivesse resultado, não haveria consequências de maior. Mas Urias, porque suspeitava de algo, ou por razões de ética militar, como diz a Bíblia, não cedeu às pressões do rei. Então, David recorre ao assassinato de Urias, perpetrado de modo traiçoeiro.
    O pecado foi tomando conta do rei que agiu de modo cada vez mais pérfido. Não nos escandalizemos. O pecado dá-nos a justa medida do homem. É uma realidade constante e universal. A Bíblia verifica-a e atribui-a a uma tendência que nos arrasta para o mal de modo irresistível: «Nasci na culpa, e em pecado minha mãe me concebeu» (Sl 51, 7).
    O episódio de David e Betsabé, narrado com precisão e simplicidade, acusa, sem reticências, o rei; o Primeiro livro das Crónicas, mais obsequioso em relação a David, não o refere. Mas o episódio faz parte da «História da sucessão ao trono» e visa introduzir na cena Salomão que, depois de muitas peripécias, irá sentar-se no trono de David.

    Evangelho: Mc 4, 26-34

    26Dizia ainda: «O Reino de Deus é como um homem que lançou a semente à terra. 27Quer esteja a dormir, quer se levante, de noite e de dia, a semente germina e cresce, sem ele saber como. 28A terra produz por si, primeiro o caule, depois a espiga e, finalmente, o trigo perfeito na espiga. 29E, quando o fruto amadurece, logo ele lhe mete a foice, porque chegou o tempo da ceifa.»
    30Dizia também: «Com que havemos de comparar o Reino de Deus? Ou com qual parábola o representaremos? 31É como um grão de mostarda que, ao ser deitado à terra, é a mais pequena de todas as sementes que existem; 32mas, uma vez semeado, cresce, transforma-se na maior de todas as plantas do horto e estende tanto os ramos, que as aves do céu se podem abrigar à sua sombra.»
    33Com muitas parábolas como estas, pregava-lhes a Palavra, conforme eram capazes de compreender. 34Não lhes falava senão em parábolas; mas explicava tudo aos discípulos, em particular.

    As duas parábolas, que Marcos põe na boca de Jesus, ilustram dois aspectos da inevitável tensão dialéctica do reino de Deus na história.
    A parábola da semente, que cresce sem a intervenção do agricultor, diz-nos que o Reino é uma iniciativa de Deus, que deve permanecer sempre acima de toda a tentativa humana para guiar o curso do seu crescimento e maturação. É claro que Deus conta com a colaboração humana: «O Reino de Deus é como um homem que lançou a semente à terra» (v. 26). Para sublinhar a acção de Deus, a parábola esquece diversos trabalhos necessários, à sementeira, à limpeza, à rega, etc. Mas alude ao acto de semear. É essa a tarefa dos discípulos que, depois, devem aguardar, com paciência, que a Palavra actue pela força que tem em si mesma e dê fruto no tempo e no modo que Deus quiser.
    A segunda parábola apresenta o reino como um grão de mostarda, que dá origem a um grande arbusto. Também aqui encontramos uma importante mensagem de confiança para a comunidade primitiva e para nós. Não havemos de preocupar-nos por sermos poucos e pequenos: a Palavra de Deus dará frutos incomensuráveis, não por nosso mérito, mas pela graça.
    Os vv. 33 e 34 retomam o tema das parábolas para o grande público e das explicações privadas aos discípulos.

    Meditatio

    A primeira leitura mostra-nos que, quando entramos pelo caminho do pecado, não sabemos até que ponto podemos chegar. Ao pecar com Betsabé, David inicia uma série de pecados, que termina em verdadeiras catástrofes. Não conseguindo disfarçar a primeira culpa, David trama a morte de Urias. Mais tarde, um seu filho usa de violência contra uma irmã, provocando a fúria de Absalão, que o mata. Depois, é o próprio Absalão que se revolta contra David, obrigando-o a fugir. Segue a guerra civil. Numa das batalhas, Absalão é morto pelos homens do rei. Sabemos quando começamos a pecar, mas não sabemos até onde poderão ir as consequências do nosso pecado.
    Mas, como diz S. Paulo, «onde aumentou o pecado, superabundou a graça» (Rom 5, 20). A força do pecado é nada diante da força do Reino de Deus. É o que nos diz o evangelho. O Senhor leva por diante o seu projecto de salvação, servindo-se de homens fracos e pecadores, utilizando instrumentos simples e pobres. Não nos compete decidir quando e em que medida a semente dará fruto. O crescimento acontece em segredo, enquanto nos ocupamos de outros afazeres, e é imensamente superior às nossas expectativas.
    As leituras de hoje trazem-nos uma mensagem de esperança. Foi-nos confiada uma tarefa para a qual nos sentimos inadequados. Mas a nossa acção é importante. Compete-nos espalhar a semente, difundir o evangelho, o que não é pouco. Mas não devemos cair na an
    siedade, à espera de ver os resultados. Eles não dependem de nós, e talvez jamais os vejamos neste mundo. Só no fim da nossa vida poderemos dar-nos conta dos frutos do nosso trabalho, e a colheita será uma festa, se tivermos sabido esperar serenos e confiantes a obra do Pai.
    O segredo do êxito está em confiar n´Ele, sem fugirmos às nossas responsabilidades e sem pretendermos disfarçar as nossas culpas. Onde abunda a fraqueza e o pecado, superabundará a graça.
    A missão que nos está confiada há-de ser realizada exige o reconhecimento da nossa pobreza, também moral. Somos pecadores que confiam na misericórdia de Deus. Temos consciência de sermos instrumentos fracos. Mas havemos de ir mais longe, ultrapassando todo o interesse próprio, ainda que seja o de ver os frutos do nosso apostolado. Essa pobreza libertar-nos da anisedade e estimula-nos a viver na confiança e na gratuidade do amor, como recomenda as nossas Constituições (cf. n. 46). Reconhecer a pobreza do nosso ser e do nosso futuro é renunciar à orgulhosa auto-suficiência e à desumana auto-afirmação. A pobreza evangélica, acolhida e amada, na nossa vida e no nosso apostolado, leva à exigência da confiança em Deus nosso Pai (cf. Mt 6, 25-34), Senhor da semente e da messe, nossa origem e fim último da nossa vida, que queremos servir, servindo os irmãos.

    Oratio

    Senhor da semente e da messe, dá-me uma inabalável confiança na tua palavra. Sabes quão difícil é para mim aguardar o tempo da colheita, e como gostaria de ver imediatamente o fruto dos meus trabalhos. Mas só Tu sabes a hora em que a tua palavra irá revelar o seu poder. Só Tu sabes o tempo em que hei-de empunhar a foice. A semente cresce, não pelos meus méritos, mas pela tua graça. Que eu saiba esperar com paciência o tempo do amadurecimento, respeitando os irmãos a quem falo em teu nome, sem confundir a eficácia do testemunho com o êxito das minhas iniciativas.
    Ensina-me a esperar vigilante a tua vinda, ainda que me pareça distante. Mas atrai-me para Ti, porque anseio participar na festa da colheita no teu Reino. Amen.

    Contemplatio

    Todas as belas parábolas de Nosso Senhor relativas ao reino de Deus aplicam-se também evidentemente ao reino do Sagrado Coração, que é o novo desenvolvimento do reino de Deus e da sua perfeição.
    O reino de Deus é o reino da fé e da graça; é a igreja de Cristo estendendo-se a toda a terra. Nosso Senhor descreveu os seus progressos. Será primeiro um grão de mostarda, que morrerá para dar o seu germe. Jesus, o verdadeiro grão, maravilhosamente fecundo, morreu no Calvário para dar nascimento à igreja. O seu Coração, como um grão misterioso, abriu-se, e a igreja saiu dele, simbolizada pela água e pelo sangue.
    Os apóstolos e os mártires morreram também de uma morte fecunda, para fazer nascer por toda a parte filhos da Igreja.
    É preciso que os apóstolos do Sagrado Coração sejam mártires pelo coração para estenderem pelo fruto das suas imolações o reino do Sagrado Coração. É preciso que sejam mártires pelo fogo do amor e pela espada da imolação e do sacrifício (Leão Dehon, OSP 3, p. 179).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Nem o que planta nem o que rega é alguma coisa, mas só Deus, que faz crescer» (1 Cor 3, 7).

    | Fernando Fonseca, scj |

    S. Timóteo e S. Tito, Bispos

    S. Timóteo e S. Tito, Bispos


    26 de Janeiro, 2024

    S. Timóteo nasceu em Listra. A sua mãe era hebreia e o seu pai era grego. Colaborou intimamente com S. Paulo na evangelização, mantendo por ele um afeto filial. O Apóstolo colocou-o à frente da Igreja de Éfeso.

    S. Tito, que parece vir do paganismo, tornou-se um cristão de fé sólida e um evangelizador ativo e fervoroso. Na carta que lhe é dirigida, aparece-nos como responsável pela Igreja de Creta.
    Lectio
    Primeira leitura: 2 Timóteo 1, 1-8

    Paulo, apóstolo de Jesus Cristo, por desígnio de Deus, segundo a promessa de vida que há em Cristo Jesus, 2a Timóteo, meu filho querido: graça, misericórdia e paz de Deus Pai e de Cristo Jesus, Nosso Senhor. 3Dou graças a Deus, a quem sirvo em consciência pura, como já o fizeram os meus antepassados, ao recordar-te constantemente nas minhas orações, noite e dia. 4Ao lembrar-me das tuas lágrimas, anseio ver-te, para completar a minha alegria, 5pois trago à memória a tua fé sem fingimento, que se encontrava já na tua avó Loide e na tua mãe Eunice e que, estou seguro, se encontra também em ti. 6Por isso recomendo-te que reacendas o dom de Deus que se encontra em ti, pela imposição das minhas mãos, 7pois Deus não nos concedeu um espírito de timidez, mas de fortaleza, de amor e de bom senso. 8Portanto, não te envergonhes de dar testemunho de Nosso Senhor, nem de mim, seu prisioneiro, mas compartilha o meu sofrimento pelo Evangelho, apoiado na força de Deus.

    A Segunda Carta a Timóteo é uma espécie de testamento espiritual do Apóstolo, na véspera do seu martírio. Trata-se de um escrito da escola paulina, de finais do século I. Entre expressões de afeto e de estima por Timóteo, Paulo afirma a sua condição de Apóstolo, vocação e missão a que foi chamado e às quais correspondeu generosamente. Paulo sublinha também a continuidade entre o seguimento de Jesus e a fidelidade à lei hebraica, que viveu e pregou. O mesmo sucede com Timóteo, filho de pai grego, mas iniciado ao cristianismo pela sua avó e pela sua mãe, ambas hebreias. O autor da carta acentua também o carisma de pastor de almas personificado em Timóteo, e transmitido pelo Apóstolo, através da imposição das mãos. Em todo o texto domina o testemunho dado a Cristo por Paulo nas diversas e difíceis provações por que passou, e que Timóteo deve continuar, com a graça de Deus.
    Evangelho: Lucas 10, 1-9

    Naquele tempo, designou o Senhor outros setenta e dois discípulos e enviou-os dois a dois, à sua frente, a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir. 2Disse-lhes:«A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Rogai, portanto, ao dono da messe que mande trabalhadores para a sua messe. 3Ide! Envio-vos como cordeiros para o meio de lobos. 4Não leveis bolsa, nem alforge, nem sandálias; e não vos detenhais a saudar ninguém pelo caminho. 5Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: 'A paz esteja nesta casa!' 6E, se lá houver um homem de paz, sobre ele repousará a vossa paz; se não, voltará para vós. 7Ficai nessa casa, comendo e bebendo do que lá houver, pois o trabalhador merece o seu salário. Não andeis de casa em casa. 8Em qualquer cidade em que entrardes e vos receberem, comei do que vos for servido, 9curai os doentes que nela houver e dizei-lhes: 'O Reino de Deus já está próximo de vós.'

    A obra de Jesus está internamente aberta e realiza-se através dos discípulos. Os Doze continuam a ser o fundamento de toda a missão da Igreja. Mas, juntamente com eles, e depois deles, Jesus escolheu muitos outros. A messe é grande e os trabalhadores acabam sempre por ser poucos. O nosso texto alude a setenta e dois, número de plenitude e sinal de todos os missionários posteriores que anunciam a mensagem do reino na nossa Igreja. Através desses discípulos, a missão de Jesus alcança todas as fronteiras da história, chegando à sua plenitude na grande meta da ceifa escatológica.
    Meditatio

    "Recomendo-te que reacendas o dom de Deus que se encontra em ti" (v. 6). Para nós, esse dom é a vocação cristã, primeiro anel de uma corrente de dons que Deus tem para nos dar. Podemos meditar nesse dom na perspetiva da fraternidade, sublinhando dois aspectos: a simplicidade fraterna e a fidelidade fraterna. Quanto à simplicidade fraterna, não havemos de nos julgar mais do que os outros, alimentar ambições, ser presumidos. Pelo contrário, há que fazer-nos pequenos com os outros, irmãos entre os irmãos: "Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo" (Mc 10, 43). A fraternidade cristã apoia-se numa igualdade fundamental: diante de Deus, todos somos iguais; diante dos outros, todos somos carenciados. Por isso, ninguém pode pretender ser mais do que os outros. O nosso modelo é Jesus, que se fez nosso irmão. Poderia fazer sentir o seu poder, a sua autoridade; mas preferiu estar no meio de nós como quem serve! "Pois, quem é maior: o que está sentado à mesa, ou o que serve? Não é o que está sentado à mesa? Ora, Eu estou no meio de vós como aquele que serve." (Lc 22, 27).
    A fraternidade, a simplicidade fraterna manifestam-se também como afeto fraterno. Os sentimentos recíprocos entre Paulo e Timóteo manifestam essa igualdade de afeto solidário, e não meramente jurídica: "Ao lembrar-me das tuas lágrimas, anseio ver-te, para completar a minha alegria" (v. 4). Timóteo tinha chorado quando Paulo partiu. Paulo deseja estar com os irmãos que se amam. Por vezes chama a Timóteo "irmão", mas aqui chama-o "filho querido", porque o gerou para a graça de Cristo pela pregação e pelo Batismo.
    A fraternidade inclui outro aspeto ainda mais realista e exigente: a fidelidade fraterna. Trata-se da solidariedade uns para com os outros, especialmente em momentos de crise e de sofrimento: "Vós sois os que permaneceram sempre junto de mim nas minhas provações," (Lc 22, 28), diz Jesus aos seus discípulos. É isto que faz perdurar e crescer a fraternidade. Irmão é aquele que ajuda o seu irmão. Jesus fez-se nosso irmão para nos ajudar e ajudou, mesmo à custa de muito sofrimento. Ao fazer-se nosso irmão, também quis precisar da nossa ajuda e ser ajudado por nós. Por isso, congratula-se com os apóstolos que permaneceram junto d´Ele nas suas tribulações.
    Paulo pede a Timóteo que ponha em prática, na solidariedade fraterna, essa fidelidade: "Não te envergonhes de dar testemunho de Nosso Senhor, nem de mim, seu prisioneiro, mas compartilha o meu sofrimento pelo Evangelho, apoiado na força de Deus." (v. 8).
    Havemos de sentir esta solidariedade, de modo particular, para com aqueles que têm maiores responsabilidades na Igreja. Se Jesus se fez nosso irmão, é porque quis ensinar-nos a viver esse espírito de fraternidade, sem o não é possível caminhar no amor.
    Oratio

    Senhor, bem sabes que a nossa solidariedade para com os irmãos, muitas vezes, dá lugar ao desejo de sermos os primeiros. Mesmo nas atividades pastorais, em vez de partilharmos com simplicidade e alegria as responsabilidades, muitas vezes queremos impor as nossas decisões e os nossos pontos de vista. Dá-nos um coração manso e humilde como o teu. Ajuda-nos a pôr no centro o teu Evangelho, e não as nossas convicções. Põe ordem e clareza nas motivações do nosso agir, para vencermos o nosso orgulho, mesmo quando mascarado de "boas intenções". Dá-nos a alegria de nos reconhecermos pequenos. Sê a nossa única força, e nada nos meterá medo. Ámen.
    Contemplatio

    Ó Jesus, que nos dissestes para aprendermos do vosso coração a sermos mansos e humildes, tornai o nosso coração semelhante ao vosso! Como é manso e humilde o Menino divino de Belém e de Nazaré! É o seu carácter próprio, é o estilo da sua vida. Na sua vida pública, é manso e bom para com todos. Isaías tinha-o descrito (42, 1), e Jesus deleitava-se a reler este quadro na sinagoga: «Eis o meu Filho bem amado, que não gosta das querelas, dos gritos, do barulho das praças, não quebra a cana rachada e não extingue a mexa que ainda fumega...». Jeremias tinha-o apresentado como um cordeiro cheio de mansidão... S. João chama-o o Cordeiro que é sacrificado desde a origem do mundo. Quando entra em Jerusalém sobre a sua modesta montada, é o Rei de mansidão predito por Isaías e Zacarias (Mt 21). Na sua paixão, a sua mansidão traduz-se pelo seu silêncio e pela sua paciência. A mansidão, diz S. Paulo, é fruto do Espírito Santo, com as virtudes que se lhe assemelham: a paz, a benignidade, a bondade (Gal 5, 22). A caridade é mansa, benevolente, amável, S. Paulo repete a todas as Igrejas: aos Efésios, aos Gálatas, aos Coríntios. Recomenda a Timóteo para ser manso para com todos, paciente e modesto, como convém a um bom servidor de Deus (2Tim 2, 24). O homem manso será bem-aventurado, porque Deus o abençoará, mas também porque ganhará facilmente os corações e não terá inimigos. (L. Dehon, OSP 4, p. 36s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Reacende o dom de Deus que há em ti" (cf. 2 Tm 1, 6).

     

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    S. Timóteo e S. Tito, Bispos (26 Janeiro)

  • III Semana - Sábado - Tempo Comum - Anos Pares

    III Semana - Sábado - Tempo Comum - Anos Pares

    27 de Janeiro, 2024

    Tempo Comum - Anos Pares
    III Semana - Sábado
    Lectio

    Primeira leitura: 2 Samuel 12, 1-7a.10-17

    1O Senhor enviou então Natan a David. Logo que entrou no palácio, Natan disse-lhe: «Dois homens viviam na mesma cidade, um rico e outro pobre. 2O rico tinha ovelhas e bois em grande quantidade; 3o pobre, porém, tinha apenas uma ovelha pequenina, que comprara. Criara-a, e ela crescera junto dele e dos seus filhos, comendo do seu pão, bebendo do seu copo e dormindo no seu seio; era para ele como uma filha. 4Certo dia, chegou um hóspede a casa do homem rico, o qual não quis tocar nas suas ovelhas nem nos seus bois para preparar o banquete e dar de comer ao hóspede que chegara; mas foi apoderar-se da ovelhinha do pobre e preparou-a para o seu hóspede.» 5David, indignado contra tal homem, disse a Natan: «Pelo Deus vivo! O homem que fez isso merece a morte. 6Pagará quatro vezes o valor da ovelha, por ter feito essa maldade e não ter tido compaixão.» 7Natan disse a David: «Esse homem és tu! Isto diz o Senhor, Deus de Israel: 'Ungi-te rei de Israel, salvei-te das mãos de Saul, 10Por isso, jamais se afastará a espada da tua casa, porque me desprezaste e tomaste a mulher de Urias, o hitita, para fazer dela tua esposa'. 11Eis, pois, o que diz o Senhor: 'Vou fazer sair da tua própria casa males contra ti. Tomarei as tuas mulheres diante dos teus olhos e hei-de dá-las a outro, que dormirá com elas à luz do Sol! 12Pois tu pecaste ocultamente; mas Eu farei o que digo diante de todo o Israel e à luz do dia!'» 13David disse a Natan: «Pequei contra o Senhor.» Natan respondeu-lhe: «O Senhor perdoou o teu pecado. Não morrerás. 14Todavia, como ofendeste gravemente o Senhor com a acção que fizeste, morrerá certamente o filho que te nasceu.» 15E Natan voltou para sua casa. O Senhor feriu o menino que a mulher de Urias havia dado a David com uma doença grave. 16David orou a Deus pelo menino; jejuou e passou a noite prostrado por terra. 17Os anciãos da sua casa, de pé junto dele, pediam-lhe que se levantasse do chão, mas ele não o quis fazer nem tomar com eles alimento algum.

    Morto Urias, David tomou para si Betsabé. Tudo parecia correr bem a David. Mas Deus está atento e vê tudo, não só os planos mais secretos do homem, mas também o que se passa no seu coração. Natan, enviado por Deus ao rei, denuncia-lhe os crimes, recorrendo à célebre parábola do homem rico, que toma para si a única ovelha do seu vizinho pobre. David, rei justo, não hesita em pronunciar, indignado, a sentença condenatória. Só que o profeta remata, dizendo: «Esse homem és tu!». David reconhece o seu pecado e a súplica de arrependimento, que brota do seu coração, encontra expressão no Salmo 50, certamente posterior, mas acertadamente posto na boca do rei pecador.
    Mas o drama continua. Deus perdoa a David. Não o rejeita como fez com Saul. Mas não faltará o castigo: a criança, filha do adultério, adoece e morre, tal como hão-de morrer de forma violenta outros filhos de David (Amnon, Absalão, Adonias...). Todavia a oração, que brota dos lábios de David, revela, não só o seu amor pelo filho, e por Betsabé, mas também a confiança do rei na oração: clama, geme, jejua, prostra-se por terra e tenta forçar, qual novo Abraão, a misericórdia de Deus.

    Evangelho: Mc 4, 35-41

    35Naquele dia, ao entardecer, disse: «Passemos para a outra margem.» 36Afastando-se da multidão, levaram-no consigo, no barco onde estava; e havia outras embarcações com Ele. 37Desencadeou-se, então, um grande turbilhão de vento, e as ondas arrojavam-se contra o barco, de forma que este já estava quase cheio de água. 38Jesus, à popa, dormia sobre uma almofada. 39Acordaram-no e disseram-lhe: «Mestre, não te importas que pereçamos?» Ele, despertando, falou imperiosamente ao vento e disse ao mar: «Cala-te, acalma-te!» O vento serenou e fez-se grande calma. 40Depois disse-lhes: «Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» 41E sentiram um grande temor e diziam uns aos outros: «Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?»

    À proclamação do Reino de Deus, em parábolas, segue a apresentação dos benefícios dessa proclamação. É o que faz Marcos na nova secção do seu evangelho, onde apresenta quatro milagres, a começar pela tempestade acalmada (vv. 37ss.). A Boa Nova da Salvação atinge o homem todo, toda a sua existência: Jesus salva e cura os homens das mais diversas ameaças que estão a ponto de «alienar» a sua vida. É interessante notar o contraste entre a serenidade de Jesus, que dorme, e a ansiedade dos discípulos, que lutam bravamente contra as ondas e o vento. Parecem inverter-se os papéis: Jesus confia nos marinheiros e estes, angustiados, não revelam confiança em Jesus: «não te importas que pereçamos?» (v. 38). Quando Jesus finalmente intervém, calam-se o vento e o mar, e calam-se os aterrorizados marinheiros. Nem respondem às perguntas de Jesus: «Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?». O medo dos discípulos indica falta de fé. A intervenção de Jesus transforma-lhes o medo em temor de Deus. O poder manifestado por Jesus fê-los intuir a presença de Deus junto deles. E começam a dar-se conta da verdadeira identidade do seu Mestre.

    Meditatio

    Se o pecado ou, melhor, os vários pecados de David nos deixaram horrorizados, o seu arrependimento sincero causa-nos admiração.
    Deus serviu-se de Natan, e da sua sábia pedagogia, para levar o rei a reconhecer o seu pecado. David escuta a história do homem rico, abençoado por Deus com muitos rebanhos, e que, para oferecer uma refeição a um amigo que o visita, rouba a única ovelha de um homem pobre. Como rei justo, não hesita em pronunciar a sentença: «Pelo Deus vivo! O homem que fez isso merece a morte. 6Pagará quatro vezes o valor da ovelha, por ter feito essa maldade e não ter tido compaixão» (2 Sam 12, 5-6). É nesse momento que o profeta pronuncia a sua acusação: «Esse homem és tu!» (2 Sam 12, 7). Ele, David, era o criminoso que acabava de condenar. Ele, que Deus cumulara de bens, tinha roubado o único tesouro de Urias, a sua mulher. Natan, enviado de Deus, levou o rei a tomar consciência do seu crime, e anunciou-lhe o castigo. David não tentou desculpar-se ou fugir à condenação mas confessou: «Pequei contra o Senhor» (2 Sam 12, 13). Assim alcançou o perdão dos seus pecados e uma nova relação com o Senhor, bem expressa o Salmo 50.
    A nossa familiaridade com Deus, não nos põe ao abrigo de momentos de hesitação e de dúvida, como nos mostra o evangelho. Podemos até cair na ilusão de que, tendo-O por companheiro, Ele nos livra de situações difíceis. Os discípulos talvez tivessem caído nessa ilusão. Uma tempestade forte fê-los acordar, pondo em crise a sua confiança no Mestre: «não te importas
    que pereçamos?»
    Quantas vezes, no aconchego da comunidade bem organizada, protegidos pela assiduidade aos ritos, nos sentimos tranquilos e ao abrigo de situações difíceis. «O Senhor está connosco; que nos pode acontecer?» - pensamos. E julgamos ter muita fé e muita confiança em Deus. Mas, à primeira dificuldade, ao primeiro fracasso, repreendemo-lo, como se nos tivesse abandonado.

    As fragilidades, as incertezas, as dúvidas, o pecado, não são coisas só dos «outros». São também nossas. Também nós somos discípulos assustados e medrosos! Também nós somos pecadores como David.
    Um monge do deserto disse que o primeiro degrau para ascender à santidade é reconhecer-se pecador. Esse reconhecimento é já resposta a uma graça, pois não seria possível sem a ajuda de Deus. É um modo de agir da sua misericórdia, que, para isso, às vezes se serve de um acontecimento ou da intervenção de alguém com quem nos encontramos e que, com uma palavra, nos leva a abrir os olhos para a nossa realidade. Se acolhermos essa graça, podemos iniciar uma nova fase de crescimento espiritual.
    Deus é Pai. Deus é amor... e nunca é tão Pai e tão amor como quando perdoa. Pensemos, comovidos, na parábola do filho pródigo ou, melhor, do Pai pródigo na bondade, na misericórdia, no perdão, no amor.
    Um escritor moderno disse muito bem: "Se não fôssemos pecadores, carecidos de perdão mais que de pão, não conheceríamos a profundidade do coração de Deus". E é famosa a asserção de Bossuet: "O dar ou aumentar a graça numa alma é uma maravilha maior do que criar o mundo". Tudo isto acontece, para nós, hoje, no sacramento da reconciliação.

    Oratio

    Abre, Senhor, os meus olhos, para que veja a minha fragilidade, o meu orgulho, o meu pecado. Quantas vezes, me sinto justo como David prepotente e pecador. Quantas vezes, me sinto vaidoso porque navego numa barca onde Tu estás presente, a Igreja, contra a qual não hão-de prevalecer as portas do inferno, como se isso fosse uma garantia e uma graça que eu mereço. Ensina-me que o Evangelho é uma graça a partilhar, e não um tesouro a guardar só para mim. Ampara-me nas tentações e dificuldades, para que não me julgue abandonado pelo teu poder e esquecido do teu amor. Amen.

    Contemplatio

    Margarida Maria, muito assídua à permanência no Coração de Jesus, tomava lá funções muito variadas, considerando-se aí ora como discípula na escola do divino Coração, ora como uma doente no hospício, ou uma cativa na prisão do amor, ou uma mendiga no palácio do rei. Mas o mais das vezes vê no Coração de Jesus um lugar de refúgio, um porto de segurança, uma cidadela de protecção contra os inimigos da salvação, um asilo para os pecadores.
    «É preciso retirar-nos, diz, para a chaga do Sagrado Coração como um pobre viajante que procura um porto seguro para se colocar ao abrigo dos escolhos e das tempestades do mar tempestuoso do mundo, onde estamos expostos a um contínuo naufrágio. - O Coração adorável é um delicioso retiro onde vivemos ao abrigo de todas as tempestades. - Este divino Coração é como um forte inexpugnável contra os assaltos do inimigo».
    O Sagrado Coração é o asilo da misericórdia e do perdão: «Os pecadores, diz Nosso Senhor, encontrarão no meu coração o oceano infinito da misericórdia». - «Que podeis temer em irdes lá, diz Margarida Maria, uma vez que ele vos convida a lá irdes? Não é ele o trono da misericórdia onde os miseráveis são os mais bem recebidos, desde que o amor os apresente no abismo da sua miséria?». - «O Pai eterno, por um excesso de misericórdia, fez deste ouro precioso uma moeda inapreciável, marcado no cunho da sua divindade, para que os homens com ela possam pagar as suas dívidas e negociar o grande assunto da sua salvação eterna». - «Permanecereis no Sagrado Coração de Jesus como um criminoso que, pelos desgostos e pela dor das suas faltas, deseja apaziguar o seu juiz fechando-se nesta prisão de amor». - «Deu-me a conhecer que o seu Sagrado Coração é o Santo dos Santos, que queria que fosse conhecido agora para ser o mediador entre Deus e os homens, porque é todo-poderoso para fazer a sua paz e para obter misericórdia» (Leão Dehon, OSP 3, 676s.).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Pequei contra o Senhor» (2 Sam 12, 13).

    | Fernando Fonseca, scj |

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