Eventos Outubro 2024

  • S. Teresa do Menino Jesus, Virgem

    S. Teresa do Menino Jesus, Virgem


    1 de Outubro, 2024

    Santa Teresa do Menino Jesus nasceu em Alençon, França, em 1873. É a filha mais nova dos Beatos Luís Martin e Célia Guérin, casal cristão exemplar. Aos 15 anos, Teresa entrou no Carmelo de Lisieux. A vida de clausura e de contemplação, a vivência da infância espiritual, não a impediram de ser missionária. Pelo contrário, viveu de modo extraordinário o ideal de Santa Teresa de Ávila: "Vim para salvar almas e sobretudo a fim de rogar pelos sacerdotes". A entrega de amor fê-la vítima de amor. Faleceu aos 24 anos de idade, em 1897. Pio XI canonizou-a em 1925, proclamando-a Padroeira das Missões.

    Lectio

    Primeira leitura: Isaías 66, 10-14

    Alegrai-vos com Jerusalém, rejubilai com ela, vós todos que a amais; regozijai-vos com ela, vós todos os que estáveis de luto por ela. 11Como criança amamentando-se ao peito materno, ficareis saciados com o seu seio reconfortante, e saboreareis as delícias do seu peito abundante. 12Porque, assim diz o Senhor: «Vou fazer com que a paz corra para Jerusalém como um rio, e a riqueza das nações, como uma torrente transbordante. Os seus filhinhos serão levados ao colo, e acariciados sobre os seus regaços. 13Como a mãe consola o seu filho, assim Eu vos consolarei; em Jerusalém sereis consolados. 14Ao verdes isto, os vossos corações pulsarão de alegria, e os vossos ossos retomarão vigor,como a erva fresca. A mão do Senhor há-de manifestar-se aos seus servos, e a sua ira aos seus inimigos.

    Jerusalém foi consolada por Deus, fonte de toda a consolação. Agora é chamada a oferecer essa mesma consolação, como mãe generosa, aos filhos das suas entranhas. O profeta especifica essas consolações, que não são promessas vãs ou retórica vazia, mas paz e segurança a todos os níveis. Acabaram-se os tempos das tensões e das guerras, acabaram-se as ameaças dos inimigos. A cidade santa está em paz, dom de Deus, e pode oferecê-la aos seus habitantes. Aliás a Nova Jerusalém identifica-se com Javé, que, pela sua presença e pelo seu espírito, atrairá todos os povos para lhes oferecer a paz e a consolação definitivas.

    Evangelho: Mateus 18, 1-5

    Naquela hora, os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-lhe: «Quem é o maior no Reino do Céu?» 2Ele chamou um menino, colocou-o no meio deles 3e disse: «Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu. 4Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu. 5Quem receber um menino como este, em meu nome, é a mim que recebe.

    Ao dizer estas palavras, Jesus parece pensar na humildade das crianças, que não têm pretensões, que têm consciência de ser crianças e aceitam a sua pequenez, a sua impotência e a necessidade que têm dos pais para sobreviver. Na relação com Deus, estas palavras têm ainda mais sentido: que é o homem diante d´Ele?
    A humildade é necessária particularmente aos dirigentes da comunidade cristã pelo que eles são - bem pouca coisa - e pelo que são os outros, - filhos de Deus.

    Meditatio
    Os pensamentos de Deus são bem diferentes dos nossos, tal como os seus caminhos são distantes dos nossos. Os nossos pensamentos vêm do orgulho; os pensamentos de Deus vêm da humildade. Os nossos caminhos são esforço para nos tornarmos grandes; os caminhos de Deus conduzem à pequenez. Como quem quer ir para o Norte deve caminhar em direção oposta ao Sul, assim, para avançar nos caminhos de Deus devemos tomar a direção oposta ao nosso orgulho.
    Teresa tinha grandes ambições: queria ser simultaneamente contemplativa e ativa, apóstola, doutora, missionária e mártir. Aliás, parecia-lhe pouco um só martírio e desejava-os todos. Acabou por descobrir que, no coração da Igreja, é o amor que tudo anima e move. Então, escreve: "Compreendi que o Amor encerra todas as Vocações e que o Amor é tudo!... E, num transporte de alegria delirante, exclamei: encontrei finalmente a minha vocação; a minha vocação é o Amor! No Coração da Igreja Minha Mãe, eu serei o Amor, assim serei tudo, assim o meu sonho será realizado." E, enquanto, no seu tempo, muitas pessoas fervorosas se ofereciam a Deus como vítimas da sua justiça, Teresa preferiu entregar-se ao seu Amor Misericordioso. Descobrira esse amor ao meditar na parábola do filho pródigo ou, melhor dizendo, do pai misericordioso. Dizia a santa de Lisieux: "Deus infinitamente Misericordioso, que se dignou perdoar com tanta bondade os pecados do filho pródigo, não será também justo comigo, que estou sempre a seu lado?" Para Teresa, Deus manifesta-se justo exatamente na sua misericórdia e no seu perdão a quem deles necessita. A Justiça de Deus é Amor e Misericórdia. Foi aceitando a sua pequenez e pobreza, e acolhendo e caminhando no amor misericordioso de Deus que ela chegou à Santidade.
    Como escreveu o P. Dehon: "A união íntima a Cristo na sua oblação e imolação de amor é-nos confirmada pela sua predileção pela oferta como vítima "ao Amor misericordioso" de Santa Teresa de Lisieux. "Nascemos do espírito de Santa Margarida Maria, aproximando-nos do da Ir. Teresa". Seguidamente o Pe. Dehon transcreve a fórmula com que a santa se ofereceu como vítima ao Amor misericordioso. Depois, conclui: "Com a Ir. Teresa, abandonamo-nos completamente à vontade divina" (Diário XLV, 53.55-56: Abril de 1925).
    A descoberta do Deus Misericordioso foi o ponto mais importante do Caminho Espiritual de Teresa do Menino Jesus. Essa perceção levou-a a dar-se conta da sua missão na Terra: anunciar que Deus não é Castigador, mas Misericordioso. Esta confiança na Misericórdia de Deus, tomou, transformou e entreteceu toda a sua vida e tornou-se o grande motor do que fez e disse até ao fim dos seus dias. Como vemos há uma forte semelhança e quase identidade entre a experiência espiritual e a missão do P. Dehon e de Santa Teresa.

    Oratio

    Ó Cristo Senhor, Tu nos escolheste e chamaste ao teu serviço pelo grande Amor que tens a Deus Pai e aos teus irmãos. Foste tu quem nos escolheu e não nós a Ti. Faz, pois, com que possamos, hoje, segundo o desígnio da tua chamada, dar frutos de salvação ao mundo, pelo qual nos oferecemos, como pessoas e como comunidade. Aviva em nós o espírito do Pe. Dehon, o qual, por teu amor, não se cansava de trabalhar para que toda a humanidade fosse, um dia, recapitulada em Ti. Torna-nos um testemunho vivo do teu amor na Igreja. Ámen.

    Contemplatio

    O Pai de misericórdia que nos ama ternamente chama-nos. Chama-nos seus filhinhos. Descreveu-se com complacência na parábola do filho pródigo. Eu sou este filho pródigo, que viveu, se não na luxúria, pelo menos na vaidade e na inutilidade. Volto para o meu Pai, hesitante, tímido, temeroso, mas ele está lá, que me acolhe com amor. O seu coração bate fortemente no seu peito. Deseja-me com ardor, observa, procura. E se regresso, atira-se ao meu pescoço e aperta-me contra si, coração contra coração. E chama os seus servos, os seus anjos, para me darem tudo o que perdi. Nada falta: o manto de outrora, o anel de nobreza, os sapatos, e o vitelo gordo para a festa. O Coração de Jesus está emocionado; os seus olhos choram de ternura, mas sorriem de alegria: «Alegremo-nos, diz o bom Mestre, este filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado». (Leão Dehon, OSP 3, p. 653).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "No Coração da Igreja Minha Mãe, eu serei o Amor" (Santa Teresa do Menino Jesus).

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    S. Teresa do Menino Jesus, Virgem (01 Outubro)

  • Santos Anjos da Guarda

    Santos Anjos da Guarda


    2 de Outubro, 2024

    O Anjos, criaturas puramente espirituais e dotadas de inteligência e vontade, servem a Deus e são seus mensageiros. Eles "

    veem constantemente a face de meu Pai que está no Céu" (Mt 18, 10). São "poderosos mensageiros, que cumprem as suas ordens" (Sl 103, 20). São encarregados por Deus de proteger a humanidade. O povo de Deus sempre sentiu o dever de corresponder à sua silenciosa e benévola companhia, honrando-os. Em 1615, entrou no Calendário romano a celebração que hoje lhes dedicamos.

    Lectio

    Primeira leitura: Êxodo 23, 20-23a

    Eis que o que diz o Senhor: "Eu envio um anjo diante de ti, para te guardar no caminho e para te fazer entrar no lugar que Eu preparei. 21Mantém-te atento na sua presença e escuta a sua voz. Não lhe causes amargura, porque ele não suportará a vossa transgressão, porque está nele a minha autoridade. 22Mas se escutares a sua voz e se fizeres tudo o que Eu falar, Eu serei inimigo dos teus inimigos e serei adversário dos teus adversários, 23pois o meu anjo caminhará diante de ti.

    Estamos no epílogo do código da aliança, numa seção com caráter de pregação, possivelmente de origem eloísta. Logo no início aparece-nos a figura de um anjo, que irá à frente do povo na sua caminhada para a Terra Prometida, para o proteger e orientar. Chama-se o anjo de Deus ou anjo de Javé, idêntico ao próprio Deus. O povo deve, pois, obedecer-lhe. O enquadramento contextual do texto permite também afirmar que o anjo de Deus é, agora, a Lei, palavra de Deus encarnada na palavra humana. Mas poderão ser igualmente os acontecimentos futuros, todos eles mensageiros potenciais de Deus, testemunhas da sua palavra e da sua ação. Em última análise, como já dissemos, o anjo é o próprio Deus com o homem. Importa que o homem tome consciência dessa presença e se torne digno dela, deixando-se guiar docilmente.

    Evangelho: Mateus 18, 1-5.10

    Naquele tempo, os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-lhe: «Quem é o maior no Reino do Céu?» 2Ele chamou um menino, colocou-o no meio deles 3e disse: «Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu.4Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu. 5Quem receber um menino como este, em meu nome, é a mim que recebe.» 10«Livrai-vos de desprezar um só destes pequeninos, pois digo-vos que os seus anjos, no Céu, vêem constantemente a face de meu Pai que está no Céu.

    Na literatura judaica, a função dos anjos era tripla: adoração e louvor de Deus; agentes ou mensageiros divinos nos assuntos humanos; guardiães dos homens e das nações (Heb 12, 15). Segundo uma crença generalizada, eram poucos os anjos que tinham acesso direto a Deus. Tendo em conta estas premissas, o ensinamento tem por alvo a dignidade dos pequeninos que acreditam em Jesus: se os seus anjos têm essa dignidade, quanto maior será a dignidade dos crentes ao serviço dos quais eles estão!
    Como Deus nos protege com os seus anjos, assim também nós havemos de proteger os irmãos, sobretudo os mais frágeis e pequenos.

    Meditatio

    Esta memória dos anjos recorda-nos que, no caminho da vida, não estamos sós. Deus não nos abandona. Deus caminha connosco.
    Há, com efeito, uma criação visível, que podemos ver, pelo menos parcialmente, com os olhos da carne; e há uma criação invisível, mas real, que só os sentidos espirituais nos permitem perceber, por meio da fé, da oração, da iluminação interior que vem do Espírito Santo.
    Os anjos são, em primeiro lugar, um sinal luminoso da divina Providência, da bondade paterna de Deus, que nada, do que é necessário, deixa faltar aos seus filhos. Intermediários entre a terra e o céu, os anjos são criaturas invisíveis postas à nossa disposição para nos guiarem no caminho de regresso à casa do Pai. Vêm do Céu para nos reconduzirem ao Céu e nos fazer pregustar algo das realidades celestes. Por vezes, podemos experimentar a presença dos anjos de modo muito concreto e sensível, desde que a saibamos reconhecer. Trata-se de encontros "casuais", - que todavia se tornam fundamentais e determinantes na nossa vida - ou de auxílio súbito e inesperado, em situações de perigo. Pode ser também uma intuição repentina, que nos permite dar-nos conta de um erro, de um esquecimento. Como não sentir-nos guiados, protegidos, nesses momentos? Os anjos protegem-nos de tantos perigos de que nem nos damos conta. Sobretudo do perigo de nos tornarmos ímpios, de não escutarmos nem obedecermos à Palavra de Deus. Os anjos sugerem-nos pensamentos de retidão e de humildade. Sugerem-nos bons sentimentos.
    Havemos também de ser anjos Deus em relação aos outros, ajudando-os a ver e a orientar-se pelos caminhos de Deus.
    O P. Dehon rezava: "Anjos do Senhor, recomendai-me à misericórdia do Sagrado Coração." (OSP 4, p. 317).

    Oratio

    Pai santo, Deus eterno e providente, nós vos damos graças por Cristo, Nosso Senhor. Proclamamos a vossa imensa glória, que resplandece nos Anjos e nos Arcanjos, e, honrando estes mensageiros celestes, exaltamos a vossa infinita bondade, porque a veneração que eles merecem é sinal da vossa incomparável grandeza sobre todas as criaturas. Por isso, com a multidão dos Anjos, que celebram a vossa divina majestade, Vos louvamos e bendizemos. Ámen. (cf. Prefácio dos Anjos).

    Contemplatio

    Os Anjos louvam a Deus e servem-n'O. «Eles são milhares de milhares, diz Daniel, à volta do trono de Deus, ocupados em servi-l'O» (Dan 7, 10). «Anjos do céu, diz o salmo, bendizei o Senhor, vós que executais as suas ordens» (Sl 102). Deus envia-os junto das criaturas. O seu nome significa «mensageiros». «São os enviados de Deus, diz S. Paulo, vêm ajudar os homens a realizarem a sua salvação» (Heb 1, 14). Há os anjos das nações e os anjos de cada um de nós. Deus dizia ao seu povo por Moisés: «Enviarei o meu anjo diante de vós. Conduzir-vos-á, guardar-vos-á e dirigir-vos-á para a terra que vos prometi» (Ex 23). Deus acrescentava: «Honrai-o, escutai a sua voz quando vos fala por Moisés. Se lhe obedecerdes, sereis abençoados e triunfareis sobre os vossos inimigos. Se o desprezardes, sereis castigados» (Ibid.). «Deus ordenou aos seus anjos, diz o salmo, que vos guardassem em todos os vossos caminhos. Levar-vos-ão nas suas mãos para que eviteis as pedras do caminho» (Sl 90). Trata-se aqui dos anjos de cada um de nós. «Respeitai as crianças, diz Nosso Senhor, os seus anjos veem constantemente a face de meu Pai» (Mt 18, 10). Os anjos vigiam particularmente as crianças. (L. Dehon, OSP 4, p. 315).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Anjos do Senhor, bendizei o Senhor!" (Sl 103, 20).

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    Santos Anjos da Guarda (02 Outubro)

  • S. Francisco de Assis

    S. Francisco de Assis


    4 de Outubro, 2024

    S. Francisco de Assis nasceu em 1181, ou 1182. Filho de um rico comerciante, Francisco sonhava tornar-se cavaleiro. Desviado desse ideal, procurou com persistência vontade de Deus. O encontro com os leprosos, e a oração diante do Crucifixo na igreja de S. Damião, levaram-no a abandonar a família e a iniciar uma vida evangélica penitencial. Bem depressa o Senhor lhe deu irmãos dispostos a viverem o evangelho sine glossa, em fraternidade. O papa Honório III aprovou a Regra e a vida dos frades menores, em 1222. No ano seguinte, Francisco recebeu os estigmas do Crucificado, selo da sua conformidade com o único Senhor e Mestre. Faleceu em 1226, sendo canonizado em 1228. Grande amigo da Natureza, S. Francisco é padroeiro dos ecologistas. É também um dos padroeiros da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus, Dehonianos.

    Lectio

    Primeira leitura: Gálatas 6, 14-18

    Irmãos: Longe de mim gloriar-me, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo. 15Pois nem a circuncisão vale alguma coisa nem a incircuncisão, mas sim uma nova criação. 16Paz e misericórdia para todos quantos seguirem esta regra, bem como para o Israel de Deus. 17De agora em diante ninguém mais me venha perturbar; pois eu levo no meu corpo as marcas de Jesus. 18A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo esteja com o vosso Espírito, irmãos!Ámen.

    Ao terminar a sua Carta aos Gálatas, Paulo declara ter agido retamente ao desmascarar a hipocrisia dos que defendiam a necessidade da circuncisão e da observância de lei hebraica para os cristãos (v. 12). Em seguida, afirma que não procura a glória do mundo, mas se sente honrado por estar em comunhão com Jesus Crucificado, cujo amor redentor afastara dele toda a ambição, orgulho e egoísmo. O seu único motivo de orgulho é a cruz do Senhor, que iniciou uma nova economia fundamentada, não na Lei, mas no Espírito. Acolhendo e pondo em prática o amor misericordioso de Deus, o cristão pode usufruir da plenitude dos bens messiânicos. Consciente de tal dom, Paulo não quer ouvir falar de outras doutrinas. A sua pertença exclusiva ao Senhor é manifestada pelos sofrimentos que, a seu exemplo, suporta para Lhe ser fiel (v. 17).

    Evangelho: Mateus 11, 25-30

    Naquele tempo, Jesus exclamou: «Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos. 26Sim, ó Pai, porque isso foi do teu agrado. 27Tudo me foi entregue por meu Pai; e ninguém conhece o Filho senão o Pai, como ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar.» 28«Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei-de aliviar-vos.29Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso espírito. 30Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.

    A relação entre Jesus e o Pai é única, como declara o nosso texto. Jesus é o Filho do Pai, de Quem recebeu tudo, por Quem é conhecido, e a Quem conhece como mais ninguém. Jesus revela-nos esse conhecimento, que é dom recíproco de amor. Na sua oração de bênção, Jesus reconhece que só os pequenos, os que não presumem de si mesmos, estão em condições de conhecer o amor do Pai e viver em comunhão com Ele. Que se fecha na sua "sabedoria" autoexclui-se dessa vida e comunhão. Francisco de Assis foi um desses pequenos e humildes que encontraram respiro e vida nova nas palavras e gestos de Jesus.

    Meditatio

    Francisco de Assis foi um daqueles pequenos, que receberam de coração aberto e disponível a revelação de Jesus, como Filho muito amado do Pai. O Evangelho, sine glossa, tornou-se a única regra da sua vida, regra que também propôs àqueles que se lhe quiseram juntar como irmãos. Para Francisco, tudo se resumia à relação com Jesus, no amor. Os estigmas, que recebeu já perto do fim da sua vida, são sinal da intensíssima relação com Jesus, que o levou a identificar-se com Ele também fisicamente. Numa época em que os homens da Igreja procuravam riquezas e grandezas, Francisco quis permanecer pobre e pequeno diante de Deus e dos homens. Por causa disso, nem aceitou ser ordenado sacerdote, permanecendo simplesmente irmão entre os irmãos, como o mais pequeno de todos, por amor do Senhor.
    Para ele realizaram-se plenamente as palavras de Jesus: "o meu jugo é suave e o meu fardo é leve" (v. 30). Quanta alegria enchia o coração de Francisco, pobre de tudo e rico de tudo, que no amor do Senhor sentia como suaves os maiores sofrimentos. "Carregai as cargas uns dos outros e assim cumprireis plenamente a lei de Cristo." (Gl 6, 2). As cargas dos outros: é esse o jugo do Senhor. S. Francisco compreendeu-o desde o princípio da sua conversão. No fim da vida, contava: "Estando eu em pecado, parecia-me coisa excessivamente amarga ver os leprosos, mas o próprio Senhor me conduziu para meio deles e eu exercia misericórdia para com eles". Este é o jugo, que consiste em carregar as cargas dos outros, mesmo que isso nos parece muito duro. E continuava Francisco: "Carregando-as, o que me parecia amargo, converteu-se para mim em doçura na alma e no corpo". Pouco mais adiante, encontramos a segunda frase de Paulo: "Cada um terá de carregar o próprio fardo" (Gl 6, 5). Aqui, trata-se de não julgar os outros, de ter muita compreensão por todos, de não impor aos outros os nossos pontos de vista e os nossos modos de fazer, de vermos os nossos próprios defeitos e de não aproveitar os defeitos dos outros para lhes impor pesos que não estão de acordo com o pensamento do Senhor. "Ninguém se deve julgar o primeiro entre os irmãos", recomendou. "Quem jejua, não julgue os que comem". A caridade não critica os outros, não os julga, mas ajuda-os.
    Carreguemos, também nós, o jugo do Senhor, os fardos dos outros, e não os sobrecarreguemos com críticas e juízos sem misericórdia. Assim conheceremos melhor o Filho de Deus, que morreu por nós, e nele o Pai que está nos céus, com a mesma alegria de S. Francisco.

    Oratio

    Fazei, ó meu Deus, exclamava, que a doce violência do vosso amor me desapegue de todas as coisas sensíveis e me consuma inteiramente, a fim de que eu possa morrer por vosso amor infinito. Eu vo-lo peço por vós mesmo, ó Filho de Deus, que morrestes por amor de mim. Meu Deus e meu tudo! Quem sois vós, e quem sou eu, senão um verme de terra? Desejo amar-vos, Senhor adorável. Consagrei-vos a minha alma e o meu corpo com tudo o que sou. Levar-me-ei a fazer com ardor o que mais contribuir para vos glorificar. Sim, meu Deus, este é o único objeto dos meus desejos. (Oração de S. Francisco, citada por Leão Dehon, in OSP 4, p. 322)

    Contemplatio

    O Coração de Francisco foi, como o de Jesus, um porto de refúgio no qual todos os pobres corações humanos, agitados pela tempestade, podiam encontrar um asilo. O coração de Francisco foi um coração de apóstolo, um coração de fogo. Semelhante a um carro inflamado, percorria o mundo, ardendo por arrastar atrás de si todos os homens para os conduzir ao céu. O seu coração inflamado de amor gerou três ordens que deram e que dão tantos santos ao céu. Depois do capítulo geral da sua ordem em 1219, enviou religiosos para a Grécia, para África, para a França, para a Inglaterra, para aí estender o reino de Deus. Tinha reservado para si a missão da Síria e /323 do Egipto onde esperava encontrar o martírio! O coração de Francisco não estava simplesmente aberto às misérias morais, mas também às misérias físicas. Oh! Como amava os pobres e a pobreza! Como era terno para com os doentes e os aflitos! S. Francisco diz-nos a todos como S. Paulo: «Sede meus imitadores». A seu exemplo, entremos no Coração de Jesus pelo amor e pela imitação. (Leão Dehon, OSP 4, p. 322s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Carregai as cargas uns dos outros
    e assim cumprireis plenamente a lei de Cristo." (Gal 6, 2).

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    S. Francisco de Assis (04 Outubro)

  • 27º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    27º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]


    6 de Outubro, 2024

    ANO B

    27.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 27.º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia do 27.º domingo comum revela o plano de Deus para o homem e para a mulher: Deus criou-os para se amarem, chamou-os a caminhar de mãos dadas, desafiou-os construir um projeto comum de felicidade baseado na entrega total um ao outro e na comunhão plena das suas vidas.

    A primeira leitura diz-nos, com imagens cheias de cor e de poesia, que foi Deus que inventou o amor. Deus criou o homem e a mulher e colocou-os um ao lado do outro para se amarem, para partilharem a vida, para serem auxílio um do outro, para se ajudarem e completarem mutuamente. É no amor que os une que eles encontrarão a sua vocação e a sua plena realização.

    No Evangelho Jesus, confrontado com a Lei judaica do divórcio, reafirma o projeto ideal de Deus para o homem e para a mulher: eles foram chamados a formar uma comunidade de amor e a realizarem-se através do amor. Esse projeto exclui, naturalmente, tudo aquilo que é negação do amor: o egocentrismo, o domínio de um sobre o outro, as atitudes e gestos que ferem a dignidade do outro, o uso egoísta do outro. Na “visão” de Deus, o amor verdadeiro não tem prazo; mas tem a marca da eternidade.

    A segunda leitura lembra-nos a “qualidade” e a grandeza do amor de Deus pelos homens. Deus amou de tal forma os homens que enviou ao mundo o seu Filho único “em proveito de todos”. Jesus, o Filho, solidarizou-Se com os homens, partilhou a debilidade dos homens e, cumprindo o projeto do Pai, aceitou morrer na cruz para dizer aos homens que a Vida verdadeira está no amor que se dá até às últimas consequências. O amor de Deus pode perfeitamente ser o modelo dos nossos “amores” humanos.

     

    LEITURA I – Génesis 2,18-24

    Disse o Senhor Deus:
    «Não é bom que o homem esteja só:
    vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele».
    Então o Senhor Deus, depois de ter formado da terra
    todos os animais do campo e todas as aves do céu,
    conduziu-os até junto do homem,
    para ver como ele os chamaria,
    a fim de que todos os seres vivos fossem conhecidos
    pelo nome que o homem lhes desse.
    O homem chamou pelos seus nomes
    todos os animais domésticos, todas as aves do céu
    e todos os animais do campo.
    Mas não encontrou uma auxiliar semelhante a ele.
    Então o Senhor Deus fez descer sobre o homem
    um sono profundo
    e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma costela,
    fazendo crescer a carne em seu lugar.
    Da costela do homem o Senhor Deus formou a mulher
    e apresentou-a ao homem.
    Ao vê-la, o homem exclamou:
    «Esta é realmente osso dos meus ossos e a minha carne.
    Chamar-se-á mulher, porque foi tirada do homem».
    Por isso, o homem deixará pai e mãe,
    para se unir à sua esposa,
    e os dois serão uma só carne.

     

    CONTEXTO

    O texto de Gn 2,4b-3,24 – conhecido como relato “javista” da criação – é um texto do séc. X a.C., que deve ter aparecido em Judá na época do rei Salomão. Apresenta-se num estilo exuberante, pitoresco, cheio de vida e parece ser obra de um catequista popular, que ensina recorrendo a imagens sugestivas, coloridas e fortes. Não podemos, de forma nenhuma, ver neste texto uma reportagem realista de acontecimentos passados na aurora da humanidade. A finalidade do autor não é científica ou histórica, mas teológica: mais do que ensinar como o mundo e o homem apareceram, ele quer dizer-nos que na origem da vida e do homem está Javé. Trata-se, portanto, de uma página de catequese e não de um tratado destinado a explicar cientificamente as origens do mundo e da vida.

    Para apresentar essa catequese aos homens do séc. X a.C., os teólogos javistas utilizaram elementos simbólicos e literários das cosmogonias mesopotâmicas (por exemplo, a formação do homem “do pó da terra” é um elemento que aparece sempre nos mitos de origem mesopotâmicos); no entanto, transformaram e adaptaram os símbolos retirados das narrações lendárias de outros povos, dando-lhes um novo enquadramento, uma nova interpretação e pondo-os ao serviço da catequese e da fé de Israel. Por outras palavras: a linguagem e a apresentação literária das narrações bíblicas da criação apresentam paralelos significativos com os mitos de origem dos povos da zona do Crescente Fértil; mas as conclusões teológicas – sobretudo o ensinamento sobre Deus e sobre o lugar que o homem ocupa no projeto de Deus – são significativamente diferentes: mais maduras, mais ponderadas, mais profundas, mais consistentes.

    O texto que nos é hoje proposto como primeira leitura situa-nos no “jardim do Éden”, um espaço ideal onde, segundo o autor javista, Deus colocou o homem que tinha criado. De acordo com o relato, esse “jardim do Éden” é um lugar de água abundante e com muitas árvores (para quem sentia pesar sobre si a ameaça do deserto árido, a ideia de felicidade seria um lugar com muita água, um clima de frescura, um ambiente de árvores e de verdura abundante). O homem tinha, então, tudo para ser feliz? Ainda não. Na perspetiva do catequista javista, o homem não estava plenamente realizado, pois faltava-lhe alguém com quem compartilhar a vida e a felicidade. O homem não foi criado para viver sozinho, mas para viver em relação. É esse problema que Deus, com solicitude e amor, vai resolver.

     

    MENSAGEM

    Depois de criar o homem e de o colocar no “jardim” da felicidade, Deus constatou a solidão do homem (“não é bom que o homem esteja só” – vers. 18) e quis dar-lhe solução. Como?

    Num primeiro momento, Deus fez desfilar diante do homem “todos os animais do campo e todas as aves do céu”, a fim de que o homem os chamasse “pelos seus nomes” (vers. 19). Segundo as ideias vigentes no Médio Oriente antigo, o facto de “dar um nome” era, antes de mais, um ato de domínio e de posse. Por outro lado, o facto de Deus ter trazido os animais para que o homem lhes desse um nome era, na perspetiva do catequista javista, o reconhecimento por parte de Deus da autonomia do homem e a associação do homem à obra criadora e ordenadora de Deus. A autoridade sobre os outros seres criados e a associação do homem à obra criadora de Deus responderá ao desejo de felicidade completa que o homem sente e resolverá o problema da sua solidão? Não. O homem não encontrou, nesse mundo animal que Deus lhe confiou, “uma auxiliar semelhante a ele” (vers. 20). Por muito entusiasmante e desafiador que fosse esse mundo novo que lhe foi apresentado, o homem não encontrou aí a ajuda e o complemento que esperava. Para que o homem se realize completamente, Deus vai intervir de novo.

    A nova ação de Deus começa com um “sono profundo” do homem. Depois, Deus, atuando como um hábil cirurgião, tirou parte do corpo do homem (o texto fala da “zela'”, que se tem traduzido como “costela”; contudo, a palavra pode significar “lado” ou “costado”) e com ela fez a mulher (vers. 21-22). Porquê o “sono profundo” do homem”? Porque, de acordo com a conceção do autor javista, criar era segredo de Deus e o homem não podia testemunhar esse momento solene e misterioso; restava-lhe admirar a criação de Deus e adorá-l’O pelas suas obras admiráveis… Depois de ter “construído” a mulher, Javé acompanha-a à presença do homem. A mulher é aqui apresentada como uma noiva conduzida à presença do noivo e Deus como o “padrinho” desse noivado. O homem, desperto do “sono profundo”, acolhe a mulher com um grito de alegria e reconhece-a como a companhia que lhe fazia falta, o seu complemento, o seu outro eu: “Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne” (vers. 23a). O homem (vers. 23b) dá à sua companheira o nome de “mulher” (em hebraico: ‘ishah) porque foi tirada do homem (em hebraico: ‘ish). A proximidade das duas palavras sugere a proximidade entre o homem e a mulher, a sua igualdade fundamental em dignidade, a sua complementaridade, o seu parentesco.

    O nosso texto termina com um comentário que não é de Deus, nem do homem, nem da mulher, mas do catequista javista: “por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne” (vers. 24). Este comentário pretende ser a resposta a uma questão bem concreta: de onde vem essa força poderosa que é o amor e que é mais forte do que o primeiro vínculo de todos, o que nos liga aos próprios pais? Para o catequista javista, o amor vem de Deus, que fez o homem e a mulher de uma só carne; por isso, homem e mulher buscam essa unidade e estão destinados, fatalmente, a viver em comunhão um com o outro.

     

    INTERPELAÇÕES

    • “Não é bom que o homem esteja só”. Estas palavras, postas pelo autor javista na boca de Deus, sugerem que a realização plena do homem acontece na relação e não na solidão. O ser humano que vive fechado em si próprio, que escolhe percorrer caminhos de egoísmo e de autossuficiência, que recusa o diálogo e a comunhão com aqueles que caminham a seu lado, que tem o coração fechado ao amor e à partilha, é alguém profundamente infeliz, que nunca conhecerá a felicidade plena. Por vezes a preocupação com o dinheiro, com a realização profissional, com o estatuto social, com a busca do êxito, com a procura de uma liberdade sem compromisso, levam os homens a prescindir do amor, a secundarizar a família, a não ter tempo para os amigos… E um dia, depois de terem acumulado muito dinheiro ou de terem colocado o mundo a seus pés, constatam que estão sozinhos e que a sua vida é estéril e vazia. A Palavra de Deus que nos é hoje proposta deixa um aviso claro: a vocação do homem é o amor; a solidão egoísta, mesmo quando compensada pela abundância de bens materiais, não ajuda a que o homem se sinta plenamente realizado. Estamos conscientes disso? As nossas opções fundamentais privilegiam caminhos de egoísmo e autossuficiência, ou caminhos de amor e de comunhão?
    • Por vezes certas filosofias, tingidas de um verniz pretensamente religioso, desvalorizam o amor humano, consideram o casamento como um estado menos perfeito de realização da vocação cristã e veem na sexualidade algo de indecoroso ou até mesmo pecaminoso. Não é esta, de todo, a perspetiva que a Palavra de Deus nos apresenta… Na bela catequese que a primeira leitura deste vigésimo sétimo domingo comum nos apresenta, o amor aparece como algo que está, desde sempre, inscrito no projeto de Deus e que é querido por Deus. Deus criou o homem e a mulher para se ajudarem mutuamente e para partilharem, no amor, as suas vidas. Estamos conscientes de que o amor vem de Deus e está inscrito no plano que Deus tem para cada um de nós? Que responsabilidades é que isso nos traz?
    • O plano de Deus para o homem e para a mulher concretiza-se quando os dois, ligados pelo amor que sentem um pelo outro, se comprometem diante de Deus, da sociedade e da comunidade cristã, a partilhar a vida e o amor, na entrega total um ao outro, na comunhão total de vidas. Esta comunidade de amor, plenamente assumida e sinceramente vivida, sinaliza e testemunha no mundo a ternura, o carinho, a misericórdia que Deus sente pelos seus queridos filhos e filhas. Como é que vamos construindo, todos os dias, a comunidade de amor a que nos chama a vocação matrimonial? No respeito, na ajuda mútua, no dom de nós próprios àqueles que amamos, no amor fiel e dedicado, no apoio firme à pessoa com quem nos comprometemos a partilhar a vida e o amor? E o nosso compromisso com a pessoa que elegemos para viver a aventura do amor e da partilha de vida é total e sem reservas – na saúde e na doença, nos momentos de alegria e nos momentos de tristeza, na juventude e na velhice, por toda a vida?
    • Homem e mulher aparecem, no relato javista da criação, como seres dotados de igual dignidade. São “da mesma carne”, em igualdade de ser. Ora isto exclui, naturalmente, qualquer preponderância ou superioridade de um em relação ao outro. Assim, qualquer relação que implique dominação, discriminação, escravidão, prepotência, uso egoísta do outro, atenta gravemente contra o projeto de Deus. Como tratamos as pessoas que amamos? Respeitando absolutamente a sua dignidade, ou tratando-as com sobranceria, com prepotência, com arrogância, com pouca consideração? Como vemos o papel da mulher na família e na sociedade, à luz do projeto de Deus enunciado na catequese do livro do Génesis que hoje nos foi proposta?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 127 (128)

    Refrão: O Senhor nos abençoe em toda a nossa vida.

    Feliz de ti que temes o Senhor
    e andas nos seus caminhos.
    Comerás do trabalho das tuas mãos,
    serás feliz e tudo te correrá bem.

    Tua esposa será como videira fecunda
    no íntimo do teu lar;
    teus filhos como ramos de oliveira,
    ao redor da tua mesa.

    Assim será abençoado o homem que teme o Senhor.
    De Sião o Senhor te abençoe:
    vejas a prosperidade de Jerusalém todos os dias da tua vida;
    e possas ver os filhos dos teus filhos. Paz a Israel.

     

    LEITURA II – Hebreus 2,9-11

    Irmãos:
    Jesus, que, por um pouco, foi inferior aos Anjos,
    vemo-l’O agora coroado de glória e de honra
    por causa da morte que sofreu,
    pois era necessário que, pela graça de Deus,
    experimentasse a morte em proveito de todos.
    Convinha, na verdade, que Deus,
    origem e fim de todas as coisas,
    querendo conduzir muitos filhos para a sua glória,
    levasse à glória perfeita, pelo sofrimento,
    o Autor da salvação.
    Pois Aquele que santifica e os que são santificados
    procedam todos de um só.
    Por isso não Se envergonha de lhes chamar irmãos.

     

    CONTEXTO

    O escrito a que chamamos “Carta aos Hebreus” parece ser, mais do que uma carta, um sermão ou discurso destinado a ser proclamado oralmente. Não sabemos quem foi o seu autor. A tradição das Igrejas do oriente atribui-o a Paulo; mas as Igrejas do ocidente há muito que descartaram a autoria paulina deste documento: a forma literária, a linguagem, o estilo, a maneira de citar o Antigo Testamento e mesmo a doutrina exposta estão bastante longe de qualquer outro escrito paulino. Pensa-se que teria sido elaborado por um cristão anónimo – talvez um discípulo de Paulo – que, no entanto, conhecia muito bem o Antigo Testamento.

    A tradição antiga põe os “hebreus” como destinatários deste escrito; porém, não há qualquer indicação, ao longo do escrito, de que o texto se destinasse especificamente a cristãos oriundos do mundo judaico. É verdade que refere constantemente o Antigo Testamento; mas o Antigo Testamento já era, por essa altura, património comum de todos os cristãos, seja os de origem judaica, seja os de origem pagã. Tratava-se, em qualquer caso, de comunidades cristãs em situação difícil, expostas a perseguições e que viviam num ambiente hostil à fé… Os membros dessas comunidades perderam já o fervor inicial pelo Evangelho, deixaram-se contaminar pelo desânimo e começam a ceder à sedução de certas doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos… O objetivo do autor deste “discurso” é estimular a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a crescer na fé. Teria sido elaborado nos anos que antecederam a destruição da cidade de Jerusalém (que ocorreu no ano 70), uma vez que o autor se refere à liturgia do Templo como uma realidade ainda atual. É provável, portanto, que tenha aparecido por volta do ano 67, muito perto da altura em que Paulo e Pedro foram martirizados em Roma.

    A Carta aos Hebreus apresenta – recorrendo à linguagem da teologia judaica – o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência – através de quem os homens têm acesso livre a Deus e são inseridos na comunhão real e definitiva com Deus. O autor aproveita, na sequência, para refletir nas implicações desse facto: postos em relação com o Pai por Cristo/sacerdote, os crentes são inseridos nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã e devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a sua experiência de fé, enfraquecida pela acomodação e pela perseguição.

    O texto que nos é proposto como primeira leitura neste vigésimo sétimo domingo comum está incluído na primeira parte da Carta (cf. Heb 1,5-2,18). Aí, o autor recolhe e repete aquilo que a catequese primitiva afirmava sobre o mistério de Cristo: Ele incarnou e fez-se irmão dos homens, experimentou mesmo o sofrimento e a morte, mas foi ressuscitado e glorificado por Deus. Apesar dessa experiência de “abaixamento” que fez, Ele é superior a todas as criaturas, nomeadamente em relação aos anjos.

     

    MENSAGEM

    O anónimo autor do Salmo 8, refletindo sobre o lugar central que o homem ocupa na criação, dirige-se ao Deus criador e comenta, com admiração: “que é o homem para te lembrares dele, o filho do homem para com ele te preocupares? Quase fizeste dele um ser divino (na versão grega: “fizeste-o pouco inferior aos anjos”); de honra e glória o coroaste. Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos, tudo submeteste a seus pés” (Sl 8,4-7). Ora, o autor da Carta aos Hebreus propõe-se precisamente anunciar que Cristo cumpre plenamente aquilo que o autor do salmo 8 diz sobre o homem.

    Deus criou o homem e concedeu-lhe um lugar de honra no seu projeto criador. Mas o homem – o velho Adão – escolheu rebelar-se contra Deus e buscar honra e glória à margem de Deus. Ora, o caminho do egoísmo e da autossuficiência não é o caminho em que o homem pode realizar a vocação à qual foi chamado pelo Deus criador; não é aí que o homem encontra “honra e glória”.

    Mas Deus não desistiu do seu projeto. Para ajudar o homem a chegar à meta prevista no Seu plano, deu-lhe um guia: Jesus Cristo. No momento previsto por Deus, Cristo incarnou na história dos homens e tornou-se um ser humano, identificado com os seus irmãos humanos. Ao tornar-se homem, Cristo foi, por um momento, “inferior aos anjos”; mas, pelo dom da sua vida, pela sua entrega na cruz em favor de todos, foi exaltado e foi “coroado de glória e de honra” (vers. 9).

    Como é que a humilhação da cruz levou Cristo a ser coroado de honra e de glória? Cristo, desde o primeiro instante da sua incarnação, procurou cumprir plenamente o plano do Pai; e, no cumprimento desse plano, fez da sua vida um dom total de amor aos homens. Viveu, a cada passo, amando e servindo. A cruz foi o momento supremo dessa vida de amor até ao extremo, de entrega total a Deus e aos irmãos. “Convinha” ao plano de Deus que Jesus, na cruz, mostrasse claramente aos homens, como se vive e como se ama; e Cristo fê-lo. Tornou-se, com a forma como viveu e morreu, o protótipo do homem “perfeito”, do homem que constava do plano do Deus criador (vers. 10). Cristo, o novo Adão, o homem que viveu e morreu amando, tornou-se o modelo do homem novo. Ele corresponde plenamente àquele homem que o Deus criador tinha planeado coroar de glória e de honra.

    Deus, o criador, é o Pai de todos: daquele que santifica (Cristo, que pela sua entrega e pelo seu testemunho de amor até ao extremo reaproximou os homens de Deus), e dos que são santificados (aqueles que foram transformados por Cristo e que têm Cristo como modelo de vida). Por isso, Cristo não se envergonha de chamar “irmãos” a todos os outros homens e mulheres. Mais: Ele próprio lhes mostra o caminho para que possam integrar de forma plena a família de Deus (vers. 11).

     

    INTERPELAÇÕES

    • A história da salvação – essa história que a liturgia nos recorda e nos convida a celebrar em cada domingo – é uma história espantosa. É a história de um Deus que olha para nós com amor infinito e que, por amor, nos enviou o seu Filho Jesus. Para esse Deus com o coração de Pai e de mãe, a nossa salvação, a nossa felicidade plena é muito mais importante do que a incompreensão dos homens, do que a recusa teimosa dos homens, até mesmo do que o horrível sofrimento que a cruz comporta. A paciência que Deus tem demonstrado connosco só tem sido ultrapassada pela grandeza do seu amor. Como é que vemos isto? Sentimo-nos realmente tocados e desafiados pela grandeza do amor de Deus? A consciência do amor que Deus nos tem tem-se traduzido, da nossa parte, em reconhecimento, gratidão e louvor?
    • Desde o início do seu caminho histórico os homens e as mulheres negligenciaram as propostas de Deus e preferiram trilhar caminhos de egoísmo e de autossuficiência. Sabemos onde é que isso nos tem conduzido: a guerras, violências, injustiças, ambição, corrupção, que deixam no nosso mundo um longo rasto de sofrimento e de morte. Por vezes até nos atrevemos, na nossa insensatez e arrogância, a questionar Deus e a perguntar-lhe porquê todo esse sofrimento, como se Ele fosse o culpado das nossas escolhas erradas… Estamos conscientes de que uma fatia muito significativa dos males que nos ferem resultam das nossas opções egoístas? O que necessitaríamos de mudar, na nossa forma de viver, para construirmos um mundo mais pacífico, mais justo e mais humano?
    • Cristo vestiu a nossa humanidade, veio ao nosso encontro, experimentou a nossa fragilidade, acompanhou-nos nos caminhos da vida, falou-nos na nossa linguagem humana, mostrou-nos em gestos como é que devemos viver para correspondermos ao projeto de Deus para o homem e para encontrarmos Vida verdadeira. Tornou-se um “guia” próximo, interessado, digno de crédito, com quem nos identificamos, que temos vontade de escutar e de seguir, mesmo quando Ele nos aponta caminho difíceis de cruz e de dom da vida. Jesus é a nossa referência? Procuramos segui-l’O sem hesitações, mesmo quando Ele nos propõe caminhos contra a corrente? Confiamos n’Ele incondicionalmente?

     

    ALELUIA – 1 Jo 4,12

    Aleluia. Aleluia.

    Se nos amamos uns aos outros, Deus permanece em nós
    e o seu amor em nós é perfeito.

     

    EVANGELHO – Marcos 10,2-16

    Naquele tempo,
    Aproximaram-se de Jesus uns fariseus para O porem à prova
    e perguntaram-Lhe:
    «Pode um homem repudiar a sua mulher?»
    Jesus disse-lhes:
    «Que vos ordenou Moisés?»
    Eles responderam:
    «Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio,
    para se repudiar a mulher».
    Jesus disse-lhes:
    «Foi por causa da dureza do vosso coração
    que ele vos deixou essa lei.
    Mas, no princípio da criação, ‘Deus fê-los homem e mulher.
    Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa,
    e os dois serão uma só carne’.
    Deste modo, já não são dois, mas uma só carne.
    Portanto, não separe o homem o que Deus uniu».
    Em casa, os discípulos interrogaram-n’O de novo
    sobre este assunto.
    Jesus disse-lhes então:
    «Quem repudiar a sua mulher e casar com outra,
    comete adultério contra a primeira.
    E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro,
    comete adultério».
    Apresentaram a Jesus umas crianças
    para que Ele lhes tocasse,
    mas os discípulos afastavam-nas.
    Jesus, ao ver isto, indignou-Se e disse-lhes:
    «Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis:
    dos que são como elas é o reino de Deus.
    Em verdade vos digo:
    Quem não acolher o reino de Deus como uma criança,
    não entrará nele».
    E, abraçando-as, começou a abençoá-las,
    impondo a mão sobre elas.

     

    CONTEXTO

    Despedindo-se da Galileia, Jesus começa a caminhar para Jerusalém, ao encontro do seu destino final. Não seguiu pelo “caminho da montanha”, que passava pelo centro do país e atravessava a Samaria, mas sim pelo caminho que desce ao longo do rio Jordão e que era o caminho habitualmente tomado pelos peregrinos que vinham da Galileia para Jerusalém.

    O episódio que o Evangelho deste domingo nos apresenta é colocado por Marcos “na região da Judeia, para além do Jordão” (vers. 1) – isto é, no território transjordânico da Pereia, governado por Herodes Antipas. Este Herodes Antipas, então tetrarca da Galileia e da Pereia, tinha pouco antes mandado executar João Batista, que criticara o tetrarca por este se ter divorciado da esposa legítima para viver maritalmente com Herodíade, sua cunhada (cf. Mc 6,17-29).

    No caminho para Jerusalém, Jesus volta a encontrar as multidões e a dirigir-lhes os seus ensinamentos. Os discípulos caminham atrás de Jesus. Mas também aqui, como tinha acontecido na Galileia, voltam a aparecer os fariseus para confrontar Jesus. Desta vez – diz-nos Marcos – trazem-Lhe uma questão relativa ao divórcio: “pode um homem repudiar a sua mulher?”. Marcos esclarece que a razão da pergunta é pôr Jesus à prova.

    A questão, formulada nestes exatos termos, não era especialmente controversa. A Lei de Israel permitia que o homem tomasse a iniciativa de despedir a sua mulher, pondo assim fim à relação (“quando um homem tomar uma mulher e a desposar, se depois ela deixar de lhe agradar, por ter descoberto nela algo de inconveniente, escrever-lhe-á um documento de divórcio, entregar-lho-á em mão e despedi-la-á de sua casa” – Dt 24,1). O que se discutia, no entanto, era sobre as razões que poderiam fundamentar a rejeição da mulher por parte do marido. Entre os judeus, duas grandes escolas teológicas divergiam profundamente na interpretação da Lei do divórcio. A escola de Shammai, mais rigorista, defendia que só uma razão muito grave (o adultério ou a má conduta da mulher) dava ao marido o direito de repudiar a sua esposa; mas a escola de Hillel, dominante na época de Jesus, ensinava que qualquer motivo, mesmo o mais fútil (porque a esposa cozinhava mal ou porque, por qualquer razão, tinha deixado de agradar ao marido), servia para o homem despedir a mulher. A mulher, por sua vez, muito dificilmente era autorizada a obter o divórcio em tribunal (somente no caso de o marido estar afetado pela lepra ou exercer um ofício repugnante).

    Portanto, a lei judaica do divórcio era altamente discriminatória. O homem podia facilmente obter o divórcio e casar com outra mulher; mas a mulher praticamente não podia tomar a iniciativa de se divorciar do seu marido. Além disso, a mulher divorciada ficava frequentemente numa situação social intolerável: sem meios de subsistência, sem ninguém que a defendesse, se não fosse acolhida na casa do pai ou de um irmão, ficava condenada a pedir esmola ou a prostituir-se.

    Os fariseus já tinham percebido que Jesus não alinhava na discriminação da mulher. Jesus defendia as mulheres, respeitava-as, tratava-as com dignidade... Aliás, contradizendo tudo o que era habitual, tinha até acolhido algumas mulheres entre os seus discípulos. Como é que Ele via a lei do divórcio, uma lei que agradava aos homens, mas que provocava tanto sofrimento entre as mulheres judaicas?

     

    MENSAGEM

    À pergunta dos fariseus (“pode um homem repudiar a sua mulher?” – vers. 2), Jesus responde com outra pergunta: “que vos ordenou Moisés?” (vers. 3). De facto, a lei do divórcio tal como aparece formulada em Dt 24,1-4, é atribuída a Moisés (está incluída numa secção – a de Dt 4,44-28,68 – que começa assim: “Esta é a lei que Moisés expôs aos filhos de Israel. Estes são os mandamentos, as leis e os preceitos que propôs Moisés aos filhos de Israel” – Dt 4,44). É provável, no entanto, que Jesus esteja também a sugerir, desde logo, que a lei do divórcio não vem de Deus e não estava inscrita no projeto inicial de Deus para os homens e para as mulheres.

    O facto é que Moisés permitiu ao homem entregar à mulher um “certificado de divórcio”, que determinava o fim da relação (vers. 4). Porquê? De acordo com Jesus, foi para resolver o problema criado pela “dureza do coração” dos homens (vers. 5). O que é que isto significa? Quando um homem decidia abandonar a sua esposa (o que acontecia com frequência), colocava-a numa situação bastante perigosa. Se a mulher não tivesse um documento comprovativo da sua situação, continuava juridicamente ligada àquele homem; e, no caso de posteriormente se envolver noutra relação, era considerada adúltera. Corria o risco de ser lapidada, que era o castigo reservada às adúlteras (cf. Dt 22,22). Necessitava, portanto, de um documento comprovativo de que era livre. Ao admitir que o homem entregasse à mulher um “certificado de divórcio”, Moisés não estava a banalizar o divórcio ou a dizer que o divórcio era uma coisa boa; estava apenas a fazer o possível para que a mulher não ficasse numa situação sem saída.

    No entanto, depois de explicar a razão da disposição dada por Moisés, Jesus entende lembrar aos presentes o projeto primordial de Deus para o homem e para a mulher (vers. 6-9). Citando livremente Gn 1,27 e Gn 2,24, Jesus declara que, no projeto original de Deus, o homem e a mulher foram criados um para o outro, para se completarem, para se ajudarem, para se amarem. Unidos pelo amor, o homem e a mulher estão destinados a ser “uma só carne”. Ser “uma só carne” implica viverem em comunhão total um com o outro, dando-se um ao outro, partilhando a vida um com o outro, unidos por um amor que é mais forte do que qualquer outro vínculo. A separação será sempre o fracasso do amor; não está prevista no projeto ideal de Deus, pois Deus não considera um amor que não seja total e duradouro. Só o amor eterno, expresso num compromisso indissolúvel, respeita o projeto primordial de Deus para o homem e para a mulher. Naturalmente, no projeto inicial de Deus para o homem e para a mulher também não estava previsto a discriminação da mulher, a colocação da mulher num plano subalterno, o tratamento da mulher como mero objeto que o marido pode facilmente alienar. Qualquer situação que, no quadro do amor, conduza ao domínio de um sobre o outro ou ao desrespeito pela dignidade do outro, fere gravemente o projeto de Deus.

    Para Jesus, que vê a vida pelo prisma luminoso do Reino de Deus, qualquer visão rasteira e egoísta da existência não faz sentido. E isso também se aplica ao projeto de amor que une um homem e uma mulher. Para os que fazem parte da comunidade do Reino a proposta é que entendam o amor na linha do projeto inicial de Deus. A aliança de amor que compromete um homem e uma mulher num projeto de partilha e de comunhão de vida deve ter a marca da eternidade.

    Para os discípulos (que anteriormente, em diversas situações, tiveram dificuldade em passar da lógica do mundo para a lógica de Deus), contudo, o discurso de Jesus é difícil de entender; por isso, quando chegam a casa, pedem a Jesus explicações suplementares (vers. 10). Jesus reitera que a relação de amor entre o homem e a mulher se deve enquadrar no projeto inicial de Deus. A perspetiva de Deus é que marido e mulher, unidos pelo amor, formem uma comunidade de vida estável e indissolúvel. O divórcio não entra nesse projeto. Marido e esposa, em igualdade de circunstâncias, são responsáveis pela edificação da comunidade familiar e por evitar o fracasso do amor (vers. 11-12).

    No final, o Evangelho deste domingo ainda nos apresenta um outro quadro: trouxeram a Jesus “umas crianças” para que Ele as abençoasse; no entanto os discípulos não aceitaram bem a iniciativa e repreenderam as pessoas que as tinham trazido (vers. 13). Dando uma vez mais mostras de arrogância e de sobranceria, os discípulos consideravam que as crianças não deviam estar ali, onde gente importante discutia coisas importantes. O Reino de Deus era, na perspetiva deles, um projeto para adultos, para gente com créditos provados, para gente segura de si, para gente que estava bem consciente das coisas e que era capaz de tomar decisões relevantes.

    No entanto, Jesus uma vez mais desautoriza os discípulos: “deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis”. Ele acha que o Reino de Deus não é para gente “importante”, para gente que tem tiques de arrogância e de soberba, mas é para quem tem atitude de criança (vers. 14-15). Os soberbos, os autossuficientes, os que se consideram superiores aos outros, que que se apresentam convencidos da sua importância e dos seus méritos, não têm espaço para acolher a salvação que Deus oferece gratuitamente, nem estão disponíveis para amar e servir os irmãos com humildade e simplicidade. Quem não for como as crianças, quem não tiver a humildade e a simplicidade das crianças não está apto para fazer parte da comunidade do Reino.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Como é que Jesus entende o amor humano? Como é que Ele encara o amor que une um homem e uma mulher? A opinião de Jesus sobre o amor humano está profundamente vinculada com o projeto que o Deus criador tinha para o homem e para a mulher. Ora, Deus criou o homem e a mulher iguais em dignidade e quis que eles caminhassem de mãos dadas ao encontro da felicidade. Por isso, convidou-os a amarem-se, a partilharem a vida, a serem apoio um do outro, a completarem-se um ao outro, a viverem um para o outro; pediu-lhes que esse amor se expressasse em doação, em partilha de vida, em entrega um ao outro, em respeito um pelo outro, em fidelidade mútua; assegurou-lhes que o caminho do amor, vivido dessa forma, lhes traria uma felicidade sem fim. Na perspetiva do Deus criador, um amor vivido assim não é um amor “descartável” e com prazo de validade, mas é um amor que tem a marca da eternidade. Como avaliamos um projeto de amor que tem este horizonte? É possível um amor assim?
    • Naturalmente, no projeto de Deus para o homem e para a mulher não cabe o egocentrismo, a arrogância, a prepotência, a submissão que escraviza, o domínio de um sobre o outro, o desrespeito pela dignidade do outro, o tratamento do outro como simples objeto descartável, o aviltamento do outro, a tentativa de controlar a liberdade do outro, o pensamento do outro, os valores do outro. Como é que nos relacionamos com a pessoa com quem um dia nos comprometemos, diante de Deus, da Igreja e da sociedade, a partilhar um projeto de amor? A relação que mantemos com a pessoa que amamos é comandada pelo nosso egoísmo ou pelo respeito que o outro nos merece?
    • As telenovelas fúteis, os influenciadores que ditam os valores da moda, os lobbies ao serviço de interesses diversos, têm procurado convencer-nos de que o fracasso do amor é uma realidade normal, banal, que pode acontecer a qualquer instante. Para os casais cristãos – os casais que se disponibilizaram para seguir Jesus e para viver na dinâmica do Reino de Deus – o fracasso do amor não é uma normalidade, mas uma situação extrema, uma realidade excecional. Para os casais cristãos, o divórcio não deve ser um remédio simples e sempre à mão para resolver as pequenas dificuldades que a vida todos os dias apresenta. Marido e esposa têm que esforçar-se por realizar a sua vocação de amor, apesar das dificuldades, das crises, das divergências e dos problemas que, dia a dia, a vida lhes vai colocando. Como é que vemos tudo isto? Como nos posicionamos em relação a tudo isto?
    • Apesar de tudo, a vida dos homens e das mulheres é marcada pela debilidade própria da condição humana. Nem sempre as pessoas, apesar do seu esforço e da sua boa vontade, conseguem ser fiéis aos ideais que Deus propõe. A vida de todos nós está cheia de fracassos, de infidelidades, de falhas; mas Deus não desiste, apesar disso, de nos tratar como filhos muito queridos. Chamada a ser sinal e testemunha da misericórdia de Deus no mundo, a comunidade cristã deve usar de compreensão para com aqueles que falharam (muitas vezes sem culpa) na vivência do seu projeto de amor. Em nenhuma circunstância as pessoas divorciadas devem ser marginalizadas ou afastadas da vida da comunidade cristã. A comunidade deve, em todos os instantes, acolher, integrar, compreender, ajudar aqueles a quem as circunstâncias da vida impediram de viver o tal projeto ideal de Deus. Não se trata de renunciar ao “ideal” que Deus propõe; trata-se de testemunhar a bondade e a misericórdia de Deus para com aqueles que, por diversas razões, não puderam realizar esse ideal que um dia, diante de Deus e da comunidade, se comprometeram a viver. Como é que a nossa comunidade cristã acolhe aqueles que viram falhar o seu projeto de amor?
    • Os discípulos de Jesus, conscientes do seu papel e da sua importância, julgaram-se no direito de limitar o acesso de determinadas pessoas a Jesus. Para eles, a comunidade do Reino era um clube de gente importante, onde os pequeninos não tinham lugar… Mas Jesus troca-lhes as voltas: ao acolher com amor e ternura as crianças que lhe trouxeram, Jesus está a dizer aos discípulos que no centro da sua comunidade devem estar sempre os mais pequenos, os mais frágeis, os mais débeis, aqueles que são desprezados e ignorados pela gente importante do mundo. Esses, segundo Jesus, são os preferidos de Deus, aqueles que têm um lugar especial no coração de Deus. Como é que são acolhidas e tratadas entre nós as pessoas mais humildes, as mais frágeis, as mais pobres, as que a sociedade ignora, rejeita ou até mesmo condena?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 27.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 27.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.

    Quando Jesus pressente que Lhe querem estender uma armadilha, Ele refere-se à vontade de seu Pai. Ora, Deus tem um projeto que submete ao homem, e este, porque foi criado livre, realiza este projeto ou recusa-o. O mais belo projeto de Deus é o homem, a sua criatura. Como Ele o criou à sua imagem, fê-lo como ser de relação. É por isso que Ele cria a humanidade, homem e mulher, e a sua comunhão significa algo de Deus que em si mesmo é comunhão. O que conta numa obra artística não são primeiramente as interpretações ou os comentários que são feitos, mas a intenção do autor. Face ao amor do homem e da mulher, não comecemos por olhar como é vivida hoje a relação, mas contemplemos o sonho de Deus e tenhamos sobre os casais o olhar de Deus, que vê que aquilo que Ele fez é bom ou que oferece a sua misericórdia àqueles que não puderam ou não quiseram interpretar o seu projeto.

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.

    “Não separe o homem o que Deus uniu…” Jesus coloca o dedo na ferida… O divórcio é sempre um fracasso, um sofrimento. Mas entrou nos costumes como uma realidade normal, um “direito”! Jesus está contra a corrente… Palavra incompreensível para muitos homens e mulheres, qualquer que seja a sua idade! Na sua resposta aos fariseus, Jesus recorre a um critério a que geralmente se presta pouca atenção. Vai ao “princípio da criação”, à vontade primeira, à vontade criadora de Deus. Ora, esta vontade é que os seres humanos se tornem “imagens de Deus”, na medida em que aceitem entrar uns e outros nas relações de amor recíproco, porque Ele, Deus, é eterno movimento de amor no seu Ser mais profundo. O casal humano, antes mesmo da questão da procriação, é chamado por Deus a tornar-se o primeiro lugar de incarnação deste movimento de amor. O amor humano, sob todas as suas formas, não nasceu dos acasos da evolução biológica. É dom de Deus. Quando os homens recusam este dom, impedem Deus de imprimir neles a sua imagem. Na realidade, vão contra a vontade criadora, introduzem uma desordem na criação tal como Deus a quis. Porque Ele escuta plenamente o seu Pai e acolhe sem quaisquer reticências nem recusas a vontade de amor do seu Pai, Jesus, e apenas Ele, pode colocar-nos na luz de Deus Criador e da sua vontade criadora. Mas isso supõe que aceitemos escutar Jesus, tomar Jesus na nossa vida. Só poderemos compreender a exigência de unidade e de fidelidade no amor humano se aceitarmos tornar-nos, dia após dia, discípulos, mais ainda, amigos de Jesus. Para resolver os nossos problemas afetivos, temos razão em recorrer à psicologia, à psicoterapia do casal. Mas isso não basta. A verdadeira falta é uma falta de profundidade espiritual. Não servirá de nada a Igreja repetir sem cessar a sua oposição ao divórcio se, primeiro, não fizer imensos esforços para ajudar a redescobrir um verdadeiro acompanhamento com Jesus, revelador do amor do Pai.

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    Que o Senhor te abençoe… Como seria belo, em cada manhã desta semana, dizer-se bom dia, em família, com as simples palavras do salmista: “Que o Senhor te abençoe…” Fórmula de bênção, em que se deseja apenas o bem. Ultrapassemos qualquer falso pudor, para oferecermos àqueles que amamos a bênção do Senhor.

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

  • Nossa Senhora do Rosário

    Nossa Senhora do Rosário


    7 de Outubro, 2024

    O Rosário, que apareceu entre os séculos XV e XVI, foi divulgado pelos Dominicanos, tornando-se uma das mais populares devoções marianas. Nossa Senhora recomendou-o insistentemente em Fátima.

    A memória de Nossa Senhora do Rosário, inicialmente celebrada por algumas famílias religiosas, entrou na liturgia de toda a Igreja por disposição do Papa S. Pio V, dominicano, em 1572. Com essa festa, então abertamente chamada "comemoração da Bem-aventurada Virgem Maria da Vitória", o Papa queria agradecer a Nossa Senhora a sua intervenção na vitória da frota cristã contra a dos turcos, em Lepanto, a 7 de Outubro de 1571. Atualmente celebra-se simplesmente a memória de Nossa Senhora do Rosário.

    Lectio

    Primeira leitura: Atos, 1, 12-14

    Os Apóstolos desceram, do monte chamado das Oliveiras, situado perto de Jerusalém, à distância de uma caminhada de sábado, e foram para Jerusalém. 13Quando chegaram à cidade, subiram para a sala de cima, no lugar onde se encontravam habitualmente.Estavam lá: Pedro, João, Tiago, André, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zelota, e Judas, filho de Tiago.14E todos unidos pelo mesmo sentimento, entregavam-se assiduamente à oração, com algumas mulheres, entre as quais Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos de Jesus.

    Depois de ter convivido durante quarenta dias com os discípulos, Jesus elevou-se ao céu. Então os Onze, que tinham andado dispersos, com outros discípulos e familiares de Jesus, entre os quais a sua mãe, reuniram-se provavelmente em casa de um deles, enquanto esperavam o Pentecostes, em que haviam de receber o Espírito Santo prometido. Neste texto, Lucas antecipa algumas notas sobre o modo de vida da primitiva comunidade eclesial de Jerusalém, que irá desenvolver depois. Uma característica evidente é a oração partilhada pelos irmãos e irmãs de modo assíduo e concorde. Depois do Pentecostes, em que Maria também participará (At 2, 1), a comunidade eclesial irá desenvolver a sua identidade e a diaconia. A oração, que precede o Pentecostes, é como que uma preparação; a assiduidade à oração e a concórdia entre os irmãos são garantia de crescimento e de futuro para a comunidade.

    Evangelho: Lucas 1, 26-38

    Naquele tempo, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré,27a uma virgem desposada com um homem chamado José, da casa de David; e o nome da virgem era Maria. 28Ao entrar em casa dela, o anjo disse-lhe: «Salve, ó cheia de graça, o Senhor está contigo.» 29Ao ouvir estas palavras, ela perturbou-se e inquiria de si própria o que significava tal saudação. 30Disse-lhe o anjo: «Maria, não temas, pois achaste graça diante de Deus. 31Hás-de conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus.32Será grande e vai chamar-se Filho do Altíssimo. O Senhor Deus vai dar-lhe o trono de seu pai David, 33reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o seu reinado não terá fim.» 34Maria disse ao anjo: «Como será isso, se eu não conheço homem?» 35O anjo respondeu-lhe: «O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra. Por isso, aquele que vai nascer é Santo e será chamado Filho de Deus. 36Também a tua parente Isabel concebeu um filho na sua velhice e já está no sexto mês, ela, a quem chamavam estéril,37porque nada é impossível a Deus.» 38Maria disse, então: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra.» E o anjo retirou-se de junto dela.

    A devoção do Rosário encontrou na anunciação a Maria o primeiro quadro para contemplação. O colóquio entre Deus e a jovem Maria, mediado pelo anjo Gabriel, - "força de Deus" -, decorre num clima de serena e alegre disponibilidade obediente da humilde «serva do Senhor». A disponibilidade de Maria decorre da reflexão ou meditação sobre a palavra proferida pelo enviado de Deus. Maria tenta uma exegese da mensagem, verdadeiramente surpreendente, pois se trata de um grandioso projeto de Deus, que a envolve. A contemplação de Maria sobre o primeiro mistério do seu envolvimento evangélico e messiânico é iluminada pela disponibilidade do Senhor, pronto a dar explicações. Maria acolhe-as e medita-as no seu coração. Deus não impõe uma tarefa absurda, mas "esforça-se" por convencer aquele que chama a participar nela.

    Meditatio

    S. Lucas oferece à meditação do devoto de Maria, na memória de Nossa Senhora do Rosário, uma sequência histórica de acontecimentos que têm o seu princípio na perícopa do evangelho que escutamos hoje e passa imediatamente para a dos Atos dos Apóstolos que também escutámos na primeira leitura. São duas paragens na peregrinação devocional do Rosário: uma com que começam os "mistérios gozosos" e outra que encontramos do terceiro dos mistérios gloriosos. Essa disposição dos quadros a contemplar dá-nos uma metodologia para a nossa meditação que nos ensina e ajuda a passar do individual ao comunitário, da contemplação à ação.
    De fato, a Anunciação é, para a Virgem Maria, uma experiência muito pessoal de Deus, uma paragem na contemplação da palavra de Deus, junto ao próprio Deus. É um evento gozado na solidão. Essa solidão ou experiência individual não significa isolamento: de fato, Aquela que recebeu o anúncio, partilha a vida da comunidade, a espera da manifestação poderosa e gloriosa do Espírito Santo. Põe em comum a sua experiência de Deus.
    A Anunciação constitui para Maria uma subida aos cumes da contemplação dos mistérios de Deus, uma aproximação, guiada pela luz da palavra divina, ao projeto que Deus quer realizar com a sua disponibilidade. Essa contemplação sustenta a obediência consciente. A Virgem da Anunciação não permanece imóvel no seu genuflexório, com o livro entre as mãos, como a imaginaram muitos pintores. Atua em si mesma de acordo com a Palavra recebida, meditada, contemplada e rezada; atua na comunidade, nascida do amor de Jesus e da fé em Cristo ressuscitado; e tudo com assiduidade e em concórdia com os outros discípulos.
    A atitude de Maria marca a primitiva comunidade e orienta-a para o uso dos meios que façam dela, o mais possível, comunidade do Senhor: a assiduidade ao "ensino dos Apóstolos", a "união fraterna", a "fração do pão", a oração e a partilha dos bens (cf. At 2, 42.44).
    Os primeiros monges pretendiam viver este mesmo espírito que animou, primeiro a Maria e, depois, a comunidade de Jerusalém. Daí a importância que davam à escuta da Palavra, à oração, à Eucaristia, à partilha de bens, à união fraterna. O mesmo espírito deve animar as nossas atuais comunidades. Daí a necessidade de usar os mesmos meios.

    Oratio

    Ó Maria, Mãe de Deus, Rainha e Mãe dos homens, eu vos ofereço as homenagens da minha veneração e do meu amor filial. Quero viver como vosso filho dedicado, consolando-vos e obedecendo-vos em tudo. Pela vossa poderosa intercessão, fazei que todos os meus pensamentos e ações sejam conformes à vossa vontade e à do vosso divino Filho. (Leão Dehon, OSP 4, p. 338).

    Contemplatio

    As orações dos santos são poderosas junto de Deus; e todavia não são mais do que as orações de servos. Mas as de Maria são orações de Mãe. Santo Antonino dizia: «a oração de Maria tem sobre o coração de Jesus a força de uma ordem». Também considera impossível que a divina Mãe peça ao Filho uma graça e que o Filho lhe recuse. «É impossível - dizia - que a Mãe não seja ouvida». É por isso que S. Bernardo nos exorta a pedir, por intercessão de Maria, todas as graças que desejamos alcançar de Deus. «Procuremos a graça - escreve - mas procuremo-la por Maria, porque ela é mãe; ela é sempre ouvida, e não pode obter uma recusa». Deste modo, vemos a imensa família dos cristãos recorrer a Maria como mãe amada e dedicada. Quem poderá contar os santuários, os altares, as imagens, as bandeiras, os escapulários, as imagens de Maria? A todo o momento, de todos os lugares da terra, se eleva um apelo filial: «Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores». E eu mesmo grito: «Augusta Mãe de Deus, rogai a Jesus por mim. Vede as misérias da minha alma, e tende piedade de mim. Sim, rogai e não cesseis jamais de rogar por mim, enquanto não me virdes no céu, seguro da minha salvação eterna. Ó Maria, sois a minha esperança, não me abandoneis». (Leão Dehon, OSP 4, p. 337).

    Actio

    Repete frequentemente e vive hoje a palavra:
    «Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores».
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    Nossa Senhora do Rosário (07 Outubro)

  • 28º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    28º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]


    13 de Outubro, 2024

    ANO B

    28.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 28.º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia do 28.º Domingo do Tempo Comum convida-nos a refletir sobre as escolhas que fazemos. Exorta-nos a não nos conformarmos com valores perecíveis, que “sabem a pouco” e não saciam a nossa fome de vida; encoraja-nos a abraçarmos os valores eternos, aqueles valores que nos trazem alegria e paz e que dão significado pleno à nossa existência.

    Na primeira leitura, um “sábio” de Israel exalta a “sabedoria”, dom de Deus. A partir da sua própria experiência, esse sábio convida-nos a fazer da “sabedoria” a nossa aposta fundamental. Ela é, mais do que qualquer outro valor (o poder, a riqueza, a saúde, a beleza), a base perfeita para construir uma vida com sentido.

    No Evangelho um homem de boa vontade questiona Jesus sobre o caminho que leva à vida eterna. Jesus desenha-lhe o mapa desse caminho. Convida aquele homem a despojar-se dos bens materiais que o aprisionam, a abrir o coração à solidariedade e à partilha, a percorrer o caminho do amor que se dá totalmente, a tornar-se discípulo e a integrar a comunidade do Reino. A indicação de Jesus continua válida, no séc. XXI, para quem estiver interessado em encher de significado a sua vida.

    A segunda leitura convida-nos a escutar e a acolher a Palavra de Deus que nos chega através de Jesus. Essa Palavra é viva, eficaz, atuante. Uma vez acolhida no coração do homem, transforma-o, renova-o, ajuda-o a discernir o bem e o mal e a fazer as opções corretas, indica-lhe o caminho certo para chegar à vida plena e definitiva.

     

    LEITURA I – Sabedoria 7,7-11

    Orei e foi-me dada a prudência;
    implorei e veio a mim o espírito de sabedoria.
    Preferi-a aos cetros e aos tronos
    e, em sua comparação, considerei a riqueza como nada.
    Não a equiparei à pedra mais preciosa,
    pois todo o ouro, à vista dela, não passa de um pouco de areia
    e, comparada com ela, a prata é considerada como lodo.
    Amei-a mais do que a saúde e a beleza
    e decidi tê-la como luz,
    porque o seu brilho jamais se extingue.
    Com ela me vieram todos os bens
    e, pelas suas mãos, riquezas inumeráveis.

     

    CONTEXTO

    O “Livro da Sabedoria” é o mais recente de todos os livros do Antigo Testamento. Pensa-se que terá sido redigido durante o séc. I, em língua grega (por ser escrito em grego, nunca chegou a integrar o cânone judaico). O seu autor terá sido um judeu culto, provavelmente nascido e educado na Diáspora.

    O “berço” do livro da Sabedoria parece ter sido Alexandria (no Egito). A brilhante cultura helénica marcava o ritmo de vida e impunha aos habitantes da cidade os valores dominantes. As outras culturas – nomeadamente a judaica – eram desvalorizadas e hostilizadas. A colónia judaica que vivia em Alexandria tinha sido obrigada a lidar, sobretudo nos reinados de Ptolomeu Alexandre (106-88 a.C.) e de Ptolomeu Dionísio (80-52 a.C.), com duras perseguições. Os sábios helénicos procuravam demonstrar, por um lado, a superioridade da cultura grega e, por outro, a incongruência do judaísmo e da sua proposta de vida… Os judeus eram encorajados a deixar a sua fé, a “modernizar-se” e a abrir-se aos brilhantes valores da cultura helénica.

    Foi neste ambiente que o sábio autor do Livro da Sabedoria decidiu defender os valores da fé e da cultura do seu Povo. O seu objetivo era duplo: dirigindo-se aos seus compatriotas judeus (mergulhados no paganismo, na idolatria, na imoralidade), exortava-os a redescobrirem a fé dos pais e os valores judaicos; dirigindo-se aos pagãos, convidava-os a constatar o absurdo da idolatria e a aderir a Javé, o verdadeiro e único Deus… Para uns e para outros, o autor pretendia deixar esta ideia fundamental: só Javé garante a verdadeira “sabedoria” e a verdadeira felicidade.

    O texto que nos é proposto integra a segunda parte do livro (cf. Sb 6,1-9,18). Aí, o autor apresenta o “elogio da sabedoria”. Este “elogio da sabedoria” pode dividir-se em três pontos… No primeiro (cf. Sb 6,1-21), há uma exortação aos reis no sentido de adquirirem a “sabedoria”; no segundo (cf. Sb 6,22-8,21), há uma descrição da natureza e das propriedades da “sabedoria”, aqui apresentada como o valor mais importante entre todos os valores que o homem pode adquirir; no terceiro (cf. Sb 9,1-18), aparece uma longa oração do autor, implorando de Javé a “sabedoria”.

    O que é esta “sabedoria” de que se fala neste livro e em outros livros sapienciais que vieram a integrar o cânone dos livros sagrados? É, fundamentalmente, a capacidade de fazer as escolhas corretas, de tomar as decisões certas, de escolher os valores verdadeiros que conduzem o homem ao êxito, à realização, à felicidade. Na perspetiva dos “sábios” de Israel, esta “sabedoria” vem de Deus e é um dom que Deus oferece a todos os homens que tiverem o coração disponível para o acolher. É preciso, portanto, ter os ouvidos atentos para escutar e o coração disponível para acolher a “sabedoria” que Deus quer oferecer a todos os homens.

    O autor deste “elogio da sabedoria” insinua claramente ser o rei Salomão (embora o nome do rei nunca seja referido explicitamente). Na realidade, o “Livro da Sabedoria” não vem de Salomão (já vimos que é um texto escrito no séc. I a.C., por um judeu de Alexandria); mas Salomão, o protótipo do rei sábio era, para os israelitas, a pessoa indicada para apresentar a “sabedoria” e para a recomendar a todos os homens. Usando uma ficção literária, o autor coloca, pois, na boca de Salomão este discurso sapiencial.

     

    MENSAGEM

    O rei Salomão pediu a Deus a “sabedoria” e ela foi-lhe concedida (vers. 7). Há aqui uma alusão evidente ao episódio narrado em 1 Re 3,5-15, que conta como Salomão, ainda um jovem rei inexperiente, assustado com a magnitude da tarefa que tinha diante de si enquanto condutor dos destinos do seu Povo, se dirigiu ao santuário de Guibeon (um lugar sagrado situado um pouco a norte de Jerusalém, no território da tribo de Benjamim) e pediu a Deus “um coração cheio de entendimento para governar o povo, para discernir entre o bem e o mal” (1 Re 3,9); e Deus, correspondendo a este pedido, deu-lhe “um coração sábio e perspicaz” (1 Re 3,12).

    Para o rei, a “sabedoria” tornou-se o valor mais apreciado, superior ao poder, à riqueza, à saúde, à beleza, a todos os bens terrenos (vers. 8-10a) que os homens tanto apreciam. A sabedoria é a “luz” que indica caminhos e que permite ao homem discernir as opções corretas para ter êxito e ser feliz. Ao contrário dos bens terrenos, ela não se extingue nem perde o brilho (vers. 10b): é um valor duradouro, que vem de Deus e que conduz o homem ao encontro da Vida verdadeira, da felicidade que não tem fim.

    Contudo, a “sabedoria” não afastou este rei dos outros bens (no episódio referido em 1 Re 3,5-15 Deus, depois de ter dado a Salomão a “sabedoria”, garantiu-lhe também “riquezas e glória” inigualáveis). Pelo contrário, a opção pela “sabedoria” conduziu-o por um caminho que lhe proporcionou “todos os bens” e “riquezas inumeráveis” (vers. 11), pois a “sabedoria” está na base de todos eles. É ela que permite ao homem gozar os bens terrenos com maturidade e equilíbrio, sem obsessão e sem cobiça; é ela que ajuda a colocar os bens materiais no seu devido lugar, não deixando que sejam eles a determinar o sentido da vida do homem.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Costumamos dizer que “só se vive uma vez” e que, por isso, temos de “aproveitar a vida”. Geralmente, quando falamos em “aproveitar a vida”, falamos de provar as coisas boas que a vida pode oferecer-nos, de aproveitar as oportunidades de concretizar os nossos sonhos e aspirações, de tirar o melhor partido de cada momento, de encher a nossa existência de significado… Mas, “aproveitar a vida” incluirá atirar-nos às cegas para agarrar tudo aquilo que os influencers de serviço nos impingem? “Aproveitar a vida” significará irmos atrás de tudo o que de alguma forma nos atrai, sem critérios nem limites? “Aproveitar a vida” será gastarmos o tempo e as forças a correr atrás de coisas fúteis, efémeras, que enchem a nossa existência de vazio, de frivolidade e de mediocridade? Temos consciência de que há caminhos e valores que nos permitem construir uma vida bonita, feliz e plenamente realizada, e também há caminhos e valores que nos escravizam e que nos limitam horizontes? Estamos disponíveis para acolher a sabedoria de Deus e para deixar que ela nos guie pelos caminhos que conduzem onde há Vida verdadeira?
    • O “sábio” que, no texto da primeira leitura deste domingo, reparte connosco a sua experiência de vida, tinha bem definida a sua hierarquia de valores. Sabia bem o que era prioritário e o que era secundário; sabia o que o ajudaria a definir bem a sua missão e aquilo que não seria fundamental para que a sua vida fizesse sentido. E nós, que até vivemos imersos num tempo de “modernidade líquida”, de mudança vertiginosa, de relativismo de valores, de certezas nunca consolidadas, temos bem definida a nossa lista dos valores prioritários? Em que valores apostamos para sobre eles construir, com coerência e verdade, a nossa história de vida?
    • O “sábio” autor do nosso texto assegura que a “sabedoria”, dom de Deus, não o afastou de outros valores desejáveis; mas que, pelo contrário, o ajudou a apreciá-los devidamente e a situá-los no lugar adequado. Por vezes existe a ideia de que viver de acordo com Deus significa renunciar a tudo aquilo que nos pode tornar felizes e realizados… Mas isso não é verdade. Há valores, mesmo efémeros, que são perfeitamente compatíveis com a nossa opção pelos valores de Deus e do Reino. Não se trata de nos fecharmos ao mundo, de desconfiarmos das coisas do mundo, de renunciarmos definitivamente às coisas boas que o mundo nos pode oferecer e que nos dão segurança e estabilidade; trata-se simplesmente de darmos às coisas o valor que têm, sem nos deixarmos iludir por aquilo que não é duradouro. Como é que nos relacionamos com os valores que o mundo nos oferece? Com desconfiança e condenação à priori, ou com a apreciação serena e equilibrada do que eles valem? Usamo-los parcimoniosamente, sem deixar que eles nos usem a nós?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 89 (90)

    Refrão 1:  Saciai-nos, Senhor, com a vossa bondade
    e exultaremos de alegria.

    Refrão 2: Enchei-nos da vossa misericórdia:
    será ela a nossa alegria.

     

    Ensinai-nos a contar os nossos dias,
    para chegarmos à sabedoria do coração.
    Voltai, Senhor! Até quando?
    tende piedade dos vossos servos.

    Saciai-nos, desde a manhã, com a vossa bondade,
    para nos alegrarmos e exultarmos todos os dias.
    Compensai em alegria os dias de aflição,
    os anos em que sentimos a desgraça.

    Manifestai a vossa obra aos vossos servos
    e aos seus filhos a vossa majestade.
    Desça sobre nós a graça do Senhor.
    confirmai em nosso favor a obra das nossas mãos.

     

    LEITURA II – Hebreus 4,12-13

    A palavra de Deus é viva e eficaz,
    mais cortante que uma espada de dois gumes:
    ela penetra até ao ponto de divisão da alma e do espírito,
    das articulações e medulas,
    e é capaz de discernir os pensamentos e intenções do coração.
    Não há criatura que possa fugir à sua presença:
    tudo está patente e descoberto a seus olhos.
    É a ela que devemos prestar contas.

     

    CONTEXTO

    A “Carta aos Hebreus”, mais do que uma “carta” tradicional, parece um sermão destinado a ser proclamado oralmente. O texto foi atribuído, sobretudo pela tradição oriental, a São Paulo; no entanto, as diferenças de linguagem, de estilo e mesmo de ideias em relação a outros textos autenticamente paulinos levaram os biblistas a considerar que São Paulo não terá sido o seu autor. Apesar de tudo, é provável que o autor tenha sido alguém relacionado com São Paulo, talvez um discípulo do apóstolo.

    Provavelmente a “Carta aos Hebreus” foi redigida nos anos anteriores ao ano 70, antes da destruição do Templo de Jerusalém pelos romanos: o autor fala da liturgia do Templo como uma realidade atual, o que não aconteceria se o Templo já tivesse sido destruído. Embora a tradição cite os “hebreus” como destinatários desta Carta, não é certo que ela se destine a comunidades cristãs de origem judaica. As referências constantes ao Antigo Testamento não são decisivas para identificar os destinatários da carta, uma vez que o Antigo Testamento era já referência, por essa altura, quer para os cristãos que vinham do mundo judaico como para os cristãos que vinham do mundo greco-romano. Em qualquer caso, os destinatários da Carta aos Hebreus são cristãos que vivem numa situação difícil, num ambiente hostil à fé cristã. O autor procura fortalecê-los na vivência do compromisso cristão e ajudá-los a crescer na fé.

    A figura de Cristo é central na “Carta aos Hebreus”. Apresentado como sumo sacerdote, Ele é o mediador entre Deus e os homens. A sua entrega sacrificial na cruz substitui todos os sacrifícios do antigo culto judaico, estabelece uma nova Aliança entre Deus e os homens e inaugura um culto novo. Pelo sacerdócio de Cristo, os crentes são inseridos no Povo sacerdotal que é a comunidade cristã.

    O texto que nos é proposto está incluído na segunda parte da Carta aos Hebreus (cf. Heb 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta Jesus como o sacerdote fiel e misericordioso que o Pai enviou ao mundo para mudar os corações dos homens e para os aproximar de Deus. Aos crentes pede-se que “acreditem” em Jesus – isto é, que escutem atentamente as propostas que Cristo veio trazer. Nessa sequência, o autor introduz na sua reflexão uma espécie de hino à Palavra de Deus, a Palavra que Cristo veio transmitir aos homens. O objetivo do autor, ao propor-nos este “hino”, é levar-nos a escutar atentamente a Palavra proposta por Cristo.

     

    MENSAGEM

    Através de Cristo, incarnado na história dos homens, a Palavra de Deus ecoou no mundo. Essa Palavra não é um amontoado de frases ocas, vagas, estéreis, que uma vez ditas “entram por um ouvido e saem por outro”, sem tocarem as vidas daqueles que as escutam; mas é uma Palavra viva, atuante, desafiadora, transformadora, porque tem em si a força de Deus. O profeta Isaías já a tinha comparado com a chuva e a neve “que descem do céu e não voltam para lá senão depois de empapar a terra, de a fecundar e fazer germinar, para que dê semente ao semeador e pão para comer” (Is 55,10). Uma vez escutada, a Palavra de Deus vai direta ao coração do homem e aí atua eficazmente. Atua sobre os sentimentos e os pensamentos, influencia os valores, as opções e as atitudes do homem. Nada a pode deter: é como uma “espada de dois gumes”, afiada e imparável, que entra a direito e atinge o mais profundo do ser humano.

    Ao penetrar nos corações, a Palavra de Deus conhece os mais profundos segredos do homem. Avalia tudo o que se passa nesse centro vital, sede dos pensamentos, sentimentos e ações; avalia a sinceridade das posições que o homem assume na sua relação com Deus, com o mundo e com os outros homens… E, depois de tudo avaliar e pesar, como juiz incorruptível e imparcial, pronuncia o seu julgamento sobre o homem.

    A Palavra de Deus, mesmo que pareça frágil e débil, é uma força decisiva que enche a história e que traz ao homem a Vida e a salvação.

     

    INTERPELAÇÕES

    • O nosso tempo é um tempo de muitas palavras. Toda a gente, a propósito e a despropósito, entende dar a sua opinião sobre tudo. É positivo ouvirmos opiniões e perspetivas diversas, pois isso sempre enriquece a nossa visão pessoal das coisas; mas isso cria, por vezes, um ruído de fundo que causa confusão, banaliza o poder da palavra e atira para segundo plano palavras fundamentais, como é o caso da Palavra de Deus. No meio desta autêntica floresta de palavras, de opiniões e de ditos, que lugar ocupa a Palavra de Deus? Para nós, é uma palavra decisiva, determinante, primordial na definição do sentido da nossa vida, ou é apenas “mais uma” palavra entre tantas outras? Conseguimos encontrar tempo para escutar a Palavra de Deus, disponibilidade para a discutir e partilhar, vontade de confrontar a nossa vida com as suas exigências?
    • A Palavra de Deus, diz a segunda leitura deste vigésimo oitavo domingo comum, é viva, atuante, eficaz e renovadora. Deveria, portanto, ter um impacto positivo e transformador nas nossas vidas, nas nossas famílias, nas nossas comunidades, na sociedade à nossa volta… Mas nem sempre isso acontece. Ouvimos diariamente a proclamação da Palavra de Deus nas nossas liturgias e continuamos a escolher valores errados, a erguer barreiras de separação entre pessoas, a marcar a nossa relação comunitária pela inveja, pelo ciúme, pela discórdia, a perpetuar mecanismos de injustiça, de violência, de exploração, de ódio… Será que a Palavra de Deus perdeu a força, ultrapassou o prazo de validade? Não. O problema não está na Palavra de Deus, mas está em nós. Talvez estejamos tão “habituados” à Palavra que já não a escutemos; talvez estejamos tão acomodados na nossa zona de segurança que recusemos o confronto com uma Palavra que incomoda e desinstala; talvez estejamos tão entrincheirados atrás da nossa autossuficiência, que acreditemos que a Palavra de Deus não acrescenta nada à nossa vida. Porque é que a Palavra de Deus não tem na nossa vida e no nosso mundo o impacto que deveria ter?
    • A nossa vivência da fé desenrola-se, muitas vezes, à volta de fórmulas de oração repetitivas, de práticas devocionais fixas, de rituais estéreis e desligados da vida, de tradições cheias de pó, de grandes manifestações de fé que, no entanto, têm pouca profundidade… E a Palavra de Deus é relegada, na experiência de fé de tantos crentes, para um papel muito secundário. Qual o papel e o lugar da Palavra de Deus na nossa forma de viver a fé?

     

    ALELUIA – Mt 5,3

    Aleluia. Aleluia.

    Bem-aventurados os pobres em espírito,
    porque deles é o reino dos Céus.

     

    EVANGELHO – Marcos 10,17-30

    Naquele tempo,
    ia Jesus pôr-Se a caminho,
    quando um homem se aproximou correndo,
    ajoelhou diante d’Ele e Lhe perguntou:
    «Bom Mestre, que hei de fazer para alcançar a vida eterna?»
    Jesus respondeu:
    «Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão Deus.
    Tu sabes os mandamentos:
    ‘Não mates; não cometas adultério;
    não roubes; não levantes falso testemunho;
    não cometas fraudes; honra pai e mãe’».
    O homem disse a Jesus:
    «Mestre, tudo isso tenho eu cumprido desde a juventude».
    Jesus olhou para ele com simpatia e respondeu:
    «Falta-te uma coisa: vai vender o que tens,
    dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no Céu.
    Depois, vem e segue-Me».
    Ouvindo estas palavras, anuviou-se-lhe o semblante
    e retirou-se pesaroso,
    porque era muito rico.
    Então Jesus, olhando à volta, disse aos discípulos:
    «Como será difícil para os que têm riquezas
    entrar no reino de Deus!»
    Os discípulos ficaram admirados com estas palavras.
    Mas Jesus afirmou-lhes de novo:
    «Meus filhos, como é difícil entrar no reino de Deus!
    É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha
    do que um rico entrar no reino de Deus».
    Eles admiraram-se ainda mais e diziam uns aos outros:
    «Quem pode então salvar-se?»
    Fitando neles os olhos, Jesus respondeu:
    «Aos homens é impossível, mas não a Deus,
    porque a Deus tudo é possível».
    Pedro começou a dizer-Lhe:
    «Vê como nós deixámos tudo para Te seguir».
    Jesus respondeu:
    «Em verdade vos digo:
    Todo aquele que tenha deixado casa,
    irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras,
    por minha causa e por causa do Evangelho,
    receberá cem vezes mais, já neste mundo,
    em casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras,
    juntamente com perseguições,
    e, no mundo futuro, a vida eterna».

     

    CONTEXTO

    Jesus está a caminhar com os discípulos através da Judeia e da Transjordânia, em direção a Jerusalém. Contudo, o caminho que fazem não é apenas geográfico; é, sobretudo, um caminho espiritual, durante o qual Jesus vai completando a sua catequese aos discípulos sobre as exigências do Reino e as condições para integrar a comunidade messiânica. Pretende-se que, à medida que vão avançando nesse caminho com Jesus, os discípulos deixem para trás os seus interesses egoístas e interiorizem cada vez mais a lógica do Reino. Só no final desse caminho serão verdadeiros discípulos de Jesus e estarão preparados para serem arautos do Reino de Deus.

    O Evangelho deste vigésimo oitavo domingo comum narra o encontro de Jesus com um homem rico que está interessado em conhecer a maneira de alcançar a vida eterna. Esse encontro dá a Jesus a oportunidade para avisar os discípulos acerca da incompatibilidade entre o Reino e o apego às riquezas.

    Na perspetiva dos teólogos de Israel, as riquezas são uma bênção de Deus (cf. Dt 28,3-8); mas a catequese tradicional também está consciente de que colocar a confiança e a esperança nos bens materiais envenena o coração do homem, torna-o orgulhoso e autossuficiente e afasta-o de Deus e das suas propostas (cf. Sl 49,7-8; 62,11). Jesus vai retomar a catequese tradicional, mas desta vez na perspetiva do Reino de Deus.

     

    MENSAGEM

    Um homem anónimo vem a correr ao encontro de Jesus.  A sua pressa indica que há algo que o inquieta e para o qual ele procura uma resposta urgente. Diante de Jesus, ajoelha-se: a sua atitude indica o respeito que ele tem por Jesus. É um homem sincero e bem-intencionado, que está realmente interessado em ouvir a opinião de Jesus. Ele acredita que Jesus pode ajudá-lo a encontrar o caminho que dá sentido pleno à sua vida.

    Ajoelhado diante de Jesus, o homem coloca a sua grande questão: “Bom Mestre, que hei de fazer para alcançar a vida eterna?” (vers. 17). No Antigo Testamento, a ideia de uma “vida eterna” aparece, pela primeira vez, em Dn 12,2 e é retomada noutros textos tardios. Para alguns teólogos da época do judaísmo helenístico, os justos que se mantiverem fiéis a Deus e à Lei não irão para o sheol (onde os espíritos dos mortos levam uma existência obscura, no reino das sombras), mas ressuscitarão para uma vida nova, de alegria e de felicidade sem fim, com Deus (cf. 2 Mac 7,9.14.36). A vida eterna de que falam os teólogos desta época parece já incluir a ideia de imortalidade (cf. Sb 3,4; 15,3). É provavelmente isto que inquieta o tal homem que se encontra com Jesus: o que é necessário fazer para ter acesso a essa vida imortal que Deus oferece aos justos?

    A primeira resposta de Jesus remete o homem para os mandamentos da Lei: “não mates; não cometas adultério; não roubes; não levantes falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe” (vers. 19). De acordo com a catequese feita pelos mestres de Israel, quem vivesse de acordo com os mandamentos da Lei, receberia de Deus a vida eterna. O viver de acordo com as propostas de Deus é, também na perspetiva de Jesus, um primeiro patamar para chegar à vida eterna.

    O homem explica, porém, que desde sempre a sua vida foi vivida em consonância com os mandamentos da Lei (vers. 20). É uma afirmação serena e convicta, que Jesus não contesta. O homem não é um hipócrita, mas um crente empenhado e sincero. A sua atitude e a forma como ele coloca as questões revelam a verdade da sua vida e da sua procura. Mas, provavelmente, este homem sente que tem de ir mais além da religião do cumprimento da Lei… Habituou-se a acumular boas obras; mas isso parece-lhe pouco. Que mais é preciso? Jesus reconhece a sinceridade, a honestidade, a verdade da busca deste homem; por isso, olha para ele “com simpatia” (vers. 21) e resolve convidá-lo a subir a um outro patamar nesse caminho para a vida eterna: convida-o viver numa lógica completamente nova e a integrar a comunidade do Reino.

    Ora, esse novo patamar tem um outro grau de exigência… Jesus aponta três requisitos fundamentais que devem ser assumidos por quem quiser integrar a comunidade do Reino: não centrar a própria vida nos bens passageiros deste mundo, assumir a partilha e a solidariedade para com os irmãos mais pobres, seguir o próprio Jesus no seu caminho de amor e de entrega (vers. 21). É essa a proposta: que o homem que busca a vida eterna se torne discípulo, vá atrás de Jesus e passe a viver ao estilo de Jesus.

    Apesar de toda a sua boa vontade e da sua ânsia de vida eterna, o homem não está preparado para a exigência deste caminho e afasta-se triste. Marcos explica que ele estava demasiado preso às suas riquezas e não estava disposto a renunciar a elas (vers. 22). O homem de que se fala nesta cena é um piedoso observante da Lei e vive de acordo com os mandamentos; mas não tem coragem para se despojar das suas seguranças humanas, para renunciar aos bens terrenos que lhe escravizam o coração. A sua incapacidade para assumir a lógica do dom, do despojamento, da partilha, do amor, da entrega, tornam-no inapto para o Reino. O Reino é incompatível com o egoísmo, com o fechamento em si próprio, com a lógica do “ter”, com o dar primazia aos bens deste mundo.

    A triste história daquele homem rico que, apesar de ser boa pessoa, não consegue libertar-se do apego a si próprio e aos bens que lhe dão segurança, serve a Jesus para oferecer aos discípulos mais uma catequese sobre o Reino e as suas exigências. Os discípulos devem estar cientes de que o “caminho do Reino” é um caminho de despojamento de si próprio, que tem de ser percorrido no dom da vida, na partilha com os irmãos, na entrega por amor. Ora, quem não é capaz de renunciar aos bens passageiros deste mundo – ao dinheiro, ao sucesso, ao prestígio, às honras, aos privilégios, a tudo isso que prende o homem e o impede de dar-se aos irmãos – não pode integrar a comunidade do Reino (vers. 23-24). Não se trata apenas de uma dificuldade, mas de uma verdadeira impossibilidade. Jesus afirma-o de uma forma radical e contundente: “é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus” – vers. 25). Os bens do mundo impõem ao homem uma lógica de egoísmo, de fechamento, de escravidão que são incompatíveis com a adesão plena ao Reino e aos seus valores.

    Marcos propõe-nos, depois, a reação alarmada e desorientada, dos discípulos face a esta exigência de radicalidade: “quem pode, então, salvar-se?” (vers. 26). Mas Jesus, olhando-os com amor, lembra-lhes a bondade de Deus: não é o homem que se salva, por si; é Deus que lhe oferece a salvação. A salvação não é uma conquista do homem, mas um dom gratuito, fruto do amor de Deus.

    Na segunda parte do nosso texto (vers. 28-30) os discípulos, pela voz de Pedro, recordam a Jesus que deixaram tudo para O seguir. Eles, ao contrário daquele homem rico que, cheio de tristeza, não quis tornar-se discípulo, renunciaram a muita coisa e dispuseram-se a seguir Jesus no caminho para Jerusalém; receberão alguma recompensa, quando for instaurado o Reino de Deus?

    Jesus convida-os ver essa renúncia em função de um bem maior: o seguimento de Jesus e a opção pelo Evangelho do Reino. A opção pelo Reino não é um caminho de perda, de solidão, de morte, mas é um caminho de ganho, de comunhão, de vida. Quem acolhe o Reino de Deus encontra uma família nova, uma família universal, pois torna-se irmão e irmã de todos; quem abraça a dinâmica do Reino liberta-se da obsessão egoísta dos bens e passa a ver o mundo inteiro como um imenso dom de Deus para todos os seus filhos e filhas.

    Esta opção dos discípulos será sempre incompreendida e recusada pelo mundo. Por isso, os discípulos conhecerão também a perseguição e o sofrimento. As tribulações não são um drama imprevisto e sem sentido: os discípulos devem estar preparados para as enfrentar, pois sabem que terão sempre de viver com a oposição do mundo, enquanto se mantiverem fiéis a Jesus e ao Evangelho.

    Aconteça o que acontecer, os discípulos devem estar conscientes de que a opção pelo Reino e pelos seus valores lhes garantirá uma vida cheia e feliz nesta terra e, no mundo futuro, a vida eterna.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Aquele homem que vai ter com Jesus na estrada para Jerusalém, tem urgência em descobrir a reposta para uma questão que é, talvez, a mais decisiva que enfrentamos: que havemos de fazer e como devemos viver para alcançar a vida eterna, uma vida plena, verdadeira e com sentido? Trata-se de uma questão que nos inquieta a todos e que certamente já pusemos muitas vezes a nós próprios, com estas ou com outras palavras semelhantes. Já encontramos a resposta para esta questão? Qual é? Muitos dos nossos contemporâneos, mergulhados na cultura do “ter”, limitam-se a “navegar à vista”, sem horizontes amplos, procurando rodear-se de bem-estar e segurança, apostando tudo nas coisas fúteis e efémeras, apenas preocupados em satisfazer necessidades periféricas… Onde nos leva uma opção deste tipo? Ela é capaz de preencher o vazio existencial que tantas vezes toma conta da nossa vida?
    • Marcos diz-nos que Jesus tem uma resposta definitiva para a questão colocada por aquele homem inquieto. Para Jesus, viver “com sentido” passa, naturalmente, por respeitar a dignidade e os direitos dos irmãos e irmãs (“não mates; não cometas adultério; não roubes; não levantes falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe”); mas, mais que tudo, aproxima-se da vida eterna quem se liberta da escravidão dos bens, está disponível para partilhar tudo o que tem com os irmãos que caminham ao seu lado, aceita tornar-se discípulo e seguir Jesus no caminho do amor que se dá até às últimas consequências. Afinal, alcança a vida eterna quem vive menos para si e mais para os outros; e afasta-se da vida eterna quem vive mais para si próprio e menos para os outros. Nas estranhas contas de Deus, menos dá mais, e mais dá menos. Estamos disponíveis para alinhar nesta paradoxal matemática de Deus e para nos despojarmos de nós próprios a fim de alcançarmos a vida eterna?
    • A história do homem rico, que coloca o seu amor ao dinheiro à frente do seguimento de Jesus alerta-nos para a impossibilidade de conjugar a pertença à comunidade do Reino com o amor aos bens deste mundo. Quando a “doença do dinheiro” toma conta de nós, encerra-nos no nosso próprio mundo, leva-nos a ignorar os nossos irmãos e as suas necessidades, endurece o nosso coração, faz com que sejamos corrompidos pela cobiça, torna-nos aliados da injustiça e da exploração, faz-nos ceder à corrupção e à desonestidade… É, portanto, incompatível com o seguimento de Jesus. Podemos levar vidas religiosamente corretas, participar nos atos litúrgicos mais relevantes, ter até o nosso lugar de destaque na comunidade paroquial; mas, se o nosso coração vive obcecado com os bens deste mundo e fechado ao amor, à partilha, à solidariedade, não podemos fazer parte da comunidade do Reino (“é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus”). Como é a nossa relação com os bens materiais? Qual o lugar que os bens materiais ocupam na nossa vida?
    • O “império do dinheiro” é um império iníquo, que tem deixado feridas insaráveis na vida dos homens e do planeta. Nos “países de bem-estar”, situados maioritariamente a norte do nosso mundo, tudo está submetido a mecanismos económicos que atuam de forma cega e impessoal e que todos os dias deixam nas bermas da da sociedade um cortejo de vítimas; a “economia de mercado” sacrifica a dignidade das pessoas ao lucro e exclui os mais vulneráveis da mesa da vida; o reforço da competitividade atira irremediavelmente os menos preparados para a pobreza e a marginalidade; a exploração egoísta dos recursos naturais destrói esta casa comum que Deus preparou para todos os seus filhos e filhas… Podemos conformar-nos com um mundo assim? A Igreja poderá ser fiel a Jesus sem se pronunciar contra este “império do dinheiro” (o sistema económico neoliberal) que deixa marcas tão desastrosas no nosso mundo? E cada um de nós, pessoalmente, o que poderá fazer para que o mundo e a história dos homens sejam construídos noutros moldes?
    • A expressão “vida eterna” não define apenas essa outra vida que encontraremos no céu, quando terminarmos o nosso caminho na terra. Ela refere-se também à qualidade da nossa vida aqui e agora, à excelência da vida que construímos cada dia neste caminho marcado pela finitude e pela debilidade da nossa condição humana. Uma vida vivida ao estilo de Jesus oferece-nos, já aqui na terra, a possibilidade de nos libertarmos da escravidão das coisas, de vivermos o nosso dia a dia com o coração repleto de alegria e de paz; uma vida marcada pela solidariedade, pela partilha, pelo serviço aos irmãos oferece-nos, já aqui na terra, a possibilidade de nos sentirmos plenamente realizados, “cúmplices” de Deus na criação de um mundo novo… Assim talvez faça mais sentido abraçarmos sem hesitações a proposta de Jesus: ela dirige-se já ao nosso “hoje” e garante-nos, desde já, uma vida com sentido, uma vida que vale a pena viver. Temos consciência disto?
    • Jesus avisa aos discípulos que o “caminho do Reino” é um caminho contra a corrente, que gerará inevitavelmente o ódio do mundo e que se traduzirá em perseguições e incompreensões. É uma realidade que conhecemos bem… Quantas vezes as nossas opções cristãs são criticadas, incompreendidas, apresentadas como realidades incompreensíveis e ultrapassadas por aqueles que representam a ideologia dominante, que fazem a opinião pública, que definem o socialmente correto… Quem optou pelo seguimento de Jesus sabe, no entanto, que a perseguição e a incompreensão são realidades inevitáveis, que não podem desviar-nos do Reino de Deus e da sua justiça. Mantemo-nos fiéis ao caminho de Jesus, sem medo dos rótulos que nos colocam, das críticas que nos fazem, das perseguições que nos movem?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 28.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 28.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.

    Um homem corre, põe-se de joelhos, questiona. Jesus lança sobre ele um olhar de amizade. E é porque o ama que Jesus é exigente, pedindo-lhe para renunciar a tudo para O seguir. Golpe de teatro: o homem vira-se, o seu rosto está triste. Se este relato ficasse por aí, seria desencorajante, como pensam os apóstolos, testemunhas da cena. Mas uma palavra de esperança pode levar a imaginar que este homem poderá reencontrar o seu sorriso e a sua espontaneidade: “Aos homens é impossível, mas não a Deus, porque a Deus tudo é possível”. As exigências que Jesus propõe só podem ser realizadas à força de impulsos do homem, mas com Deus tudo é possível. Se o homem tivesse respondido: “Sozinho, nunca chegarei, Senhor, mas com a tua ajuda, creio que é possível!” Se assim fosse, teríamos nesse dia mais um discípulo, um discípulo feliz!

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.

    Os apóstolos tinham com que ficar desconcertados… e nós com eles! É verdadeiramente necessário abandonar tudo, nada possuir, ser “pobre como Job”, ou como Francisco de Assis, para ser discípulo de Cristo? Mas isso é irrealista e impossível! Olhemos um pouco mais de perto! Na primeira parte do diálogo, o jovem comete o mesmo erro dos fariseus. Fica-se pelo “fazer”. Para eles, a Lei era a norma suprema e a sua observação escrupulosa, o único meio para obter de Deus a salvação. Religião severa e exigente, sem dúvida, que tinha a sua grandeza. Ora, Jesus convida o homem rico a passar para outro registo. De repente, não se trata de vida eterna a ganhar, mas de seguir Jesus. Como se a vida eterna fosse estar com Jesus! Eis a grande transformação que Jesus vem provocar. Não se trata primeiro de fazer esforços para obedecer a mandamentos, trata-se primeiro de entrar numa relação de amor com Jesus. Mais profundamente ainda, trata-se primeiro de descobrir que Jesus, Ele em primeiro lugar, nos ama. Eis porque a referência de Marcos é fundamental: “Jesus olhou para ele com simpatia (amor)”. É este olhar que transforma tudo. Jesus quer fazer compreender ao homem rico que lhe falta o essencial: deixar-se amar em primeiro lugar, descobrir que todos os seus bens materiais nunca poderão preencher esta necessidade vital para todo o homem de ser amado. Senão, é impossível aprender a amar. As riquezas são mesmo um obstáculo ao amor, porque este, para ser verdadeiro, diz ao outro: “Preciso de ti. Sem ti, serei pobre em humanidade”. As riquezas do homem impediram-no de ler tudo isto no olhar de Jesus. O homem partiu. Mas Jesus não lhe retirou o seu amor, acompanhou-o sempre com o seu olhar de amor, como o pai do filho pródigo.

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    Qual é o meu tesouro? No princípio desta Semana Missionária, em que queremos anunciar o Evangelho, tomemos a resolução de perguntar em cada dia da semana: qual é o meu tesouro? O que me faz viver? E sejamos verdadeiros na nossa resposta…

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:

    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

  • S. Teresa de Jesus, Virgem e Doutora da Igreja

    S. Teresa de Jesus, Virgem e Doutora da Igreja


    15 de Outubro, 2024

    Santa Teresa de Jesus nasceu em Ávila, Espanha, no ano de 1515. Entrou no Carmelo da Incarnação em 1535. Depois de um longo período de tibieza, começou a sua "conversão", com uma intensa vida mística em contato com Cristo, que a levou ao forte desejo de servir a Igreja do seu tempo, dilacerada pela Reforma protestante. Em 1562, fundou o Carmelo de S. José, em Ávila, onde deu início à reforma da Ordem. Seguiram-se diversas fundações de conventos reformados em Castela e na Andaluzia. A reforma estendeu-se também aos conventos carmelitas masculinos, graças à colaboração de S. João da Cruz, seu diretor espiritual, a partir de 1567. No leito de morte declarou-se feliz por morrer "filha da Igreja". Faleceu a 4 de Outubro de 1582. Foi canonizada por Gregório XV, em 1623, e declarada Doutora da Igreja por Paulo VI, em 1970.

    Lectio

    Primeira leitura: Romanos 8, 22-27

    Irmãos: Nós sabemos como toda a criação geme e sofre as dores de parto até ao presente.23Não só ela. Também nós, que possuímos as primícias do Espírito, nós próprios gememos no nosso íntimo, aguardando a adopção filial, a libertação do nosso corpo. 24De facto, foi na esperança que fomos salvos. Ora uma esperança naquilo que se vê não é esperança. Quem é que vai esperar aquilo que já está a ver? 25Mas, se é o que não vemos que esperamos, então é com paciência que o temos de aguardar. 26É assim que também o Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza, pois não sabemos o que havemos de pedir, para rezarmos como deve ser; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis. 27E aquele que examina os corações conhece as intenções do Espírito, porque é de acordo com Deus que o Espírito intercede pelos santos.

    O capítulo 8 da carta aos Romanos foi chamado o capítulo dos contemplativos. Por isso, é muito adequado para iluminar a figura de Teresa de Jesus. Este texto permite-nos verificar a ligação entre a mensagem teresiana e a experiência da oração interior no Espírito Santo. O Espírito Santo é, efetivamente, como que o motor da esperança de toda a criação no coração dos filhos de Deus. De fato, é na vida cristã que se experimenta a salvação alcançada e a esperança da redenção final no corpo e no cosmos. Do Espírito Santo, intérprete dos nossos desejos e necessidades, brota a oração e a intercessão mais profunda. A oração é um dom da amizade divina, que supõe a presença dos Espírito Santo, que nos impele a rezar e a interceder pela salvação de todos e, sobretudo, solicita a empreender um caminho de perfeição e a passar o limiar das diversas moradas do castelo interior, até à fonte viva da vida divina.

    Evangelho: da féria ou do Comum

    Meditatio

    Teresa de Jesus deixou-nos um precioso testemunho da sua caminhada de fé no livro da sua Vida, onde revela uma infância religiosamente precoce, uma juventude vivida na crise, uma recuperação vocacional aos vinte anos, seguida ainda por uma experiência de vida religiosa com altos e baixos, até à "conversão" definitiva, quando já se aproximava dos quarenta anos. É a lenta caminhada de uma história de salvação que, desde os limites do pecado, se desenvolve numa conversão sincera e total, com uma determinada determinação, com uma opção total e definitiva pelo Senhor, que dá azo a uma experiência mística em que Deus opera maravilhas. A vida de Teresa testemunha o processo de transformação da sua pessoa, o desejo de salvação, a efetiva mudança de vida, a graça do Espírito Santo que a penetra e conduz a uma intensa experiência de fé cristã. Nela notamos a graça mística como iluminação interior e como experiência de salvação e de transformação, a presença de Deus, a força da Palavra e dos Sacramentos, a revelação de Cristo Ressuscitado, na sua santa humanidade, a efusão do Espírito Santo e dos seus dons. A experiência da inabitação trinitária, da comunhão total com Cristo esposo, orientada para o serviço da Igreja, meta ideal da santidade cristã, coroou a sua caminhada. Foi um itinerário em que a oração interior, divina amizade com Deus, foi a chave de compreensão. Tudo desembocou na mística do serviço, numa forte unidade de vida vivida e ensinada pela santa, num grande amor pela Igreja, demonstrado concretamente na promoção da santidade da vida e no serviço da vida contemplativa para renovação da Igreja.

    Oratio

    Santa esposa do Salvador, ensinai-nos a contemplar convosco o Lado ferido do Salvador, que nos deixa ver o seu Coração e que nos revela o seu amor. Convosco, encontrarei nessa chaga sagrada um ninho e um refúgio, e uma porta para entrar na arca no tempo das tentações e sobretudo na hora da minha morte. Ámen. (Leão Dehon, OSP 4, p. 359).

    Contemplatio

    Santa Teresa tem o seu lugar entre as almas que, antes das revelações do séc. XVII, fixaram os seus olhares no Coração de Jesus. Ela escrevia ao bispo de Osma, que lhe pedia um método de oração: «Colocareis diante dos vossos olhos, os do corpo e os da alma, a imagem de Jesus crucificado que haveis de considerar atentamente e em pormenor, com todo o recolhimento e amor de que fordes capaz... A chaga do seu lado, pela qual vos deixará ver o seu Coração a descoberto, revelar-vos-á o indizível amor que nos marcou, quando quis que esta chaga sagrada fosse o nosso ninho e o nosso asilo, e que nos servisse de porta para entrarmos na arca no tempo das tentações». Ela tinha recebido esta orientação dos Padres da Igreja e dos santos dos séculos XII e XIII. Uma das suas práticas mais caras era a de se transportar em espírito, à noite, ao tomar o seu repouso, ao jardim da agonia. Meditava sobre as angústias do Salvador, compadecia, unia-se a ele. Não era isto a Hora santa?E o seu coração trespassado pelo dardo inflamado do Serafim, que lhe causava um tão suave martírio, não a fazia pensar sem cessar na chaga de amor do seu Jesus crucificado? (Leão Dehon, OSP 4, p. 358s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "A oração e a vida não consistem em muito sofrer,
    mas em muito amar" (S. Teresa de Jesus).

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    S. Teresa de Jesus, Virgem e Doutora da Igreja (15 Outubro)

  • S. Margarida Maria Alacoque, Virgem

    S. Margarida Maria Alacoque, Virgem


    16 de Outubro, 2024

    Santa Margaria Maria Alacoque nasceu em Autún, França, no ano de 1647. Entrou no mosteiro da Visitação, em Paray-le-Monial, quando tinha 27 anos de idade. Na capela desse mosteiro teve revelações do Sagrado Coração de Jesus, recebendo a missão de divulgar a devoção ao mesmo Sagrado Coração, com o apoio e a ajuda de S. Cláudio de La Colombière. Faleceu em 1690, sendo canonizada por Bento XV, em 1920. S. Margarida Maria é um dos padroeiros da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus, Dehonianos.

    Lectio

    Primeira leitura: Efésios 3, 14-19

    Irmãos: Eu eu dobro os joelhos diante do Pai, 15do qual recebe o nome toda a família, nos céus e na terra: 16que Ele vos conceda, de acordo com a riqueza da sua glória, que sejais cheios de força, pelo seu Espírito, para que se robusteça em vós o homem interior; 17que Cristo, pela fé, habite nos vossos corações; que estejais enraizados e alicerçados no amor, 18para terdes a capacidade de apreender, com todos os santos, qual a largura, o comprimento, a altura e a profundidade... 19a capacidade de conhecer o amor de Cristo, que ultrapassa todo o conhecimento, para que sejais repletos, até receberdes toda a plenitude de Deus.

    Paulo, prisioneiro de Cristo, reafirmara a transcendência e a gratuidade do seu ministério: "A mim, o menor de todos os santos, foi dada a graça de anunciar aos gentios a insondável riqueza de Cristo" (v. 8). Essa gratuidade é visível, não só na sua tardia integração na Igreja, mas sobretudo no fato de este "mistério estar escondido desde séculos em Deus, o criador de todas as coisas" (Ef 3, 9). É algo de transcendente, cuja realidade não se pode verificar apenas através de uma simples investigação racional ou científica, pois se trata de amor por parte de Cristo, um amor gratuito, um amor "ultrapassa todo o conhecimento" (v. 19). A meta de tudo isto é que os cristãos fiquem "repletos, até receberdes toda a plenitude de Deus" (v. 19). Margarida Maria fez experiência desse amor de Cristo, ao contemplar o seu Coração trespassado. E tornou-se apóstola desse amor.

    Evangelho: da féria ou do Comum

    Meditatio

    Santa Margarida Maria escreve no caderno de um dos seus retiros: «Em tudo o que fizer, entrarei no Sagrado Coração de Jesus para aí colher as suas intenções, me unir a ele e pedir a sua ajuda. Depois de cada ação, oferecê-la-ei a este divino Coração para reparar tudo o que aí encontrar de defeituoso, sobretudo nas minhas orações. Quando cometer faltas, depois de as ter punido em mim pela penitência, oferecerei ao Pai Eterno uma das virtudes deste divino Coração para pagar o ultraje que lhe tiver feito. À noite, colocarei neste Coração adorável tudo o que tiver feito durante o dia, a fim de que purifique o que houver de impuro e de imperfeito nas minhas ações, para as tornar dignas de lhe serem apropriadas e de as introduzir no seu divino Coração, deixando-lhe o cuidado de dispor de tudo segundo o seu desejo, não me reservando senão o de o amar e de o contentar». Eis o programa de uma união completa e de toda a jornada. As ações são oferecidas ao Coração de Jesus como tantos atos de amor e de reparação. São-lhe ainda apresentadas depois da sua realização para que as purifique.
    Num outro retiro, escrevia esta resolução: «Esforçar-me-ei, Senhor, por vos submeter tudo o que está em mim, e de fazer o que julgar mais perfeito, mais glorioso para o vosso Sagrado Coração ao qual prometo nada poupar de tudo o que estiver no meu poder, e de nada recusar fazer ou sofrer para o dar a conhecer, amar e glorificar».
    Aliás, sobre o desejo expresso pelo próprio Nosso Senhor, ela já tinha feito, em favor do Sagrado Coração, um testamento ou doação total, sem reserva, e isto por escrito, assinado com o seu sangue, de tudo o que ela pudesse fazer ou sofrer, doação à qual Nosso Senhor respondeu com o dom do seu próprio Coração, expresso por estas palavras: «Constituo-te herdeira do meu Coração e de todos os seus tesouros, para o tempo e para a eternidade, permitindo-te usar deles segundo os teus desejos». Que doação admirável! Como Nosso Senhor responde generosamente ao que se faz por Ele! É bem o que Ele prometeu em S. João (14, 23): «Se alguém me ama, meu Pai amá-lo-á e eu também o amarei e me manifestarei a ele».
    As palavras de Nosso Senhor a Margarida Maria mostram-nos também como a intercessão desta fiel discípula do Sagrado Coração é poderosa para o tempo e para a eternidade...
    Margarida Maria morreu prematuramente vítima do Sagrado Coração. Era necessário, de facto, que ela deixasse a terra para que se pudesse falar das suas revelações. Nada anunciava a proximidade da sua morte. No entanto, no começo do ano de 1690, ela dizia: «Morrerei seguramente este ano para não impedir os grandes frutos que o meu divino Salvador pretende tirar do livro da devoção ao Sagrado Coração de Jesus». O Padre Croiset estava, de facto, ocupado a compor este livro, do qual não tinha falado a ninguém.
    Três meses antes da sua morte, que ela previa, pediu para fazer um retiro de 40 dias para se preparar. Neste retiro, diante do que ela chamava a imensidão da sua malícia, lançou-se no Sagrado Coração. «Sou insolvente, Senhor, diz nas suas notas, vós o sabeis, colocai-me na prisão, consinto nisso desde que seja no vosso Sagrado Coração; e quando lá estiver, conservai-me lá bem cativa, ligada com as cadeias do vosso amor até que vos tenha pagado tudo o que vos devo; e como nunca o poderei, assim desejaria nunca mais sair desta prisão».
    Caiu doente, como o tinha previsto. Repetia que a sua morte era necessária para a glória do Sagrado Coração, e declarava, para admiração de todos, que estava à porta do túmulo. O Coração de Jesus era como sempre o objeto dos seus pensamentos. Aos cuidados que lhe são propostos, prefere, diz, abismar-se no Coração de Jesus. Depois de três dias de uma doença que ninguém conseguia explicar, deu a sua alma a Deus morrendo de amor, segundo a expressão do médico do mosteiro. (Leão Dehon, OSP 4, p. 367s.).

    Oratio

    Viver e morrer no Coração de Jesus, é todo o meu desejo. Não está aí o paraíso de toda a beleza, de toda a virtude, de toda a bondade? Contemplar os sentimentos do Coração de Jesus, admirá-los e unir-se a eles, essa é a ocupação dos eleitos. Quero que seja a minha desde agora. (Leão Dehon, OSP 4, p. 368).

    Contemplatio

    A devoção ao Sagrado Coração arrasta consigo a devoção ao Santíssimo Sacramento. Pode dizer-se que Margarida Maria vivia do Santíssimo Sacramento. Desde a sua mais tenra infância, uma atração extraordinária a levava para o altar. Quando não estava em casa de seus pais, era seguro poderem encontrá-la diante do Sacrário, que ela olhava com amor, mantendo-se lá sem dizer nada, contente de pensar que Nosso Senhor estava lá. Longe de diminuir com os anos, esta atracão crescia cada vez mais. Ela dizia: «Teria aí passado dias e noites sem beber nem comer, e sem saber o que fazer, senão consumir-me como um círio ardente na sua presença, para lhe dar amor por amor. Teria julgado ser a mais feliz do mundo, se tivesse podido passar as noites, sozinha, diante dele». Depois da sua entrada em religião, Margarida Maria deu livre curso ao seu amor pelo hóspede do Sacrário. Encontravam-na sempre ocupada com este divino objeto, com uma paixão tal, que temiam que esta aplicação lhe prejudicasse a saúde. Ela organizava o seu tempo tanto quanto podia, a fim de ter mais momentos livres para ficar na capela, onde a viam numa adoração profunda, com as mãos juntas, sem fazer nenhum movimento. (Leão Dehon, OSP 4, pp. 364).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Quero viver e morrer no Coração de Jesus" (Leão Dehon).

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    S. Margarida Maria Alacoque, Virgem (16 Outubro)

  • S. Inácio de Antioquia

    S. Inácio de Antioquia


    17 de Outubro, 2024

    S. Inácio sucedeu ao apóstolo S. Pedro no governo da comunidade cristã de Antioquia. Nos inícios do século II, foi conduzido a Roma para ser condenado às feras. Enquanto ia a caminho do martírio, S. Inácio escreveu sete cartas às diversas igrejas do seu tempo. São cartas escritas com sangue, verdadeiros pedaços de vida, com o grito ardente de um místico que anseia pelo martírio. Estas cartas, cuja autenticidade é admitida pela maioria dos estudiosos, com sólidos argumentos, conservam rasgos vivos e luminosos de uma das maiores personalidades dos primeiros séculos da Igreja.

    Lectio

    Primeira leitura: Filipenses 3, 17 - 4, 1

    Irmãos: Sede todos meus imitadores, irmãos, e olhai atentamente para aqueles que procedem conforme o modelo que tendes em nós. 18É que muitos - de quem várias vezes vos falei e agora até falo a chorar - são, no seu procedimento, inimigos da cruz de Cristo: 19o seu fim é a perdição, o seu Deus é o ventre, e gloriam-se da sua vergonha - esses que estão presos às coisas da terra. 20É que, para nós, a cidade a que pertencemos está nos céus, de onde certamente esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo. 21Ele transfigurará o nosso pobre corpo, conformando-o ao seu corpo glorioso, com aquela energia que o torna capaz de a si mesmo sujeitar todas as coisas. 1Portanto, meus caríssimos e saudosos irmãos, minha coroa e alegria, permanecei assim firmes no Senhor, caríssimos.

    Paulo convida os filipenses a imitá-lo, tal como ele imita a Cristo. Jesus, pela sua morte e ressurreição, transfigurou o nosso corpo para o conformar ao seu corpo glorioso (v. 21). A cruz encerra o germe da ressurreição. Quem participa na cruz de Cristo, participa também na sua ressurreição. S. Inácio imitou a Cristo na sua paixão e morte cruenta. Deu o seu testemunho do sangue. Todo o cristão é chamado a idêntico testemunho, se não de modo cruento, pelo menos carregando com alegria e generosidade a cruz de cada dia.

    Evangelho: João 12, 24-26

    Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: "Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto. 25Quem se ama a si mesmo, perde-se; quem se despreza a si mesmo, neste mundo, assegura para si a vida eterna. 26Se alguém me serve, que me siga, e onde Eu estiver, aí estará também o meu servo. Se alguém me servir, o Pai há-de honrá-lo.

    Se Jesus Cristo é o grão de trigo que, lançado à terra e morto, produziu muito fruto, o texto que hoje escutamos é uma síntese de todo o evangelho e da vida de Cristo. Inácio, imitador de Cristo, também é esse grão de trigo que, moído pelos dentes das feras, se tornou pão puro de Cristo, verdadeira eucaristia. Se os mártires precisam da Eucaristia, também a eucaristia não pode prescindir do testemunho dos mártires.

    Meditatio

    Para a meditação de hoje, nada melhor do que recorrermos a alguns pensamentos de S. Inácio de Antioquia. Na iminência do seu martírio, o santo bispo escreve aos Romanos: "É bonito partir deste mundo para Deus, a fim de ressuscitar para Ele". "Deixai que me torne alimento das feras, por meio das quais me é dado alcançar a Deus. Sou trigo de Deus, moído pelos dentes das feras, para me tornar pão puro de Cristo. Acariciai as feras, para que se tornem o meu sepulcro e nada deixem do meu corpo, para que uma vez morto, eu não seja peso para ninguém. Então serei, de verdade, discípulo de Jesus Cristo, quando o mundo deixar de ver o meu corpo. Suplicai a Cristo por mim, para que, por meio daqueles instrumentos, eu me torne hóstia para Deus" "Agora começo a ser discípulo de Cristo". "De nada me serviriam os confins da terra nem os reinos deste século. Para mim, é mais belo morrer por Jesus Cristo do que reinar sobre os confins da terra. Procuro-o, que morreu e ressuscitou por nós, quero-o, que ressuscitou por nós. Agora, o parto está iminente para mim. Tende compaixão de mim, irmãos. Não me impeçais de viver, não queirais o meu morrer. A quem quer ser de Deus, não o entregueis de graça ao mundo e não o enganeis com a matéria. Deixai-me acolher a luz pura. Junto dela, serei homem. Deixai-me ser imitador da Paixão do meu Deus". "Rezai para que eu seja cristão, não só de nome, mas também de fato". "Rezai para que possa alcançar a Deus".
    S. Inácio alcançou a Deus através do martírio no ano 107. A sua memória é celebrada neste dia desde o século IV.

    Oratio

    Rezemos com S. Inácio de Antioquia: "O meu Amor está crucificado e não há em mim fogo que se alimente da matéria. Mas há uma água viva que murmura dentro de mim e me diz interiormente: "Vem ao Pai". Não me satisfazem os alimentos corrutíveis nem os prazeres deste mundo. Quero o pão de Deus, que é a Carne de Jesus Cristo, nascido da linhagem de David, e por bebida quero o Sangue que é a caridade incorrutível". Ámen.

    Contemplatio

    A caridade tem tido os seus inumeráveis mártires, que têm fecundado a Igreja e enchido o céu. Todos aqueles que sacrificaram a sua vida nos trabalhos e nos perigos do apostolado sob todas as suas formas são mártires da caridade. Enfrentaram as fadigas, as doenças, as dificuldades do clima, a hostilidade dos infiéis para irem em socorro dos que sofrem ou que estão nas trevas da idolatria. Era o espírito da caridade que os conduzia. Dando-nos o seu mandamento novo, Nosso Senhor dá-nos, no Espírito Santo, a graça de o cumprirmos. Se correspondermos a este espírito de caridade, havemos de praticar entre nós a mansidão, a paciência, a benevolência. As obras de misericórdia ser-nos-ão caras e fáceis. Teremos gosto em tomar conta dos pequenos, dos pobres, dos ignorantes, daqueles que sofrem. Havemos de nos recordar da palavra do bom Mestre: «O que fazeis aos pequenos e aos deserdados, tenho-o como feito a mim». Se tivermos uma caridade ardente e abundante, levá-la-emos até ao sacrifício. Despojar-nos-emos, afadigar-nos-emos para socorrer o nosso próximo, e, se for preciso, daremos a nossa vida por ele como Nosso Senhor a deu por nós. (Leão Dehon, OSP 3, p. 419s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Faça-se tudo para honrar a Deus" (S. Inácio de Antioquia).

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    S. Inácio de Antioquia (17 Outubro)

  • S. Lucas, Evangelista

    S. Lucas, Evangelista


    18 de Outubro, 2024

    S. Lucas nasceu em Antioquia da Síria. Foi educado no paganismo e exerceu a profissão de médico (cf. Cl 4, 14). Convertido ao cristianismo, torou-se colaborador de S. Paulo, estabelecendo com ele uma grande amizade (Fm 24). Homem culto, S. Lucas, é o autor do terceiro evangelho e dos Atos dos Apóstolos, sendo também um dos responsáveis pela ação missionária nos primeiros tempos da Igreja.

    Lectio

    Primeira leitura: 2 Timóteo 4, 10-17b

    Caríssimos: Demas abandonou-me. Preferiu o mundo presente e foi para Tessalónica. Crescente foi para a Galácia, e Tito para a Dalmácia. 11Apenas Lucas está comigo.Traz contigo Marcos, pois me será de grande ajuda no ministério.  12Quanto a Tíquico, enviei-o a Éfeso.13Quando vieres, traz o manto que deixei em Tróade, em casa de Carpo, bem como os livros, especialmente os pergaminhos. 14Alexandre, o fundidor de cobre, causou-me muitos danos. O Senhor lhe retribuirá segundo as suas obras. 15Toma tu também cuidado com ele, pois muito se tem oposto ao nosso ensinamento. 16Na minha primeira defesa, ninguém esteve ao meu lado. Todos me abandonaram. Que não lhes seja levado em conta. 17O Senhor, porém, esteve comigo e deu-me forças, a fim de que, por meu intermédio, o anúncio fosse plenamente proclamado e todos os gentios o escutassem.

    Paulo manifesta o seu conforto por Lucas lhe permanecer fiel, enquanto outros, por cansaço ou por medo, o abandonaram. É sobretudo a presença do Senhor que anima o Apóstolo a pregar o Evangelho aos gentios, mantendo-se fiel à sua vocação inicial. Mas não pode deixar de lembrar os que o abandonaram, quando mais precisava de apoio, tendo de se defender sozinho em tribunal, e tendo de defender a Cristo e à fé que abraçara. O que provoca mais satisfação em Paulo é poder afirmar que foi por seu intermédio que o Evangelho foi anunciado, de modo especial aos gentios. A missão recebida em Damasco estava realizada.

    Evangelho: Lucas 10, 1-9

    Naquele tempo, o Senhor designou outros setenta e dois discípulos e enviou-os dois a dois, à sua frente, a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir. 2Disse-lhes:«A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Rogai, portanto, ao dono da messe que mande trabalhadores para a sua messe.3Ide! Envio-vos como cordeiros para o meio de lobos. 4Não leveis bolsa, nem alforge, nem sandálias; e não vos detenhais a saudar ninguém pelo caminho.5Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: 'A paz esteja nesta casa!'6E, se lá houver um homem de paz, sobre ele repousará a vossa paz; se não, voltará para vós. 7Ficai nessa casa, comendo e bebendo do que lá houver, pois o trabalhador merece o seu salário. Não andeis de casa em casa.8Em qualquer cidade em que entrardes e vos receberem, comei do que vos for servido, 9curai os doentes que nela houver e dizei-lhes: 'O Reino de Deus já está próximo de vós.'

    Só Lucas que nos fala deste episódio. Jesus, depois de ter enviado os Doze em missão (Lc 9, 1ss), envia também estes setenta e dois discípulos. A missão é uma das grandes preocupações do terceiro evangelista. Nos Atos dos Apóstolos, além das missões de Pedro e de Paulo, fala das missões de Estêvão, de Filipe e de outros apóstolos. A messe do Senhor precisa de muitos trabalhadores. Há que pedi-los e que enviá-los. A oração, não só prepara, mas é parte integrante da missão. A missão começa na oração; e rezar é estar em missão. Como o seu Mestre e Senhor, os discípulos devem ir em missão "como cordeiros para o meio de lobos" (v. 3). O anúncio essencial é: "O Reino de Deus já está próximo de vós." (v. 9). Trata-se de uma expressão densa de significado: os tempos completaram-se, isto é, estão cheios da presença de Deus que salva. A presença de Deus concretiza-se na pessoa de Jesus e nos seus ensinamentos.

    Meditatio

    S. Lucas escreveu o terceiro evangelho, com alguns elementos que nos permitem distingui-lo dos outros três evangelistas. S. Lucas é o evangelista de Maria: só ele nos fala da anunciação, da visitação, do nascimento de Jesus e da sua apresentação no templo. É o evangelista do Coração de Jesus: é o que melhor nos revela a sua misericórdia nas parábolas da dracma perdida e reencontrada, da ovelha perdida e achada, do filho pródigo. É o evangelista da caridade: só ele narra a parábola do bom samaritano, e fala do amor de Jesus aos pobres com acentuações mais ternas do que os outros evangelistas. Apresenta-nos Jesus comovido diante do sofrimento da viúva de Naim; Jesus que acolhe delicadamente a pecadora em casa de Simão, o fariseu, e lhe assegura o perdão de Deus; Jesus que acolhe Zaqueu com tanta bondade que muda o coração ganancioso do publicano em coração arrependido e generoso.
    Lucas é o evangelista da confiança, da paz, da alegria. É o evangelista do Espírito Santo. É ele que apresenta a comunidade cristã como tendo "um só coração e uma só alma". O evangelho de Lucas revela o seu zelo missionário. Só ele fala da missão dos setenta e dois discípulos e alguns pormenores dessa missão. Há, pois, muitos tesouros a explorar na obra lucana. Havemos de fazê-lo com gratidão, entregando-nos, também nós, generosamente ao Senhor, vivendo como discípulos e carregando com Ele a nossa cruz de cada dia.
    Lucas acompanhou Paulo em algumas das suas viagens missionárias e durante o cativeiro em Roma. Com a morte do Apóstolo eclipsa-se a história de Lucas. Um escrito do século III diz-nos que morreu virgem na Bitínia, com a idade de 74 anos, cheio de Espírito Santo. Uma tradição do século IV assegura-nos que derramou o sangue por Cristo. Lucas é um médico bondoso e serviçal, um literato, mas sobretudo um santo e mártir, que regou com o seu sangue as sementes do Evangelho por ele lançadas. É considerado padroeiro dos médicos, por causa das palavras de Paulo: "Saúda-vos Lucas, nosso querido médico" (Col 4, 14).

    Oratio

    Senhor, nosso Deus, que escolhestes São Lucas para revelar com a sua palavra e os seus escritos o mistério do vosso amor pelos pobres, fazei que sejam um só coração e uma só alma aqueles que se gloriam no vosso nome e todos os povos mereçam ver a vossa salvação. Ámen. (Coleta de Missa).

    Contemplatio

    S. Lucas é o Evangelista da santa Infância de Jesus. Como os amigos do Sagrado Coração lhe devem estar reconhecidos! Foi ele que nos deu a conhecer tantos pormenores deliciosos sobre o nascimento e a infância de Jesus. Devemos-lhe a saudação angélica, a Ave-maria, o Ecce Ancilla Domini, o Benedictus, o Nunc dimittis, tantos outros tesouros para os amigos do Coração de Jesus. Ele descreve-nos a visita dos pastores. Devemos-lhe também o cântico dos anjos «Gloria in excelsis Deo». Nenhum evangelista deu semelhantes tesouros à liturgia. Descreve a estadia de Jesus no Templo aos 12 anos, o comentário de Isaías por Jesus na sinagoga de Nazaré. Relata a bela parábola de Lázaro e do mau rico, a cura dos dez leprosos, dos quais só um é reconhecido, a cena deliciosa na qual Marta mostra demasiada solicitude e na qual Madalena escolheu a melhor parte, a única coisa necessária. A grande parábola do Filho pródigo é uma das suas mais belas páginas. Era preciso um homem de grande coração para compreender e relatar estas cenas tocantes e estes discursos do Salvador. Relata melhor que os outros a justificação de Madalena por Jesus em casa de Simão, o Fariseu, e a chamada de S. Pedro com a primeira pesca milagrosa. É a ele que devemos o conhecimento desta palavra caída do Sagrado Coração: vim acender o fogo (do amor) sobre a terra, e que desejo senão que se propague. Revelou-nos o santo Coração de Maria. Foi ele que nos disse por duas vezes que Maria conservava no seu coração os mistérios de Jesus e neles meditava (Lc 2, 19 e 51). (L. Dehon, OSP 4, p.369s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Rogai ao dono da messe
    que mande trabalhadores para a sua messe" (Lc 10, 2).

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    S. Lucas, Evangelista (18 Outubro)

  • 29º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    29º Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]


    20 de Outubro, 2024

    ANO B

    29.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 29.º Domingo do Tempo Comum

    O que é que determina o êxito ou o fracasso da nossa existência? Como devemos viver para que a nossa vida seja repleta de sentido? A liturgia do 29.º Domingo do Tempo Comum diz-nos que conseguiremos dar pleno sentido à nossa vida quando aprendermos a deixar de lado os nossos projetos de poder e de grandeza, para apostarmos no amor e no serviço àqueles que caminham connosco. Então seremos, de facto, uma luz que brilha no meio do mundo.

    A primeira leitura fala-nos de um “servo de Deus”, que cumpriu a sua existência na terra no meio do sofrimento e do desprezo, mas que Deus exaltou e glorificou. A figura desse “servo” diz-nos que uma vida vivida na humildade, no sacrifício, na entrega e no dom de si mesmo não é, aos olhos de Deus, uma vida maldita, perdida, fracassada; mas é uma vida fecunda e plenamente realizada, que trará libertação e esperança ao mundo e aos homens.

    No Evangelho, Jesus mostra aos discípulos em que direção devem caminhar para que as suas vidas se encham de sentido. Confrontado com os sonhos de poder e de honrarias de Tiago e de João, Jesus garante-lhes que é no dom da vida, na entrega de si próprios, no serviço simples e humilde aos irmãos, que se sentirão plenamente realizados.

    Na segunda leitura, o autor da Carta aos Hebreus apresenta Jesus como um sumo-sacerdote misericordioso que, depois de apresentar o seu sacrifício, “atravessou os céus” e se apresentou diante de Deus para interceder pelos homens. Assim, Ele alcançou de Deus a misericórdia para os homens pecadores. A nossa resposta à ação salvadora de Cristo em nosso favor deve traduzir-se na adesão plena às suas propostas.

     

    LEITURA I – Isaías 53,10-11

    Aprouve ao Senhor esmagar o seu Servo pelo sofrimento.
    Mas, se oferecer a sua vida como vítima de expiação,
    terá uma descendência duradoira, viverá longos dias,
    e a obra do Senhor prosperará em suas mãos.
    Terminados os sofrimentos,
    verá a luz e ficará saciado.
    Pela sua sabedoria, o Justo, meu Servo, justificará a muitos
    e tomará sobre si as suas iniquidades.

     

    CONTEXTO

    O texto que a liturgia deste vigésimo nono domingo comum nos propõe como primeira leitura pertence ao “Livro da Consolação” do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). “Deutero-Isaías” é um nome convencional com que os biblistas designam um profeta anónimo da escola de Isaías, que cumpriu a sua missão profética na Babilónia, entre os exilados judeus, na fase final do Exílio (entre 550 e 539 a.C., aproximadamente).

    O Povo de Deus estava cansado e desanimado, depois de várias décadas de Exílio. Não via saída para a sua triste situação. Perguntava-se se Deus se tinha esquecido de Judá e se as promessas outrora feitas por Deus ainda eram válidas. Nesse contexto, o Deutero-Isaías recebeu de Deus a missão de consolar os exilados e de manter, com a sua mensagem, aberta a porta da esperança. Nesse sentido, o Deutro-Isaías começa por anunciar a iminência da libertação e por comparar a saída da Babilónia ao antigo êxodo, quando Deus libertou o seu Povo da escravidão do Egipto (cf. Is 40-48); depois, anuncia a reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).

    No meio desta proposta “consoladora” aparecem, contudo, quatro textos (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que fogem um tanto a esta temática. São cânticos que falam de uma personagem misteriosa e enigmática, que os biblistas designam como o “Servo de Javé”: ele é um predileto de Javé, a quem Deus chamou, a quem confiou uma missão profética e a quem enviou aos homens de todo o mundo; a sua missão cumpre-se no sofrimento e numa entrega incondicional à Palavra; o sofrimento do profeta tem, contudo, um valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão para o pecado do Povo; Deus aprecia o sacrifício deste “Servo” e recompensá-lo-á, fazendo-o triunfar diante dos seus detratores e adversários.

    Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma do profeta que sofre por causa da Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho da Palavra no ambiente hostil do Exílio? É um profeta desconhecido? É uma figura coletiva, que representa o Povo exilado, humilhado, esmagado, mas que continua a dar testemunho de Deus no meio das outras nações? É uma figura representativa, que une a recordação de personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras míticas, de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não sabemos; no entanto, a figura apresentada nesses poemas vai receber uma outra iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida, do seu destino.

    O texto que nos é proposto é parte (apenas dois versículos) do quarto cântico do “servo de Javé”. Nesse cântico, Deus toma a palavra, no início, para chamar a atenção para o seu “servo”, “de rosto desfigurado e aspeto disforme” (Is 52,13); depois a palavra passa para um “coro”, que narra a paixão, e a morte, bem como o sentido do sacrifício do “servo de Javé” (cf. Is 53,1-11a); finalmente, Deus retoma a palavra para confirmar as palavras do “coro” e para declarar a inocência do “servo”, cuja morte “justificará a muitos”. O nosso texto apresenta a leitura que o “coro” faz sobre o sentido da paixão e da morte do “servo” (Is 53,10-11a), bem como parte das palavras finais de Deus (Is 53,11bc).

     

    MENSAGEM

    Porque é que o “servo de Javé” foi maltratado (Is 53,7), “suprimido da terra dos vivos” (Is 53,8), sepultado entre os ímpios (Is 53,9), ele que não tinha feito mal algum? O coro comenta que o destino do “servo” foi concertado com Deus”: “aprouve ao Senhor esmagá-lo com sofrimento” (Is 53,10). Porquê?

    O sofrimento que atingiu o “servo de Javé” ao longo de toda a existência não é um castigo de Deus por causa dos seus pecados pessoais, mas um “sacrifício de expiação” que justificará os pecados de muitos. A palavra “expiação” aqui utilizada pelo Deutero-Isaías é um termo cúltico por excelência. Refere-se a um ritual sacrificial através do qual o crente vétero-testamentário, consciente da sua situação de pecador, oferecia um animal em sacrifício e, por essa oferta, alcançava de Deus o perdão para os seus pecados. É à luz da teologia que está por detrás dos “sacrifícios de expiação”, que este “coro” lê a vida sacrificada e entregue à morte do “servo de Deus”. O seu sofrimento e a sua morte servirão para eliminar o pecado e para gerar vida nova para toda a comunidade do Povo de Deus (os “muitos” de que fala o texto). Ao abençoar o seu “servo”, ao dar-lhe “uma posteridade duradoura”, uma “vida longa” (vers. 10) e a possibilidade de “ver a luz” (vers. 11), Deus garante a verdade e a autenticidade da vida do “servo”.

    Dito por outras palavras: o autor deste texto está convencido de que uma vida vivida na simplicidade, na humildade, no sacrifício, na entrega e no dom de si mesmo não é, aos olhos de Deus, uma vida maldita, perdida, fracassada; mas é uma vida fecunda e plenamente realizada, que trará libertação, verdade, justiça, esperança e amor ao mundo e aos homens. Quando alguém vive como o “servo” e dedica a sua vida a carregar o sofrimento dos seus irmãos, com humildade e simplicidade, essa vida multiplica o bem e contribui para tornar menos pesada a ação do mal que desfeia o mundo. Portanto, o sofrimento do “servo” não caiu em saco roto; mas é fonte de vida para o mundo.

    Os primeiros cristãos, impressionados pela beleza e pela profundidade deste texto, utilizaram-no frequentemente para procurar compreender a figura de Jesus, que “morreu pela salvação do povo”. Em Jesus, esta enigmática figura do “servo de Javé” alcançou o seu pleno significado.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Como classificaríamos a vida do “servo de Javé”, se tivéssemos que lhe “dar nota”? À luz dos critérios que regem o nosso mundo, que diríamos sobre a vida de um homem que nunca atraiu as atenções (“cresceu como raiz em terra árida, sem figura, sem beleza e sem aspeto atraente” - Is 53,2), que foi marginalizado, maltratado e humilhado sem protestar ou se revoltar (cf. Is 53,3.7), que foi condenado e morto sem ser culpado (cf. Is 53,8), que mesmo depois de morto foi desprezado (cf. Is 53,9)? Hesitaríamos alguma vez em o colocar no lote dos “perdedores”, dos fracassados, dos que falharam a vida, dos que não deixaram a sua pegada na história do nosso mundo? No entanto – diz-nos a primeira leitura deste vigésimo nono domingo comum – o plano de Deus para o mundo concretizou-se por meio dele (cf. Is 53,10), e os seus gestos de amor e serviço trouxeram vida aos seus irmãos (cf. Is 53,11). Será possível que, para Deus, esse homem maltratado e humilhado, sem voz e sem vez, que os grandes do mundo desconsideraram e mataram seja um vencedor? Porque é que Deus aprecia este “servo”, até ao ponto de dizer que ele “terá êxito” e “será engrandecido e exaltado” (Is 52,13)? Deus terá critérios diferentes dos nossos para avaliar o sentido da vida? Que pensamos desta estranha lógica de Deus? E que pensamos sobre a lógica oposta – a lógica dos homens – que considera e promove os grandes, os poderosos, os triunfadores, os ambiciosos, os que levantam a voz para se impor e para reivindicar um estatuto de grandeza e de poder?
    • Olhemos ainda outra vez para este “servo” insignificante e desprezado pelos homens, mas que é um sinal de Deus no mundo: através dele Deus vem ao encontro dos homens e oferece-lhes a salvação. Ora, o “servo de Javé” não é um caso isolado. Em todos os tempos da história têm surgido homens e mulheres – humildes, simples, despretensiosos, às vezes desprezados e desconsiderados pela gente importante da sociedade e das igrejas – que com os seus gestos de serviço, de doação e de entrega são sinais vivos de Deus no meio dos seus irmãos e irmãs. Neles “vemos”, ao vivo e a cores, a bondade e o amor de Deus. Seremos capazes de olhar para essas pessoas simples e boas, que amam e servem “a fundo perdido”, e ver nelas o rosto bondoso e terno de Deus?
    • Qual o sentido do sofrimento? Porque é que há tantas pessoas boas, honestas, justas, generosas, que atravessam a vida mergulhadas na dor e no sofrimento? Trata-se de uma pergunta que fazemos frequentemente e que o autor do quarto cântico do “Servo” também punha a si próprio. A resposta que ele encontra é a seguinte: o sofrimento do justo não se perde; através dele, da sua entrega e do seu sofrimento, os pecados da comunidade são expiados e Deus dará vida e salvação ao seu Povo. Trata-se de uma resposta insatisfatória? Talvez. Mas por detrás desta resposta percebe-se a convicção profunda que alimenta a fé deste “catequista” de Israel: nos misteriosos caminhos de Deus, o sofrimento pode ser uma dinâmica geradora de vida nova. Aliás, alguns séculos mais tarde Jesus Cristo demonstrará, com a sua paixão, morte e ressurreição, a verdade desta afirmação. Como entendemos o sofrimento? Sentimo-lo como algo injusto e definitivamente incompreensível, ou como algo que, de uma forma que nem sempre é clara para nós, se insere no plano de Deus? Entendemos que o sofrimento poderá ser fonte de vida nova para nós e para o mundo? Como?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 32 (33)

    Refrão:  Desça sobre nós a vossa misericórdia,
    porque em Vós esperamos, Senhor.

    A palavra do Senhor é reta,
    da fidelidade nascem as suas obras.
    Ele ama a justiça e a retidão:
    a terra está cheia da bondade do senhor.

    Os olhos do Senhor estão voltados para os que O temem,
    para os que esperam na sua bondade,
    para libertar da morte as suas almas
    e os alimentar no tempo da fome.

    A nossa alma espera o Senhor:
    Ele é o nosso amparo e protetor.
    Venha sobre nós a vossa bondade,
    porque em Vós esperamos, Senhor.

     

    LEITURA II – Hebreus 4,14-16

    Irmãos:
    Tendo nós um sumo sacerdote que penetrou os Céus,
    Jesus, Filho de Deus,
    permaneçamos firmes na profissão da nossa fé.
    Na verdade, nós não temos um sumo sacerdote
    incapaz de se compadecer das nossas fraquezas.
    Pelo contrário, Ele mesmo foi provado em tudo,
    à nossa semelhança, exceto no pecado.
    Vamos, portanto, cheios de confiança ao trono da graça,
    a fim de alcançarmos misericórdia
    e obtermos a graça de um auxílio oportuno.

     

    CONTEXTO

    Não sabemos quem foi o autor do escrito a que se deu o nome de “Carta aos Hebreus”. A tradição oriental atribui-o a São Paulo; mas no ocidente há muito que este texto é considerado não paulino. Surgido na segunda metade da década de sessenta do primeiro século (antes da destruição de Jerusalém, no ano 70, pois fala da liturgia do Templo como uma realidade atual), poderá ser obra de um discípulo de Paulo, empenhado em estimular a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a crescer na fé.

    Embora a tradição tenha considerado como destinatários deste escrito os “hebreus”, isso não significa, efetivamente, que o seu autor o destinasse exclusivamente a cristãos oriundos do mundo judaico. É verdade que nele se referem continuamente factos e figuras do Antigo Testamento; mas, por essa altura, o Antigo Testamento era já património comum de todos os cristãos, mesmo dos que provinham do mundo greco-romano. Tratava-se, em qualquer caso, de comunidades cristãs em situação difícil, expostas a perseguições e que viviam num ambiente hostil à fé… Os membros dessas comunidades tinham já perdido o fervor inicial pelo Evangelho e começavam a ceder à sedução de certas doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos…

    A Carta aos Hebreus apresenta – recorrendo à linguagem da teologia judaica – o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência – através de quem os homens têm acesso a Deus e são inseridos na comunhão real e definitiva com Deus. O autor aproveita, na sequência, para refletir nas implicações desse facto: postos em relação com o Pai por Cristo/sacerdote, os crentes são inseridos nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã e devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a sua experiência de fé, enfraquecida pela acomodação e pela perseguição.

    O texto que nos é proposto como segunda leitura neste vigésimo nono domingo comum está incluído na segunda parte da Carta aos Hebreus (cf. Heb 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta Jesus como o sacerdote fiel e misericordioso que o Pai enviou ao mundo para mudar os corações dos homens e para os aproximar de Deus. Aos crentes pede-se que “acreditem” em Jesus – isto é, que escutem atentamente as propostas que Cristo veio fazer, que as acolham no coração e que as transformem em gestos concretos de vida.

     

    MENSAGEM

    Usando uma imagem com fortes conotações veterotestamentárias, o autor da Carta aos Hebreus, refere-se a Cristo como o “grande sumo-sacerdote que atravessou os céus” (vers. 14) e alcançou misericórdia para todos os crentes.

    O sumo-sacerdote (“hakkohen haggâdôl”), “o maior sacerdote entre os seus irmãos” (Lv 21,10), tinha por missão (como os outros sacerdotes) estabelecer a ligação entre os homens e Deus. Mas, no exercício das suas funções sacerdotais competia-lhe especialmente, uma vez por ano, no grande dia da expiação (“yôm kippur”), entrar no “santo dos santos” (o lugar mais sagrado do Templo) com o sangue dos animais imolados e realizar rituais de purificação pelos pecados de toda a comunidade (cf. Lv 16,11-17). Esses rituais tinham um valor expiatório: através eles, Deus perdoava as faltas do seu Povo.

    Ora, o autor da Carta aos Hebreus vê Cristo como um sumo-sacerdote que, depois de apresentar o seu sacrifício (que foi o dom de si próprio, na cruz), “atravessou os céus” e se apresentou diante de Deus para interceder pelos homens. Assim Ele alcançou de Deus a misericórdia para os homens pecadores. Ora, tendo no céu um sumo-sacerdote magnífico a interceder por nós, confiemos n’Ele e esforcemo-nos por aderir a Ele (“permaneçamos firmes na profissão da nossa fé”), pois com Ele atravessamos os céus e vamos até Deus.

    Para reforçar a nossa confiança em Cristo e a nossa decisão de aderir a Ele, o autor da Carta aos Hebreus recorda-nos outro aspeto patente no sacerdócio de Cristo: a sua “compreensão” e a sua misericórdia. Cristo, apesar de ser Filho de Deus, não é um ser celestial estranho, incapaz de perceber os crentes na sua dramática luta de todos os dias, na sua fragilidade face à perseguição, na sua dificuldade em vencer o confronto com o egoísmo, a acomodação, a preguiça, a monotonia… Ele próprio, tendo “vestido” a nossa humanidade, foi submetido às mesmas provas que nós enfrentamos, conheceu a mordedura das mesmas tentações, experimentou as mesmas dificuldades. Soube manter-Se fiel a Deus e aos seus projetos, mostrando-nos que também nós podemos viver na fidelidade a Deus e às suas propostas (vers. 15); mas, tendo partilhado a nossa humanidade, constatado a nossa fragilidade, experimentado a nossa luta, Cristo entende as nossas fraquezas e compadece-se de nós. Por isso, Ele é o nosso intercessor perfeito junto de Deus.

    Por tudo isto, nós, seguidores de Jesus, não estamos numa situação desesperada, apesar das nossas falhas e incoerências. Podemos e devemos aceitar a proposta de Jesus e dirigir-nos a Deus, na certeza de que seremos acolhidos por Ele como filhos muito amados. Graças a Jesus, o sumo-sacerdote que veio ao nosso encontro, que experimentou e entendeu a nossa fragilidade, que restabeleceu a comunhão entre nós e Deus, que nos leva ao encontro de Deus e que nos garante a sua misericórdia, estamos agora numa nova situação de graça e de liberdade. Podemos, com tranquilidade e confiança, sem qualquer medo, aproximar-nos desse “trono da graça” de onde brota perdão e misericórdia. Esta certeza deve ajudar-nos e dar-nos esperança nos momentos mais dramáticos da nossa caminhada pela história (vers. 16).

     

    INTERPELAÇÕES

    • A Palavra de Deus que escutamos cada domingo realça repetidamente o significado profundo dessa extraordinária história de amor que adivinhamos na incarnação de Jesus: Deus amou-nos de tal forma, que nos enviou o seu Filho, a fim de que, através d’Ele, chegássemos a integrar a família de Deus. Esta dimensão está bem presente também no texto da Carta aos Hebreus que escutamos neste domingo: Jesus, o Filho de Deus, veio ter connosco, caminhou connosco, partilhou as nossas dores e dificuldades, mostrou-nos como devemos viver, deu a própria vida para vencer o egoísmo e a maldade que nos afastavam de Deus, e apresentou-se de novo ao Pai levando com Ele a nossa humanidade redimida. Levados por Jesus, o nosso sumo-sacerdote, temos acesso definitivo a Deus e passamos a integrar a família de Deus. O autor da Carta aos Hebreus considera que isto deve fundamentar, de forma inabalável, a nossa confiança em Jesus e a nossa adesão a Ele. É isso que acontece? Vivemos conscientes do que Jesus fez em nosso favor e isso leva-nos realmente a comprometermo-nos com Ele, a vivermos com Ele, a deixarmo-nos orientar por Ele, a caminharmos sempre atrás d’Ele, como discípulos?
    • Jesus, ao vir ao encontro dos homens e ao tornar-se homem, conheceu e amou a nossa fragilidade. Com coração de irmão, pôde entender-nos e ficar do nosso lado. Sentiu como suas as nossas dores e procurou dar-lhes remédio; experimentou as nossas alegrias e sentiu a felicidade que brota das coisas simples e dos gestos de bondade e de amor. Nada do que acontecia aos homens e mulheres que Ele encontrava nos caminhos da Galileia e da Judeia lhe era indiferente. Ele solidarizou-se a cada instante com os homens e as mulheres que com Ele se cruzavam; assim pôde entendê-los e ficar do lado deles. Ora, o exemplo de solidariedade que Cristo nos deixou deve tocar-nos e convidar-nos a seguir o seu exemplo. Estamos disponíveis para, seguindo o exemplo de Cristo, nos despirmos do nosso egoísmo, da nossa acomodação, da nossa preguiça, da nossa indiferença, para irmos ao encontro dos nossos irmãos, para vestirmos as suas dores e fragilidades, para nos fazermos solidários com eles, para partilharmos os seus dramas, lágrimas, sofrimentos, alegrias e esperanças? Sentimo-nos responsáveis pelos irmãos que connosco partilham os caminhos deste mundo, mesmo quando não os conhecemos pessoalmente ou mesmo que deles estejamos separados por fronteiras geográficas, históricas, étnicas ou outras?
    • Ao assegurar-nos que nada temos a temer pois Deus ama-nos, quer integrar-nos na sua família e oferecer-nos Vida em abundância, o nosso texto convida-nos a encarar a vida e os seus caminhos com serenidade e confiança. A certeza do amor infinito de Deus é, para nós, fonte de serenidade e de paz? Sabemos que as nossas fragilidades e debilidades não nos afastam, nunca, de Deus e do seu amor?

     

    ALELUIA – Marcos 10,45
    Aleluia. Aleluia.

    O Filho do homem veio para servir
    e dar a vida pela redenção de todos.

     

    EVANGELHO – Marcos 10,35-45

    Naquele tempo,
    Tiago e João, filhos de Zebedeu,
    aproximaram-se de Jesus e disseram-Lhe:
    «Mestre, nós queremos que nos faças o que Te vamos pedir».
    Jesus respondeu-lhes:
    «Que quereis que vos faça?»
    Eles responderam:
    «Concede-nos que, na tua glória,
    nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda».
    Disse-lhes Jesus:
    «Não sabeis o que pedis.
    Podeis beber o cálice que Eu vou beber
    e receber o batismo com que Eu vou ser batizado?»
    Eles responderam-Lhe: «Podemos».
    Então Jesus disse-lhes:
    «Bebereis o cálice que Eu vou beber
    e sereis batizados com o batismo
    com que Eu vou ser batizado.
    Mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda
    não Me pertence a Mim concedê-lo;
    é para aqueles a quem está reservado».
    Os outros dez, ouvindo isto,
    começaram a indignar-se contra Tiago e João.
    Jesus chamou-os e disse-lhes:
    «Sabeis que os que são considerados como chefes das nações
    exercem domínio sobre elas
    e os grandes fazem sentir sobre elas o seu poder.
    Não deve ser assim entre vós:
    Quem entre vós quiser tornar-se grande,
    será vosso servo,
    e quem quiser entre vós ser o primeiro,
    será escravo de todos;
    porque o Filho do homem não veio para ser servido,
    mas para servir
    e dar a vida pela redenção de todos».

     

    CONTEXTO

    Voltamos a encontrar-nos com Jesus e com o seu grupo de discípulos no caminho que conduz a Jerusalém. É um caminho não apenas geográfico, mas sobretudo espiritual: ao longo do percurso, Jesus vai completando a sua catequese sobre as exigências do Reino e as condições para integrar a comunidade messiânica.

    Entretanto, Jerusalém já não está longe. Jesus vai à frente, a indicar o caminho; e os discípulos seguem-n’O “estupefactos” (Mc 10,32). Talvez estejam espantados por Jesus insistir naquele projeto aparentemente sem sentido e sem saída. É possível que ainda conservem a esperança de que Jesus volte atrás e se disponha a concretizar o projeto do Reino com a conquista do poder; mas cada metro que percorrem aproxima-os do destino final e Jesus não dá mostras de ceder. Como é que aquele “caminho” irá terminar? Os discípulos estão “cheios de medo” (Mc 10,32).

    Jesus não lhes facilita a vida. Para dissipar todas as dúvidas fala-lhes, pela terceira vez, do que vão encontrar na cidade santa: Ele “vai ser entregue aos sumos sacerdotes e aos doutores da Lei, e estes por sua vez vão entregá-lo aos gentios”, que vão “escarnecê-lo, cuspir sobre Ele, açoitá-lo e matá-lo; mas três dias depois, ressuscitará”. A descrição que Jesus faz do que o espera em Jerusalém é ainda mais pormenorizada do que nos outros anúncios anteriores (cf. Mc 8,31-32; 9,31-32). Será que, desta vez, os discípulos ficaram convencidos e resolveram aceitar as palavras de Jesus? Não. Marcos vai mostrar-nos, logo a seguir, que os discípulos de Jesus ainda continuam a raciocinar em termos muito humanos e que a sua lógica está em absoluta contradição com o projeto de Deus.

     

    MENSAGEM

    Entram em cena dois discípulos, os irmãos Tiago e João, filhos de Zebedeu. Estão com Jesus desde a primeira hora (cf. Mc 1,16-20) e fazem parte do núcleo dos mais próximos de Jesus. Têm um pedido a fazer a Jesus: “Mestre, nós queremos que nos faças o que Te vamos pedir: concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda” (vers. 35-37). A questão nem sequer é apresentada como um pedido respeitoso; mas parece mais uma reivindicação de quem se sente com direito inquestionável a um privilégio (“nós queremos”). Certamente Tiago e João imaginam o Reino que Jesus veio propor de acordo com Dn 7,13-14 e querem assegurar, nesse Reino poderoso e glorioso, lugares de destaque ao lado de Jesus. O facto mostra como Tiago e João, mesmo depois das lições que Jesus foi dando ao longo do caminho, ainda não entenderam a lógica do Reino e ainda continuam a refletir e a sentir de acordo com a lógica do mundo. Para eles, o que é importante é a realização dos seus sonhos pessoais de autoridade, de poder e de grandeza.

    Uma vez mais Jesus vê-se obrigado a esclarecer as coisas. Pergunta-lhes, antes de mais, se eles estão dispostos a “beber o cálice” que Ele vai beber e a “receber o batismo” que Ele vai receber (vers. 38). O “cálice” indica, no contexto bíblico, o destino de uma pessoa; ora, “beber o mesmo cálice” de Jesus significa partilhar esse destino de entrega e de dom da vida que Jesus, em Jerusalém, vai cumprir até às últimas consequências. O “receber o mesmo batismo” evoca a participação e imersão na paixão e morte de Jesus (cf. Rm 6,3-4; Cl 2,12). Assim, Jesus questiona Tiago e João sobre a disponibilidade deles para percorrerem o caminho do sofrimento, da entrega, do dom da vida até à morte.

    Tiago e João, provavelmente, não entenderam a pergunta de Jesus nesse sentido. Viram nesse “cálice” e nesse “batismo” a participação na glória de Jesus; e responderam prontamente: “podemos” (vers. 39a). Jesus confirma que eles beberão do “cálice” que Ele vai beber e que serão batizados no mesmo “batismo” em que Ele vai ser batizado (vers. 39b); mas sabe que, por agora, Tiago e João ainda não percebem onde é que isso os vai levar… Só o saberão mais tarde, após a Páscoa. Um dia, depois de um longo caminho de dom da própria vida ao serviço do Reino, eles hão de efetivamente sentar-se ao lado de Jesus ressuscitado e participarão da Sua glória; mas a glória que então conhecerão não terá nada a ver com esses triunfos humanos que Tiago e João sonham enquanto vão atrás de Jesus no caminho para Jerusalém. De resto, Jesus não encoraja os discípulos a andar atrás d’Ele com a mira numa recompensa (vers. 40). A lógica da recompensa não é a lógica do Reino de Deus. O discípulo não pode seguir determinado caminho ou embarcar em determinado projeto por cálculo ou por interesse; de acordo com a lógica do Reino, o discípulo é chamado a seguir Jesus com total gratuidade, sem esperar nada em troca, permanentemente disponível para servir e dar a vida.

    Marcos dá-nos conta, depois, da reação indignada dos outros discípulos à pretensão dos dois irmãos (vers. 41). Essa reação indica, afinal, que todos eles tinham as mesmas pretensões e os mesmos sonhos de grandeza. O pedido de Tiago e de João a Jesus aparece-lhes, portanto, como uma “jogada de antecipação” que ameaça as secretas ambições que todos eles guardavam no coração.

    Jesus aproveita a circunstância para reiterar o seu ensinamento e para reafirmar a lógica do Reino. Começa por recordar-lhes o modelo dos “governantes das nações” e dos grandes do mundo (vers. 42): eles afirmam a sua autoridade absoluta, dominam os povos pela força e submetem-nos, exigem honras, privilégios e títulos, promovem-se à custa da comunidade, exercem o poder de uma forma arbitrária… Ora, este esquema não pode servir de modelo para a comunidade do Reino. A comunidade do Reino assenta sobre a lei do amor e do serviço. Os seus membros devem sentir-se “servos” dos irmãos, apostados em servir com humildade e simplicidade, sem qualquer pretensão de mandar ou de dominar (vers. 43-44). Mesmo aqueles que são designados para presidir à comunidade devem exercer a sua autoridade num verdadeiro espírito de serviço, sentindo-se servos de todos. Excluindo do seu universo qualquer ambição de poder e de domínio, os membros da comunidade do Reino darão testemunho de um mundo novo, regido por novos valores; e ensinarão os homens que com eles se cruzarem nos caminhos da vida a serem verdadeiramente livres e felizes.

    Como modelo desta nova atitude, Jesus propõe-Se a Si próprio: Ele apresenta-Se como “o Filho do Homem que não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por todos” (vers. 45). De facto, toda a vida de Jesus pode ser entendida em chave de amor e serviço. Desde o primeiro instante da incarnação, até ao último momento da sua caminhada nesta terra, Ele pôs-se ao serviço do projeto do Pai e fez da sua vida um dom de amor aos homens. Ele nunca Se deixou seduzir por projetos pessoais de ambição, de poder, de domínio; mas apenas quis entregar toda a sua vida ao serviço dos homens, a fim de que os homens pudessem encontrar a Vida plena e verdadeira.

    O fruto da entrega de Jesus é o “resgate” (“lytron”) da humanidade. A palavra aqui usada indica o “preço” pago para resgatar um escravo ou um prisioneiro. Atendendo ao contexto, devemos pensar que o resgate diz respeito à situação de escravidão e de opressão a que a humanidade está submetida. Ao dar a sua vida (até à última gota de sangue) para propor um mundo livre da ambição, do egoísmo, do poder que escraviza, Jesus pagou o “preço” da nossa libertação. Com Ele e por Ele nasce, portanto, uma comunidade de “servos”, que são testemunhas no mundo de uma ordem nova – a ordem do Reino.

     

    INTERPELAÇÕES

    • O que é que determina o êxito ou o fracasso da nossa vida? Em que direção precisamos de caminhar para garantir que a nossa vida vale a pena? Sobre que valores devemos construir a nossa existência para que ela tenha pleno sentido? No Evangelho deste domingo temos a perspetiva de Jesus e a perspetiva dos discípulos quanto a estas questões. As duas posições são perfeitamente antagónicas. Para os discípulos, o êxito de uma vida passa por assegurar uma posição de poder e de domínio, de honras e de triunfos humanos, que permita a cada pessoa impor-se aos outros e concretizar a sua ambição. Para Jesus, no entanto, a vida só tem sentido se é gasta a servir, com humildade e simplicidade, até ao dom total de si próprio em favor dos outros (aliás, foi assim que Jesus viveu, desde o primeiro instante em que “construiu a sua tenda no meio de nós”). Que pensamos de cada uma destas posições? Com sinceridade: em qual destas duas mesas temos andado a apostar as nossas fichas? Em qual destes campos vislumbramos a nossa plena realização?
    • “Quem entre vós quiser tornar-se grande, será vosso servo, e quem quiser entre vós ser o primeiro, será escravo de todos” – diz Jesus. Aqui está uma estranha equação que, mesmo depois de dois mil anos de cristianismo, ainda não entra bem nos nossos cálculos e projetos de vida. Para Jesus, o êxito na vida passa simplesmente por servir humildemente e a fundo perdido quem necessita da nossa ajuda e do nosso cuidado. Que eco encontram estas palavras de Jesus na sociedade que temos vindo a construir? E nas nossas comunidades cristãs, como é que estas indicações de Jesus têm vindo a ser escutadas e vividas? Podemos dizer que a Igreja de Jesus tem testemunhado, de forma coerente, as indicações dadas a Tiago e João naquele caminho para Jerusalém? Que sentido é que fazem, à luz das palavras de Jesus, as nossas tentativas de nos impormos aos outros, as nossas ridículas guerras pelo poder ou pelo protagonismo, a nossa inqualificável apetência por honras e títulos honoríficos, as nossas ambições mesquinhas e rasteiras? Estamos disponíveis para servir quem necessita de nós, ou a nossa atitude é a de quem vive para ser servido, admirado e adulado? Como tratamos aqueles que caminham ao nosso lado – a família, os amigos, os empregados, os vizinhos – com sobranceria e agressividade, ou com respeito e amor?
    • As pretensões de Tiago e de João provocaram a indignação dos outros discípulos. Afinal, também eles estavam preocupados em assegurar a sua própria fatia de honras e privilégios e não queriam ver-se ultrapassados. Eis uma realidade que todos os dias podemos observar no nosso mundo: a ambição, a ânsia de protagonismo, a apetência pelo poder são sempre fatores de divisão, de guerra, de ciúme, de conflito. Criam mal-estar, destroem a união, ferem gravemente a comunhão, põem em causa a fraternidade. Não são, portanto, estratégias recomendáveis para quem estiver interessado em integrar a comunidade do Reino. Estamos conscientes disso?
    • “Os que são considerados como chefes das nações exercem domínio sobre elas e os grandes fazem sentir sobre elas o seu poder” – diz Jesus. Na verdade, o domínio sobre os outros, o exercício autoritário do poder, concretizam-se muitas vezes em tirania, em opressão dos mais fracos, em exploração dos pobres, em atentado ao bem comum, em indiferença face ao sofrimento dos mais vulneráveis, em imposição cega da própria autoridade, em desrespeito pela dignidade e direitos dos outros homens e mulheres. O exercício do poder, quando não é entendido e concretizado como serviço, pode contribuir para aumentar a maldade, a violência, a injustiça, a morte. Sabemos que um mundo construído sobre autoritarismos cegos e cultos de personalidade é um mundo que contradiz frontalmente o projeto de Deus?
    • Há pessoas – muitas – que passam despercebidas, que não são nomeadas nos jornais, que não frequentam ambientes seletos, que nunca tiveram acesso a cargos de poder, que não têm dinheiro nem influência, que não possuem títulos nem nomes sonantes, que não se impõem pela sua beleza física ou pelas roupas finas que vestem, que não fazem ouvir a sua voz nem impõem a sua presença… mas são grandes pela sua bondade, pela sua humildade, pela sua compaixão, pela sua alegria serena, pelo serviço humilde que prestam aos mais necessitados, pela forma como cuidam dos seus irmãos e irmãs, pelo amor e carinho que põem em cada gesto que fazem. De acordo com Jesus, essas pessoas são aquelas cujas vidas são plenamente realizadas. Elas tornam o nosso mundo um lugar mais bonito, mais humano e mais feliz. No deserto inóspito e egoísta do nosso mundo, essas pessoas são pequenos oásis de paz, de fecundidade e de vida nova. Elas são o melhor do nosso mundo. Como avaliamos e consideramos esses homens e mulheres simples e humildes, que o mundo tantas vezes ignora ou despreza, mas que são testemunhas e sinais do amor e da bondade de Deus na vida dos seus irmãos e irmãs?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 29.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 29.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.

    É normal que toda a pessoa procure ser reconhecida; a sua dignidade depende disso. Mas será necessário, para ser reconhecido, procurar passar à frente dos outros, sem qualquer escrúpulo? Que cada um tome o seu lugar, mas não reclame o primeiro. Jesus não vem dar conselhos, começa por oferecer o seu testemunho. Ele, que era de condição divina, tomou o lugar de escravo. Deus elevou-O e deu-Lhe um Nome que ultrapassa todo o nome. Jesus não prega o abaixamento pelo abaixamento. Quem escolhe o serviço é elevado por Deus ao lugar de “grande”, Deus dá o primeiro lugar a quem escolheu o último. É Deus que altera as situações que o homem, na sua liberdade, escolhe para ser verdadeiro cidadão do Reino de Deus.

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.

    A tentação dos discípulos é recorrente: quem é o maior? Eles pedem a Jesus para se sentarem um à direita e outro à esquerda na sua glória! A glória de Jesus, para Tiago e João, só podia ser a glória temporal do Messias. Eles pedem-Lhe para lhes dar os melhores ministérios no futuro governo! Mas Jesus pensa noutra glória: o cálice da Paixão, depois de ter mergulhado no batismo da sua morte. É evidente que os dois discípulos não podiam compreender isso. O trono de Jesus é a sua cruz. Na cruz raiará em supremo grau o amor do Pai por todos os homens. Na cruz, Jesus está rodeado por dois ladrões, um à direita e outro à esquerda. Eles simbolizam a humanidade, ao mesmo tempo mergulhada nas trevas e acolhedora da luz. É toda a humanidade que é chamada a entrar no Reino, a partilhar a glória do Rei: a parte da humanidade que reconhece Jesus e a parte que O rejeita. Deus quer que todos os homens se salvem. Jesus cumpriu perfeitamente a vontade do seu Pai: veio para servir e dar a vida pela humanidade! Cabe aos discípulos, a nós também seus discípulos, serem também servidores da salvação para todos os homens!

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…

    Como servir? Este Dia Mundial das Missões recorda-nos a nossa vocação a sermos servidores do Evangelho… Concretamente, como fazer passar o Evangelho antes dos nossos próprios desejos? Fazer passar o respeito pelo outro antes da nossa própria vantagem? De que maneira vamos poder servir nesta semana? Ousaremos fazê-lo em nome de Cristo Servidor?

    Como rezar? Isso diz respeito também à qualidade da nossa oração… A maior parte das vezes, somos como os filhos de Zebedeu: prontos a pedir. Mas se nos esforçamos por amar e servir como Cristo nos pede, então, melhor que pedir, poderemos oferecer-Lhe aquilo que, graças a Ele, faremos pelos nossos irmãos.

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

  • 30° Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]

    30° Domingo do Tempo Comum - Ano B [atualizado]


    27 de Outubro, 2024

    ANO B

    30.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 30.º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia do 30.º Domingo do Tempo Comum exorta-nos a viver com esperança. A nossa vida não tem de ser uma experiência sombria, sem horizontes e sem perspetivas; Deus dispõe-se, a cada passo, a libertar-nos da escuridão e a conduzir-nos em direção a uma vida livre e plenamente realizada. Basta que, da nossa parte, haja disponibilidade para aceitarmos os desafios e indicações de Deus.

    A primeira leitura é um convite à alegria. Para o Povo que caminha pelos vales sombrias da vida e da história, Deus é um Pai que acompanha, que ampara e que cuida. Ele não deixará ninguém para trás, nem sequer os mais débeis – o cego, o coxo, a mulher grávida e a que tem dificuldade em manter o ritmo da caminhada pois transporta o seu bebé nos braços. Guiados pelo amor paternal e maternal de Deus, todos chegarão à terra sonhada, à meta da Vida verdadeira.

    Na segunda leitura um catequista cristão – o autor da Carta aos Hebreus – apresenta-nos Jesus como um sumo-sacerdote que compreende as nossas fraquezas e que nos leva até Deus. Podemos confiar n’Ele e segui-l’O sem hesitações. Ninguém encontra a Vida verdadeira sem caminhar com Jesus, sem escutar as suas indicações, sem viver ao seu estilo. É uma mensagem destinado a acordar crentes adormecidos, conformados com uma fé morna, sem exigência e sem compromisso.

    O Evangelho, através da história do cego Bartimeu, propõe-nos uma parábola sobre a passagem da escuridão para a luz, da vida velha para a vida nova. O encontro com Jesus é sempre uma oportunidade para abraçar uma existência com horizontes mais amplos, uma vida plena de luz e de sentido. Bartimeu, o homem que encontrou Jesus à saída de Jericó e O seguiu no “caminho” de Jerusalém, é o modelo de todos os discípulos.

     

    LEITURA I - Jeremias 31,7-9

    Eis o que diz o Senhor:
    «Soltai brados de alegria por causa de Jacob,
    enaltecei a primeira das nações.
    Fazei ouvir os vossos louvores e proclamai:
    ‘O Senhor salvou o seu povo, o resto de Israel’.
    Vou trazê-los das terras do Norte
    e reuni-los dos confins do mundo.
    Entre eles vêm o cego e o coxo,
    a mulher que vai ser mãe e a que já deu à luz.
    É uma grande multidão que regressa.
    Eles partiram com lágrimas nos olhos
    e Eu vou trazê-los no meio de consolações.
    Levá-Ios-ei às águas correntes,
    por caminho plano em que não tropecem.
    Porque Eu sou um Pai para Israel
    e Efraim é o meu primogénito».

     

    CONTEXTO

    Jeremias, o profeta nascido em Anatot por volta de 650 a.C., exerceu a sua missão profética desde 627/626 a.C., até depois da destruição de Jerusalém pelos Babilónios (586 a.C.). O cenário da atividade do profeta é, em geral, o reino de Judá (e, sobretudo, a cidade de Jerusalém).

    A primeira fase da pregação de Jeremias abrange parte do reinado de Josias. Este rei, preocupado em defender a identidade política e religiosa do Povo de Deus, leva a cabo uma importante reforma religiosa destinada a banir do país os cultos aos deuses estrangeiros. A mensagem de Jeremias, neste período, traduz-se num constante apelo à conversão, à fidelidade a Javé e à aliança.

    Em 609 a.C., no entanto, Josias é morto, em combate contra os egípcios. Depois de uns meses de instabilidade, o trono de Judá é ocupado por Joaquim (609-597 a.C.). É durante o reinado de Joaquim que se desenrola a segunda fase da missão profética de Jeremias. Nesta fase, o profeta denuncia as graves injustiças sociais (às vezes fomentadas pelo próprio rei) que fragilizavam irremediavelmente o tecido social de Judá; e denuncia, por outro lado, a infidelidade religiosa, traduzida sobretudo na política de alianças políticas com potências estrangeiras (Jeremias entende que os líderes de Judá, ao colocarem a esperança da nação em exércitos estrangeiros, estão a mostrar que não confiam em Deus). Convencido de que Judá já ultrapassou todas as medidas, Jeremias anuncia a iminência de uma invasão babilónica que irá castigar os pecados da nação. As previsões funestas de Jeremias concretizam-se: em 597 a.C., Nabucodonosor invade Judá e deporta para a Babilónia uma parte da população de Jerusalém.

    No trono de Judá fica, então, Sedecias (597-586 a.C.). A terceira fase da missão profética de Jeremias desenrola-se, precisamente, durante este reinado. Num primeiro momento, Sedecias mantém-se alheado das convulsões políticas que agitavam os povos da região; mas, após alguns anos de calma submissão à Babilónia, Sedecias volta a experimentar a velha política das alianças com o Egipto. Uma vez mais, Jeremias manifesta o seu desacordo com essa política temerária, que mais tarde ou mais cedo há de desembocar no desastre. Nem o rei, nem os notáveis prestam qualquer atenção à opinião do profeta.

    Em 587 a.C., Nabucodonosor põe cerco a Jerusalém; no entanto, um exército egípcio vem em socorro de Judá e os babilónios retiram-se. Nesse momento de euforia nacional, Jeremias aparece a anunciar o recomeço do cerco e a destruição de Jerusalém (cf. Jer 32,2-5). Acusado de traição, o profeta é encarcerado (cf. Jer 37,11- 16) e corre, inclusive, perigo de vida (cf. Jer 38,11-13). Enquanto Jeremias continua a pregar a rendição, Nabucodonosor apossa-se, de facto, de Jerusalém, destrói a cidade e deporta a sua população para a Babilónia (586 a.C.).

    É impossível dizer com segurança em que contexto apareceu a mensagem que nos é proposta como primeira leitura neste trigésimo domingo comum. Para alguns comentadores, trata-se de um oráculo que poderia situar-se na primeira fase da atividade profética de Jeremias (reinado de Josias) e que seria dirigido aos habitantes do Reino do Norte (Israel). Seria uma mensagem de esperança, destinada a animar esse povo que há cerca de cem anos tinha perdido a independência e estava sob o domínio assírio. Para outros, contudo, este texto poderá ser da época de Sedecias, algures entre a primeira e a segunda deportação do Povo para a Babilónia (597-586 a.C.). É a época em que Jeremias descobre perspetivas teológicas novas e começa a refletir sobre um tempo novo que Deus irá oferecer ao seu Povo: após a catástrofe, será possível recomeçar tudo, pois Deus tem em mente fazer uma nova Aliança com Judá.

     

    MENSAGEM

    O texto que nos é proposto começa com um convite à alegria e ao louvor (vers. 7). Porquê? Porque Javé dispõe-se a reunir o seu Povo (disperso na Assíria? Na Babilónia?), a conduzi-lo através do deserto e a fazê-lo retornar à sua pátria. Reunir, conduzir e fazer retornar à pátria são os três verbos que, tradicionalmente, definem a ação de Deus em favor do seu Povo, durante o Êxodo. Como outrora, como sempre, Deus decidiu salvar o seu Povo condenado à morte.

    Depois da afirmação geral, o profeta apresenta alguns pormenores deste Novo Êxodo. Da comitiva farão parte “o cego e o coxo, a mulher que vai ser mãe e a que já deu à luz” (vers. 8b). O cego e o coxo são figuras tradicionais ligadas ao tema do Êxodo (cf. Is 35,5), onde relembram a situação de necessidade e de carência em que os exilados jazem e, ao mesmo tempo, evocam a ação extraordinária de Deus no sentido de libertar o seu Povo dessa carência e dessa necessidade. Na imagem da mulher que vai ser mãe e na da mulher que já deu à luz, o profeta representa a dor e o sofrimento, mas também a fecundidade, a alegria, a esperança num futuro novo e cheio de vida.

    No último versículo do nosso texto (vers. 9), Javé apresenta-Se como um pai cheio de amor pelo seu filho/Povo. Esse amor irá traduzir-se no final do Exílio e no regresso dos exilados à sua terra “no meio das consolações”, por um “caminho plano” e sem obstáculos. Será, portanto, um Êxodo triunfal, bem mais fácil do que o do passado, quando os hebreus saíram do Egito. No final desse Êxodo, Javé vai oferecer ao seu Povo vida abundante e fecunda (“levá-los-ei às águas correntes”).

    O texto termina com uma afirmação solene de Deus, com uma declaração que ilustra o amor e a solicitude de Javé pelo seu Povo: farei tudo isso “porque Eu sou um Pai para Israel e Efraim é o meu primogénito”.  Para Deus, Israel não será apenas um filho igual a outros; mas será “o primogénito”, o predileto, aquele que goza de todas as bênçãos. Esta bela afirmação de Deus garante ao Povo exilado a fidelidade eterna de Deus; e é fonte inesgotável de alegria, de confiança e de esperança.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Num momento histórico dramático, quando o Povo de Deus exilado nas “terras do norte” se afundava no desânimo, Jeremias lança a sua proclamação convidando à alegria e ao louvor. Razão: Deus vai intervir para salvar o seu Povo, “o resto de Israel”. É um episódio mais de uma história de salvação que continua a escrever-se nos nossos dias e nos dias que hão de vir, até ao final dos tempos. Em pleno séc. XXI, Deus continua a vir ao encontro do seu Povo exilado neste “vale de lágrimas”, a estender-lhe a mão e a empurrá-lo para caminhos novos de vida e de esperança. As alterações climáticas fazem-nos temer pela viabilidade do planeta, as guerras novas e velhas continuam a tingir de sangue inocente a história do mundo, a ambição e a arrogância dos grandes parecem incontroláveis, a indiferença nascida do egoísmo condena cada dia mais e mais homens a caminhos sem saída… E Deus? Deus continua a insistir, uma e outra vez, com paciência infinita, em conduzir-nos em direção à Vida, em apontar-nos caminhos de salvação. Deus não desiste de nós. Deus não desiste dos seus filhos e filhas. Deus não desiste de ser “nosso Pai” e de nos envolver de ternura e amor. Como sentimos, como acolhemos, como vivemos esta “boa notícia”? O que é que ela traz à nossa luta de todos os dias? Podemos continuar a semear pessimismo quando somos amados desta forma?
    • Jeremias garante que a ação salvadora e libertadora de Deus estender-se-á a todos, inclusive aos “cegos” e aos “coxos”. Os “coxos” e os “cegos representam, aqui, aqueles que estão numa situação de fragilidade, de debilidade, de dependência e que são incapazes, por si sós, de deixar essa condição. Também com esses – ou especialmente com esses – Deus quer caminhar. Na verdade, Deus não marginaliza ninguém, nem coloca ninguém à margem da sua proposta de salvação. Os fracos, os débeis, os limitados, os marginalizados ocupam um lugar especial no coração de Deus e são objeto privilegiado do seu amor e da sua misericórdia. Na nossa sociedade, os pequenos, os pobres, os humildes, os doentes, os velhos, os estrangeiros sem papéis são, frequentemente, marginalizados e ultrapassados pelo comboio da história. A sociedade edifica-se sem eles ou, pelo menos, sem ter em conta as suas necessidades e carências… Nós, os crentes, formados na escola de Deus, procuramos olhar para eles com o mesmo olhar com que Deus os olha? Somos capazes de ver em cada homem ou mulher – no “coxo”, no “cego”, no velho, no doente, no marginal – um irmão que Deus ama e a quem Deus quer oferecer, por nosso intermédio, a Vida plena, a salvação definitiva?
    • A história da salvação mostra, numa repetição que chega a ser monótona, de um lado o amor e a fidelidade de Deus, do outro a infidelidade do Povo. Ora, apesar da resposta continuamente dececionante de Israel ao amor e à fidelidade de Deus, a verdade é que Deus nunca virou as costas ao seu Povo. Toda a história da salvação é uma história de perdão, de possibilidade de recomeço, de convite à superação do pecado. Também para nós isto vale. Podemos virar as costas a Deus e fechar-nos na nossa pobre autossuficiência; podemos ignorar a voz de Deus e escolher andar em caminhos que nos levam para longe d’Ele; podemos ir atrás de deuses menores, de deuses dececionantes, de deuses que nos escravizam e não nos asseguram vida… Mas, aconteça o que acontecer, Deus lá estará em cada passo do caminho a olhar para nós com um olhar cheio de amor, a perdoar-nos e a convidar-nos para nos sentarmos novamente com Ele à mesa da Vida nova, à mesa onde Ele quer reunir todos os seus filhos e filhas. Acreditamos na misericórdia e no perdão de Deus? O amor e a misericórdia de Deus são para nós motivação para vencermos a cegueira e a paralisia que tantas vezes nos impedem de caminhar?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 125 (126)

    Refrão 1: Grandes maravilhas fez por nós o Senhor, por isso exultamos de alegria.

    Refrão 2: O Senhor fez maravilhas em favor do seu povo.

    Quando o Senhor fez regressar os cativos de Sião,
    parecia-nos viver um sonho.
    Da nossa boca brotavam expressões de alegria
    e dos nossos lábios cânticos de júbilo.

    Diziam então os pagãos:
    «O Senhor fez por eles grandes coisas».
    Sim, grandes coisas fez por nós o Senhor,
    estamos exultantes de alegria.

    Fazei regressar, Senhor, os nossos cativos,
    como as torrentes do deserto.
    Os que semeiam em lágrimas
    recolhem com alegria.

    À ida vão a chorar,
    levando as sementes;
    à volta vêm a cantar,
    trazendo os molhos de espigas.

     

    LEITURA II - Hebreus 5,1-6

    Todo o sumo sacerdote, escolhido de entre os homens,
    é constituído em favor dos homens,
    nas suas relações com Deus,
    para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados.
    Ele pode ser compreensivo
    para com os ignorantes e os transviados,
    porque também ele está revestido de fraqueza;
    e, por isso, deve oferecer sacrifícios
    pelos próprios pecados e pelos do seu povo.
    Ninguém atribui a si próprio esta honra,
    senão quem foi chamado por Deus, como Aarão.
    Assim também, não foi Cristo que tomou para Si a glória
    de Se tornar sumo sacerdote;
    deu-Lha Aquele que Lhe disse:
    «Tu és meu Filho, Eu hoje Te gerei»,
    e como disse ainda noutro lugar:
    «Tu és sacerdote para sempre,
    segundo a ordem de Melquisedec».

     

    CONTEXTO

    A tradição, sobretudo das igrejas do oriente, atribui a Paulo de Tarso o escrito a que chamamos “Carta aos Hebreus”; mas as igrejas do ocidente há muito que descartaram a autoria paulina desta “homilia”. É provável que a “Carta aos Hebreus” venha de um discípulo de Paulo; mas não foi Paulo que a escreveu. Teria aparecido pouco antes do ano 70, quando o culto praticado no Templo ainda era uma realidade atual (recorde-se que, no ano 70, os romanos destruíram Jerusalém e o Templo). Os destinatários da “Carta” são, segundo a tradição, comunidades cristãs constituídas maioritariamente por cristãos vindos do judaísmo; no entanto, também há quem considere que a Carta poderia dirigir-se a qualquer comunidade cristã, nomeadamente a comunidades onde dominavam os cristãos de origem greco-romana. O facto de se citar abundantemente o Antigo Testamento não é decisivo para a definição dos destinatários, uma vez que, por essa altura, o Antigo Testamento era património comum de todos os cristãos. Seja como for, os destinatários da Carta aos Hebreus são crentes que vivem numa situação de fragilidade, de cansaço e de desalento. O objetivo do autor da Carta é ajudar esses cristãos a redescobrir o entusiasmo inicial, a revitalizar o seu compromisso com Cristo e a empenhar-se numa fé mais coerente e mais comprometida.

    O autor desta reflexão convida os crentes a apreciar o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência, que o Pai enviou ao mundo com a missão de convidar todos os homens a integrar a comunidade do Povo sacerdotal. Uma vez comprometidos com Cristo, os crentes – membros desse Povo sacerdotal – devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Ao lembrar aos crentes o seu compromisso com Cristo e com a comunidade do Povo sacerdotal, o autor oferece aos cristãos a base para revitalizarem a sua experiência de fé, enfraquecida pela hostilidade do ambiente, pela acomodação e pela monotonia.

    O texto que nos é proposto está incluído na segunda parte da Carta aos Hebreus (cf. Heb 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta Jesus como o sacerdote fiel e misericordioso que o Pai enviou ao mundo para mudar os corações dos homens e para os aproximar de Deus. Jesus Cristo, o sumo-sacerdote “que atravessou os céus” para interceder junto de Deus pelos seus “irmãos” (cf. Heb 4,14-16), tornou-se para todos os que beneficiam do seu sacerdócio fonte de salvação eterna (cf. Heb 5,1-10).

     

    MENSAGEM

    No universo religioso judaico, o sumo-sacerdote ocupava o lugar cimeiro na hierarquia do clero do Templo e, de alguma forma, presidia à instituição sacerdotal. Era ele o único a entrar, uma vez no ano, no lugar mais sagrado do Templo (“Debir” ou “Santo dos Santos”), no solene “Dia das Expiações” (“Yom Kippurim”), com o sangue de um animal imolado, para aspergir o “propiciatório” (“kapporet”) e conseguir o perdão de Deus para os pecados do Povo. Dessa forma, o sumo-sacerdote tornava-se o intermediário por excelência da relação entre os homens e Deus.

    Para a teologia judaica, há três aspetos que convergem na figura do sumo-sacerdote veterotestamentário (e, de certa forma, em todos aqueles que desempenhavam funções sacerdotais). Antes de mais, o sumo-sacerdote é um escolhido de Deus. Não é alguém que, por sua iniciativa pessoal, se propõe para um ofício ou conquista um cargo, mas é alguém a quem Deus chama. Foi Deus que, por sua iniciativa, chamou outrora o sacerdote Aarão e entregou à descendência de Aarão a missão sacerdotal. Em segundo lugar, o sumo-sacerdote não é um ser que está acima das realidades humanas, mas é um homem tomado de entre os homens. O facto de ser humano não o torna inapto para uma missão tão sublime; pelo contrário, a fragilidade e debilidade que resultam da sua humanidade tornam-no apto para compreender os erros e os pecados dos outros homens por quem intercede. Em terceiro lugar, o sumo-sacerdote tem uma função mediadora: a sua missão é “oferecer dons e sacrifícios pelos pecados”, apresentando diante de Deus o arrependimento dos homens e trazendo aos homens o perdão de Deus. Dessa forma, ele refaz a relação dos homens com Deus.

    Estes três aspetos, constitutivos do sacerdócio veterotestamentário, também aparecem em Jesus, de tal forma que podemos designá-lo como sumo-sacerdote? Sem dúvida. Em primeiro lugar, porque foi o próprio Deus que o escolheu para a função sacerdotal. Na verdade, Cristo não era da linhagem do sacerdote Aarão, raiz do sacerdócio veterotestamentário; mas Deus escolheu-o e fê-lo sacerdote “segundo a ordem de Melquisedec” (Melquisedec, referido em Gn 14,17-20, era rei e sacerdote da cidade de Salém. Encontrou-se com Abraão e abençoou-o. A reflexão judaica liga-o com a figura do Messias que havia de vir).

    Em segundo lugar, Jesus conhece bem as realidades humanas porque, além de Filho de Deus, foi também homem. Ao assumir a nossa humanidade, Ele experimentou a nossa debilidade e fragilidade e tornou-Se capaz de entender as nossas fraquezas e os nossos pecados. Nada da nossa vida lhe era estranho, nenhuma das nossas dores foi por Ele ignorada.

    Finalmente, a proximidade e intimidade de Jesus com o Pai, por um lado, e a sua humanidade, por outro, tornam-n’O o perfeito mediador e intercessor, capaz de restabelecer definitivamente a comunhão entre Deus e os homens. Entendendo a nossa fragilidade, Ele obteve do Pai a compreensão e a misericórdia para as nossas falhas; falando com os homens, Ele apresentou-lhes o Pai, convidou-os a caminhar ao encontro do Pai, chamou-os a integrar a família de Deus. Assim, Jesus derrubou as barreiras que afastavam os homens de Deus.

    Os crentes, colocados frente a frente com este Jesus – o sumo-sacerdote que os leva em direção ao Pai – são convidados a renovar o seu compromisso com Ele e a segui-l’O sem hesitações e sem desleixos.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Caminhamos para onde? Por que caminhos? O que buscamos? Quem nos conduz, de forma que possamos chegar a porto seguro e dar sentido pleno à nossa vida? O autor da Carta aos Hebreus apresenta-nos Jesus e convida-nos a segui-l’O sem hesitações. Garante-nos que Ele nos leva ao Pai e nos ajudará a integrar a família de Deus. Ninguém vai ao Pai, ninguém encontra a Vida verdadeira sem caminhar com Jesus, sem escutar as suas indicações, sem viver ao seu estilo. É uma mensagem destinado a acordar crentes adormecidos, conformados com uma fé morna e sem grandes exigências, instalados na sua zona de conforto, protegidos atrás da sua segurança e do seu bem-estar. E nós? Escutamos Jesus, temo-lo como referência sempre que temos de fazer opções e de escolher caminhos? Ele é para nós Caminho, Verdade e Vida? Estamos dispostos a deixar que Ele nos conduza até ao Pai?
    • Jesus experimentou a nossa fragilidade, a nossa debilidade, a nossa dependência; identificou-se connosco e tornou-Se capaz de compreender os nossos erros e de olhar para as nossas insuficiências com bondade e misericórdia. Depois, “atravessou os céus” e apresentou-se diante de Deus a interceder por nós e a obter do Pai a nossa salvação. Quando a consciência da nossa fragilidade e do nosso pecado nos impedir de caminhar em paz; quando o remorso pelas nossas escolhas erradas nos pesar intoleravelmente, lembremo-nos de Jesus, o nosso irmão, a interceder por nós junto do Pai. Caminhamos derrotados pelos nossos erros e pelo nosso pecado, ou confiamos em Jesus e na misericórdia de Deus?
    • Jesus experimentou a nossa fragilidade e os nossos limites; solidarizou-se com todos os homens e mulheres, independentemente do lugar que a sociedade lhes atribuía. Esteve especialmente do lado dos mais frágeis, dos mais pequenos, dos mais esquecidos. O seu exemplo convida-nos à solidariedade com os últimos, com os pobres, com os mais humildes, com aqueles que o mundo rejeita e marginaliza; convida-nos a identificarmo-nos com os sofrimentos e as angústias, as alegrias e as esperanças de cada homem ou mulher; convida-nos a fazer o que estiver ao nosso alcance para promover aqueles que são humilhados, explorados, incompreendidos, colocados à margem da vida e da história. Sentimo-nos solidários com os irmãos e as irmãs que fazem caminho connosco, especialmente com aqueles dos quais ninguém cuida, que ninguém quer, que ninguém defende? Sentimos que as dores e feridas que fazem sofrer os nossos irmãos também são nossas?

     

    ALELUIA – cf. 2 Timóteo 1,10

    Aleluia. Aleluia.

    Jesus Cristo, nosso Salvador, destruiu a morte
    e fez brilhar a vida por meio do Evangelho.

     

    EVANGELHO – Marcos 10,46-52

    Naquele tempo,
    quando Jesus ia a sair de Jericó
    com os discípulos e uma grande multidão,
    estava um cego, chamado Bartimeu, filho de Timeu,
    a pedir esmola à beira do caminho.
    Ao ouvir dizer que era Jesus de Nazaré que passava,
    começou a gritar:
    «Jesus, Filho de David, tem piedade de mim».
    Muitos repreendiam-no para que se calasse.
    Mas ele gritava cada vez mais:
    «Filho de David, tem piedade de mim».
    Jesus parou e disse: «Chamai-O».
    Chamaram então o cego e disseram-lhe:
    «Coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar-te».
    O cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus.
    Jesus perguntou-lhe:
    «Que queres que Eu te faça?»
    O cego respondeu-Lhe:
    «Mestre, que eu veja».
    Jesus disse-lhe:
    «Vai: a tua fé te salvou».
    Logo ele recuperou a vista
    e seguiu Jesus pelo caminho.

     

    CONTEXTO

    Jesus e os discípulos descem pelo vale do Jordão, a caminho de Jerusalém. Já não falta muito para que esse caminho – simultaneamente geográfico e espiritual – chegue ao seu termo. O grupo entra na cidade de Jericó, mas não fica lá muito tempo. É provável que Jesus tivesse uma certa pressa de chegar a Jerusalém.

    Jericó, a “cidade das Palmeiras”, é um oásis situado na margem do rio Jordão, a norte do Mar Morto, a cerca de 30 quilómetros de Jerusalém. Considerada a cidade mais antiga do mundo, está a cerca de 250 metros abaixo do nível do mar. Foi por Jericó que os hebreus vindos do Egito, conduzidos por Josué, entraram na Terra Prometida. Na época de Jesus, era uma cidade relativamente importante, com grandes plantações de palmeiras e de bálsamo. Para os peregrinos que vinham da Galileia e da Pereia, pelo vale do Jordão, a caminho de Jerusalém, Jericó era um local de passagem obrigatória. Herodes, o Grande, edificou em Jericó um luxuoso palácio de Inverno e dotou a cidade de um hipódromo e de um anfiteatro. Foi aí que ele cometeu alguns dos seus muitos crimes e onde veio a falecer. Jericó era, também, a cidade do publicano Zaqueu (cf. Lc 19,1-10).

    Quando Jesus e os discípulos estão a sair de Jericó para retomarem o caminho para Jerusalém, deparam-se com um homem sentado à beira do caminho. Esse homem é cego e chama-se Bartimeu (Marcos explica aos seus leitores que o nome significa “filho de Timeu”).

    Os “cegos” – como Bartimeu – faziam parte do grupo dos excluídos da sociedade palestina de então. As deficiências físicas eram consideradas pela teologia oficial como resultado do pecado. Ora, nesta lógica, um cego era alguém que tinha cometido um pecado especialmente grave, pois tinha sido castigado por Deus com um problema físico que o impedia de estudar a Lei. Pela sua condição de impureza notória, os cegos eram impedidos de servir de testemunhas no tribunal e de participar nas cerimónias religiosas no Templo.

     

    MENSAGEM

    O cego Bartimeu está sentado no chão, a pedir esmola aos peregrinos que saem de Jericó e que tomam a estrada para Jerusalém (vers. 46). Essas duas indicações que Marcos coloca no início da narração destinam-se, provavelmente, a elucidar-nos sobre a dupla “condição” daquele homem: está conformado com a escuridão em que vive mergulhado (“está sentado”, imóvel); e está instalado numa situação de absoluta dependência (“a pedir esmola”).

    Contudo, a passagem de Jesus de Nazaré acorda o cego da letargia em que está instalado. Bartimeu percebe repentinamente a sua miséria e dependência e sente que não pode continuar assim. Ele está farto de viver nas trevas; tem de encontrar a luz e de refazer a sua vida. A passagem de Jesus na vida de alguém é sempre um momento de tomada de consciência, de questionamento, de desafio, que leva a pôr em causa a vida velha e a sentir o imperativo de ir mais além.

    Bartimeu decide, então, pedir a ajuda de Jesus. Ele sabe que, contando apenas com as suas frágeis forças não conseguirá libertar-se das cadeias que o prendem e imprimir um novo rumo à sua existência. Quando Jesus se aproxima, Bartimeu põe-se a gritar: “Jesus, filho de David, tem piedade de mim” (vers. 47). O título “filho de David” é um título messiânico. Portanto, Bartimeu vê em Jesus esse Messias libertador que, segundo a mentalidade judaica, havia de vir não só para salvar Israel dos opressores, mas também para dar Vida em plenitude a cada membro do Povo de Deus.

    Antes de referir a intervenção de Jesus, Marcos dá conta da reação dos que estão à volta de Jesus: repreendiam o cego e queriam fazê-lo calar (vers. 48). Quando alguém encontra Jesus e resolve deixar a vida antiga para aderir ao Reino, encontra sempre resistências (que vêm, por vezes, dos familiares, dos amigos, dos mais chegados). Estes que repreendem e mandam calar o cego representam, portanto, todos aqueles que colocam obstáculos a quem quer deixar a sua situação de miséria e de escravidão para aderir ao desafio libertador que Jesus vem lançar. No entanto, a oposição não só não desarma o cego, como o leva a gritar ainda mais forte: “filho de David, tem piedade de mim”. A incompreensão ou a oposição dos homens nunca fazem desistir aquele que viu Jesus passar e que viu n’Ele uma proposta de Vida, de luz e de liberdade.

    Jesus parou e mandou “chamar” o cego. O verbo “chamar” repete-se por três vezes no curto espaço de um versículo (vers. 49). Trata-se, portanto, de uma história de “chamamento”. A cena recorda-nos os relatos do chamamento dos discípulos (cf. Mc 1,16-20; 2,14; 3,13). Ora, quando Jesus “chama” alguém é para que essa pessoa O siga no caminho. Portanto, Jesus convida o homem cego e libertar-se da escravidão e da dependência em que está e a tornar-se discípulo. Repare-se, ainda, que o “chamamento” de Jesus chega ao cego através de intermediários. O “chamamento” de Jesus chega-nos, muitas vezes, através da comunidade, dos irmãos que percorrem connosco o caminho e que nos encorajam a caminhar atrás de Jesus.

    Em resposta ao “chamamento”, o cego “atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus” (vers. 50). A capa – que os cegos usavam como almofada enquanto estavam sentados a pedir esmola, ou que colocavam sobre os joelhos para recolher as moedas que lhes atiravam – é tudo o que um mendigo possui, a sua grande riqueza. O deitar fora a capa significa, portanto, o deixar tudo o que se possui para ir ao encontro de Jesus (outros, em circunstâncias semelhantes, deixaram o barco, as redes ou a banca onde recolhiam impostos). É um corte radical com o passado, com a vida velha, com tudo aquilo em que se apostou anteriormente, a fim de começar uma vida nova ao lado de Jesus. Por outro lado, o “salto” que o cego dá é expressão do seu entusiasmo, da sua generosidade, da sua vontade firme de ir ter com Jesus. Está em contraste com o imobilismo em que estava antes de Jesus passar e o chamar. Tudo isto indica que o homem escutou o chamamento de Jesus e está decidido a ir ter com Ele, a segui-l’O, a entrar na comunidade do Reino. Corresponde ao movimento de Pedro e André (cf. Mc 1,18), de Tiago e João (Mc 1,20), do publicano Mateus (cf. Mc 2,14) quando foram chamados e deixaram tudo para ir com Jesus.

    Jesus perguntou ao cego: “que queres que te faça?”. É a mesma pergunta que, pouco antes, Jesus tinha feito a João e a Tiago (“que quereis que vos faça?” – Mc 10,36). A identidade da pergunta acentua, contudo, a diferença da resposta… Os dois irmãos queriam sentar-se ao lado de Jesus e ver concretizados os seus sonhos de grandeza e de poder; estavam “cegos” pela sua ambição desmedida. Ao contrário, o cego Bartimeu quer libertar-se da sua cegueira; entrega-se nas mãos de Jesus, seguro de que com Jesus encontrará uma vida nova (vers. 51).

    Jesus responde a Bartimeu: “vai, a tua fé te salvou” (vers. 52). No contexto neotestamentário, a fé é a adesão a Jesus e à sua proposta de salvação. Jesus reconhece que Bartimeu está disponível para aderir à oferta de salvação que lhe é feita; e sabe que Bartimeu o seguirá, feito discípulo, no caminho do dom da vida (Jesus prepara-Se para entrar em Jerusalém, onde vai fazer dom da sua vida em favor dos homens), Bartimeu encontrou a salvação: deixou a vida da escuridão, da escravidão, da dependência em que estava e nasceu para essa Vida verdadeira e eterna que, através de Jesus, Deus oferece aos homens.

    O texto evangélico deste trigésimo domingo comum é sobre um homem cego que Jesus encontrou à saída de Jericó e a quem curou da sua cegueira? É, sobretudo, uma parábola sobre o homem prisioneiro da escuridão e escravo dos seus limites, mas que se encontra com Jesus e se deixa iluminar por Jesus. Bartimeu é figura de todo aquele que, cruzando-se com Jesus, descobre que não pode continuar a viver uma vida sem sentido e sem ideais, atracada a hábitos e comportamentos que o mantêm escravo; é figura de todo aquele que, superando os seus medos, as suas hesitações, o seu comodismo, decide escutar a voz de Jesus e acolher o chamamento que Jesus lhe lança; é figura de todo aquele que, deita fora tudo o que o prende à vida antiga, corre ao encontro de Jesus, adere à proposta de Jesus e aceita ir atrás de Jesus no caminho do amor e do dom da vida; é figura de todo aquele que decide deixar de “estar sentado” à beira do caminho, para se meter “ao caminho” atrás de Jesus. Bartimeu torna-se, assim, o protótipo do verdadeiro discípulo. É com Bartimeu que os discípulos de Jesus são convidados a identificar-se.

     

    INTERPELAÇÕES

    • A situação inicial do cego Bartimeu – encerrado numa escuridão paralisante, acomodado à sua vida de hábitos e comportamentos velhos, aos seus medos, às suas hesitações, à sua vergonha – evoca um quadro que talvez não nos seja estranho… É a condição do homem que não consegue levantar os olhos do chão, que vive a prazo, que navega sempre à vista de terra, que se conforma com horizontes limitados e é incapaz de olhar para mais longe e mais alto; é a situação do homem prisioneiro do egoísmo, do orgulho, da ambição, dos bens materiais, da preguiça, que vive preso a preocupações rasteiras e materiais; é a realidade do homem refém dos seus vícios, hábitos e paixões, que “deixa correr” as coisas porque não se sente com capacidade para romper, com as suas frágeis forças, as cadeias que o impedem de construir uma vida mais digna e mais ditosa. A Palavra de Deus que escutamos neste domingo garante-nos que a vida não tem de ser vivida desta forma. Estamos conscientes disso? Estamos dispostos a vencer a tentação do imobilismo, da acomodação, do facilitismo, das apostas fáceis em “conquistas” que nunca saciam a nossa fome de vida eterna?
    • Para o cego Bartimeu, o momento decisivo para a transformação da sua vida foi o encontro com Jesus. Bartimeu sentiu, nesse instante, que Jesus lhe oferecia perspetivas novas de vida e de realização; percebeu que Jesus lhe trazia uma proposta irrecusável e que não podia deixar escapar a oportunidade que lhe era oferecida. Em Jesus, Bartimeu viu a oportunidade de deixar a escuridão e de nascer para a luz. O encontro com Jesus, se é verdadeiro, é sempre desafiante e transformador. Ora, esse mesmo Jesus que Se cruzou com o cego Bartimeu à saída de Jericó continua a cruzar-Se hoje, de forma continuada, com cada homem e com cada mulher nos caminhos da vida e a oferecer-lhes, sem cessar, a possibilidade de agarrarem uma vida nova, uma vida cheia de sentido, uma vida plenamente realizada… E isto diz-nos respeito: a salvação que Jesus oferece também é para nós. Ousaremos sair do nosso egoísmo, da nossa indiferença, da nossa autossuficiência para escutar e abraçar a proposta de Jesus?
    • Bartimeu confiou e colocou toda a sua vida nas mãos de Jesus. Atirou fora, sem hesitação, a vida que conhecia até aí, deu um salto qualitativo que alterou os seus horizontes e partiu para a aventura de seguir Jesus. Bartimeu apostou tudo em Jesus; e, ao fazer essa opção, deixou de estar sentado “à beira do caminho” para “ir com Jesus no caminho” ou para “fazer caminho com Jesus”. Jesus passou a ser a sua referência, o seu “mestre”, o seu “guia”, o seu “Senhor”. E nós? Quem é a nossa referência no caminho da fé? Vivemos a fé como seguimento incondicional de Jesus, ou como o simples cumprimento de rituais que herdamos dos nossos antepassados e que vivemos de forma desleixada, morna e pouco comprometida? Sentimo-nos discípulos decididos, que não querem perder Jesus de vista porque sabem que Ele é Caminho, Verdade e Vida?
    • Na história do encontro de Bartimeu com Jesus, aparecem diversos figurantes, com papéis vários. Uns são obstáculo ao encontro entre Bartimeu e Jesus (“muitos repreendiam-no para que se calasse”); mas outros apresentam-se como intermediários entre Jesus e Bartimeu e transmitem ao cego o “chamamento” de Jesus (“coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar-te”). Este facto serve para nos tornar conscientes do papel daqueles que nos rodeiam no nosso caminho da fé. Ao longo da nossa caminhada, encontraremos pessoas que nos levam até Jesus e que nos ajudam a tornarmo-nos discípulos; mas encontraremos também pessoas que, muitas vezes com ótimas intenções, tentam impedir-nos de nos comprometermos com Jesus e com o Reino de Deus. Assim, neste processo de aproximação a Jesus, temos de tentar perceber, com sentido crítico, a quem dar ouvidos, que indicações e conselhos devemos acolher ou rejeitar… Entre as pessoas que encontramos no nosso caminho, quem é que nos pode ajudar, genuinamente, a chegar a Jesus e a estabelecer contacto com Ele?
    • As pessoas que encorajam Bartimeu a aproximar-se de Jesus representam aqueles homens e mulheres genuinamente preocupados com o sofrimento dos seus irmãos, que não conseguem ficar indiferentes ao apelo de quem procura a luz, que têm um coração capaz de se compadecer com as lágrimas e as dores dos que vivem em dificuldade. Esses são, no meio do mundo, sinais vivos da misericórdia, da ternura e do amor de Deus; esses são filhos verdadeiros de um Deus que ama. Como nos posicionamos diante dos gritos dos nossos irmãos que sofrem? Preocupamo-nos em cuidar das feridas dos homens e mulheres que encontramos caídos nas estradas da vida e procuramos levá-los a Jesus a fim de que Ele os cure?
    • Quando alguém abandona a vida velha e decide tornar-se discípulo de Jesus, não tem todos os problemas resolvidos. Enfrenta desafios novos, fica fora da sua zona de conforto e tem de se adaptar a novas realidades, perde a segurança que os velhos hábitos davam, tem de enfrentar as críticas e as incompreensões de quem não compreende a sua opção… Aquele caminho de Jerusalém para o qual Jesus convoca os discípulos, é um caminho que passa pela cruz e pelo dom de si próprio. Não esqueçamos, no entanto, que esse caminho conduz à Vida nova, à ressurreição, à Vida definitiva. Jesus não arrasta os seus discípulos para um beco sem saída, mas leva-os ao encontro da Vida verdadeira, segundo o projeto do Pai. Quando avaliamos tudo isto, sentimo-nos com coragem para escolher Jesus e para O seguir? Estamos seguros de que vale a pena seguir Jesus, apesar de todas as dificuldades que teremos de enfrentar?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 30.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 30.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-Ia pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo … Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa … Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. BILHETE DE EVANGELHO.

    Jesus encontrou obstáculos na sua vida pública: incompreensões dos chefes dos sacerdotes, ciladas colocadas pelos fariseus. Na saída de Jericó, a multidão faz obstáculo à atenção de Jesus, procura fazer calar um mendigo cego. Felizmente, Jesus escuta o grito deste homem e pede aos seus próximos para serem o trampolim entre Ele e o doente: “Chamai-o!. .. Eu quero ter necessidade de vós”. Então temos estas três palavras, as palavras da Igreja que tem por missão levar os homens a Cristo: “confiança … não tenhas medo, Ele vai certamente fazer-te bem. Levanta-te … Ele respeita demasiado a tua liberdade, faz tu mesmo o caminho. Ele chama-te … é Ele que toma a iniciativa e, se Ele te chama, é para te salvar”. Jesus não pede ao homem para se calar. Pelo contrário, dá-lhe a palavra, e esta palavra torna-se para Jesus ato de fé, uma fé que salva. O homem é de tal modo salvo que não somente vê, mas segue Jesus no caminho, tal é a sua dupla cura.

    3. À ESCUTA DA PALAVRA.

    A vista é a vida. A vista não tem preço. É o caminho do cego à procura de Jesus, da vista, da vida … Filho de David, chama ele Jesus. Para os Judeus, só o Messias há tanto esperado podia ser assim chamado. Evocar David e a sua descendência era proclamar a fidelidade de Deus para com o seu povo. A multidão chamava a Jesus “Jesus de Nazaré”. O cego chama Jesus “Filho de David”. Reconhece em Jesus o Messias. O cego, na sua cegueira física, vê mais longe, mais profundamente, com o olhar interior da fé. Ele recuperou a luz exterior, mas é sobretudo a luz interior, a luz da fé, que vai iluminar o caminho da sua vida. Ele quer seguir e estar com aquele que disse: “Eu sou a Luz da Vida”. E nós? Ficamo-nos muitas vezes pela superfície das coisas, num olhar superficial que nos faz passar ao lado da profundidade dos outros. Daí nascem os preconceitos, as tensões, as recusas. É o olhar da multidão sobre o cego: um mendigo sem interesse, que era necessário calar. Bartimeu recorda-nos que há um outro olhar, o olhar de Deus sobre nós, sobre os outros, sobre os acontecimentos. Cabe a nós perguntarmo-nos qual é o nosso verdadeiro olhar. “Senhor, faz que eu veja!”.

    4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE …

    “Que queres que te faça?”, diz Jesus ao cego … Não tenhamos medo, nós também, de dizer a Jesus: “que eu veja”. A alegria de Cristo que nos ama é esta fé, esta confiança n’Ele. Não tenhamos medo de Lhe dizer a nossa fé e confiança, muitas vezes!

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

  • S. Simão e S. Judas, Apóstolos

    S. Simão e S. Judas, Apóstolos


    28 de Outubro, 2024

    Os apóstolos, que hoje celebramos, ocupam uma posição bastante discreta nos evangelhos. Simão é cognominado "zelote" por Lucas, talvez porque pertencia ao grupo antirromano dos zelotes. Mateus e Marcos qualificam-no como "cananeu" (10, 3; 3, 18). O apóstolo Judas, cognominado "Tadeu" por Mateus e Marcos (10, 3; 3, 18), é qualificado por Lucas como "filho de Tiago" (6, 16) e, portanto, primo do Senhor. É este Judas que, na última ceia, diz a Jesus: "Porque te hás-de manifestar a nós e não te manifestarás ao mundo?»" (Jo 14, 22). Uma das Cartas Católicas, na qual se previne os cristãos contra os falsos doutores que se haviam infiltrado nas comunidades, é-lhe atribuída. De acordo com uma tradição oriental, os dois apóstolos terão levado o Evangelho até ao Cáucaso, onde teriam sido martirizados. A sua festa, celebrada no Oriente desde o século VI, passou a ser celebrada em Roma no século IX.

    Lectio

    Primeira leitura: Efésios 2, 19-22

    Irmãos: Já não sois estrangeiros nem imigrantes, mas sois concidadãos dos santos e membros da casa de Deus, 20edificados sobre o alicerce dos Apóstolos e dos Profetas, tendo por pedra angular o próprio Cristo Jesus. 21É nele que toda a construção, bem ajustada, cresce para formar um templo santo, no Senhor. 22É nele que também vós sois integrados na construção, para formardes uma habitação de Deus, pelo Espírito.

    Na perspetiva de Paulo, o ministério de Cristo e o da Igreja estão intimamente ligados entre si. A unidade e a paz que há entre os cristãos, de origem pagã, ou deorigem hebraica, é dom de Deus Pai, por meio de Cristo Senhor, no Espírito Santo. A Igreja é como que um grande edifício, um templo santo, morada de Deus entre os homens. Os apóstolos, nossos pais na fé, com os profetas, são o fundamento desse edifício, onde nos sentimos "concidadãos dos santos e membros da casa de Deus" (v. 19). A "pedra angular" é Cristo (v. 20). Nesta perspetiva cristológica, a eclesiologia de Paulo torna-se particularmente clara. A presença, a função e o ministério dos apóstolos assume toda a sua importância. A Igreja é, pois, una, santa, católica e apostólica.

    Evangelho: Lucas 6, 12-19

    Naqueles dias, Jesus foi para o monte fazer oração e passou a noite a orar a Deus. 13Quando nasceu o dia, convocou os discípulos e escolheu doze dentre eles, aos quais deu o nome de Apóstolos: 14Simão, a quem chamou Pedro, e André, seu irmão; Tiago, João, Filipe e Bartolomeu; 15Mateus e Tomé; Tiago, filho de Alfeu, e Simão, chamado o Zelote; 16Judas, filho de Tiago, e Judas Iscariotes, que veio a ser o traidor. 17Descendo com eles, deteve-se num sítio plano, juntamente com numerosos discípulos e uma grande multidão de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e de Sídon, 18que acorrera para o ouvir e ser curada dos seus males. Os que eram atormentados por espíritos malignos ficavam curados; 19e toda a multidão procurava tocar-lhe, pois emanava dele uma força que a todos curava.

    Jesus dá particular atenção ao grupo dos Doze: escolhe-os (Lc 6, 12-19), institui-os como colégio (Mc 3, 13-19) e envia-os em missão (Mt 10, 1-15). Lucas anota que Jesus prepara a escolha dos Doze com uma noite de oração (6, 12). Antes de os escolher, Jesus chama os seus discípulos: o chamamento, a vocação, está sempre na origem de toda a instituição e ministério eclesial. Depois de os chamar, Jesus impõe-lhes o nome de apóstolos. A nota de Lucas pretende certamente exprimir a importância do colégio dos Doze na Igreja que Jesus está para fundar.

    Meditatio

    A festa dos santos apóstolos Simão e Judas oferecem-nos ensejo para refletirmos e tornarmos mais clara consciência da Igreja, que é simultaneamente corpo de Cristo e templo do Espírito Santo. São duas dimensões imprescindíveis. Não se pode receber o Espírito Santo sem pertencer ao corpo de Cristo. A razão é clara: o Espírito Santo é o Espírito de Cristo, que se recebe no corpo de Cristo. A Igreja, todavia, tem um aspeto visível. Por isso, Cristo escolheu os Doze e continua a escolher os seus sucessores, para formar a estrutura visível do seu corpo, quase em continuação da Incarnação. Pertencendo ao corpo de Cristo, podemos receber o seu Espírito e ser intimamente unidos a Ele num só corpo e num só Espírito.
    Um outro aspeto que esta festa nos permite colher é a relação entre a oração e a missão. Jesus demora-se em oração antes de decidir a escolha dos Doze. É preciso rezar para discernir o projeto de Deus. É preciso rezar em ordem às grandes decisões da vida pessoal e comunitária. Nesta perspetiva, a oração não é um momento separado do resto da vida, mas uma atitude prévia à nossa experiência de vida pessoal e eclesial. Rezar antes de iniciar a missão pessoal e/ou comunitária significa confiá-la Àquele que é o seu primeiro responsável, o dono da vinha, o pastor do rebanho, o Senhor do povo.
    "Reconhecemos que da oração assídua depende... a fecundidade do nosso apostolado." (Cst 76).

    Oratio

    Senhor Jesus, na festa de S. Simão e S. Judas, quero pedir-te a graça de, como os santos apóstolos, me tornar teu familiar e amigo. Então virás, com o Pai e com o Espírito Santo estabelecer em mim a tua morada. Que eu seja todo para ti, para o teu amor, para o apostolado, cooperação na tua obra redentora no coração do mundo. Ámen.

    Contemplatio

    Os dois apóstolos, que deviam ter-se conhecido na sua juventude em Caná, terminaram juntos o seu apostolado na Pérsia. Lá quiseram obrigá-los a oferecer sacrifícios ao Sol; preferiram dar a sua vida por Jesus Cristo. A sua morte foi ainda para ambos um ato de caridade, no seu objeto e nas suas circunstâncias. S. Simão estava num templo onde queriam obrigá-lo a sacrificar aos ídolos. Um anjo disse-lhe: «Far-te-ei sair do templo e farei ruir sobre eles todo o edifício». - «Não, respondeu Simão, deixai-os viver. Pode ser que alguns deles venham a converter-se». Enfim, um anjo disse a ambos: «Que escolheis? Ou a morte para vós ou o extermínio deste povo ímpio?» Os dois apóstolos exclamaram: «Misericórdia para este povo! Que o martírio seja a nossa herança». A sua morte foi uma semente de conversões. Unidos na sua vida, foram-no na morte, e são-no também no culto que lhes é prestado. A Igreja honra-os no mesmo dia. Os seus corpos reuniram-se a S. Pedro em Roma. Devo imitá-los no seu amor por Jesus, na sua fidelidade e no seu zelo pela salvação do próximo. (L. Dehon, OSP 4, p. 402s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Sois concidadãos dos santos
    e membros da casa de Deus" (Ef 2, 19).

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    S. Simão e S. Judas, Apóstolos (28 Outubro)

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