Events in Março 2023

  • 02º Domingo da Quaresma - Ano A

    02º Domingo da Quaresma - Ano A


    5 de Março, 2023

    ANO A
    2º DOMINGO DA QUARESMA

    Tema do 2º Domingo da Quaresma

    No segundo Domingo da Quaresma, a Palavra de Deus define o caminho que o verdadeiro discípulo deve seguir: é o caminho da escuta atenta de Deus e dos seus projectos, da obediência total e radical aos planos do Pai.
    O Evangelho relata a transfiguração de Jesus. Recorrendo a elementos simbólicos do Antigo Testamento, o autor apresenta-nos uma catequese sobre Jesus, o Filho amado de Deus, que vai concretizar o seu projecto libertador em favor dos homens através do dom da vida. Aos discípulos, desanimados e assustados, Jesus diz: o caminho do dom da vida não conduz ao fracasso, mas à vida plena e definitiva. Segui-o, vós também.
    Na primeira leitura apresenta-se a figura de Abraão. Abraão é o homem de fé, que vive numa constante escuta de Deus, que sabe ler os seus sinais, que aceita os apelos de Deus e que lhes responde com a obediência total e com a entrega confiada. Nesta perspectiva, ele é o modelo do crente que percebe o projecto de Deus e o segue de todo o coração.
    Na segunda leitura, há um apelo aos seguidores de Jesus, no sentido de que sejam, de forma verdadeira, empenhada e coerente, as testemunhas do projecto de Deus no mundo. Nada - muito menos o medo, o comodismo e a instalação - pode distrair o discípulo dessa responsabilidade.

    LEITURA I - Gen 12,1-4

    Leitura do Livro do Génesis

    Naqueles dias,
    o Senhor disse a Abrão:
    «Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai
    e vai para a terra que Eu te indicar.
    Farei de ti uma grande nação e te abençoarei;
    engrandecerei o teu nome e serás uma bênção.
    Abençoarei a quem te abençoar,
    amaldiçoarei a quem te amaldiçoar;
    por ti serão abençoadas todas as nações da terra».
    Abrão partiu, como o Senhor lhe tinha ordenado.

    AMBIENTE

    A primeira leitura de hoje faz parte de um bloco de textos a que se dá o nome genérico de "tradições patriarcais" (cf. Gn 12-36). Trata-se de um conjunto de relatos singulares, originalmente independentes uns dos outros, sem grande unidade e sem carácter de documento histórico. Nesses capítulos aparecem, de forma indiferenciada, "mitos de origem" (descreviam a "tomada de posse" de um lugar pelo patriarca do clã), "lendas cultuais" (narravam como um deus tinha aparecido nesse lugar ao patriarca do clã), indicações mais ou menos concretas sobre a vida dos clãs nómadas que circularam pela Palestina durante o 2º milénio e reflexões teológicas posteriores destinadas a apresentar aos crentes israelitas modelos de vida e de fé.
    Por detrás do quadro teológico e catequético que nos é proposto, estão as migrações históricas de povos nómadas, antepassados do povo bíblico, nos inícios do 2º milénio a.C. Por essa época, a história regista um forte movimento migratório de povos amorreus entre a Mesopotâmia e o Egipto, passando pela terra de Canaan. São povos que não conseguiram fixar-se na Mesopotâmia (ou que tiveram de a abandonar por causa de convulsões políticas registadas nessa zona no início do 2º milénio) e que continuaram o seu caminho migratório, à procura de uma terra onde "plantar definitivamente a sua tenda", de forma a escapar aos perigos e incomodidades da vida nómada. Os nossos patriarcas bíblicos fazem, provavelmente, parte dessa onda migratória.
    Os clãs referenciados nas "tradições patriarcais" - nomeadamente os de Abraão, Isaac e Jacob - tinham os seus sonhos e esperanças. O denominador comum desses sonhos era a esperança de encontrar uma terra fértil e bem irrigada, bem como possuir uma família forte e numerosa que perpetuasse a "memória" da tribo e se impusesse aos inimigos. O deus aceite pelo grupo era o potencial concretizador desse ideal.

    MENSAGEM

    Nos capítulos anteriores (cf. Gn 3-11), o autor descreveu uma humanidade que escolheu o pecado e que se afastou de Deus; agora, o autor vai apresentar um novo ponto de partida: Deus ainda não desistiu da humanidade e continua a querer construir com ela uma história de salvação. Para isso, interpela directamente um homem no meio de uma multidão de nações. Esta "eleição" não é um privilégio, mas um convite a realizar uma tarefa difícil: ser um sinal de Deus no meio dos homens.
    O tema central do nosso texto é a interpelação de Deus a Abraão. Segundo o teólogo jahwista, Deus chamou Abraão, convidou-o a deixar a sua terra e a sua família e a partir ao encontro de uma outra terra; ligado a este convite, aparece uma bênção e a promessa de a família de Abraão se tornar uma grande nação. Porquê esta iniciativa de Deus? Porquê o chamamento a este homem, em particular? O catequista jahwista não dá qualquer tipo de explicação. Temos aqui um exemplo perfeito desse mistério, sempre novo e sempre sem explicação, chamado "vocação".
    Como é que Abraão reage ao chamamento de Deus? É preciso ter em conta que, para os antigos, abandonar a terra (o horizonte natural onde o clã vive e onde tem as suas referências - inclusive em termos de paisagem), a pátria (isto é, o espaço onde o clã encontra o afecto e a solidariedade e, além disso, o seu espaço protegido por usos, leis e costumes) e a família (o círculo familiar íntimo, onde o homem encontra o apoio e o seu complemento), era pouco menos do que irrealizável. Abraão será capaz de arriscar tudo, deixando o seguro para apostar em algo nebuloso e incerto?
    Diante do desafio de Deus, Abraão permanece mudo, sem discutir nem objectar. Com consumada mestria, o autor jahwista limita-se a descrever a sequência dos acontecimentos, como se as acções de Abraão valessem por mil explicações: o patriarca, simplesmente, pôs-se a caminho. O verbo "yalak" utilizado no vers. 4 ("ir", "partir", "pôr-se a caminho") tem uma força extraordinária e expressa a audácia do crente que é capaz de arriscar tudo, de deixar o seguro para apostar em algo que não é certo, confiando apenas na Palavra de Deus. Trata-se de um rasgo maravilhoso, que define uma atitude de fé radical, de confiança total, de obediência incondicional aos desígnios de Deus. Esta é uma das passagens onde o que se conta de Abraão tem um valor de modelo: o autor jahwista pretende ensinar aos seus concidadãos a obediência cega às propostas de Deus.
    Deus, por sua vez, compromete-se com Abraão e acena-lhe com uma promessa. A promessa expressa-se, neste contexto, através da bênção (a raiz "abençoar" é repetida cinco vezes, nestes poucos versículos). A bênção é uma comunicação de vida, atrav
    és da qual Deus realiza a sua promessa de salvação. Na promessa aqui formulada, a bênção concretiza-se como descendência numerosa (noutros textos das "tradições patriarcais", a bênção de Deus é, além da descendência numerosa, promessa de uma terra).
    Particularmente importante, neste contexto da promessa é a ideia de que o Povo nascido de Abraão será uma fonte de bênção para todas as nações (vers. 3c): inaugura-se, aqui, a ideia de que Israel é o centro do mundo e de que a sua "vocação" é ser testemunha da salvação de Deus diante de todos os povos da terra. Não se trata de um privilégio concedido a Israel, mas de uma responsabilidade.

    ACTUALIZAÇÃO

    Na reflexão e partilha, considerar os seguintes dados:

    • A figura de Abraão que nos foi apresentada pelos catequistas de Israel tem sido, ao longo dos tempos, uma figura inspiradora para todos os crentes. Abraão é o homem que encontra Deus, que está atento aos seus sinais e sabe interpretá-los, que responde aos desafios de Deus com uma obediência total e com uma entrega confiada... Esta figura constitui uma interpelação muito forte a esse homem moderno que nunca tem tempo para encontrar Deus nem para perceber os seus sinais, pois está demasiado ocupado a ganhar dinheiro ou a construir a carreira profissional. Eu tenho tempo para me encontrar com Deus, para aprofundar a comunhão com Ele? Preocupo-me em detectar a sua presença, as suas indicações e propostas nos acontecimentos do dia a dia? A minha resposta aos seus desafios é um "sim" incondicional, ou é uma procura de razões para justificar os meus pontos de vista e esquemas pessoais?

    • A figura de Abraão questiona, também, o homem instalado e comodista, que prefere apostar na segurança do que já tem, em vez de arriscar na novidade de Deus, ou deixar que a Palavra de Deus ponha em causa os seus velhos hábitos, a sua forma de vida e a sua instalação. Estou disposto a mudar, a "pôr-me a caminho" em direcção a essa terra nova da vida plena e autêntica, ou prefiro continuar prisioneiro dos meus esquemas pré-concebidos, dos meus medos, dos meus velhos hábitos, das minhas velhas formas de pensar, de agir e de julgar os outros?

    • Este texto diz-nos, também, que por detrás da história da humanidade há um Deus que tem um projecto para os homens e para o mundo e que esse projecto é de amor e de salvação... Apesar de os homens O ignorarem e prescindirem das suas orientações e propostas, Deus continua a vir ao seu encontro, a desafiá-los a caminhar em direcção ao novo, a propor-lhes ir mais além. O homem, por sua vez, é convidado a participar neste projecto, por meio da fé (entendida como adesão plena aos planos de Deus). Estou disposto a colaborar com esse Deus que tem um plano para o mundo e para os homens e a embarcar com Ele na construção de um mundo mais feliz?

    SALMO RESPONSORIAL - SALMO 32 (33)

    Refrão 1: Esperamos, Senhor, na vossa misericórdia.

    Refrão 2: Desça sobre nós a vossa misericórdia,
    porque em Vós esperamos, Senhor.

    A palavra do Senhor é recta,
    na fidelidade nascem as suas obras.
    Ele ama a justiça e a rectidão:
    a terra está cheia da bondade do Senhor.

    Os olhos do Senhor estão voltados para os que O temem,
    para os que esperam na sua bondade,
    para libertar da morte as suas almas
    e os alimentar no tempo da fome.

    A nossa alma espera o Senhor:
    Ele é o nosso amparo e protector.
    Venha sobre nós a vossa bondade,
    porque em Vós esperamos, Senhor.

    LEITURA II - 2 Tim 1,8b-10

    Leitura da Segunda Epístola do apóstolo São Paulo a Timóteo

    Caríssimo:
    Sofre comigo pelo Evangelho, apoiado na força de Deus.
    Ele salvou-nos e chamou-nos à santidade,
    não em virtude das nossas obras,
    mas do seu próprio desígnio e da sua graça.
    Esta graça, que nos foi dada em Cristo Jesus,
    desde toda a eternidade
    manifestou-se agora pelo aparecimento
    de Cristo Jesus, nosso Salvador,
    que destruiu a morte
    e fez brilhar a vida e a imortalidade,
    por meio do Evangelho.

    AMBIENTE

    Segundo os Actos dos Apóstolos, Paulo encontrou Timóteo em Listra, cidade da Licaónia, no decurso da sua segunda viagem missionária. Filho de pai grego e de mãe judeo-cristã, Timóteo devia ser ainda bastante jovem, nessa altura (cf. Act 16,1). No entanto, Paulo não hesitou em levá-lo consigo através da Ásia Menor, da Macedónia e da Grécia. Tímido e reservado, de saúde delicada (em 1 Tim 5,23 Paulo aconselha: "não continues a beber só água, mas mistura-a com um pouco de vinho, por causa do teu estômago e das tuas frequentes indisposições), Timóteo tornou-se um companheiro fiel e discreto do apóstolo no trabalho missionário. Para não ter problemas com os judeus, Paulo fê-lo circuncidar (cf. Act 16,3); e, numa data desconhecida para nós, Timóteo recebeu dos anciãos a "imposição das mãos" (cf. 1 Tim 4,14) que o designava como enviado da comunidade para anunciar o Evangelho de Jesus.
    A actividade de Timóteo está bastante ligada a Paulo, como o demonstram as contínuas referências que Paulo lhe faz nos seus escritos. Com ternura, Paulo refere-se a Timóteo como o "nosso irmão, colaborador de Deus na pregação do Evangelho de Cristo" (1 Tes 3,2); e faz referências a Timóteo nas Cartas aos Tessalonicenses (cf. 1 Tes 11,1; 2 Tes 1,1), na 2 Coríntios (cf. 2 Cor 1,1), na Carta aos Romanos (cf. Rom 16,21), na Carta aos Filipenses (cf. Flp 1,1), na Carta aos Colossenses (cf. Col 1,1) e na Carta a Filémon (cf. Flm 1). Encarregou-o, também, de missões particulares entre os Tessalonicenses (cf. 1 Tes 3,2.6) e entre os Coríntios (cf. 1 Cor 4,17).
    Em relação à segunda Carta a Timóteo há, no entanto, um problema sério: a maioria dos comentadores considera esta carta posterior a Paulo (o mesmo acontece com a 1 Timóteo e com a Carta a Tito), sobretudo por aí aparecer um modelo de organização da Igreja que parece ser de uma época tardia, isto é, de finais do séc. I ou princípios do séc. II). A questão continua em aberto.
    Timóteo é, por esta altura, bispo de Éfeso, na costa ocidental da Ásia Menor. Estão a começar as grandes perseguições; muitos cristãos estão desanimados e vacilam na fé. É preciso que os líderes das comunidades - entre os quais está Timóteo - mantenham o ânimo e ajudem as comunidades a enfrentar, com fortaleza, as dificuldades que se avizinham.

    MENSAGEM

    O nosso texto apresenta-se como uma exortação de Paulo a Timóteo, convidando-o a superar a sua juventude e timidez e a ser um modelo de fidelidade e de fortaleza no t
    estemunho da fé.
    O autor da segunda Carta a Timóteo apresenta os motivos que devem impulsionar Timóteo a cumprir com fidelidade a sua missão apostólica. Neste texto que nos é proposto, em concreto, o autor da carta recorda a Timóteo o projecto salvífico de Deus que, de forma gratuita, quer salvar os homens e chamá-los à santidade (cf. 2 Tim 1,9). Esse projecto manifestou-se em Jesus Cristo, o libertador, que destruiu a morte e o pecado e ofereceu a todos os homens a vida plena e definitiva (cf. 2 Tim 1,9-10). Ora Paulo (nesta altura prisioneiro por causa do Evangelho), Timóteo e todos os outros são as testemunhas deste projecto de Deus e não podem ficar calados diante do enfraquecimento da vida cristã que se constata nas comunidades; mesmo no meio das perseguições e dificuldades, eles não podem demitir-se da missão que Deus lhes confiou... Têm de ser testemunhas vivas, entusiastas e corajosas do projecto salvífico e amoroso de Deus.

    ACTUALIZAÇÃO

    A reflexão pode partir dos seguintes dados:

    • Mais uma vez somos convidados a recordar que Deus tem um projecto de salvação e de vida plena para os homens, para todos os homens. Quase todos os domingos, a Palavra de Deus convida-nos a tomar consciência desse facto; mas nunca é demais lembrá-lo, até porque os homens do nosso tempo tendem a esquecer Deus e a viver sem a consciência da sua presença, do seu amor, da sua preocupação com a nossa vida, a nossa realização, a nossa felicidade. Se tivéssemos sempre consciência de que temos um lugar cativo no projecto de Deus e que o próprio Deus está a velar pela nossa realização e pela nossa felicidade, certamente a vida teria um outro sentido e no nosso coração haveria mais serenidade, mais paz, mais esperança.

    • Também é preciso termos consciência de que nós, os crentes, somos, aqui e agora, as testemunhas vivas de Deus e do seu projecto para os homens e para o mundo. Nada - e muito menos o nosso comodismo e instalação - pode distrair-nos dessa responsabilidade. Os homens, nossos irmãos, têm de encontrar em nós - e particularmente naqueles a quem foi confiada a missão de animar e orientar a comunidade - sinais vivos de Deus, do seu amor, da sua bondade e ternura, da sua preocupação com os homens.

    • É verdade que não é fácil ser testemunha de Deus e do seu projecto. O mundo de hoje tende a ignorar os apelos de Deus ou até manifesta desprezo pelos valores do Evangelho (esses valores que temos de testemunhar, a fim de sermos sinais do mundo novo que Deus quer propor aos homens). No entanto, as dificuldades não podem ser uma desculpa para nos demitirmos das nossas responsabilidades e de levarmos a sério a vocação a que Deus nos chama.

    ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO

    Escolher um dos refrães:

    Refrão 1: Louvor e glória a Vós, Jesus Cristo, Senhor.
    Refrão 2: Glória a Vós, Jesus Cristo, Sabedoria do Pai.
    Refrão 3: Glória a Vós, Jesus Cristo, Palavra do Pai.
    Refrão 4: Glória a Vós, Senhor, Filho do Deus vivo.
    Refrão 5: Louvor a Vós, Jesus Cristo, Rei da eterna glória.
    Refrão 6: Grandes e admiráveis são as vossas obras, Senhor.
    Refrão 7: A salvação, a glória e o poder a Jesus Cristo, Nosso Senhor.

    No meio da nuvem luminosa, ouviu-se a voz do Pai:
    «Este é o meu Filho muito amado: escutai-O».

    EVANGELHO - Mt 17,1-9

    Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

    Naquele tempo,
    Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João seu irmão
    e levou os, em particular, a um alto monte
    e transfigurou Se diante deles:
    o seu rosto ficou resplandecente como o sol
    e as suas vestes tornaram se brancas como a luz.
    E apareceram Moisés e Elias a falar com Ele.
    Pedro disse a Jesus:
    «Senhor, como é bom estarmos aqui!
    Se quiseres, farei aqui três tendas:
    uma para Ti, outra para Moisés a outra para Elias».
    Ainda ele falava,
    quando uma nuvem luminosa os cobriu com a sua sombra
    e da nuvem uma voz dizia:
    «Este é o meu Filho muito amado,
    no qual pus toda a minha complacência. Escutai O».
    Ao ouvirem estas palavras,
    os discípulos caíram de rosto por terra a assustaram se muito.
    Então Jesus aproximou se e, tocando os, disse:
    «Levantai vos e não temais».
    Erguendo os olhos, eles não viram mais ninguém, senão Jesus.
    Ao descerem do monte, Jesus deu lhes esta ordem:
    «Não conteis a ninguém esta visão,
    até o Filho do homem ressuscitar dos mortos».

    AMBIENTE

    A secção de Mt 16,21-20,34 é uma catequese sobre o discipulado, como seguimento de Jesus até à cruz. O texto que hoje nos é proposto faz parte dessa catequese.
    O relato da transfiguração de Jesus é antecedido do primeiro anúncio da paixão (cf. Mt 16,21-23) e de uma instrução sobre as atitudes próprias do discípulo (convidado a renunciar a si mesmo, a tomar a sua cruz e a seguir Jesus no seu caminho de amor e de entrega da vida - cf. Mt 16,24-28). Depois de terem ouvido falar do "caminho da cruz" e de terem constatado aquilo que Jesus pede aos que o querem seguir, os discípulos estão desanimados e frustrados, pois a aventura em que apostaram parece encaminhar-se para um rotundo fracasso; eles vêem esfumar-se - nessa cruz que irá ser plantada numa colina de Jerusalém - os seus sonhos de glória, de honras, de triunfos e perguntam-se se vale a pena seguir um mestre que nada mais tem para oferecer do que a morte na cruz.
    É neste contexto que Mateus coloca o episódio da transfiguração. A cena constitui uma palavra de ânimo para os discípulos (e para os crentes, em geral), pois nela manifesta-se a glória de Jesus e atesta-se que Ele é - apesar da cruz que se aproxima - o Filho amado de Deus. Os discípulos recebem, assim, a garantia de que o projecto que Jesus apresenta é um projecto que vem de Deus; e, apesar das suas próprias dúvidas, recebem um complemento de esperança que lhes permite "embarcar" e apostar nesse projecto.
    Literariamente, a narração da transfiguração é uma teofania - quer dizer, uma manifestação de Deus. Portanto, o autor do relato vai colocar no quadro que descreve todos os ingredientes que, no imaginário judaico, acompanham as manifestações de Deus (e que encontramos quase sempre presentes nos relatos teofânicos do Antigo Testamento): o monte, a voz do céu, as aparições, as vestes brilhantes, a nuvem e mesmo o medo e a perturbação daqueles que presenciam o encontro com o divino. Isto quer dizer o seguinte: não estamos diante de um relato fotográfico de acontecimentos, mas de uma catequese (construída de acordo com o imaginário judaico) destinada a ensinar que Jesus é o Filho amado de Deus, que traz aos homens um projecto que vem de Deus.

    MENSAGEM

    Esta página de catequese, destinada a ensinar que Jesus é o Filho de Deus e que o projecto que Ele propõe vem de Deus, está construída sobre elementos simbólicos tirados do Antigo Testamento. Que elementos são esses?
    O monte situa-nos num contexto de revelação: é sempre num monte que Deus Se revela; e, em especial, é no cimo de um monte que Ele faz uma aliança com o seu Povo.
    A mudança do rosto e as vestes de brancura resplandecente recordam o resplendor de Moisés, ao descer do Sinai (cf. Ex 34,29), depois de se encontrar com Deus e de ter as tábuas da Lei.
    A nuvem, por sua vez, indica a presença de Deus: era na nuvem que Deus manifestava a sua presença, quando conduzia o seu Povo através do deserto (cf. Ex 40,35; Nm 9,18.22; 10,34).
    Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas (que anunciam Jesus e que permitem entender Jesus); além disso, são personagens que, de acordo com a catequese judaica, deviam aparecer no "dia do Senhor", quando se manifestasse a salvação definitiva (cf. Dt 18,15-18; Mal 3,22-23).
    O temor e a perturbação dos discípulos são a reacção lógica de qualquer homem ou mulher diante da manifestação da grandeza, da omnipotência e da majestade de Deus (cf. Ex 19,16; 20,18-21).
    As tendas parecem aludir à "festa das tendas", em que se celebrava o tempo do êxodo, quando o Povo de Deus habitou em "tendas", no deserto.
    A mensagem fundamental, amassada com todos estes elementos, pretende dizer quem é Jesus. Recorrendo a simbologias do Antigo Testamento, o autor deixa claro que Jesus é o Filho amado de Deus, em quem se manifesta a glória do Pai. Ele é, também, esse Messias libertador e salvador esperado por Israel, anunciado pela Lei (Moisés) e pelos Profetas (Elias). Mais ainda: ele é um novo Moisés - isto é, aquele através de quem o próprio Deus dá ao seu Povo a nova lei e através de quem Deus propõe aos homens uma nova aliança.
    Da acção libertadora de Jesus, o novo Moisés, irá nascer um novo Povo de Deus. Com esse novo Povo, Deus vai fazer uma nova aliança; e vai percorrer com ele os caminhos da história, conduzindo-o através do "deserto" que leva da escravidão à liberdade.
    Esta apresentação tem como destinatários os discípulos de Jesus (esse grupo desanimado e frustrado porque no horizonte próximo do seu líder está a cruz e porque o mestre exige dos discípulos que aceitem percorrer um caminho semelhante). Aponta para a ressurreição, aqui anunciada pela glória de Deus que se manifesta em Jesus, pelas vestes resplandecentes (que lembram as vestes resplandecentes dos anjos que anunciam a ressurreição - cf. Mt 28,3) e pelas palavras finais de Jesus ("não conteis a ninguém esta visão, até o Filho do Homem ressuscitar dos mortos" - Mt 17,9): diz-lhes que a cruz não será a palavra final, pois no fim do caminho de Jesus (e, consequentemente, dos discípulos que seguirem Jesus) está a ressurreição, a vida plena, a vitória sobre a morte.
    Uma palavra final para o desejo - manifestado por Pedro - de construir três tendas no cimo do monte, como se pretendesse "assentar arraiais" naquele quadro. O pormenor pode significar que os discípulos queriam deter-se nesse momento de revelação gloriosa, ignorando o destino de sofrimento de Jesus. Jesus nem responde à proposta: Ele sabe que o projecto de Deus - esse projecto de construir um novo Povo de Deus e levá-lo da escravidão para a liberdade - tem de passar pelo caminho do dom da vida, da entrega total, do amor até às últimas consequências.

    ACTUALIZAÇÃO

    A reflexão pode fazer-se partindo das seguintes questões:

    • A questão fundamental expressa no episódio da transfiguração está na revelação de Jesus como o Filho amado de Deus, que vai concretizar o projecto salvador e libertador do Pai em favor dos homens através do dom da vida, da entrega total de si próprio por amor. Pela transfiguração de Jesus, Deus demonstra aos crentes de todas as épocas e lugares que uma existência feita dom não é fracassada - mesmo se termina na cruz. A vida plena e definitiva espera, no final do caminho, todos aqueles que, como Jesus, forem capazes de pôr a sua vida ao serviço dos irmãos.

    • Na verdade, os homens do nosso tempo têm alguma dificuldade em perceber esta lógica... Para muitos dos nossos irmãos, a vida plena não está no amor levado até às últimas consequências (até ao dom total da vida), mas sim na preocupação egoísta com os seus interesses pessoais, com o seu orgulho, com o seu pequeno mundo privado; não está no serviço simples e humilde em favor dos irmãos (sobretudo dos mais débeis, dos mais marginalizados e dos mais infelizes), mas no assegurar para si próprio uma dose generosa de poder, de influência, de autoridade e de domínio, que dê a sensação de pertencer à categoria dos vencedores; não está numa vida vivida como dom, com humildade e simplicidade, mas numa vida feita um jogo complicado de conquista de honras, de glórias e de êxitos. Na verdade, onde é que está a realização plena do homem? Quem tem razão: Deus, ou os esquemas humanos que hoje dominam o mundo e que nos impõem uma lógica diferente da lógica do Evangelho?

    • Por vezes somos tentados pelo desânimo, porque não percebemos o alcance dos esquemas de Deus; ou então, parece que, seguindo a lógica de Deus, seremos sempre perdedores e fracassados, que nunca integraremos a elite dos senhores do mundo e que nunca chegaremos a conquistar o reconhecimento daqueles que caminham ao nosso lado... A transfiguração de Jesus grita-nos, do alto daquele monte: não desanimeis, pois a lógica de Deus não conduz ao fracasso, mas à ressurreição, à vida definitiva, à felicidade sem fim.

    • Os três discípulos, testemunhas da transfiguração, parecem não ter muita vontade de "descer à terra" e enfrentar o mundo e os problemas dos homens. Representam todos aqueles que vivem de olhos postos no céu, alheados da realidade concreta do mundo, sem vontade de intervir para o renovar e transformar. No entanto, ser seguidor de Jesus obriga a "regressar ao mundo" para testemunhar aos homens - mesmo contra a corrente - que a realização autêntica está no dom da vida; obriga a atolarmo-nos no mundo, nos seus problemas e dramas, a fim de dar o nosso contributo para o aparecimento de um mundo mais justo e mais feliz. A religião não é um ópio que nos adormece, mas um compromisso com Deus, que se faz compromisso de amor com o mundo e com os homens.

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 2º DOMINGO DA QUARESMA
    (adaptadas de "Signes d'aujourd'hui")

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
    Ao longo dos dias da semana anterior ao 2º Domingo da Quaresma, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo... Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa... Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. "SENHOR, DESÇA SOBRE NÓS A VOSSA MISERICÓRDIA!"
    Mesmo durante a Quaresma, o rito penitencial não deve cair na introspecção culpabilizante. Na celebração, este rito é um convite à assembleia para aderir à misericórdia de Deus na confiança. O Salmo de hoje convida-nos particularmente a esta atitude. Em vez do "Senhor, tende piedade...", poder-se-ia utilizar o refrão do Salmo responsorial: "Desça sobre nós a vossa misericórdia, porque em Vós esperamos, Senhor". A equipa litúrgica poderia preparar algumas intenções neste sentido de esperança e confiança no amor de Deus... A proclamação do Salmo responsorial, no momento próprio, teria outra ressonância a partir desta utilização no momento penitencial.

    3. PREVER UM TEMPO DE CONTEMPLAÇÃO.
    Pode-se prever, à imagem dos discípulos na montanha, um tempo de contemplação alimentado por um texto, um cântico, um trecho musical ou, muito simplesmente, um longo silêncio quer depois da homilia quer depois da comunhão.

    4. BILHETE DE EVANGELHO.
    A vida é combate. O primeiro acto do ser humano no seu nascimento é um grito. Ele deverá lutar para viver. Muitos doentes sabem que devem lutar contra o mal, o sofrimento, o desencorajamento, a lassidão. Desistir de lutar é sintoma de uma doença que se chama depressão. Podemos lutar para nos curarmos fisicamente. Podemos lutar para nos mantermos de pé na provação. A vida espiritual também é um combate. O Senhor é Alguém que se deixa procurar. Segui-l'O supõe, por vezes, escolhas radicais. Nesta semana, aceitemos conduzir um combate. Não para ser oo melhores, nem para esmagar os outros, mas para viver e fazer viver. A vitória neste combate é-nos anunciada neste domingo, em que nos juntamos ao Senhor transfigurado. Mas Ele diz-nos que, antes de ressuscitar, deve passar pelo combate da Paixão. A ressurreição é a vitória do combate pela vida.

    5. ORAÇÃO NA LECTIO DIVINA.
    Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.

    No final da primeira leitura:
    Pai de todos os homens, nós Te damos graças por Abraão, que escolheste e chamaste para constituir um povo de amigos.
    Nós Te suplicamos por todas as famílias da terra: envia-lhes os teus mensageiros, para que sejam um dia abençoadas no teu Filho.

    No final da segunda leitura:
    Deus de vida, nós Te bendizemos pelo teu projecto e pela tua graça, porque fizeste resplandecer a vida e a imortalidade pelo anúncio do Evangelho. Tu nos salvaste e nos deste uma vocação santa, apesar da nossa indignidade.
    Nós Te pedimos pelos teus servidores que sofrem no anúncio e no testemunho do Evangelho. Sustenta-os com a força do teu Espírito.

    No final do Evangelho:
    Deus de luz, nós Te damos graças pela transfiguração do teu Filho, pela alegria e pela felicidade que nos dá a sua presença radiosa.
    Nós Te pedimos pelo teu povo e pelos teus fiéis: levanta-nos quando estamos paralisados pelo medo; cura os nossos corações e os nossos espíritos, para os tornar atentos a escutar o teu Filho. Estabelece a tua tenda nas nossas casas e nas nossas comunidades, não te afastes de nós.

    6. ORAÇÃO EUCARÍSTICA.
    Pode-se escolher a Oração Eucarística III.

    7. PALAVRA PARA O CAMINHO.
    A aventura da fé... "deixa a tua terra..."; "sofre comigo pelo Evangelho..."; "levou-os, em particular, a um alto monte..." A aventura da fé não nos deixa qualquer repouso até ao dia em que toda a Criação se prostrará diante do Filho Bem-Amado. Cremos verdadeiramente que a nossa pequena parte é indispensável? E fazemos por isso?

     

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    Proposta para
    ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA NAS COMUNIDADES DEHONIANAS
    Grupo Dinamizador:
    P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 - 1800-129 LISBOA - Portugal
    Tel. 218540900 - Fax: 218540909
    portugal@dehonianos.org - www.dehonianos.pt

  • 03º Domingo da Quaresma - Ano A

    03º Domingo da Quaresma - Ano A


    12 de Março, 2023

    ANO A
    3º DOMINGO DA QUARESMA

    Tema do 3º Domingo da Quaresma

    A Palavra de Deus que hoje nos é proposta afirma, essencialmente, que o nosso Deus está sempre presente ao longo da nossa caminhada pela história e que só Ele nos oferece um horizonte de vida eterna, de realização plena, de felicidade perfeita.
    A primeira leitura mostra como Jahwéh acompanhou a caminhada dos hebreus pelo deserto do Sinai e como, nos momentos de crise, respondeu às necessidades do seu Povo. O quadro revela a pedagogia de Deus e dá-nos a chave para entender a lógica de Deus, manifestada em cada passo da história da salvação.
    A segunda leitura repete, noutros termos, o ensinamento da primeira: Deus acompanha o seu Povo em marcha pela história; e, apesar do pecado e da infidelidade, insiste em oferecer ao seu Povo - de forma gratuita e incondicional - a salvação.
    O Evangelho também não se afasta desta temática... Garante-nos que, através de Jesus, Deus oferece ao homem a felicidade (não a felicidade ilusória, parcial e falível, mas a vida eterna). Quem acolhe o dom de Deus e aceita Jesus como "o salvador do mundo" torna-se um Homem Novo, que vive do Espírito e que caminha ao encontro da vida plena e definitiva.

    LEITURA I - Ex 17,3-7

    Leitura do Livro do Êxodo

    Naqueles dias,
    o povo israelita, atormentado pela sede,
    começou a altercar com Moisés, dizendo:
    «Porque nos tiraste do Egipto?
    Para nos deixares morrer à sede,
    a nós, aos nossos filhos e aos nossos rebanhos?»
    Então Moisés clamou ao Senhor, dizendo:
    «Que hei de fazer a este povo?
    Pouco falta para me apedrejarem».
    O Senhor respondeu a Moisés:
    «Passa para a frente do povo
    e leva contigo alguns anciãos de Israel.
    Toma na mão a vara com que fustigaste o rio
    e põe te a caminho.
    Eu estarei diante de ti, sobre o rochedo, no monte Horeb.
    Baterás no rochedo e dele sairá água;
    então o povo poderá beber».
    Moisés assim fez à vista dos anciãos de Israel.
    E chamou àquele lugar Massa e Meriba,
    por causa da altercação dos filhos de Israel
    e por terem tentado o Senhor, ao dizerem:
    «O Senhor está ou não no meio de nós?»

    AMBIENTE

    O texto que nos é proposto como primeira leitura pertence às "tradições sobre a libertação" (cf. Ex 1-18). Trata-se de um bloco de tradições que narram a libertação dos hebreus do Egipto (por acção de Jahwéh e do seu servo Moisés) e a caminhada pelo deserto até ao Sinai.
    O texto leva-nos até ao deserto do Sinai. O vers. 1 do nosso texto situa o episódio de Massa/Meribá nos arredores de Refidim, provavelmente no sul da península do Sinai (cf. Nm 33,14-15); mas Nm 20,7-11 situa-o nos arredores de Kadesh, a norte (aliás, não é possível traçar com rigor o caminho percorrido pelos hebreus, desde o Egipto até à Terra Prometida: estamos diante de textos que provêm de "fontes" diferentes, aqui combinados por um redactor final; e essas "fontes" referem-se, provavelmente, a viagens distintas e a grupos distintos, que em épocas distintas atravessaram o deserto do Sinai). De qualquer forma, também não interessa definir exactamente o enquadramento geográfico: mais do que escrever um diário de viagem, aos catequistas de Israel interessa fazer uma catequese sobre o Deus libertador, que conduziu o seu Povo da terra da escravidão para a terra da liberdade.
    A questão fundamental para este grupo de fugitivos que, chefiados por Moisés, fugiu do Egipto, é a questão da sobrevivência num cenário desolado como é o deserto do Sinai. Os beduínos conheciam diversos "truques" que lhes asseguravam a sobrevivência no deserto. Um desses "truques" pode relacionar-se com o texto que nos é proposto... Alguns autores garantem a existência no deserto do Sinai de rochas porosas que, quando quebradas em certos lugares, permitem o aproveitamento da água aí armazenada. Terá sido qualquer coisa parecida que aconteceu na caminhada dos hebreus e que deixou um sinal na memória do Povo? É possível; mas o importante é que Israel viu no facto um sinal da presença e do amor do Deus libertador.

    MENSAGEM

    Este episódio é um episódio paradigmático, que reproduz as vicissitudes e as dificuldades da caminhada histórica do Povo de Deus.
    Desde que o Povo fugiu do Egipto, até chegar a este lugar (Massa/Meribá, segundo os autores do relato), Jahwéh manifestou, de mil formas, o seu amor por Israel... No episódio da passagem do mar (cf. Ex 14,15-31), no episódio da água amarga transformada em água doce (cf. Ex 15,22-27), no episódio do maná e das codornizes (cf. Ex 16,1-20), Deus mostrou o seu empenho em conduzir o seu Povo para a liberdade e em transformar a experiência de morte numa experiência de vida... Jahwéh mostrou, sem margem para dúvidas, estar empenhado na salvação do seu Povo. Depois dessas experiências, Israel já não devia ter qualquer dúvida sobre a vontade salvadora de Deus e sobre o seu projecto de libertação.
    No entanto, não é isso que acontece. Diante das dificuldades da caminhada, o Povo esquece tudo o que Jahwéh já fez e manifesta as suas dúvidas sobre os objectivos de Deus. A falta de confiança em Deus ("o Senhor está ou não no meio de nós?" - vers. 7) conduz ao desespero e à revolta. O Povo entra em contenda com Moisés (o nome "meribá" vem da raíz "rib" - "entrar em contencioso") e desafia Deus a clarificar, através de um gesto espectacular, de que lado está (o nome "massa" vem da raíz "nsh" - "tentar", no sentido de "provocar"). Acusam Deus de ter um projecto de morte, apesar de Ele, tantas vezes, ter demonstrado que o seu projecto é de vida e de liberdade. Afinal, depois de tantas provas, Israel ainda não fez uma verdadeira experiência de fé: não aprendeu a confiar em Deus e a entregar-se nas suas mãos.
    Como é que Deus reage à ingratidão e à falta de confiança do seu Povo? Com "paciência divina", Deus responde mais uma vez às necessidades do seu Povo e oferece-lhe a água que dá vida. À pergunta do Povo ("o Senhor está ou não no meio de nós?"), Deus responde provando que está, efectivamente, no meio do seu Povo.
    Desta forma os israelitas - e os crentes de todas as épocas - são convidados a reter esta verdade definitiva: o Senhor é o Deus que está sempre presente na caminhada histórica do seu Povo oferecendo-lhe, em cada passo da caminhada, a vida e a salvação.

    ACTUALIZAÇÃO

    Reflectir sobre os seguintes dados:

    • A caminhada dos hebreus pelo deserto é, um pouco, o espelho da nossa ca
    minhada pela vida. Todos nós fazemos, todos os dias, a experiência de um Deus libertador e salvador, que está presente ao nosso lado, que nos estende a mão e nos faz passar da escravidão para a liberdade. No entanto, ao longo da travessia do deserto que é a vida, experimentamos, em certas circunstâncias, a nossa pequenez, a nossa dependência, as nossas limitações e a nossa finitude; as dificuldades, o sofrimento e o desencanto fazem-nos duvidar da bondade de Deus, do seu amor, do seu projecto para nos salvar e para nos conduzir em direcção à verdadeira felicidade. No entanto, a Palavra de Deus deste domingo garante-nos: Deus nunca abandona o seu Povo em caminhada pela história... Ele está ao nosso lado, em cada passo da caminhada, para nos oferecer gratuitamente e com amor a água que mata a nossa sede de vida e de felicidade.

    • Ao longo da caminhada do Povo de Deus pelo deserto vêm ao de cima as limitações e as deficiências de um grupo humano ainda com mentalidade de escravo, agarrado à mesquinhez, ao egoísmo e ao comodismo, que prefere a escravidão ao risco da liberdade. No entanto, Deus lá está, ajudando o Povo a superar mentalidades estreitas e egoístas, fazendo-o ir mais além e obrigando-o a amadurecer. À medida que avança, de mãos dadas com Deus, o Povo vai-se renovando e transformando, vai alargando os horizontes, vai-se tornando um Povo mais responsável, mais consciente, mais adulto e mais santo.

    • É esta, também, a experiência que fazemos. Muitas vezes somos egoístas, orgulhosos, comodistas, "meninos mimados" que passam a vida a lamentar-se e a acusar Deus e os outros pelos "dói-dóis" que a vida nos faz. No entanto, as dificuldades da caminhada não são um castigo ou uma derrota; são, tantas vezes, parte dessa pedagogia de Deus para nos forçar a ir mais além, para nos renovar, para nos amadurecer, para nos tornar menos orgulhosos e auto-suficientes. Devíamos, talvez, aprender a agradecer a Deus alguns momentos de sofrimento e de fracasso que marcam a nossa vida, pois através deles Deus faz-nos crescer.

    SALMO RESPONSORIAL - SALMO 94 (95)

    Refrão: Se hoje ouvirdes a voz do Senhor,
    não fecheis os vossos corações.

    Vinde, exultemos de alegria no Senhor,
    aclamemos a Deus nosso salvador.
    Vamos à sua presença e dêmos graças,
    ao som de cânticos aclamemos o Senhor.

    Vinde, prostremo-nos em terra,
    adoremos o Senhor que nos criou.
    Pois Ele é o nosso Deus
    e nós o seu povo, as ovelhas do seu rebanho.

    Quem dera ouvísseis hoje a sua voz:
    «Não endureçais os vossos corações,
    como em Meriba, como no dia de Massa no deserto,
    onde vossos pais Me tentaram e provocaram,
    apesar de terem visto as minhas obras.

    LEITURA II - Rom 5,1-2.5-8

    Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Romanos

    Irmãos:
    Tendo sido justificados pela fé,
    estamos em paz com Deus, por Nosso Senhor Jesus Cristo,
    pelo qual temos acesso, na fé,
    a esta graça em que permanecemos e nos gloriamos,
    apoiados na esperança da glória de Deus.
    Ora, a esperança não engana,
    porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações
    pelo Espírito Santo que nos foi dado.
    Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores.
    Dificilmente alguém morre por um justo;
    por um homem bom,
    talvez alguém tivesse a coragem de morrer.
    Deus prova assim o seu amor para connosco:
    Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores.

    AMBIENTE

    Quando escreve aos Romanos, Paulo está a terminar a sua terceira viagem missionária e prepara-se para partir para Jerusalém. O apóstolo sentia que tinha terminado a sua missão no oriente (cf. Rom 15,19-20) e queria levar o Evangelho a outros cantos do mundo, nomeadamente ao ocidente. Sobretudo, Paulo aproveita a ocasião para contactar a comunidade de Roma e para apresentar aos Romanos os principais problemas que o ocupavam (entre os quais avultava o problema da unidade - um problema bem actual na comunidade cristã de Roma, então afectada por alguma dificuldade de relacionamento entre judeo-cristãos e pagano-cristãos). Estamos no ano 57 ou 58.
    Paulo aproveita para dizer aos Romanos e a todos os cristãos que o Evangelho deve unir e congregar todo o crente, sem distinção de judeu, grego ou romano. Para desfazer algumas ideias de superioridade (e, sobretudo, a pretensão judaica de que a salvação se conquista pela observância da Lei de Moisés), Paulo nota que todos os homens vivem mergulhados no pecado (cf. Rom 1,18-3,20) e que é a "justiça de Deus" que a todos dá a vida, sem distinção (cf. Rom 3,1-5,11).
    No texto que a segunda leitura deste domingo nos propõe, Paulo refere-se à acção de Deus, por Jesus Cristo e pelo Espírito, no sentido de "justificar" todo o homem.

    MENSAGEM

    Paulo parte da ideia de que todos os crentes - judeus, gregos e romanos - foram justificados pela fé. Que significa isto?
    Na linguagem bíblica, a justiça é, mais do que um conceito jurídico, um conceito relacional. Define a fidelidade a si próprio, à sua maneira de ser e aos compromissos assumidos no âmbito de uma relação. Ora, se Jahwéh se manifestou na história do seu Povo como o Deus da bondade, da misericórdia e do amor, dizer que Deus é justo não significa dizer que Ele aplica os mecanismos legais quando o homem infringe as regras; significa, sim, que a bondade, a misericórdia e o amor próprios do ser de Deus se manifestam em todas as circunstâncias, mesmo quando o homem não foi correcto no seu proceder. Paulo, ao falar do homem justificado, está a falar do homem pecador que, por exclusiva iniciativa do amor e da misericórdia de Deus, recebe um veredicto de graça que o salva do pecado e lhe dá, de modo totalmente gratuito, acesso à salvação. Ao homem é pedido somente que acolha, com humildade e confiança, uma graça que não depende dos seus méritos e que se entregue completamente nas mãos de Deus. Este homem, objecto da graça de Deus, é uma nova criatura (cfr. Gal 6,15): é o homem ressuscitado para a vida nova (cf. Rom 6,3-11), que vive do Espírito (cf. Rom 8,9.14), que é filho de Deus e co-herdeiro com Cristo (cf. Rom 8,17; Gal 4,6-7).
    Quais os frutos que resultam deste acesso à salvação que é um dom de Deus?
    Em primeiro lugar, a paz (vers. 1). Esta paz não deve ser entendida em sentido psicológico (tranquilidade, serenidade), nem em sentido político (ausência de guerra), mas no sentido teológico semita de relação positiva com Deus e, portanto, de plenitude de bens, já que Deus é a fonte de todo o bem.
    Em segundo lugar, a esperança (vers. 2-4 - embora os versículos 3 e 4 não apareçam no texto que nos é proposto). Trata-se desse dom que nos permite superar as dificuldades e a dureza da caminhada, apontando a um futuro g
    lorioso de vida em plenitude. Não se trata de alimentar um optimismo fácil e irresponsável, que permita a evasão do presente; trata-se de encontrar um sentido novo para a vida presente, na certeza de que as forças da morte não terão a última palavra e que as forças da vida triunfarão.
    Em terceiro lugar, o amor de Deus ao homem (vers. 5-8). O cristão é, fundamentalmente, alguém a quem Deus ama. A prova desse amor está em Jesus de Nazaré, o Filho amado a quem Deus "entregou à morte por nós quando ainda éramos pecadores".
    Como pano de fundo, o nosso texto propõe-nos o cenário do amor de Deus. Paulo garante-nos algo que já encontrámos na primeira leitura de hoje: Deus nunca abandona o seu Povo em caminhada pela história... Ele está ao nosso lado, em cada passo da caminhada, para nos oferecer gratuitamente e com amor a água que mata a nossa sede de vida e de felicidade (a paz, a esperança, o seu amor).

    ACTUALIZAÇÃO

    • Este texto convida-nos a contemplar o amor de um Deus que nunca desistiu dos homens e que sempre soube encontrar formas de vir ao nosso encontro, de fazer caminho connosco. Apesar de os homens insistirem, tantas vezes, no egoísmo, no orgulho, na auto-suficiência e no pecado, Deus continua a amar e a fazer-nos propostas de vida. Trata-se de um amor gratuito e incondicional, que se traduz em dons não merecidos, mas que, uma vez acolhidos, nos conduzem à felicidade plena.

    • A vinda de Jesus Cristo ao encontro dos homens é a expressão plena do amor de Deus e o sinal de que Deus não nos abandonou nem esqueceu, mas quis até partilhar connosco a precariedade e a fragilidade da nossa existência, a fim de nos mostrar como nos tornarmos "filhos de Deus" e herdeiros da vida em plenitude.

    • A presença do Espírito acentua no nosso tempo - o tempo da Igreja - essa realidade de um Deus que continua presente e actuante, derramando o seu amor ao longo do caminho que, dia a dia, vamos percorrendo e impelindo-nos à renovação, à transformação, até chegarmos à vida plena do Homem Novo. É esse caminho que a Palavra de Deus nos convida a percorrer, neste tempo de Quaresma.

    • Está em moda uma certa atitude de indiferença face a Deus, ao seu amor e às suas propostas. Em geral, os homens de hoje preocupam-se mais com os resultados da última jornada do campeonato de futebol, com as últimas peripécias da "telenovela das nove", com os investimentos na Bolsa, com as vantagens da última geração de computadores ou com o caminho mais rápido e mais seguro para atingir o topo da carreira profissional do que com Deus e com o seu amor. Não será tempo de redescobrirmos o Deus que nos ama, de reconhecermos o seu empenho em conduzir-nos rumo à felicidade plena e de aceitarmos essa proposta de caminho que Ele nos faz?

    ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO - cf. Jo 4,42.15

    Escolher um dos refrães:

    Refrão 1: Louvor e glória a Vós, Jesus Cristo, Senhor.
    Refrão 2: Glória a Vós, Jesus Cristo, Sabedoria do Pai.
    Refrão 3: Glória a Vós, Jesus Cristo, Palavra do Pai.
    Refrão 4: Glória a Vós, Senhor, Filho do Deus vivo.
    Refrão 5: Louvor a Vós, Jesus Cristo, Rei da eterna glória.
    Refrão 6: Grandes e admiráveis são as vossas obras, Senhor.
    Refrão 7: A salvação, a glória e o poder a Jesus Cristo, Nosso Senhor.

    Senhor, Vós sois o Salvador do mundo:
    dai-nos a água viva, para não termos sede.

    EVANGELHO - Jo 4,5-42

    Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

    Naquele tempo,
    chegou Jesus a uma cidade da Samaria, chamada Sicar,
    junto da propriedade que Jacob tinha dado a seu filho José,
    onde estava a fonte de Jacob.
    Jesus, cansado da caminhada, sentou Se à beira do poço.
    Era por volta do meio dia.
    Veio uma mulher da Samaria para tirar água.
    Disse lhe Jesus: «Dá Me de beber».
    Os discípulos tinham ido à cidade comprar alimentos.
    Respondeu Lhe a samaritana:
    «Como é que Tu, sendo judeu,
    me pedes de beber, sendo eu samaritana?»
    De facto, os judeus não se dão com os samaritanos.
    Disse lhe Jesus:
    «Se conhecesses o dom de Deus
    e quem é Aquele que te diz: 'Dá Me de beber',
    tu é que Lhe pedirias e Ele te daria água viva».
    Respondeu Lhe a mulher:
    «Senhor, Tu nem sequer tens um balde, e o poço é fundo:
    donde Te vem a água viva?
    Serás Tu maior do que o nosso pai Jacob,
    que nos deu este poço, do qual ele mesmo bebeu,
    com os seus filhos a os seus rebanhos?»
    Disse Lhe Jesus:
    «Todo aquele que bebe desta água voltará a ter sede.
    Mas aquele que beber da água que Eu lhe der
    nunca mais terá sede:
    a água que Eu lhe der tornar se á nele uma nascente
    que jorra para a vida eterna».
    «Senhor, suplicou a mulher dá me dessa água,
    para que eu não sinta mais sede
    e não tenha de vir aqui buscá la».
    Vejo que és profeta.
    Os nossos pais adoraram neste monte
    e vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar».
    Disse lhe Jesus:
    «Mulher, podes acreditar em Mim:
    Vai chegar a hora em que nem neste monte
    nem em Jerusalém adorareis o Pai.
    Vós adorais o que não conheceis;
    nós adoramos o que conhecemos,
    porque a salvação vem dos judeus.
    Mas vai chegar a hora - e já chegou –
    em que os verdadeiros adoradores
    hão de adorar o Pai em espírito a verdade,
    pois são esses os adoradores que o Pai deseja.
    Deus é espírito
    e os seus adoradores devem adorá l'O em espírito e verdade».
    Disse Lhe a mulher:
    «Eu sei que há de vir o Messias,
    isto é, Aquele que chamam Cristo.
    Quando vier há de anunciar nos todas as coisas».
    Respondeu lhe Jesus:
    «Sou Eu, que estou a falar contigo».
    Muitos samaritanos daquela cidade acreditaram em Jesus,
    por causa da palavra da mulher.
    Quando os samaritanos vieram ao encontro de Jesus,
    pediram Lhe que ficasse com eles.
    E ficou lá dois dias.
    Ao ouvi l'O, muitos acreditaram e diziam à mulher:
    «Já não é por causa das tuas palavras que acreditamos.
    Nós próprios ouvimos
    e sabemos que Ele é realmente o Salvador do mundo».

    AMBIENTE

    O Evangelho deste domingo situa-nos junto de um poço, na cidade samaritana de Sicar. A Samaria era a região central da Palestina - uma região heterodoxa, habitada por uma raça de sangue misturado (de judeus e pagãos) e de religião sincretista.
    Na época do Novo Testamento, existia uma animosidade muito viva entre samaritanos e judeus. Historicamente, a divisão começou quando, em 721 a.C., a Samaria foi tomada pelos assírios e foi deportad
    a cerca de 4% da população samaritana. Na Samaria instalaram-se, então, colonos assírios que se misturaram com a população local. Para os judeus, os habitantes da Samaria começaram, então, a paganizar-se (cf. 2 Re 17,29). A relação entre as duas comunidades deteriorou-se ainda mais quando, após o regresso do Exílio, os judeus recusaram a ajuda dos samaritanos (cf. Esd 4,1-5) para reconstruir o Templo de Jerusalém (ano 437 a.C.) e denunciaram os casamentos mistos. Tiveram, então, de enfrentar a oposição dos samaritanos na reconstrução da cidade (cf. Ne 3,33-4,17). No ano 333 a.C., novo elemento de separação: os samaritanos construíram um Templo no monte Garizim; no entanto, esse Templo foi destruído em 128 a.C. por João Hircano. Mais tarde, as picardias continuaram: a mais famosa aconteceu por volta do ano 6 d.C., quando os samaritanos profanaram o Templo de Jerusalém durante a festa da Páscoa, espalhando ossos humanos nos átrios.
    Os judeus desprezavam os samaritanos por serem uma mistura de sangue israelita com estrangeiros e consideravam-nos hereges em relação à pureza da fé jahwista; e os samaritanos pagavam aos judeus com um desprezo semelhante.
    A cena passa-se à volta do "poço de Jacob", situado no rico vale entre os montes Ebal e Garizim, não longe da cidade samaritana de Siquém (em aramaico, Sicara - a actual Askar). Trata-se de um poço estreito, aberto na rocha calcária, e cuja profundidade ultrapassa os 30 metros. Segundo a tradição, teria sido aberto pelo patriarca Jacob... Os dados arqueológicos revelam que o "poço de Jacob" serviu os samaritanos entre o ano 1000 a.C. e o ano 500 d.C. (embora ainda hoje se possa extrair dele água).
    O "poço" acaba por transformar-se, na tradição judaica, num elemento mítico. Sintetiza os poços abertos pelos patriarcas e a água que Moisés fez brotar do rochedo no deserto (primeira leitura de hoje); mas, sobretudo, torna-se figura da Lei (do poço da Lei brota a água viva que mata a sede de vida do Povo de Deus), que a tradição judaica considerava observada já pelos patriarcas, antes de ser dada ao Povo por Moisés.
    O Evangelho segundo São João apresenta Jesus como o Messias, Filho de Deus, enviado pelo Pai para criar um Homem Novo. No chamado "Livro dos Sinais" (cf. Jo 4,1-11,56), o autor apresenta - recorrendo aos "sinais" da água (cf. Jo 4,1-5,47), do pão (cf. Jo 6,1-7,53), da luz (cf. Jo 8,12-9,41), do pastor (cf. Jo 10,1-42) e da vida (cf. Jo 11,1-56) - um conjunto de catequeses sobre a acção criadora do Messias.
    O nosso texto é, exactamente, a primeira catequese do "Livro dos Sinais": através do "sinal" da água, o autor vai descrever a acção criadora e vivificadora de Jesus.

    MENSAGEM

    No centro da cena, está o "poço de Jacob". À volta do "poço" movimentam-se as personagens principais: Jesus e a samaritana.
    A mulher (aqui apresentada sem nome próprio) representa a Samaria, que procura desesperadamente a água que é capaz de matar a sua sede de vida plena. Jesus vai ao encontro da "mulher". Haverá neste episódio uma referência ao Deus/esposo que vai ao encontro do povo/esposa infiel para lhe fazer descobrir o amor verdadeiro? Tudo indica que sim (aliás, o profeta Oseias, o grande inventor desta imagem matrimonial para representar a relação Deus/Povo, pregou aqui, na Samaria).
    O "poço" representa a Lei, o sistema religioso à volta do qual se consubstanciava a experiência religiosa dos samaritanos. Era nesse "poço" que os samaritanos procuravam a água da vida plena. No entanto: o "poço" da Lei correspondia à sede de vida daqueles que o procuravam? Não. Os próprios samaritanos tinham reconhecido a insuficiência do "poço" da Lei e haviam buscado a vida plena noutras propostas religiosas (por isso, Jesus faz referência aos "cinco maridos" que a mulher já teve: há aqui, provavelmente, uma alusão aos cinco deuses dos samaritanos de que se fala em 2 Re 17,29-41).
    Estamos, pois, diante de um quadro que representa a busca da vida plena. Onde encontrar essa vida? Na Lei? Noutros deuses? A mulher/Samaria dá conta da falência dessas "ofertas" de vida: elas podem "matar a sede" por curtos instantes; mas quem procura a resposta para a sua realização plena nessas propostas voltará a ter sede.
    É aqui que entra a novidade de Jesus. Ele senta-se "junto do poço", como se pretendesse ocupar o seu lugar; e propõe à mulher/Samaria uma "água viva", que matará definitivamente a sua sede de vida eterna (vers. 10-14). Jesus passa a ser o "novo poço", onde todos os que têm sede de vida plena encontrarão resposta para a sua sede.
    Qual é a água que Jesus tem para oferecer? É a "água do Espírito" que, no Evangelho de João, é o grande dom de Jesus. Na conversa com Nicodemos, Jesus já havia avisado que "quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus" - Jo 3,5; e quando Jesus se apresenta como a "água viva" que matará a sede do homem, João tem o cuidado de explicar que Ele se referia ao Espírito, que iam receber aqueles que acreditassem n'Ele (cf. Jo 7,37-39). Esse Espírito, uma vez acolhido no coração do homem, transforma-o, renova-o e torna-o capaz de amar Deus e os outros.
    Como é que a mulher/Samaria responde ao dom de Jesus? Inicialmente, ela fica confusa. Parece disposta a remediar a situação de falência de felicidade que caracteriza a sua vida, mas ainda não sabe bem como: essa vida plena que Jesus está a propor-lhe significa que a Samaria deve abandonar a sua especificidade religiosa e ceder às pretensões religiosas dos judeus, para quem o verdadeiro encontro com Deus só pode acontecer no Templo de Jerusalém e na instituição religiosa judaica ("nossos pais adoraram neste monte, mas vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar")?
    No entanto, Jesus nega que se trate de escolher entre o caminho dos judeus e o caminho dos samaritanos. Não é no Templo de pedra de Jerusalém ou no Templo de pedra do monte Garizim que Deus está... O que se trata é de acolher a novidade do próprio Jesus, aderir a Ele e aceitar a sua proposta de vida (isto é, aceitar o Espírito que Ele quer comunicar a todos os homens).
    Dessa forma - e só dessa forma - desaparecerá a barreira de inimizade que separa os povos - judeus e samaritanos. A única coisa que passa a contar é a vida do Espírito que encherá o coração de todos, que a todos ensinará o amor a Deus e aos outros e que fará de todos - sem distinção de raças ou de perspectivas religiosas - uma família de irmãos.
    A mulher/Samaria responde à proposta de Jesus abandonando o cântaro (agora inútil), e correndo a anunciar aos habitantes da cidade o desafio que Jesus lhe faz. O texto refere, ainda, a adesão entusiástica de todos os que tomam conhecimento da proposta de Jesus e a "confissão da fé": Jesus é reconhecido como "o salvador do mundo" - isto é, como Aquele que dá ao homem a vida plena e definitiva (vers. 28-41).
    O nosso texto define, portanto, a missão de Jesus: comunicar ao homem o Espírito que dá vida. O Espírito que Jesus tem para oferecer desenvolve e fecunda o coração do homem, dando-lhe a capacidade de amar sem medida. Eleva, assim, esses homens que buscam a vida plena e definitiva à categoria de Homens Novos, filhos de Deus que fazem as obras de Deus. Do dom de Jesus nasce a nova comunidade.

    ACTUALIZAÇÃO

    Considerar, para a reflexão, os seguintes pontos:

    • A modernidade criou-nos grandes expectativas. Disse-nos que tinha a resposta para todas as nossas procuras e que podia responder a todas as nossas necessidades. Garantiu-nos que a vida plena estava na liberdade absoluta, numa vida vivida sem dependência de Deus; disse-nos que a vida plena estava nos avanços tecnológicos, que iriam tornar a nossa existência cómoda, eliminar a doença e protelar a morte; afirmou que a vida plena estava na conta bancária, no reconhecimento social, no êxito profissional, nos aplausos das multidões, nos "cinco minutos" de fama que a televisão oferece... No entanto, todas as conquistas do nosso tempo não conseguem calar a nossa sede de eternidade, de plenitude, dessa "mais qualquer coisa" que nos falta para sermos, realmente, felizes. A afirmação essencial que o Evangelho de hoje faz é: só Jesus Cristo oferece a água que mata definitivamente a sede de vida e de felicidade do homem. Eu já descobri isto, ou a minha procura de realização e de vida plena faz-se noutros caminhos? O que é preciso para conseguirmos que os homens do nosso tempo aprendam a olhar para Jesus e a tomar consciência dessa proposta de vida plena que Ele oferece a todos?

    • Essa "água viva" de que Jesus fala faz-nos pensar no baptismo. Para cada um de nós, esse foi o começo de uma caminhada com Jesus... Nessa altura acolhemos em nós o Espírito que transforma, que renova, que faz de nós "filhos de Deus" e que nos leva ao encontro da vida plena e definitiva. A minha vida de cristão tem sido, verdadeiramente, coerente com essa vida nova que então recebi? O compromisso que então assumi é algo esquecido e sem significado, ou é uma realidade que marca a minha vida, os meus gestos, os meus valores e as minhas opções?

    • Atentemos no pormenor do "cântaro" abandonado pela samaritana, depois de se encontrar com Jesus... O "cântaro" significa e representa tudo aquilo que nos dá acesso a essas propostas limitadas, falíveis, incompletas de felicidade. O abandono do "cântaro" significa o romper com todos os esquemas de procura de felicidade egoísta, para abraçar a verdadeira e única proposta de vida plena. Eu estou disposto a abandonar o caminho da felicidade egoísta, parcial, incompleta, e a abrir o meu coração ao Espírito que Jesus me oferece e que me exige uma vida nova?

    • A samaritana, depois de encontrar o "salvador do mundo" que traz a água que mata a sede de felicidade, não se fechou em casa a gozar a sua descoberta; mas partiu para a cidade, a propor aos seus concidadãos a verdade que tinha encontrado. Eu sou, como ela, uma testemunha viva, coerente, entusiasmada dessa vida nova que encontrei em Jesus?

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 3º DOMINGO DA QUARESMA
    (adaptadas de "Signes d'aujourd'hui")

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
    Ao longo dos dias da semana anterior ao 3º Domingo da Quaresma, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo... Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa... Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. DESENVOLVER O RITO PENITENCIAL.
    A antífona de abertura, a primeira leitura e o Evangelho sublinham o tema da água: água do Baptismo, água da graça... O rito penitencial pode valorizar a importância da água na história da salvação e na nossa vida cristã: bênção da água, aspersão da assembleia, acompanhada de um cântico de carácter baptismal, convidando todos os fiéis a ir à fonte baptismal tocar na água e fazendo o sinal da cruz... São algumas ideias... A equipa litúrgica procure preparar bem um gesto, para que signifique o acolhimento da palavra de Deus, através do símbolo da água.

    3. LER O EVANGELHO A DIVERSAS VOZES.
    O Evangelho do encontro de Jesus com a samaritana, um pouco longo, pode ser lido a diversas vozes: narrador, Jesus, samaritana, discípulos. De qualquer modo, a leitura deve ser bem preparada e proclamada, para que seja escutada como Palavra de Deus e não como uma mera encenação...

    4. BILHETE DE EVANGELHO.
    A vida é dom. "Se conhecêsseis o dom de Deus!", diz Jesus à mulher de Samaria. Deus é alguém que oferece um presente, é o seu modo de fazer aliança connosco. Ele faz-nos viver porque é nosso Criador. Ele faz-nos reviver porque é nosso Salvador. Ele faz-nos viver com Ele e com os nossos irmãos porque é o Espírito que faz a nossa comunhão. Saibamos apreciar estes presentes, saibamos provar o seu sabor. A vida, recebemo-la... que presente! É preciso que a demos... em troca! Nesta semana, procuremos aprofundar esta relação que somos convidados a viver com Deus e com os nossos irmãos. Não sejamos daqueles "mimados" que já não sabem apreciar o que se lhes dá! Não sejamos daqueles "avarentos" que já não sabem o que é oferecer!

    5. ORAÇÃO NA LECTIO DIVINA.
    Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.

    No final da primeira leitura:
    Nós Te bendizemos, Deus nosso Pai, porque habitas verdadeiramente no meio de nós. Tinhas tirado o povo de Israel da sua infelicidade, fizeste-o sair do Egipto, pelo teu servo Moisés fizeste jorrar a água do rochedo.
    Nós Te pedimos: guarda-nos de toda a impaciência, confirma a nossa confiança na tua presença em nós.

    No final da segunda leitura:
    Nós Te damos graças porque nos justificas quando temos fé em Ti. Nós Te bendizemos por Jesus, teu Filho, que aceitou morrer por nós, pecadores, e pelo Espírito Santo que foi derramado nos nossos corações.
    Nós Te pedimos por todos os nossos irmãos e irmãs cuja esperança está ferida e que atravessam períodos de dúvida, por causa das provações que os atingem.

    No final do Evangelho:
    Bendito sejas, Senhor Jesus, Tu o Messias, o Salvador do mundo, porque nos revelas a água viva da tua presença e nos levas a adorar o Pai no Espírito e em verdade. Bendito sejas pela água do Baptismo.
    Nós Te pedimos pelas crianças e pelos jovens que conduzimos para Ti e por todos os futuros baptizados: faz com que tenham sede de Te conhecer!

    6. ORAÇÃO EUCARÍSTICA.
    Pode-se escolher a Oração Eucarística III.

    7. PALAVRA PARA O CAMINHO.
    Que fonte? Sede do Povo de Israel no deserto! Sede da samaritana! E nós? Temos sede? De quem? De quê? A que poço vamos nós beber para matar todas as sedes que nos habitam? E se nos enganamos na fonte? "Senhor, dá me dessa água, para que eu não sinta mais sede"!

     

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    Proposta para
    ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA NAS COMUNIDADES DEHONIANAS
    Grupo Dinamizador:
    P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 - 1800-129 LISBOA - Portugal
    Tel. 218540900 - Fax: 218540909
    portugal@dehonianos.org - www.dehonianos.org

  • 04º Domingo da Quaresma - Ano A

    04º Domingo da Quaresma - Ano A


    19 de Março, 2023

    ANO A
    4º DOMINGO DA QUARESMA

    Tema do 4º Domingo da Quaresma

    As leituras deste Domingo propõem-nos o tema da "luz". Definem a experiência cristã como "viver na luz".
    No Evangelho, Jesus apresenta-se como "a luz do mundo"; a sua missão é libertar os homens das trevas do egoísmo, do orgulho e da auto-suficiência. Aderir à proposta de Jesus é enveredar por um caminho de liberdade e de realização que conduz à vida plena. Da acção de Jesus nasce, assim, o Homem Novo - isto é, o Homem elevado às suas máximas potencialidades pela comunicação do Espírito de Jesus.
    Na segunda leitura, Paulo propõe aos cristãos de Éfeso que recusem viver à margem de Deus ("trevas") e que escolham a "luz". Em concreto, Paulo explica que viver na "luz" é praticar as obras de Deus (a bondade, a justiça e a verdade).
    A primeira leitura não se refere directamente ao tema da "luz" (o tema central na liturgia deste domingo). No entanto, conta a escolha de David para rei de Israel e a sua unção: é um óptimo pretexto para reflectirmos sobre a unção que recebemos no dia do nosso Baptismo e que nos constituiu testemunhas da "luz" de Deus no mundo.

    LEITURA I - 1 Sam 16,1b.6-7.10-13a

    Leitura do Primeiro Livro de Samuel

    Naqueles dias,
    o Senhor disse a Samuel:
    «Enche o corno de óleo e parte.
    Vou enviar-te a Jessé de Belém,
    pois escolhi um rei entre os seus filhos».
    Quando chegou, Samuel viu Eliab e pensou consigo:
    «Certamente é este o ungido do Senhor».
    Mas o Senhor disse a Samuel:
    «Não te impressiones com o seu belo aspecto,
    nem com a sua elevada estatura,
    pois não foi esse que Eu escolhi.
    Deus não vê como o homem;
    o homem olha às aparências, o Senhor vê o coração».
    Jessé fez passar os sete filhos diante de Samuel,
    mas Samuel declarou-lhe:
    «O senhor não escolheu nenhum destes».
    E perguntou a Jessé:
    «Estão aqui todos os teus filhos?»
    Jessé respondeu-lhe:
    «Falta ainda o mais novo, que anda a guardar o rebanho».
    Samuel ordenou: «Manda-o chamar,
    porque não nos sentaremos à mesa, enquanto ele não chegar».
    Então Jessé mandou-o chamar:
    era loiro, de belos olhos e agradável presença.
    O Senhor disse a Samuel:
    «Levanta-te e unge-o, porque é este mesmo».
    Samuel pegou no corno do óleo e ungiu-o no meio dos irmãos.
    Dequele dia em diante,
    o Espírito do Senhor apoderou-Se de David.

    AMBIENTE

    Na segunda metade do séc. XI a.C., os filisteus constituíam uma ameaça bastante séria para as tribos do Povo de Deus. Instalados na orla costeira, os filisteus pressionavam cada vez mais os outros grupos que habitavam a terra de Canaã, nomeadamente as tribos do Povo de Deus que ocupavam as montanhas do interior do país. A necessidade de uma liderança única e forte levou os anciãos das tribos a equacionar, pela primeira vez, a possibilidade da união política das tribos sob a autoridade de um rei, à imagem do que sucedia com os outros povos da zona.
    A primeira experiência monárquica aconteceu com Saúl e agrupava as tribos do centro e algumas do norte do país. Essa experiência terminou, no entanto, de forma dramática: Saúl e seu filho Jónatas morreram na batalha de Gelboé, em luta contra os filisteus, por volta do ano 1010 a.C.
    Era preciso encontrar um outro "herói", capaz de gerar consensos entre tribos muito diferentes, juntá-las e conduzi-las vitoriosamente ao combate contra os inimigos filisteus. A escolha dos anciãos - tanto das tribos do norte, como das tribos do sul - recaiu, então, num jovem chamado David.
    David nasceu por volta de 1040 a.C., em Belém de Judá, no sul do país. Como é que David se tornou notado e se impôs, de forma a ser considerado uma solução para o problema da realeza?
    O Livro de Samuel apresenta três tradições sobre a entrada de David em cena. A primeira apresenta David como um admirável guerreiro, cuja valentia chamou a atenção de Saúl, sobretudo após a sua vitória sobre o gigante filisteu Golias (cf. 1 Sm 17). A segunda tradição apresenta David como um poeta, que vai para a corte de Saúl para cantar e tocar harpa (segundo esta tradição - bastante hostil a Saúl - o rei só conseguia reencontrar a calma e o bem estar quando David o acalmava com a sua música - cf. 1 Sm 16,14-23. Aos poucos, o poeta/cantor David foi ganhando adeptos na corte, tornando-se amigo de Jónatas, o filho de Saúl, e casando mesmo com Mical, a filha do rei). Finalmente, a terceira tradição - a menos verificável historicamente, mas a de maior importância teológica - apresenta a realeza de David como uma escolha de Jahwéh. É esta terceira tradição que o nosso texto nos apresenta.

    MENSAGEM

    O nosso relato apresenta-nos uma bem elaborada reflexão sobre a eleição. O autor do texto pretende mostrar que a lógica de Deus é bem diferente, neste capítulo, da lógica dos homens.
    Antes de mais, David é apresentado como o eleito de Jahwéh. É sempre Jahwéh que escolhe aqueles a quem quer confiar uma missão. Nem a Samuel - o seu enviado - Jahwéh dá qualquer explicação. A eleição não resulta da iniciativa do homem, mas sim da iniciativa e da vontade livre de Deus.
    Em segundo lugar, impressiona a lógica da escolha de Deus. Samuel raciocina com a lógica dos homens e pretende ungir como rei o filho mais velho de Jessé de Belém, impressionado pelo seu belo aspecto e pela sua estatura; mas não é essa a escolha de Deus... Samuel percebe, finalmente, que a escolha de Deus recai sobre David - o filho mais novo de Jessé - um jovem anónimo e desconhecido que andava a guardar o rebanho do pai.
    A história da eleição de David quer sublinhar a lógica de Deus, que escolhe sem ter em conta os méritos, o aspecto ou as qualidades humanas que costumam impressionar os homens. Pelo contrário, Deus escolhe e chama, com frequência, os pequenos, os mais fracos, aqueles que o mundo marginaliza e considera insignificantes; e é através deles que age no mundo.
    Fica, assim, claro que quem leva a cabo a obra da salvação é Deus; os homens são apenas instrumentos, através dos quais Deus realiza a sua obra no mundo.

    ACTUALIZAÇÃO

    A reflexão pode partir dos seguintes dados:

    • Se olharmos para o mundo com olhos de esperança, vemos muitas pessoas que realizam coisas bonitas, que lutam contra a miséria, o sofrimento, a injustiça, a doença, o analfabetismo, a violência... Não há mal nenhum em admirarmos a sua disponibilidade e em aprendermos com o seu empenh
    o e compromisso. No entanto, nós os crentes somos convidados a olhar mais além e a ver Deus por detrás de cada gesto de amor, de bondade, de coragem, de compromisso com a construção de um mundo melhor. O nosso Deus continua a construir, dia a dia, a história da salvação; e chama homens e mulheres para colaborarem com Ele na salvação do mundo.

    • A nossa leitura mostra, mais uma vez, que Deus tem critérios diferentes dos critérios humanos e que a sua lógica nem sempre coincide com a nossa. "Deus não vê como o homem; o homem olha às aparências, o Senhor vê o coração" - diz o texto. É preciso entrar na lógica de Deus e aprender a ver, para além da aparência, da roupa que a pessoa veste, do "curriculum" profissional ou académico; é preciso aprender a ver com o coração e a descobrir a riqueza que se esconde por detrás daqueles que parecem insignificantes e sem pretensões... É preciso, sobretudo, aprender a respeitar a dignidade de cada homem e de cada mulher, mesmo quando não parecem pessoas importantes ou influentes. É isso que acontece nos "guichets" dos nossos serviços públicos? É isso que acontece nas recepções das nossas igrejas? É isso que acontece nas portarias das nossas casas religiosas?

    SALMO RESPONSORIAL - Salmo 22 (23)

    Refrão 1: O Senhor é meu pastor: nada me faltará.

    Refrão 2: O Senhor me conduz: nada me faltará.

    O Senhor é meu pastor: nada me falta.
    Leva-me a descansar em verdes prados,
    conduz-me às águas refrescantes
    e reconforta a minha alma.

    Ele me guia por sendas direitas por amor do seu nome.
    Ainda que tenha de andar por vales tenebrosos,
    não temerei nenhum mal, porque Vós estais comigo:
    o vosso cajado e o vosso báculo me enchem de confiança.

    Para mim preparais a mesa
    à vista dos meus adversários;
    com óleo me perfumais a cabeça
    e meu cálice transborda.

    A bondade e a graça hão-de acompanhar-me
    todos os dias da minha vida,
    e habitarei na casa do Senhor
    para todo o sempre.

    LEITURA II - Ef 5,8-14

    Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Efésios

    Irmãos:
    Outrora vós éreis trevas,
    mas agora sois luz no Senhor.
    Vivei como filhos da luz,
    porque o fruto da luz é a bondade, a justiça e a verdade.
    Procurai sempre o que mais agrada ao Senhor.
    Não tomeis parte nas obras das trevas, que são inúteis;
    tratai antes de condená-las abertamente,
    porque o que eles fazem em segredo
    até é vergonhoso dizê-lo.
    Mas, todas as coisas que são condenadas
    são postas a descoberto pela luz,
    e tudo que assim se manifesta torna-se luz.
    É por isso que se diz:
    «Desperta, tu que dormes; levanta-te do meio dos mortos
    e Cristo brilhará sobre ti».

    AMBIENTE

    A Carta aos Efésios é, provavelmente, um dos exemplares de uma "carta circular" enviada a várias Igrejas da Ásia Menor, numa altura em que Paulo está na prisão (em Roma? em Cesareia?). O seu portador é um tal Tíquico. Estamos por volta dos anos 58/60.
    Alguns vêem nesta carta uma espécie de síntese da teologia paulina, numa altura em que Paulo sente ter terminado a sua missão apostólica na Ásia e não sabe exactamente o que o futuro próximo lhe reserva (recordemos que ele está, por esta altura, prisioneiro e não sabe como vai terminar o cativeiro).
    O tema central da Carta aos Efésios é aquilo a que Paulo chama "o mistério": o desígnio (ou projecto) salvador de Deus, definido desde toda a eternidade, escondido durante séculos aos homens, revelado e concretizado plenamente em Jesus, comunicado aos apóstolos, desfraldado e dado a conhecer ao mundo na Igreja.
    O texto que nos é aqui proposto faz parte da "exortação aos baptizados" que aparece na segunda parte da carta (cf. Ef 4,1-6,20). Nessa exortação, Paulo retoma os temas tradicionais da catequese primitiva e convida os crentes a deixarem a antiga forma de viver para assumirem a nova, revestindo-se de Cristo (cf. Ef 4,17-31), imitando Deus (cf. Ef 4,32-5,2) e passando das trevas à luz (cf. Ef 5,3-20).

    MENSAGEM

    A imagem da "luz" e das "trevas", aqui utilizada, é uma imagem que aparecia frequentemente na catequese primitiva, como sugere o seu uso nos textos neo-testamentários, sobretudo em João e Paulo (cf. Jo 1,4-5; 3,19.21; 8,12; 1 Jo 1,5-7; 2,9-11; Rom 2,19; 2 Cor 4,6; 1 Tess 5,4-7). O símbolo "luz/trevas" aparece, também, nos escritos de Qûmran para definir o mundo de Deus (luz) e o mundo que se opõe a Deus (trevas).
    Para Paulo, viver nas "trevas" é viver à margem de Deus, recusar as suas propostas, viver prisioneiro das paixões e dos falsos valores, no egoísmo e na auto-suficiência. Ao contrário, viver na "luz" é acolher o dom da salvação que Deus oferece, aceitar a vida nova que Ele propõe, escolher a liberdade, tornar-se "filho de Deus".
    Os cristãos são aqueles que escolheram viver na "luz". Paulo, dirigindo-se aos cristãos da parte ocidental da Ásia Menor, exorta-os a viverem na órbita de Deus, como Homens Novos, e a praticarem as obras correspondentes à opção que fizeram pela "luz". Em concreto, Paulo pede-lhes que as suas vidas sejam marcadas pela bondade, pela justiça e pela verdade. A propósito, Paulo cita um velho hino cristão baptismal, que convoca os crentes para viverem na "luz" (vers. 14).
    Mais ainda: o cristão não é só chamado a viver na "luz"; mas deve desmascarar as "trevas" e denunciar as obras e os comportamentos daqueles que escolhem viver nas "trevas" do egoísmo, da mentira, da escravidão e do pecado. O cristão não deve só escolher a luz, mas deve também desmascarar as obras das "trevas", de forma aberta e decidida.

    ACTUALIZAÇÃO

    Na reflexão, ter em conta os seguintes dados:

    • "Luz" e "trevas" são, nesta passagem, duas esferas de poder capazes de tomar conta do homem e de condicionar a sua vida, as suas opções, os seus valores e comportamentos. O cristão, no entanto, é aquele que optou por "viver na luz". Para mim, o que significa, em concreto, "viver na luz"? O que é que isso, em termos práticos, implica? Quais são os esquemas, comportamentos e valores que devem ser definitivamente saneados da minha vida, a fim de que eu seja um testemunho da "luz"?

    • Para Paulo, não chega "viver na luz" e dar testemunho da "luz". É preciso, também, denunciar - de forma aberta e decidida - as "trevas" que desfeiam o mundo e que mantêm os homens escravos. Na minha perspectiva, quais são os gestos, comportamentos e atitudes qu
    e contribuem para apagar a "luz" de Deus e para manter este mundo nas "trevas"? Com que é que eu devo pactuar e o que é que eu devo denunciar?

    • A expressão "desperta tu que dormes", citada por Paulo, convida-nos à vigilância. O cristão não pode ficar de braços cruzados diante da maldade, do egoísmo, da injustiça, da exploração, dos contra-valores que enegrecem a vida dos homens e do mundo. O cristão tem de manter uma atitude de vigilância atenta e de denúncia ousada e corajosa. Diante dos contra-valores, qual a minha atitude: é a atitude comodista de quem deixa correr as coisas porque não está para se chatear, ou é a atitude de quem se sente realmente incomodado com a escuridão do mundo e pretende intervir para que o mundo se construa de uma forma diferente?

    ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO - Jo 8,12

    Escolher um dos refrães:

    Refrão 1: Louvor e glória a Vós, Jesus Cristo, Senhor.
    Refrão 2: Glória a Vós, Jesus Cristo, Sabedoria do Pai.
    Refrão 3: Glória a Vós, Jesus Cristo, Palavra do Pai.
    Refrão 4: Glória a Vós, Senhor, Filho do Deus vivo.
    Refrão 5: Louvor a Vós, Jesus Cristo, Rei da eterna glória.
    Refrão 6: Grandes e admiráveis são as vossas obras, Senhor.
    Refrão 7: A salvação, a glória e o poder a Jesus Cristo, Nosso Senhor.

    Eu sou a luz do mundo, diz o Senhor:
    quem Me segue terá a luz da vida.

    EVANGELHO - Jo 9,1-41

    Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

    Naquele tempo,
    Jesus encontrou no seu caminho um cego de nascença.
    Os discípulos perguntaram-Lhe:
    «Mestre, quem é que pecou para ele nasceu cego?
    Ele ou os seus pais?
    Jesus respondeu-lhes:
    «Isso não tem nada que ver com os pecados dele ou dos pais;
    mas aconteceu assim
    para se manifestarem nele as obras de Deus.
    É preciso trabalhar, enquanto é dia,
    nas obras d'Aquele que Me enviou.
    Vai cegar a noite, em que ninguém pode trabalhar.
    Enquanto Eu estou no mundo, sou a luz do mundo».
    Dito isto, cuspiu em terra,
    fez com a saliva um pouco de lodo e ungiu os olhos do cego.
    Depois disse-lhe:
    «Vai lavar-te à piscina de Siloé»; Siloé quer dizer «Enviado».
    Ele foi, lavou-se e ficou a ver.
    Entretanto, perguntavam os vizinhos
    e os que antes o viam a mendigar:
    «Não é este o que costumava estar sentado a pedir esmola?»
    Uns diziam: «É ele».
    Outros afirmavam: «Não é. É parecido com ele».
    Mas ele próprio dizia: «Sou eu».
    Perguntaram-lhe então:
    «Como foi que se abriram os teus olhos?»
    Ele respondeu:
    «Esse homem, que se chama Jesus, fez um pouco de lodo,
    ungiu-me os olhos e disse-me:
    'Vai lavar-te à piscina de Siloé'.
    Eu fui, lavei-me e comecei a ver».
    Perguntaram-lhe ainda: «Onde está Ele?»
    O homem respondeu: «Não sei».
    Levaram aos fariseus o que tinha sido cego.
    Era sábado esse dia em que Jesus fizeram lodo
    e lhe tinha aberto os olhos.
    Por isso, os fariseus perguntaram ao homem
    como tinha recuperado a vista.
    Ele declarou-lhes: «Jesus pôs-me lodo nos olhos;
    depois fui lavar-me e agora vejo».
    Diziam alguns dos fariseus:
    «Esse homem não vem de Deus, porque não guarda o sábado».
    Outros observavam:
    «Como pode um pecador fazer tais milagres?»
    E havia desacordo entre eles.
    Perguntaram então novamente ao cego:
    «Tu que dizias d'Aquele que te deu a vista?»
    O homem respondeu: «É um profeta».
    Os judeus não quiseram acreditar
    que ele tinha sido cego e começara a ver.
    Chamaram então os pais dele e perguntaram-lhes:
    «É este o vosso filho? É verdade que nasceu cego?
    Como é que agora vê?»
    Os pais responderam:
    «Sabemos que este é o nosso filho e que nasceu cego;
    mas não sabemos como é que ele agora vê,
    nem sabemos quem lhe abriu os olhos.
    Ele já tem idade para responder: perguntai-lho vós».
    Foi por medo que eles deram esta resposta,
    porque os judeus tinham decidido expulsar da sinagoga
    quem reconhecesse que Jesus era o Messias.
    Por isso é que disseram:
    «Ele já tem idade para responder; perguntai-lho vós».
    Os judeus chamaram outra vez o que tinha sido curado
    e disseram-lhe: «Dá glória a Deus.
    Nós sabemos que esse homem é pecador».
    Ele respondeu: «Se é pecador, não sei.
    O que sei é que eu era cego e agora vejo».
    Perguntaram-lhe então:
    «Que te fez Ele? Como te abriu os olhos?»
    O homem replicou:
    «Já vos disse e não destes ouvidos.
    Porque desejais ouvi-lo novamente?
    Também quereis fazer-vos seus discípulos?»
    Então insultaram-no e disseram-lhe:
    «Tu é que és seu discípulo; nós somos discípulos de Moisés;
    mas este, nem sabemos de onde é».
    O homem respondeu-lhes:
    «Isto é realmente estranho: não sabeis de onde Ele é,
    mas a verdade é que Ele me deu a vista.
    Ora, nós sabemos que Deus não escuta os pecadores,
    mas escuta aqueles que O adoram e fazem a sua vontade.
    Nunca se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos
    a um cego de nascença.
    Se Ele não viesse de Deus, nada podia fazer».
    Replicaram-lhe então eles:
    «Tu nasceste inteiramente em pecado e pretendes ensinar-nos?»
    E expulsaram-no.
    Jesus soube que o tinham expulsado
    e, encontrando-o, disse-lhe:
    «Tu acreditas no Filho do homem?»
    Ele respondeu-Lhe:
    «Senhor, quem é Ele, para que eu acredite?»
    Disse-lhe Jesus;
    «Já O viste: é Quem está a falar contigo».
    O homem prostrou-se diante de Jesus e exclamou:
    «Eu creio, Senhor».
    Então Jesus disse-lhe:
    «Eu vim para exercer um juízo:
    os que não vêem ficarão a ver;
    os que vêem ficarão cegos».
    Alguns fariseus que estavam com Ele, ouvindo isto,
    perguntaram-Lhe:
    «Nós também somos cegos?»
    Respondeu-lhes Jesus:
    «Se fôsseis cegos, não teríeis pecado.
    Mas como agora dizeis: 'Não vemos',
    o vosso pecado permanece».

    AMBIENTE

    Já vimos, na semana passada, que o Evangelho segundo João procura apresentar Jesus como o Messias, Filho de Deus, enviado pelo Pai para criar um Homem Novo. Também vimos que, no chamado "Livro dos Sinais" (cf. Jo 4,1-11,56), o autor apresenta - recorrendo aos "sinais" da água (cf. Jo 4,1-5,47), do pão (cf. Jo 6,1-7,53), da luz (cf. Jo 8,12-9,41), do pastor (cf. Jo 10,1-42) e da vida (cf. Jo 11,1-56) - um c
    onjunto de catequeses sobre a acção criadora do Messias.
    O nosso texto é, exactamente, a terceira catequese (a da luz) do "Livro dos Sinais": através do "sinal" da "luz", o autor vai descrever a acção criadora e vivificadora de Jesus. A catequese sobre a "luz" é colocada no contexto da "Festa de Sukkot" (a festa das colheitas); um dos ritos mais populares dessa festa era, exactamente, a iluminação dos quatro grandes candelabros do átrio das mulheres, no Templo de Jerusalém.
    No centro do quadro aparece-nos (além de Jesus) um cego. Os "cegos" faziam parte do grupo dos excluídos da sociedade palestina de então. As deficiências físicas eram consideradas - pela teologia oficial - como resultado do pecado (os rabbis da época chegavam a discutir de onde vinha o pecado de alguém que nascia com uma deficiência: se o defeito era o resultado de um pecado dos pais, ou se era o resultado de um pecado cometido pela criança no ventre da mãe).
    Segundo a concepção da época, Deus castigava de acordo com a gravidade da culpa. A cegueira era considerada o resultado de um pecado especialmente grave: uma doença que impedisse o homem de estudar a Lei era considerada uma maldição de Deus por excelência. Pela sua condição de impureza notória, os cegos eram impedidos de servir de testemunhas no tribunal e de participar nas cerimónias religiosas no Templo.

    MENSAGEM

    O nosso texto não é uma reportagem jornalística sobre a cura de um cego; mas é uma catequese, na qual se apresenta Jesus como a "luz" que veio iluminar o caminho dos homens. O "cego" da nossa história é um símbolo de todos os homens e mulheres que vivem na escuridão, privados da "luz", prisioneiros dessas cadeias que os impedem de chegar à plenitude da vida. A reflexão apresenta-se em vários quadros.
    No primeiro quadro (vers. 2-5), Jesus apresenta-se como "a luz do mundo". Jesus e os discípulos estão diante de um cego de nascença. De acordo com a teologia da época, o sofrimento era sempre resultado do pecado; por isso, os discípulos estavam preocupados em saber se foi o cego que pecou ou se foram os seus pais. Jesus desmonta esta perspectiva e nega qualquer relação entre pecado e sofrimento. No entanto, a ocasião é propícia para ir mais além; e Jesus aproveita-a para mostrar que a missão que o Pai lhe confiou é ser "a luz do mundo" e encher de "luz" a vida dos que vivem nas trevas.
    No segundo quadro (vers. 6-7), Jesus passa das palavras aos actos e prepara-se para dar a "luz" ao cego. Começa por cuspir no chão, fazer lodo com a saliva e ungir com esse lodo os olhos do cego. O gesto de fazer lodo reproduz, evidentemente, o gesto criador de Deus de Gn 2,7 (quando Deus amassou o barro e modelou o homem). A saliva transmitia, pensava-se, a própria força ou energia vital (equivale ao sopro de Deus, que deu vida a Adão - cf. Gn 2,7). Assim, Jesus juntou ao barro a sua própria energia vital, repetindo o gesto criador de Deus. A missão de Jesus é criar um Homem Novo, animado pelo Espírito de Jesus.
    No entanto, a cura não é imediata: requer-se a cooperação do enfermo. "Vai lavar-te na piscina de Siloé" - diz-lhe Jesus. A disponibilidade do cego em obedecer à ordem de Jesus é um elemento essencial na cura e sublinha a sua adesão à proposta que Jesus lhe faz. A referência ao banho na piscina do "enviado" (o autor deste texto tem o cuidado de explicar que Siloé significa "enviado") é, evidentemente, uma alusão à água de Jesus (o enviado do Pai), essa água que torna os homens novos, livres das trevas/escravidão. A comunidade joânica pretenderá, certamente, fazer aqui uma catequese sobre o baptismo: quem quiser sair das trevas para viver na luz, como Homem Novo, tem de aceitar a água do baptismo - isto é, tem de optar por Jesus e acolher a proposta de vida que Ele oferece.
    Depois, o autor do texto coloca em cena várias personagens; essas personagens vão assumir representar vários papéis e assumir atitudes diversas diante da cura do cego.
    Os primeiros a ocupar a cena são os vizinhos e conhecidos do cego (vers. 8-12). A imagem do cego, dependente e inválido, transformado em homem livre e independente, leva os seus concidadãos a interrogar-se. Percebem que de Jesus vem o dom da vida em plenitude; talvez anseiem pelo encontro com Jesus, mas não se atrevem a dar o passo definitivo (ir ao encontro de Jesus) para ter acesso à "luz". Representam aqueles que percebem a novidade da proposta que Jesus traz, que sabem que essa proposta é libertadora, mas que vivem na inércia, no comodismo e não estão dispostos a sair do seu "cantinho", do seu mundo limitado, para ir ao encontro da "luz".
    Um outro grupo que aparece em cena é o dos fariseus (vers. 13-17). Eles sabem perfeitamente que Jesus oferece a "luz"; mas recusam-na liminarmente. Para eles, interessa continuar com o esquema das "trevas". Representam aqueles que têm conhecimento da novidade de Jesus, mas não estão dispostos a acolhê-la. Sentem-se mais confortáveis nos seus esquemas de escravidão e auto-suficiência e não estão dispostos a renunciar às "trevas". Mais: opõem-se decididamente à "luz" que Jesus oferece e não aceitam que alguém queira sair da escravidão para a liberdade. Quando constatam que o homem curado por Jesus não está disposto a voltar atrás e a regressar aos esquemas de escravidão, expulsam-no da sinagoga: entre as "trevas" (que os dirigentes querem manter) e a "luz" (que Jesus oferece), não pode haver compromisso.
    Depois, aparecem em cena os pais do cego (vers. 18-23). Eles limitam-se a constatar o acontecimento (o filho nasceu cego e agora vê), mas evitam comprometer-se. Na sua atitude, transparece o medo de quem é escravo e não tem coragem de passar das "trevas" para a "luz". O texto explica, inclusive, que eles "tinham medo de ser expulsos da sinagoga". A "sinagoga" designava o local do encontro da comunidade israelita; mas designava, também, a própria comunidade do Povo de Deus. Ser expulso da "sinagoga" significava a excomunhão, o risco de ser declarado herege e apóstata, de perder os pontos de referência comunitários, o cair na solidão, no ridículo, no descrédito e na marginalidade. Preferem a segurança da ordem estabelecida - embora injusta e opressora - do que os riscos da vida livre. Representam todos aqueles que, por medo, preferem continuar na escravidão, não provocar os dirigentes ou a opinião pública, do que correr o risco de aceitar a proposta transformadora de Jesus.
    Finalmente, reparemos no "percurso" que o homem curado por Jesus faz. Antes de se encontrar com Jesus, é um homem prisioneiro das "trevas", dependente e limitado. Depois, encontra-se com Jesus e recebe a "luz" (do encontro com Jesus resulta sempre uma proposta de vida nova para o homem). O relato descreve - com simplicidade, mas também de uma forma muito bela - a progressiva transformação que o homem vai sofrendo. Nos momentos imediatos à cura, ele não tem ainda grandes certezas (quando lhe perguntam por Jesus, responde: "não sei"; e quando lhe perguntam quem é Jesus, ele responde: "é um profeta"); mas a "luz" que agora brilha na sua vida vai-o amadurecendo progressivamente. Confrontado com os dirigentes e intimado a renegar a "luz" e a liberdade recebidas, ele torna-se, em dado momento, o homem das certezas, das convicções; argumenta com agilidade e inteligência, joga com a ironia, recusa-se a regressar à escravidão: mostra o homem adulto, maduro, livre, sem medo... É isso que a "luz" que Jesus oferece produz no homem. Finalmente, o texto descreve o estádio final dessa caminhada progressiva: a adesão plena a Jesus (vers. 35-38). Encontrando o ex-cego, Jesus convida-o a aderir ao "Filho do Homem" ("acreditas no Filho do Homem?" - vers. 35); a resposta do ex-cego é a adesão total: "creio, Senhor" (vers. 38). O título "Senhor" ("kyrios") era o título com que a comunidade cristã primitiva designava Jesus, o Senhor glorioso. Diz, ainda, o texto, que o ex-cego se prostrou e adorou Jesus: adorar significa reconhecer Jesus como o projecto de Homem Novo que Deus apresenta aos homens, aderir a Ele e segui-l'O.
    Neste percurso está simbolicamente representado o "caminho" do catecúmeno. O primeiro passo é o encontro com Jesus; depois, o catecúmeno manifesta a sua adesão à "luz" e vai amadurecendo a sua descoberta... Torna-se, progressivamente, um homem livre, sem medo, confiante; e esse "caminho" desemboca na adesão total a Jesus, no reconhecimento de que Ele é o Senhor que conduz a história e que tem uma proposta de vida para o homem... Depois disto, ao cristão nada mais interessa do que seguir Jesus.
    A missão de Jesus é aqui apresentada como criação de um Homem Novo. Deus criou o homem para ser livre e feliz; mas o egoísmo, o orgulho, a auto-suficiência, dominaram o coração do homem, prenderam-no num esquema de "cegueira" e frustraram o projecto de Deus. A missão de Jesus consistirá em destruir essa "cegueira", libertar o homem e fazê-lo viver na "luz". Trata-se de uma nova criação... Assim, da acção de Jesus irá nascer um Homem Novo, liberto do egoísmo e do pecado, vivendo na liberdade, a caminho da vida em plenitude.

    ACTUALIZAÇÃO

    Considerar, na reflexão, as seguintes propostas:

    • Nós, os crentes, não podemos fechar-nos num pessimismo estéril, decidir que o mundo "está perdido" e que à nossa volta só há escuridão... No entanto, também não podemos esconder a cabeça na areia e dizer que tudo está bem. Há, objectivamente, situações, instituições, valores e esquemas que mantêm o homem encerrado no seu egoísmo, fechado a Deus e aos outros, incapaz de se realizar plenamente. O que é que, no nosso mundo, gera escuridão, trevas, alienação, cegueira e morte? O que é que impede o homem de ser livre e de se realizar plenamente, conforme previa o projecto de Deus?

    • A catequese que João nos propõe hoje garante-nos: a realização plena do homem continua a ser a prioridade de Deus. Jesus Cristo, o Filho de Deus, veio ao encontro dos homens e mostrou-lhes a luz libertadora: convidou-os a renunciar ao egoísmo e auto-suficiência que geram "trevas", sofrimento, escravidão e a fazerem da vida um dom, por amor. Aderir a esta proposta é viver na "luz". Como é que eu me situo face ao desafio que, em Jesus, Deus me faz?

    • O Evangelho deste domingo descreve várias formas de responder negativamente à "luz" libertadora que Jesus oferece. Há aqueles que se opõem decididamente à proposta de Jesus porque estão instalados na mentira e a "luz" de Jesus só os incomoda; há aqueles que têm medo de enfrentar as "bocas", as críticas, que se deixam manipular pela opinião dominante, e que, por medo, preferem continuar escravos do que arriscar ser livres; há aqueles que, apesar de reconhecerem as vantagens da "luz", deixam que o comodismo e a inércia os prendam numa vida de escravos... Eu identifico-me com algum destes grupos?

    • O cego que escolhe a "luz" e que adere incondicionalmente a Jesus e à sua proposta libertadora é o modelo que nos é proposto. A Palavra de Deus convida-nos, neste tempo de Quaresma, a um processo de renovação que nos leve a deixar tudo o que nos escraviza, nos aliena, nos oprime - no fundo, tudo o que impede que brilhe em nós a "luz" de Deus e que impede a nossa plena realização. Para que a celebração da ressurreição - na manhã de Páscoa - signifique algo, é preciso realizarmos esta caminhada quaresmal e renascermos, feitos Homens Novos, que vivem na "luz" e que dão testemunho da "luz". O que é que eu posso fazer para que isso aconteça?

    • Receber a "luz" que Cristo oferece é, também, acender a "luz" da esperança no mundo. O que é que eu faço para eliminar as "trevas" que geram sofrimento, injustiça, mentira e alienação? A "luz" de Cristo que os padrinhos me passaram no dia em que fui baptizado brilha em mim e ilumina o mundo?

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 4º DOMINGO DA QUARESMA
    (adaptadas de "Signes d'aujourd'hui")

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
    Ao longo dos dias da semana anterior ao 4º Domingo da Quaresma, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo... Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa... Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. FAZER UMA PROCISSÃO DA LUZ.
    Para pôr em evidência a passagem das trevas à luz proclamada por todos os textos deste domingo, poder-se-á organizar uma procissão da luz para entrada da celebração e cantar um cântico com referência à Luz. Os portadores das luzes (velas acesas) poderão juntar-se à volta do evangeliário para a leitura do Evangelho: Cristo é a Luz do mundo!

    3. LER O EVANGELHO A DIVERSAS VOZES.
    Como mo domingo passado, o Evangelho (na sua forma longa) pode ser lido a diversas vozes: narrador, Jesus, cego, fariseus. De qualquer modo, é bom recordar que a leitura deve ser bem preparada e proclamada, para que seja escutada como Palavra de Deus e não como uma mera encenação...

    4. BILHETE DE EVANGELHO.
    A vida é conversão! Aquele que está na verdade vem à luz, diz Jesus a Nicodemos quando o vem encontrar de noite. Esta palavra também nos é dirigida. Fazer uma caminhada de reconciliação é fazer sempre a verdade. Receber o perdão é acolher sempre a luz. Mas antes de fazer esta caminhada, é preciso decidir voltar para Deus. Deus nunca se afastou de nós, não esqueçamos isso. Eis porque, antes de nos confessarmos, devemos confessar (= afirmar com outros) que Deus é Amor. Somos nós que nos afastamos de Deus. Tomamos distância em relação a Deus cada vez em que não amamos ou amamos mal. O pecado é tudo o que é contrário ao amor por Deus e pelos irmãos. Deus espera-nos. Demos-lhe a alegria de nos perdoar.

    5. ORAÇÃO NA LECTIO DIVINA.
    Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.

    No final da primeira leitura:
    Nós Te louvamos, ó Pai, porque nos julgas não segundo as aparências, mas olhas o coração do homem. Nós Te bendizemos pelo teu Espírito que nos dás e que faz de nós um povo real e sacerdotal.
    Nós Te pedimos pelos pais e pelos educadores, pelas autoridades nas nossas sociedades, mas também pelos seus eleitores, responsáveis pelas boas escolhas.

    No final da segunda leitura:
    Nós Te damos graças, Cristo, Luz do mundo, que Te levantaste de entre os mortos, Tu que nos iluminas desde o nosso baptismo.
    Nós Te pedimos: arranca-nos das trevas, que o teu Espírito nos faça viver como filhos e filhas da luz, e que Ele produza em nós frutos de bondade, de justiça e de verdade, que Ele nos torne capazes de agradar a Deus.

    No final do Evangelho:
    Nós Te bendizemos pela nova criação realizada pelo teu Filho, que remodelou a nossa humanidade, e pela cura dos nossos olhos, quando estão fechados ao próximo e à luz da tua presença.

    6. ORAÇÃO EUCARÍSTICA.
    Pode-se escolher a Oração Eucarística III da Assembleia com Crianças.

    7. PALAVRA PARA O CAMINHO.
    Um outro olhar... "Deus não vê à maneira dos homens, os homens vêem a aparência, mas o Senhor olha o coração". Uma Palavra para reajustar os nossos critérios de julgamento: Que olhar temos nós sobre as pessoas? Sobre os acontecimentos? Uma Palavra para nos alegrar também com as escolhas do nosso Pai que olha a verdade dos nossos corações!

     

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    Proposta para
    ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA NAS COMUNIDADES DEHONIANAS
    Grupo Dinamizador:
    P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 - 1800-129 LISBOA - Portugal
    Tel. 218540900 - Fax: 218540909
    portugal@dehonianos.org - www.dehonianos.org

  • 05º Domingo da Quaresma - Ano A

    05º Domingo da Quaresma - Ano A


    26 de Março, 2023

    ANO A
    5º DOMINGO DA QUARESMA

    Tema do 5º Domingo da Quaresma

    Neste 5º Domingo da Quaresma, a liturgia garante-nos que o desígnio de Deus é a comunicação de uma vida que ultrapassa definitivamente a vida biológica: é a vida definitiva que supera a morte.
    Na primeira leitura, Jahwéh oferece ao seu Povo exilado, desesperado e sem futuro (condenado à morte) uma vida nova. Essa vida vem pelo Espírito, que irá recriar o coração do Povo e inseri-lo numa dinâmica de obediência a Deus e de amor aos irmãos.
    O Evangelho garante-nos que Jesus veio realizar o desígnio de Deus e dar aos homens a vida definitiva. Ser "amigo" de Jesus e aderir à sua proposta (fazendo da vida uma entrega obediente ao Pai e um dom aos irmãos) é entrar na vida definitiva. Os crentes que vivem desse jeito experimentam a morte física; mas não estão mortos: vivem para sempre em Deus.
    A segunda leitura lembra aos cristãos que, no dia do seu Baptismo, optaram por Cristo e pela vida nova que Ele veio oferecer. Convida-os, portanto, a ser coerentes com essa escolha, a fazerem as obras de Deus e a viverem "segundo o Espírito".

    LEITURA I - Ez 37,12-14

    Leitura da Profecia de Ezequiel

    Assim fala o Senhor Deus:
    «Vou abrir os vossos túmulos
    e deles vos farei ressuscitar, ó meu povo,
    para vos reconduzir à terra de Israel.
    Haveis de reconhecer que Eu sou o Senhor,
    quando abrir os vossos túmulos
    e deles vos fizer ressuscitar, ó meu povo.
    Infundirei em vós o meu espírito e revivereis.
    Hei-de fixar-vos na vossa terra
    e reconhecereis que Eu, o Senhor, o disse e o executarei».

    AMBIENTE

    Ezequiel é chamado "o profeta da esperança". Desterrado na Babilónia desde 597 a.C. (no reinado de Joaquin, quando Nabucodonosor conquista, pela primeira vez, Jerusalém e deporta para a Babilónia um primeiro grupo de jerusalimitanos), Ezequiel exerce aí a sua missão profética entre os exilados judeus.
    A primeira fase do ministério de Ezequiel decorre entre 593 a.C. (altura em que sentiu o chamamento de Deus) e 586 a.C. (data em que Jerusalém é arrasada pelas tropas de Nabucodonosor e uma nova leva de exilados é encaminhada para a Babilónia). Nesta fase, Ezequiel procura destruir falsas esperanças e anuncia que, ao contrário do que pensam os exilados, o cativeiro está para durar... Eles não só não vão regressar em breve a Jerusalém, mas os que ficaram em Jerusalém (e que continuam a multiplicar os pecados e infidelidades) vão fazer companhia aos que já estão desterrados na Babilónia.
    A segunda fase do ministério de Ezequiel desenrola-se a partir de 586 a.C., até cerca de 570 a.C. Instalados numa terra estrangeira, sem Templo, sem sacerdócio e sem culto, os exilados estão desesperados e duvidam da bondade e do amor de Deus. Nessa fase, Ezequiel procura alimentar a esperança dos exilados e transmitir ao Povo a certeza de que o Deus libertador e salvador não os abandonou.
    O texto que nos é proposto como primeira leitura pertence à segunda fase. Faz parte da famosa "visão dos ossos calcinados" (cf. Ez 37). Ezequiel descreve a visão de uma planície cheia de ossos calcinados e sem vida; mas, na visão do profeta, o Espírito do Senhor sopra sobre os ossos calcinados e eles são revestidos de pele, de músculos e ganham vida. Nesta parábola, os ossos calcinados representam o Povo de Deus, que jaz abandonado, sem esperança e sem futuro, no meio da planície mesopotâmica.

    MENSAGEM

    A situação de desespero em que estão os exilados é uma situação de morte. Eles sentem-se próximos da ruína e do aniquilamento e não vêem no horizonte quaisquer perspectivas de futuro. O texto define esta situação de ausência total de esperança como "estar no túmulo".
    No entanto, é aqui que Deus entra. Jahwéh vai transformar a morte em vida, o desespero em esperança, a escravidão em libertação. O que é que Deus vai fazer, nesse sentido?
    Em termos concretos, Jahwéh promete ao Povo o regresso à sua terra, restaurando a esperança dos exilados num futuro de felicidade e de paz... Mas Deus vai fazer ainda mais: vai derramar o seu Espírito (o "ruah") sobre o Povo condenado à morte.
    Esta referência à acção do Espírito de Deus na revivificação do homem coloca-nos no mesmo contexto de Gn 2,7: no homem que criou do barro, Deus infundiu o seu "hálito de vida" ("neshamá") para o tornar um ser vivente; aqui, sobre o Povo que jaz no túmulo, Deus "infunde o seu Espírito" ("ruah" - Ez 37,14). Trata-se, portanto, de uma nova criação.
    No entanto, o "ruah", que aqui é transmitido ao Povo que jaz no túmulo, é mais do que a simples "força vital", que dá vida física ao homem: é a vida divina que transforma completamente os homens, fazendo com que os corações de pedra - duros, insensíveis, auto-suficientes - se transformem em corações de carne, sensíveis e bons, capazes de amar Deus e os irmãos (cf. Ez 36,26-27). Esta nova criação vai, portanto, muito mais longe do que a antiga criação.
    Então, com um coração de carne capaz de compreender o amor, o Povo reconhecerá a bondade de Deus, a sua fidelidade à Aliança e às promessas que fez ao seu Povo.
    A questão mais significativa é que, apesar das aparências, Deus não abandona o seu Povo à morte. Mesmo quando tudo parece perdido e sem saída, Deus lá está, transformando o desespero em esperança, a morte em vida. Jahwéh é o Deus da vida, que encontra sempre formas de transmitir vida ao seu Povo. Em cada instante da história Ele está presente, recriando o seu Povo, transformando-o, renovando-o, encaminhando-o para a vida plena.

    ACTUALIZAÇÃO

    Reflectir as seguintes questões:

    • Na nossa existência pessoal passamos, muitas vezes, por situações de desespero, em que tudo parece perder o sentido. A morte de alguém querido, o desmoronar dos laços familiares, a traição de um amigo ou de alguém a quem amamos, a perda do emprego, a solidão, a falta de objectivos lançam-nos muitas vezes num vazio do qual não conseguimos facilmente sair. A Palavra de Deus garante-nos: não estamos perdidos e abandonados à nossa miséria e finitude... Deus caminha ao nosso lado; em cada instante Ele lá está, tirando vida da morte, "escrevendo direito por linhas tortas", dando-nos a coragem de "sair do sepulcro" e avançar mais um passo ao encontro da vida plena.

    • Mais: Deus recria-nos, cada dia, oferecendo-nos o Espírito transformador e renovador, que elimina dos nossos corações o orgulho e o egoísmo (afinal, os grandes responsáveis pelo sofrimento, pela injustiça
    , pela violência) e transformando-nos em pessoas novas, com um coração sensível ao amor e às necessidades dos outros.

    • Ver os telejornais ou ler os jornais é - mais do que nos mantermos a par dos passos que o mundo vai dando - um autêntico exercício de masoquismo: parece que só há dramas, sofrimentos, injustiças e violências, como se o mundo fosse um imenso campo de morte. No entanto, nós os crentes sabemos que, apesar do sofrimento que faz parte da condição de fragilidade em que vivemos, Deus está presente na história humana, criando vida e oferecendo a esperança aos homens nesses mil e um gestos de bondade, de ternura e de amor que acontecem a cada instante (e que não chegam aos jornais ou às objectivas da televisão porque "não vendem" e, por isso, não são notícia). A Palavra Deus que hoje nos é proposta sugere que o crente - pelo simples facto de acreditar em Deus - deve ser um arauto da esperança.

    • É sempre Deus - e só Deus - que oferece aos homens a vida e a esperança... No entanto, Deus age no mundo através de homens - como Ezequiel - que distribuem a vida nova de Deus, com palavras e com gestos. Já pensei que Deus me chama a ser uma luz de esperança no mundo? Tenho consciência de que é através dos meus gestos e das minhas palavras que Deus oferece a sua vida aos homens meus irmãos?

    SALMO RESPONSORIAL - SALMO 129 (130)

    Refrão 1: No Senhor está a misericórdia e abundante redenção.

    Refrão 2: No Senhor está a misericórdia,
    no Senhor está a plenitude da redenção.

    Do profundo abismo chamo por Vós, Senhor,
    Senhor, escutai a minha voz.
    Estejam os vossos ouvidos atentos
    à voz da minha súplica.

    Se tiverdes em conta as nossas faltas,
    Senhor, quem poderá salvar-se?
    Mas em Vós está o perdão,
    para Vos servirmos com reverência.

    Eu confio no Senhor,
    a minha alma espera na sua palavra.
    A minha alma espera pelo Senhor
    mais do que as sentinelas pela aurora.

    Porque no Senhor está a misericórdia
    e com Ele abundante redenção.
    Ele há-de libertar Israel
    de todas as suas faltas.

    LEITURA II - Rom 8,8-11

    Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Romanos

    Irmãos:
    Os que vivem segundo a carne não podem agradar a Deus.
    Vós não estais sob o domínio da carne, mas do Espírito,
    se é que o Espírito de Deus habita em vós.
    Mas, se alguém não tem o Espírito de Cristo,
    não Lhe pertence.
    Se Cristo está em vós,
    embora o vosso corpo seja mortal por causa do pecado,
    o espírito permanece vivo por causa da justiça.
    E, se o Espírito d'Aquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos
    habita em vós,
    Ele, que ressuscitou Cristo Jesus de entre os mortos,
    também dará vida aos vossos corpos mortais,
    pelo seu Espírito que habita em vós.

    AMBIENTE

    Já dissemos, noutras circunstâncias, que a Carta aos Romanos é um texto sereno e didáctico, no qual Paulo faz uma espécie de resumo do seu pensamento teológico e expõe a sua concepção daquilo que é essencial na mensagem cristã. Numa época (anos 57/58) em que existem problemas graves de entendimento e de perspectiva entre os cristãos vindos do judaísmo e os cristãos vindos do paganismo, Paulo sublinha a unidade da revelação e da história da salvação: Deus tem um projecto de salvação e de vida plena, que se destina a todos os homens, sem excepção.
    Depois de provar que todos os homens (judeus e pagãos) vivem no domínio do pecado (cf. Rom 1,18-3,20), mas que a "justiça de Deus" oferece a vida a todos, sem distinção (cf. Rom 3,21-5,11), Paulo mostra como é que, através de Jesus Cristo, essa vida se comunica ao homem (cf. Rom 5,12-8,39).
    Indo mais ao pormenor: como é, então, que a vida de Deus se comunica ao homem? Paulo desenvolve o seu pensamento de acordo com a seguinte sequência: a obediência de Cristo ao plano do Pai fez com que a graça da salvação fosse oferecida a todos os homens (cf. Rom 5,12-20); acolhendo essa graça e aceitando receber o Baptismo, os homens tornam-se todos participantes do dom de Deus (cf. Rom 6,1-23); a adesão a Cristo faz os homens livres das cadeias do egoísmo e do pecado e transforma-os em homens novos (cf. Rom 7,1-25); e é o Espírito (dado ao crente no baptismo) que potencia essa vida nova (cf. Rom 8,1-39).

    MENSAGEM

    O Espírito é, verdadeiramente, a personagem central do capítulo 8 da Carta aos Romanos (o termo "pneuma" - "espírito" - aparece trinta e quatro vezes na Carta aos Romanos; e, dessas trinta e quatro, vinte e uma são neste capítulo). De acordo com a perspectiva teológica de Paulo, o Espírito é o responsável pelo facto de a vida nova que Deus oferece ao homem crescer e se desenvolver.
    Neste capítulo, Paulo desenvolve uma das suas mais famosas antíteses: "carne"/"Espírito". "Viver segundo a carne" significa, em Paulo, uma vida conduzida à margem de Deus: o "homem da carne" é o homem do egoísmo e da auto-suficiência, cujos valores são o ciúme, o ódio, a ambição, a inveja, a libertinagem (cf. Gal 5,19-21); "viver segundo o Espírito" significa, em Paulo, uma vida vivida na órbita de Deus, pautada pelos valores da caridade, da alegria, da paz, da fidelidade e da temperança (cf. Gal 5,22-23).
    Paulo recorda aos crentes, no texto que nos é proposto, que o cristão, no dia do seu baptismo, optou pela vida do Espírito. A partir daí, vive sob o domínio do Espírito - isto é, vive aberto a Deus, recebe vida de Deus, torna-se "filho de Deus". Identifica-se, portanto, com Cristo; e assim como Cristo - depois de uma vida vivida "no Espírito" (isto é, depois de uma vida de renúncia ao egoísmo e ao pecado e de opção por Deus e pelas suas propostas) - ressuscitou e foi elevado definitivamente à glória do Pai, assim o cristão está destinado à vida nova, à vida plena, à vida eterna.
    É, pois, o Espírito - presente naqueles que renunciaram à vida da "carne" e aderiram a Jesus - que liberta os crentes do pecado e da morte, que os transforma em homens novos e que os leva em direcção à vida plena, à vida definitiva.

    ACTUALIZAÇÃO

    Para a reflexão, considerar os seguintes dados:

    • Na verdade, no dia do meu Baptismo, eu escolhi a vida "segundo o Espírito" (provavelmente, fui baptizado muito pequenino, numa altura em que não tinha consciência plena do que isso significava; mas, mais tarde, tive a oportunidade - em vários m
    omentos da minha caminhada cristã - de validar e confirmar essa opção inicial). A minha vida tem sido coerente com essa opção? A minha vida tem-se desenrolado à margem de Deus e das suas propostas ("vida segundo a carne") ou na escuta atenta e consequente dos projectos de Deus ("vida segundo o Espírito")?

    • O baptizado é alguém que escolheu identificar-se com Cristo - isto é, alguém que escolheu viver na obediência aos planos do Pai e no dom da vida em favor dos irmãos. O exemplo de Cristo garante-me: uma vida gasta desse jeito não termina no fracasso, mas na vida definitiva, na felicidade total. A realização plena do homem não está nos valores efémeros (muitas vezes propostos como os valores mais fundamentais), mas no amor e no dom da vida. É daí que brota a ressurreição.

    ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO - Jo 11, 25a.26

    Escolher um dos refrães:

    Refrão 1: Louvor e glória a Vós, Jesus Cristo, Senhor.
    Refrão 2: Glória a Vós, Jesus Cristo, Sabedoria do Pai.
    Refrão 3: Glória a Vós, Jesus Cristo, Palavra do Pai.
    Refrão 4: Glória a Vós, Senhor, Filho do Deus vivo.
    Refrão 5: Louvor a Vós, Jesus Cristo, Rei da eterna glória.
    Refrão 6: Grandes e admiráveis são as vossas obras, Senhor.
    Refrão 7: A salvação, a glória e o poder a Jesus Cristo, Nosso Senhor.

    Eu sou a ressurreição e a vida, diz o Senhor.
    Quem acredita em Mim nunca morrerá.

    EVANGELHO - Jo 11,1-45

    Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

    Naquele tempo,
    estava doente certo homem, Lázaro de Betânia,
    aldeia de Marta e de Maria, sua irmã.
    Maria era aquela que tinha ungido o Senhor com perfume
    e Lhe tinha enxugado os pés com os cabelos.
    Era seu irmão Lázaro que estava doente.
    As irmãs mandaram então dizer a Jesus:
    «Senhor, o teu amigo está doente».
    Ouvindo isto, Jesus disse:
    «Essa doença não é mortal, mas é para a glória de Deus,
    para que por ela seja glorificado o Filho do homem».
    Jesus era amigo de Marta, de sua irmã e de Lázaro.
    Entretanto, depois de ouvir dizer que ele estava doente,
    ficou ainda dois dias no local onde Se encontrava.
    Depois disse aos discípulos:
    «Vamos de novo para a Judeia».
    Os discípulos disseram-Lhe:
    «Mestre, ainda há pouco os judeus procuravam apedrejar-Te
    e voltas para lá?»
    Jesus respondeu:
    «Não são doze as horas do dia?
    Se alguém andar de dia, não tropeça,
    porque vê a luz deste mundo.
    Mas se andar de noite, tropeça,
    porque não tem luz consigo».
    Dito isto, acrescentou:
    «O nosso amigo Lázaro dorme, mas Eu vou despertá-lo».
    Disseram então os discípulos:
    «Senhor, se dorme, está salvo».
    Jesus referia-se à morte de Lázaro,
    mas eles entenderam que falava do sono natural.
    Disse-lhes então Jesus abertamente:
    «Lázaro morreu;
    por vossa causa, alegro-Me de não ter estado lá,
    para que acrediteis.
    Mas, vamos ter com ele».
    Tomé, chamado Dídimo, disse aos companheiros:
    «Vamos nós também, para morrermos com Ele».
    Ao chegar, Jesus encontrou o amigo sepultado havia quatro dias.
    Betânia distava de Jerusalém cerca de três quilómetros.
    Muitos judeus tinham ido visitar Marta e Maria,
    para lhes apresentar condolências pela morte do irmão.
    Quando ouviu dizer que Jesus estava a chegar,
    Marta saiu ao seu encontro,
    enquanto Maria ficou sentada em casa.
    Marta disse a Jesus:
    «Senhor, se tivesses estado aqui,
    meu irmão não teria morrido.
    Mas sei que, mesmo agora, tudo o que pedires a Deus,
    Deus To concederá».
    Disse-lhe Jesus: «Teu irmão ressuscitará».
    Marta respondeu:
    «Eu sei que há-de ressuscitar na ressurreição, no último dia».
    Disse-lhe Jesus:
    «Eu sou a ressurreição e a vida.
    Quem acredita em Mim,
    ainda que tenha morrido, viverá;
    E todo aquele que vive e acredita em Mim, nunca morrerá.
    Acreditas nisto?»
    Disse-Lhe Marta:
    «Acredito, Senhor, que Tu és o Messias, o Filho de Deus,
    que havia de vir ao mundo».
    Dito isto, retirou-se e foi chamar Maria,
    a quem disse em segredo:
    «O Mestre está ali e manda-te chamar».
    Logo que ouviu isto, Maria levantou-se e foi ter com Jesus.
    Jesus ainda não tinha chegado à aldeia,
    mas estava no lugar em que Marta viera ao seu encontro.
    Então os judeus que estavam com Maria em casa
    para lhe apresentar condolências,
    ao verem-na levantar-se e sair rapidamente,
    seguiram-na, pensando que se dirigia ao túmulo para chorar.
    Quando chegou aonde estava Jesus,
    Maria, logo que O viu, caiu-Lhe aos pés e disse-Lhe:
    «Senhor, se tivesses estado aqui,
    meu irmão não teria morrido».
    Jesus, ao vê-la chorar,
    e vendo chorar também os judeus que vinham com ela,
    comoveu-Se profundamente e perturbou-Se.
    Depois perguntou: «Onde o pusestes?»
    Responderam-Lhe: «Vem ver, Senhor».
    E Jesus chorou.
    Diziam então os judeus:
    «Vede como era seu amigo».
    Mas alguns deles observaram:
    «Então Ele, que abriu os olhos ao cego,
    não podia também ter feito que este homem não morresse?»
    Entretanto, Jesus, intimamente comovido, chegou ao túmulo.
    Era uma gruta, com uma pedra posta à entrada.
    Disse Jesus: «Tirai a pedra».
    Respondeu Marta, irmã do morto:
    «Já cheira mal, Senhor, pois morreu há quatro dias».
    Disse Jesus:
    «Eu não te disse que, se acreditasses,
    verias a glória de Deus?»
    Tiraram então a pedra.
    Jesus, levantando os olhos ao Céu, disse:
    «Pai, dou-Te graças por Me teres ouvido.
    Eu bem sei que sempre Me ouves,
    mas falei assim por causa da multidão que nos cerca,
    para acreditarem que Tu Me enviaste».
    Dito isto, bradou com voz forte:
    «Lázaro, sai para fora».
    O morto saiu, de mãos e pés enfaixados com ligaduras
    e o rosto envolvido num sudário.
    Disse-lhes Jesus:
    «Desligai-o e deixai-o ir».
    Então muitos judeus, que tinham ido visitar Maria,
    ao verem o que Jesus fizera, acreditaram n'Ele.

    AMBIENTE

    O Evangelho segundo João procura apresentar Jesus como o Messias, Filho de Deus, enviado pelo Pai para criar um Homem Novo. No "Livro dos Sinais" (cf. Jo 4,1-11,56), o autor apresenta - recorrendo aos "sinais" da água (cf. Jo 4,1-5,47), do pão (cf. Jo 6,1-7,53), da luz (cf. Jo 8,12-9,41), do pastor (cf. Jo 10,1-42) e da vida (cf. Jo 11,1-56) - um conjunto de cateque
    ses sobre a acção criadora e vivificadora do Messias.
    O texto que hoje nos é proposto é, exactamente, a quinta catequese (a da vida) do "Livro dos Sinais". Trata-se de uma narração única, que não tem paralelo nos outros três Evangelhos.
    A cena situa-nos em Betânia, uma aldeia a Este do monte das Oliveiras, a cerca de três quilómetros de Jerusalém. O autor da catequese coloca-nos diante de um episódio - um triste episódio - familiar: a morte de um homem. A família mencionada, constituída por três pessoas (Marta, Maria e Lázaro), parece conhecida de Jesus: no vers. 5, diz-se que Jesus amava Marta, a sua irmã Maria e Lázaro. A visita de Jesus a casa desta família é, aliás, mencionada em Lc 10,38-42; e João tem o cuidado de observar que a Maria, aqui referenciada, é a mesma que tinha ungido o Senhor com perfume e lhe tinha enxugado os pés com os cabelos (vers. 2, cf. Jo 12,1-8).

    MENSAGEM

    A família de Betânia apresenta algumas características dignas de nota...
    Em primeiro lugar, o autor da narração não faz qualquer referência a outros membros, para além de Maria, Marta e Lázaro: não há pai, nem mãe, nem filhos. Além disso, João insiste no grau de parentesco que une os três: são "irmãos" (vers. 1.2b.3.5.19.21.23.28.32.39). A palavra "irmão" ("adelfós") será a palavra usada por Jesus, após a ressurreição, para definir a comunidade dos discípulos (Jo 20,17); e este apelativo será comum entre os membros da comunidade cristã primitiva (Jo 21,23).
    Por outro lado, notemos a forma como é descrita a relação entre Jesus e esta família de irmãos... Trata-se de uma família amiga de Jesus, que Jesus conhece e que conhece Jesus, que ama Jesus e que é amada por Jesus, que recebe Jesus em sua casa.
    Um facto abala a vida desta família: um irmão (Lázaro) está gravemente doente. As "irmãs" mostram o seu interesse, preocupação e solidariedade para com o "irmão" doente e informam Jesus.
    A relação de Jesus com Lázaro é de afecto e amizade; mas Jesus não vai imediatamente ao seu encontro; parece, até, atrasar-se deliberadamente (vers. 6). Com a sua passividade, Jesus deixa que a morte física do "amigo" se consume. Provavelmente, na intenção do nosso catequista, o pormenor significa que Jesus não veio para alterar o ciclo normal da vida física do homem, libertando-o da morte biológica; veio, sim, para dar um novo sentido à morte física e para oferecer ao homem a vida eterna.
    Depois de dois dias, Jesus resolve dirigir-se à Judeia ao encontro do "amigo". No entanto, a oposição a Jesus está, precisamente, na Judeia e, de forma especial, em Jerusalém. Os discípulos tentam dissuadi-l'O: eles não entenderam, ainda, que o plano do Pai é que Jesus dê vida ao homem enfermo, mesmo que para isso corra riscos e tenha de oferecer a sua própria vida. Jesus não dá atenção ao medo dos discípulos: a sua preocupação única é realizar o plano do Pai no sentido de dar vida ao homem. Jesus não pode abandonar o "amigo": Ele é o pastor que desafia o perigo por amor dos seus.
    Ao chegar a Betânia, Jesus encontrou o "amigo" sepultado há já quatro dias. De acordo com a mentalidade judaica, a morte era considerada definitiva a partir do terceiro dia. Quando Jesus chega, Lázaro está, pois, verdadeiramente morto. Jesus não elimina a morte física; mas, para quem é "amigo" de Jesus, a morte física não é mais do que um sono, do qual se acorda para descobrir a vida definitiva.
    Por esta altura, entram em cena as "irmãs" de Lázaro. Marta é a primeira. Vem ao encontro de Jesus e insinua a sua reprovação: Jesus podia ter evitado a morte do amigo, se tivesse estado presente, pois onde Ele está reina a vida. No entanto, mesmo agora, Jesus poderá interceder junto de Deus, Deus atendê-lo-á e devolverá a vida física a Lázaro. Marta acredita em Deus; acredita que Jesus é um profeta, através de quem Deus actua no mundo; mas ainda não tem consciência de que Jesus é a vida do Pai e que Ele próprio dá a vida.
    Jesus inicia a sua catequese dizendo-lhe: "teu irmão ressuscitará". Marta pensa que as palavras de Jesus são uma consolação banal e que Ele se refere à crença farisaica, segundo a qual os mortos haveriam de reviver, no final dos tempos, quando se registasse a última intervenção de Deus na história humana. Isso ela já sabe; mas não chega: esse último dia ainda está tão longe...
    Jesus, no entanto, não fala da ressurreição no final dos tempos. O que Ele diz é que, para quem é amigo de Jesus, não há morte, sequer. Jesus é "a ressurreição e a vida". Para os seus amigos, a morte física é apenas a passagem desta vida para a vida plena. Jesus não evita a morte física; mas Ele oferece ao homem essa vida que se prolonga para sempre. Para que essa vida definitiva possa chegar ao homem é necessário, no entanto, que o homem adira a Jesus e O siga, num caminho de amor e de dom da vida ("todo aquele que vive e acredita em mim, nunca morrerá"). A comunidade de Jesus (a comunidade dos que aderiram a Ele e ao seu projecto) é a comunidade daqueles que já possuem a vida definitiva. Eles passarão pela morte física; mas essa morte será apenas uma passagem para a verdadeira vida. E é essa vida verdadeira que Jesus quer oferecer. Confrontada com esta catequese ("acreditas nisto?"), Marta manifesta a sua adesão ao que Jesus diz e professa a sua fé no Senhor que dá a vida ("acredito, Senhor, que Tu és o Messias, o Filho de Deus que havia de vir ao mundo").
    Maria, a outra irmã, tinha ficado em casa. Está imobilizada, paralisada pela dor sem esperança. Marta - que falara com Jesus e encontrara n'Ele a resposta para a situação que a fazia sofrer - convida a irmã a sair da sua dor e a ir, por sua vez, ao encontro de Jesus. Maria vai rapidamente, sem dar explicações a ninguém: ela tem consciência de que só em Jesus encontrará uma solução para o sofrimento que lhe enche o coração. Também nas palavras de Maria há uma reprovação a Jesus pelo facto de Ele não ter estado presente, impedindo a morte física de Lázaro. Jesus não pronuncia qualquer palavra de consolo, nem exorta à resignação (como é costume fazer nestes casos): vai fazer melhor do que isso e vai mostrar que Ele é, efectivamente, a ressurreição e a vida.
    A cena da ressurreição de Lázaro começa com Jesus a chorar (vers. 35). Não é pranto ruidoso, mas sereno... Jesus mostra, dessa forma, o seu afecto por Lázaro, a sua saudade do amigo ausente. Ele - como nós - sente a dor, diante da morte física de uma pessoa amada; mas a sua dor não é desespero.
    Jesus chega junto do sepulcro de Lázaro. A entrada da gruta onde Lázaro está sepultado está fechada com uma pedra (como era costume, entre os judeus). A pedra é, aqui, símbolo da definitividade da morte. Separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos, cortando qualquer relação entre um e outro.
    Jesus, no entanto, manda tirar essa "pedra": para os crentes, não se trata de duas realidades sem qualquer relação. Jesus, ao oferecer a vida plena, abate as barreiras criadas pela morte física. A morte física não afasta o homem da vida.
    A acção de dar vida a Lázaro representa a concretização da missão que o Pai confiou a Jesus: dar vida plena e definitiva ao homem. É por isso que Jesus, antes de mandar Lázaro sair do sepulcro, ergue os olhos ao céu e dá graças ao Pai (vers. 41b-42): a sua oração demonstra a sua comunhão com o Pai e a sua obediência na concretização do plano do Pai. Depois, Jesus mostra Lázaro vivo na morte, provando à comunidade dos crentes que a morte física não interrompe a vida plena do discípulo que ama Jesus e O segue.
    A família de Betânia representa a comunidade cristã, formada por irmãos e irmãs. Todos eles conhecem Jesus, são amigos de Jesus, acolhem Jesus na sua casa e na sua vida. Essa família também faz a experiência da morte física. Como é que deve lidar com ela? Com o desespero de quem acha que tudo acabou? Com a tristeza de quem acha que a morte venceu, por algum tempo, até que Deus ressuscite o "irmão" morto, no final dos tempos (perspectiva dos fariseus da época de Jesus)?
    Não. Ser amigo de Jesus é saber que Ele é a ressurreição e a vida e que dá aos seus a vida plena, em todos os momentos. Ele não evita a morte física; mas a morte física é, para os que aderiram a Jesus, apenas a passagem (imediata) para a vida verdadeira e definitiva. Para os "amigos" de Jesus - para aqueles que acolhem a sua proposta e fazem da sua vida uma entrega a Deus e um dom aos irmãos - não há morte... Podemos chorar a saudade pela partida de um irmão, mas temos de saber que, ao deixar este mundo, ele encontrou a vida plena, na glória de Deus.

    ACTUALIZAÇÃO

    A reflexão pode fazer-se a partir dos seguintes elementos:

    • A questão principal do Evangelho deste domingo - e que é uma questão determinante para a nossa existência de crentes - é a afirmação de que não há morte para os "amigos" de Jesus - isto é, para aqueles que acolhem a sua proposta e que aceitam fazer da sua vida uma entrega ao Pai e um dom aos irmãos. Os "amigos" de Jesus experimentam a morte física; mas essa morte não é destruição e aniquilação: é, apenas, a passagem para a vida definitiva. Mesmo que estejam privados da vida biológica, não estão mortos: encontraram a vida plena, junto de Deus. A história de Lázaro pretende representar essa realidade.

    • No dia do nosso Baptismo, escolhemos essa vida plena e definitiva que Jesus oferece aos seus e que lhes garante a eternidade. A nossa vida tem sido coerente com essa opção? A nossa existência tem sido uma existência egoísta e fechada, que termina na morte, ou tem sido uma existência de amor, de partilha, de dom da vida, que aponta para a realização plena do homem e para a vida eterna?

    • Ao longo da nossa existência nesta terra, convivemos com situações em que somos tocados pela morte física daqueles a quem amamos... É natural que fiquemos tristes pela sua partida e por eles deixarem de estar fisicamente presentes a nosso lado. A nossa fé convida-nos, no entanto, a ter a certeza de que os "amigos" não são aniquilados: apenas encontraram essa vida definitiva, longe da debilidade e da finitude humanas.

    • Diante da certeza que a fé nos dá, somos convidados a viver a vida sem medo. O medo da morte como aniquilamento total torna o homem cauteloso e impotente face à opressão e ao poder dos opressores; mas libertando-nos do medo da morte, Jesus torna-nos livres e capacita-nos para gastar a vida ao serviço dos irmãos, lutando generosamente contra tudo aquilo que oprime e que rouba ao homem a vida plena.

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 5º DOMINGO DA QUARESMA
    (adaptadas de "Signes d'aujourd'hui")

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
    Ao longo dos dias da semana anterior ao 5º Domingo da Quaresma, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo... Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa... Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. INCLINAÇÃO NO MOMENTO PENITENCIAL.
    Neste domingo sob o signo da Ressurreição e da Vida, eis uma sugestão para renovar o rito penitencial. Depois de uma breve introdução, o presidente da assembleia, virado para a cruz, inclina-se profundamente, assim como toda a assembleia. Permanecer assim durante algum tempo, em profundo silêncio... Seguem-se algumas invocações penitenciais que podem ter como resposta: "Senhor, dai-nos a Vida!"

    3. RENOVAR A PROFISSÃO DE FÉ.
    Habitualmente, dizemos o Credo com um ar demasiado rotineiro e repetitivo... Como transmitir-lhe mais alegria e entusiasmo interior? Uma brevíssima introdução pode motivar a uma maior atenção à recitação do Credo. Pode-se ainda proclamar o Símbolo dos Apóstolos (dando o texto antecipadamente, pois não é sabido de cor). Pode-se também proclamar a fórmula do credo baptismal (dialogada)...

    4. BILHETE DE EVANGELHO.
    A vida é esperança. Estão vivos aqueles que esperam. Depois do momento do nosso nascimento, em que fomos criados, somos habitados pela esperança. Não cessamos de procurar, esperar, desejar. Procuramos os sinais de Deus? Esperamos a sua vinda? Desejamos a sua presença? Neste tempo da Quaresma, somos convidados à conversão. A esperança opera uma mudança nos nossos comportamentos. Não nos contentemos com esperanças que nos podem decepcionar. Nós vivemos de esperança, porque Deus não pode decepcionar-nos. Porque o nosso Deus é um Deus que fala, somos chamados por Ele. A esperança faz-nos escutar os seus apelos e responder-lhes. Sejamos vivos. Sê-lo-emos se nós esperamos.

    5. ORAÇÃO NA LECTIO DIVINA.
    Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.

    No final da primeira leitura:
    Deus, nosso Pai, nós Te bendizemos, porque és o Deus da Vida. Tu o mostraste, libertando o teu povo, desde o tempo de Isaac, de Moisés e do exílio.
    Nós Te pedimos pelo teu novo Povo: levanta as comunidades cristãs de todas as formas de morte, divisões, indiferenças, tédio, isolamento do mundo. Venha sobre nós o teu Espírito de Vida.

    No final da segunda leitura:
    Pai de Jesus Cristo, nós Te damos graças porque o teu Espírito habita em nós e pelo teu Baptismo nos incorporaste ao teu Filho.
    Nós Te pedimos: vê as nossas fraquezas. Abrimos as nossas mãos para Ti, para Te pedir o teu Espírito: que Ele dê vida aos nossos corpos mortais, que Ele nos justifique com a justiça que está em Ti.

    No final do Evangelho:
    Senhor Jesus, proclamamos a tua glória, porque em Ti irradia a luz da vida e da ressurreição: associaste-te aos nossos lutos, chamas os teus amigos a sair dos seus túmulos, Tu arranca-los ao sono da morte.
    Nós Te pedimos: desperta em nós a fé. Tu que libertaste Lázaro das ligaduras, liberta-nos dos laços que nos paralisam diante do próximo.

    6. ORAÇÃO EUCARÍSTICA.
    Pode-se escolher a Oração Eucarística IV.

    7. PALAVRA PARA O CAMINHO.
    O passo da confiança... A que "empresa" estamos nós sujeitos? À do Espírito de Cristo ressuscitado? Ou à da carne, isto é, aquela de todas as contingências humanas que esgotam o nosso tempo e a nossa energia? Ousaremos dar o passo da confiança? Ousaremos entregar-nos a este Espírito que habita em nós para nos comprometermos na sua plenitude de Vida? A quem pertencemos nós?

     

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    Proposta para
    ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA NAS COMUNIDADES DEHONIANAS
    Grupo Dinamizador:
    P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 - 1800-129 LISBOA - Portugal
    Tel. 218540900 - Fax: 218540909
    portugal@dehonianos.org - www.dehonianos.pt

plugins premium WordPress