Eventos Julho 2025

  • S. Tomé, Apóstolo

    S. Tomé, Apóstolo


    3 de Julho, 2025

    O martirológio jeronimiano do século VI coloca no dia 3 de Julho a transladação do corpo de S. Tomé para Edessa, na atual Turquia. Este apóstolo, também chamado Dídimo, é-nos dado a conhecer sobretudo por S. João evangelista. É Tomé que convida os outros apóstolos a acompanharem Jesus para a Judeia, para morrerem com Ele (Jo 11, 16). É a pergunta de Tomé que leva Jesus a definir-se: "

    Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida." (Jo 14, 5s.). Finalmente, Tome, com a sua incredulidade, ajuda-nos a fortalecer a nossa adesão a Jesus, por meio de uma profissão de fé muito clara: "Meu Senhor e meu Deus!" (Jo 20, 24-29).Como escreve S. Gregório Magno, "A incredulidade de Tomé foi mais útil à nossa fé do que a fé dos discípulos crentes". Após o Pentecostes, partiu em missão. Mas não temos dados precisos acerca do seu apostolado.

    Lectio

    Primeira leitura: Efésios 2, 19-22

    Irmãos: Já não sois estrangeiros nem imigrantes, mas sois concidadãos dos santos e membros da casa de Deus, 20edificados sobre o alicerce dos Apóstolos e dos Profetas, tendo por pedra angular o próprio Cristo Jesus. 21É nele que toda a construção, bem ajustada, cresce para formar um templo santo, no Senhor. 22É nele que também vós sois integrados na construção, para formardes uma habitação de Deus, pelo Espírito.

    Para Paulo, Cristo é a nossa paz. Por isso, na Igreja, não fazem sentido as divisões, as discriminações, as discórdias. Em Cristo, fomos todos reconciliados e unidos, seja que tenhamos vindo de longe, como os pagãos, seja que tenhamos vindo de mais perto, como os judeus. Já não existem dois povos, mas um só povo. Tudo isto é dom de Deus Pai, por meio de Cristo Senhor, no Espírito Santo. A Igreja é como que um grande edifício, um templo santo, onde habita Deus. Os Apóstolos e os Profetas são fundamento desse edifício onde todos estamos e vivemos como "concidadãos dos santos e membros da casa de Deus" (v. 19), e que tem Cristo como "pedra angular".

    Evangelho: João 20, 24-29

    Naquele tempo, Tomé, um dos Doze, a quem chamavam o Gémeo, não estava com eles quando Jesus veio.25Diziam-lhe os outros discípulos: «Vimos o Senhor!» Mas ele respondeu-lhes: «Se eu não vir o sinal dos pregos nas suas mãos e não meter o meu dedo nesse sinal dos pregos e a minha mão no seu peito, não acredito.» 26Oito dias depois, estavam os discípulos outra vez dentro de casa e Tomé com eles. Estando as portas fechadas, Jesus veio, pôs-se no meio deles e disse: «A paz seja convosco!» 27Depois, disse a Tomé: «Olha as minhas mãos: chega cá o teu dedo! Estende a tua mão e põe-na no meu peito. E não sejas incrédulo, mas fiel.» 28Tomé respondeu-lhe: «Meu Senhor e meu Deus!» 29Disse-lhe Jesus: «Porque me viste, acreditaste. Felizes os que crêem sem terem visto!»

    A incredulidade de Tomé, como referimos na introdução a esta festa, citando S. Gregório Magno, foi "mais útil à nossa fé do que a fé dos discípulos crentes". Aproveitando o episódio, João abre diante de nós uma pista nova para chegarmos à libertadora experiência da fé em Jesus ressuscitado. Na aparição seguinte aos seus discípulos, Jesus convida Tomé a percorrer o caminho de busca, que os seus colegas já tinham feito. Tomé, disponível e dócil à ordem de Jesus, chega a um ato de fé claro e convicto: "Meu Senhor e meu Deus!" (v. 28). A bem-aventurança, que Jesus proclama em seguida, dirige-se a nós que, percorrendo um itinerário de fé, em atitude de completo abandono, chegamos a Jesus morto e ressuscitado.

    Meditatio

    No episódio narrado no evangelho, Tomé não é, certamente, um modelo para nós. Jesus di-lo claramente: "Porque me viste, acreditaste. Felizes os que crêem sem terem visto!" (v. 29). Mas, como já referimos, a sua incredulidade foi útil para nós.
    O que mais impressiona é que Tomé acompanhara Jesus, tal como os outros apóstolos. Conhecia bem o seu rosto e as suas palavras. Mas, agora, para acreditar, quer ver os sinais da Paixão: "Se eu não vir o sinal dos pregos nas suas mãos e não meter o meu dedo nesse sinal dos pregos e a minha mão no seu peito, não acredito." (v. 25). Mas, exatamente nisto, Tomé torna-se modelo para nós, pois sabe discernir o que carateriza Jesus. Depois da Paixão, Jesus é caraterizado pelas suas chagas. Esses sinais do seu amor são suficientes para O reconhecermos. Por isso, as conserva na sua carne gloriosa: "Olha as minhas mãos: chega cá o teu dedo! Estende a tua mão e põe-na no meu peito. E não sejas incrédulo, mas fiel." (v. 27). Tomé, podemos dizê-lo, foi o primeiro devoto do Coração de Jesus. Quis contatar, também fisicamente, com esse Coração trespassado por nosso amor. Quantos cristãos contemplaram o Lado aberto e o Coração trespassado de Jesus. O P. Dehon compara-o ao livro escrito por fora e por dentro, referido no Apocalipse, e que nos fala só de amor.
    A contemplação do Lado aberto e do Coração de Jesus levou Tomé à sua fortíssima expressão de fé: "Meu Senhor e meu Deus!" (v. 28). Que essa mesma contemplação do mais expressivo sinal do amor do nosso Salvador nos leve a uma fé clara, decidida, forte, apostólica.

    Oratio

    Meu Senhor e meu Deus! Quero tirar das vossas chagas a bebida da salvação. Sede condescendente comigo como fostes com S. Tomé. Emprestai-me as vossas mãos e os vossos pés para que aí cole os meus lábios. Tenho tanta necessidade de forças. Ousarei mesmo aproximar-me do vosso Coração para dele tirar o arrependimento e o fervor. Perdoai-me! (Leão Dehon, OSP 3, p. 297).

    Contemplatio

    S. Tomé exprimiu a sua fé: «Meu Senhor e meu Deus!». Meu Senhor, é o Filho do homem, é o Cristo, é o Messias. Meu Deus, é o Filho de Deus, é o Verbo incarnado. A fé é completa e explícita. «Tu és feliz, Tomé, diz-lhe Nosso Senhor, viste e acreditaste; mas mais felizes, isto é, mais meritórios, serão os que acreditarem sem terem visto». Eu devia ser destes, Senhor. Não vi as chagas, mas tenho tantos motivos de fé: o testemunho do Evangelho, a Igreja e as suas graças, os santos, a ação sobrenatural sempre viva na Igreja. E não toquei, por assim dizer, com o dedo a vossa ação e a vossa graça, em mil circunstâncias da minha vida, seja em mim mesmo seja nas almas com as quais estive em contacto? Não seria mais culpado do que Tomé, se não tivesse uma fé viva? E porque é que a minha fé é ainda tão fraca, tão inerte e quase morta? Creio, mas vivo como se não tivesse fé. Quero hoje pedir o milagre da minha conversão às cinco chagas. Contemplo-as em espírito. Aproximo delas os meus lábios. Queria beber nestas fontes de água vivificante de que fala S. João. (Leão Dehon, OSP 3, p. 296s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Meu Senhor e meu Deus!" (Jo 20, 28).

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    S. Tomé, Apóstolo (03 Julho)

  • 14º Domingo do Tempo Comum – Ano C [atualizado]

    14º Domingo do Tempo Comum – Ano C [atualizado]

    6 de Julho, 2025

    ANO C

    14.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 14.º Domingo do Tempo Comum

    Nas leituras litúrgicas do décimo quarto domingo do tempo comum prevalece a temática do “envio”: Deus escolhe pessoas, confia-lhes uma missão e envia-as ao mundo e aos homens. Esses “enviados” atuam em nome de Deus e são chamados a testemunhar, no meio dos seus irmãos, o projeto que Deus tem para os homens e para o mundo.

    O Evangelho conta que Jesus, quando se dirigia para Jerusalém, enviou setenta e dois discípulos à sua frente, “a todas as cidades e lugares aonde Ele devia de ir”. A missão desses discípulos é a mesma de Jesus: propor a Boa Nova do Reino de Deus e “curar” todos os que estão feridos pela dureza da vida ou pela maldade dos homens. Pela ação dos “enviados” de Jesus, concretiza-se a vitória do Reino de Deus sobre tudo aquilo que oprime e escraviza os seres humanos.

    Na primeira leitura um profeta anónimo, enviado aos desanimados habitantes de Jerusalém, proclama o amor de pai e de mãe que Deus tem pelo seu Povo. O profeta é sempre um “enviado” de Deus, através do qual Deus consola os seus filhos, liberta-os do medo e acena-lhes com a esperança do mundo novo que está para chegar.

    Na segunda leitura o apóstolo Paulo indica, a partir da sua própria experiência, qual deve ser a primeira preocupação do “enviado” de Jesus. No centro do testemunho de qualquer “enviado” deve estar a cruz de Jesus: a maneira como Ele amou, até ao extremo de dar a vida por todos. Paulo, no que lhe diz respeito, tem procurado concretizar essa missão. Provam-no as feridas que recebeu por causa do seu serviço ao Evangelho.

     

    LEITURA I – Isaías 66,10-14c

    Alegrai-vos com Jerusalém,
    exultai com ela, todos vós que a amais.
    Com ela enchei-vos de júbilo,
    todos vós que participastes no seu luto.
    Assim podereis beber e saciar-vos
    com o leite das suas consolações,
    podereis deliciar-vos no seio da sua magnificência.
    Porque assim fala o Senhor:
    «Farei correr para Jerusalém a paz como um rio
    e a riqueza das nações como torrente transbordante.
    Os seus meninos de peito serão levados ao colo
    e acariciados sobre os joelhos.
    Como a mãe que anima o seu filho,
    também Eu vos confortarei:
    em Jerusalém sereis consolados.
    Quando o virdes, alegrar-se-á o vosso coração
    e, como a verdura, retomarão vigor os vossos membros.
    A mão do Senhor manifestar-se-á aos seus servos.

     

    CONTEXTO

    Nos capítulos 56 a 66 do livro de Isaías (o “Trito-Isaías”) temos uma coleção de textos, provavelmente de autores diversos, redigidos em Jerusalém na época pós-exílica. O poema que a liturgia deste segundo domingo comum nos apresenta como primeira leitura pertence a essa coleção.

    Para aqueles que retornaram do Exílio na Babilónia, são tempos difíceis e incertos. A população da cidade é pouco numerosa e pobre; a reconstrução é lenta, modesta e exige um grande esforço; os inimigos estão à espreita e fazem continuamente sentir a sua hostilidade; há tensões no ar entre os que regressaram da Babilónia e aqueles que ficaram na cidade. Aos poucos, com a reorganização da estrutura social, voltam as injustiças dos poderosos sobre os fracos e os pobres, bem como a corrupção, a venalidade e a prepotência dos chefes. O clima é de frustração e de desânimo. As promessas de Deus, escutadas na fase final do Exílio, parecem bem distantes.

    Os profetas que desenvolvem a sua missão nesta fase procuram renovar a esperança do Povo de Judá num futuro de vida plena e de salvação definitiva. Nesse sentido, vão falar de uma época em que Deus vai voltar a residir em Jerusalém, oferecendo em cada dia ao seu Povo a vida e a salvação. Essa “salvação” implicará, não só a reconstrução de Jerusalém e a restauração das glórias passadas, mas também a libertação dos pobres, dos oprimidos, dos fracos, dos marginalizados.

    É neste ambiente que podemos situar o belíssimo poema de Is 66,7-14, do qual o nosso texto faz parte. O profeta pronuncia palavras de consolação e convida os habitantes de Jerusalém a alegrarem-se, pois vai chegar, por iniciativa de Deus, um tempo novo.

     

    MENSAGEM

    Jerusalém, a cidade destruída e calcinada, que parecia uma viúva vestida de luto, vai tornar-se uma mãe solícita e generosa, que alimenta os seus filhos retornados do Exílio e cuida deles com aquele amor que só as mães sabem oferecer (vers. 10). Os cuidados maternais que a mãe/Jerusalém irá proporcionar aos seus “filhos” famintos e enfraquecidos, são descritos com imagens fortes, que sugerem a fecundidade e a vida em abundância: dos peitos esplêndidos da mãe, os filhos poderão beber um leite abundante, até ficarem saciados (vers. 11).

    No entanto, é Deus que está por detrás dessa corrente de vida que irá revitalizar os “filhos” de Jerusalém. Deus fará com que a paz corra como um rio e oferecerá ao seu povo a prosperidade, a abundância, a riqueza, a segurança, a vida sem fim (vers. 12). Deus é como uma mãe que cuida dos seus filhos, que os acaricia, que os consola, que os alimenta, que lhes oferece vida abundante (vers. 13). O amor de mãe não falha; o amor de Deus também não falhará.

    Encantados com a ternura de Deus, os filhos sentirão uma alegria irreprimível, que fará com que os seus corações batam mais forte; e ganharão uma força que lhes permitirá enfrentar todas as vicissitudes e todas as inquietações que a vida lhes possa trazer (vers. 14).

    Nesta imagem que compara Deus a uma mãe cheia de amor pelos seus filhos temos, sem dúvida, um dos pontos altos da revelação véterotestamentária de Deus.

     

    INTERPELAÇÕES

    • As palavras de consolação que Deus, neste texto, dirige aos filhos de Jerusalém chegam aos destinatários pela voz de um profeta cujo nome ignoramos, mas que foi um sinal vivo de Deus no meio do seu povo. Esta forma que Deus tem de chegar ao coração dos seus filhos repete-se infinitamente na história dos homens: é através dos seus profetas que Ele enxuga as lágrimas, consola os corações feridos, sacia os famintos, liberta do medo, salva da morte, mostra a sua solicitude e o seu amor. Hoje, neste tempo de tantos desencantos e de tantos desconcertos, são muitos os filhos de Deus que caminham na escuridão e se julgam abandonados por Deus e pelos homens. Eles necessitam de escutar a Boa notícia da salvação e de experimentar o amor materno e paterno de Deus. Poderá Deus contar connosco para sermos profetas do seu amor junto dos nossos irmãos? Estamos disponíveis para testemunhar, com palavras e com gestos concretos, a grandeza do amor de Deus por todos os seus filhos?
    • Como é que vemos Deus? Que imagem fazemos d’Ele? Há muitos homens e mulheres que veem Deus como uma entidade distante, misteriosa, severa, da qual temos de nos aproximar com infinitos cuidados, fazendo tudo para evitar desrespeitar a sua grandeza e omnipotência… No entanto, na primeira leitura que a liturgia deste domingo nos oferece, Deus apresenta-se como uma mãe que ama enternecidamente os seus filhos, que pega neles ao colo, que os acaricia sobre os joelhos, que os anima e conforta. Ora, um amor assim não tem nada de distante, de severo, de austero, de castigador, de exigente… É um amor inquebrantável, infinito, que se expressa em ternura e carinho, como o amor de mãe; é um amor que põe acima de tudo a vida e a felicidade dos seus filhos. É nesse Deus que acreditamos? É esse Deus que nós anunciamos e testemunhamos aos irmãos que se cruzam connosco nos caminhos que todos os dias percorremos?
    • Deus, pela boca do profeta, convida os “filhos de Jerusalém” à alegria. Quem é amado como eles, não pode deixar-se abater pela tristeza, pela angústia e pelo medo. O amor de Deus pelos seus filhos é infinitamente mais forte do que a maldade, a mentira, o sofrimento, as desgraças que nos atingem em alguns passos mais escuros do caminho que percorremos. Nós, filhos queridos e amados de Deus, vivemos iluminados pela alegria, ou acabrunhados sob o peso da angústia? Testemunhamos alegria e esperança no meio dos nossos irmãos?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 65 (66)

    Refrão: A terra inteira aclame o Senhor.

    Aclamai a Deus, terra inteira,
    cantai a glória do seu nome,
    celebrai os seus louvores, dizei a Deus:
    «Maravilhosas são as vossas obras».

    A terra inteira Vos adore e celebre,
    entoe hinos ao vosso nome.
    Vinde contemplar as obras de Deus,
    admirável na sua acção pelos homens.

    Mudou o mar em terra firme,
    atravessaram o rio a pé enxuto.
    Alegremo-nos n’Ele:
    domina eternamente com o seu poder.

    Todos os que temeis a Deus, vinde e ouvi,
    vou narrar-vos quanto Ele fez por mim.
    Bendito seja Deus que não rejeitou a minha prece,
    nem me retirou a sua misericórdia.

     

    LEITURA II – Gálatas 6,14-18

    Irmãos:
    Longe de mim gloriar-me,
    a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo,
    pela qual o mundo está crucificado para mim
    e eu para o mundo.
    Pois nem a circuncisão nem a incircuncisão valem alguma coisa:
    o que tem valor é a nova criatura.
    Paz e misericórdia para quantos seguirem esta norma,
    bem como para o Israel de Deus.
    Doravante ninguém me importune,
    porque eu trago no meu corpo os estigmas de Jesus.
    Irmãos, a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo
    esteja com o vosso espírito. Amen.

     

    CONTEXTO

    A Galácia era uma região da Anatólia central, na atual Turquia. A região tinha esse nome por causa dos imigrantes gauleses que, nos começos do séc. III a.C. aí se instalaram. Na época de Paulo, a Galácia era uma província do império romano.

    De acordo com o livro dos Atos dos Apóstolos, Paulo cruzou mais do que uma vez as terras da Galácia. Na sua primeira viagem apostólica, Paulo e Barnabé evangelizaram o sul da província romana da Galácia: Pisídia, Licaónia, Frígia (cf. At 13,14-25). Foi, contudo, nas suas segunda e terceira viagem missionária que Paulo estabeleceu laços com as gentes do norte da Galácia (cf. At 16,6; 18,23), resultando daí o nascimento de diversas comunidades cristãs na região.

    A Carta aos Gálatas dá a entender que o apóstolo, numa das suas passagens pela Galácia, se deteve algum tempo na região, afetado por um problema de saúde (cf. Gl 4,13). Acolhido pela generosa hospitalidade das gentes da região, Paulo anunciou-lhes o Evangelho. Do anúncio de Paulo nasceram diversas comunidades cristãs. No entanto, Paulo não teve então oportunidade de ficar entre os gálatas muito tempo, deixando-lhes uma preparação cristã insuficiente. Teria sido no decurso da sua terceira viagem missionária que Paulo escreveu aos gálatas, instruindo-os sobre diversas questões da fé. Estaríamos aí pelos anos 56-57, pouco antes da redação da Carta aos Romanos.

    Paulo estava em Éfeso ou em Corinto quando soube que alguns pregadores cristãos tinham passado nas comunidades cristãs da Galácia e tinham insistido na necessidade de todos os cristãos se submeterem a diversas práticas da Lei de Moisés (cf. Gl 3,2; 4,21; 5,4), nomeadamente à circuncisão (cf. Gl 2,3-4; 5,2; 6,12). Paulo, apoiado nas decisões do “Concílio de Jerusalém” (cf. At 15,22-29), considerava que o cumprimento das tradições judaicas não era necessário para a adesão a Cristo. A Lei moisaica tinha sido superada pela novidade de Jesus. Para ser cristão bastava acreditar em Jesus e no seu Evangelho.

    Foi essa a razão fundamental que levou Paulo a escrever a carta de Paulo aos gálatas. Nessa carta Paulo pedia os seus queridos filhos da Galácia que não se deixassem enganar pelos “judaizantes”; e exortava-os a não se deixarem cair na escravidão da Lei de Moisés.

    O nosso texto integra a conclusão da carta (cf. Gl 6,11-18). É uma espécie de remate, no qual Paulo resume toda a sua argumentação anterior a propósito de Cristo, da Lei e da salvação.

     

    MENSAGEM

    Na opinião de Paulo, os “judaizantes” (esses pregadores que queriam obrigar os gálatas a observarem as prescrições da Lei de Moisés) são movidos por duas grandes preocupações. A primeira é evitar a perseguição (vers. 12): se a Igreja nascida de Jesus conservasse as práticas judaicas, seria considerada pelas autoridades romanas um simples ramo do judaísmo, gozando do estatuto de “religião lícita”; portanto, não seria perseguida pelo império. A segunda é evidenciarem-se: mostrando o sucesso do seu proselitismo (o “prosélito” era um pagão convertido à observância da fé judaica), seriam altamente considerados nos ambientes judaicos (vers. 13).

    Essas razões, no entanto, não têm qualquer importância para Paulo. Paulo não está preocupado em evitar as perseguições, assim como não está preocupado com aplausos humanos. O único título de glória que interessa ao apóstolo é a cruz do Senhor Jesus Cristo (vers. 14). Paulo está consciente de que a salvação do homem vem de Cristo, da sua entrega por amor, do dom de si próprio que Ele fez na cruz. Por isso, Paulo não prega a circuncisão ou outras práticas da Lei judaica; prega a vitória da cruz. Da cruz – do dom de si próprio, do amor até ao extremo – é que brota a vida verdadeira. Da cruz de Jesus, do seu amor, da sua entrega, nasce uma nova humanidade, uma nova criação (vers. 15).

    Paulo inaugura aqui um dos seus temas favoritos, ao qual voltará nas cartas posteriores (nomeadamente em Romanos, Efésios e Colossenses): o tema do Homem Novo. Na perspetiva paulina, a identificação do cristão com o Cristo da cruz – isto é, com o Cristo do amor até ao extremo – tornará possível o aparecimento de um Homem Novo, liberto do egoísmo e da preocupação consigo próprio, capaz de amar sem medida. Esse Homem Novo, feito à imagem de Cristo, vencerá o egoísmo, a autossuficiência, o orgulho, o pecado e a morte. Com ele irromperá na história a “nova criação”; esse homem transformado pelo amor apontará para o mundo novo da vida plena e da felicidade sem fim.

    Paulo, no que lhe diz respeito, luta pessoalmente para alcançar esse objetivo. Aliás, ele já leva “no seu corpo as marcas de Jesus” (vers. 17). Esta indicação não parece referir-se aos sinais físicos da paixão de Jesus (“estigmas”), mas às cicatrizes reais deixadas pelas feridas recebidas por Paulo no exercício do seu apostolado. Na sociedade greco-romana, cada escravo levava uma marca, como sinal da sua pertença a um determinado dono; do mesmo modo, as marcas do seu sofrimento por causa do Evangelho mostram que Paulo pertence a Cristo, que é propriedade d’Ele: por elas, Paulo demonstra a sua pertença inalienável a esse Cristo cujo amor se fez entrega na cruz; por elas, Paulo afirma a sua vontade de viver como Cristo e de colocar a sua vida ao serviço do Evangelho e dos irmãos.

    A saudação final (“irmãos, a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo esteja com o vosso espírito. Amen” – vers. 18), constitui um apelo à comunhão e manifesta a esperança do apóstolo no restabelecimento da fraternidade.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Paulo de Tarso, apaixonado por Cristo, apostou toda a sua vida em dar testemunho do Evangelho. Viveu a missão com radicalidade, numa entrega total. Enfrentou todas as oposições e todas as incompreensões, pois Cristo tornou-se, para ele, “o tesouro mais valioso”, pelo qual vale a pena renunciar a tudo o resto. Nós estamos habituados a ver Paulo como um caso excecional, ímpar, irrepetível; sentimos que uma aposta tão radical e tão completa em Cristo não é exatamente para nós… É verdade que cada cristão terá a sua forma própria de concretizar o seguimento de Jesus; mas, sejam quais forem as “paisagens” e os enquadramentos onde a nossa vida se concretiza, somos chamados a testemunhar o Evangelho de Jesus e a dizer aos homens que só do dom da vida, do amor até ao extremo, nasce o Homem Novo. Sentimos que é esse o nosso caminho, a nossa vocação fundamental? Como Paulo, estamos dispostos a enfrentar a incompreensão do mundo, a fim de que a proposta de Jesus chegue ao coração e à vida dos nossos contemporâneos?
    • Paulo refere, na carta aos gálatas, o caso de pregadores cristãos (os “judaizantes”) que se gabavam da sua fidelidade às tradições judaicas e à Lei de Moisés. Consideravam que, entre outras coisas, a circuncisão era a marca da sua pertença ao povo de Deus. Contavam ser apreciados e elogiados por esses sinais externos que, segundo eles, mostrava a fé que os animava. Diante disto, Paulo declara que a única coisa de que se gloria é a cruz de Cristo. Só lhe interessa ser arauto daquele homem que, morrendo na cruz, ensinou os seus discípulos a fazerem das suas vidas um dom de amor. Este quadro pode constituir um convite a que reflitamos sobre aquilo que constitui a essência da nossa experiência de fé, da nossa identidade enquanto cristãos. O discípulo de Cristo é alguém que se distingue pela roupa que veste, pela cruz que traz ao pescoço, pelo papel que alguém assinou por ele no dia do batismo, pelos rituais que cumpre, pela observância de determinadas leis canónicas, ou é alguém que se distingue pela sua identificação com Cristo – com o Cristo do amor, da entrega, do dom da vida?
    • A propósito da reflexão feita por Paulo sobre os “títulos de glória” que devem interessar a um discípulo de Jesus, podemos questionar-nos sobre os valores sobre os quais construímos o nosso projeto de vida. Os influenciadores e os líderes da opinião pública dizem-nos todos os dias a que valores devemos agarrar-nos para ter êxito, para ser socialmente considerado, para triunfar… Sabemos, no entanto, que em muitos casos esses valores estão em flagrante contradição com o Evangelho de Jesus. Quais são os “títulos de glória” a que damos apreço? Quais os valores sobre os quais alicerçamos a construção da nossa vida?

     

    ALELUIA – Colossenses 3,15a.16a

    Aleluia. Aleluia.

    Reine em vossos corações a paz de Cristo,
    habite em vós a sua palavra.

     

    EVANGELHO – Lucas 10,1-12.17-20

    Naquele tempo,
    designou o Senhor setenta e dois discípulos
    e enviou-os dois a dois à sua frente,
    a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir.
    E dizia-lhes:
    «A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos.
    Pedi ao dono da seara
    que mande trabalhadores para a sua seara.
    Ide: Eu vos envio como cordeiros para o meio de lobos.
    Não leveis bolsa nem alforge nem sandálias,
    nem vos demoreis a saudar alguém pelo caminho.
    Quando entrardes nalguma casa,
    dizei primeiro: ‘Paz a esta casa’.
    E se lá houver gente de paz,
    a vossa paz repousará sobre eles:
    senão, ficará convosco.
    Ficai nessa casa, comei e bebei do que tiverem,
    que o trabalhador merece o seu salário.
    Não andeis de casa em casa.
    Quando entrardes nalguma cidade e vos receberem,
    comei do que vos servirem,
    curai os enfermos que nela houver
    e dizei-lhes: ‘Está perto de vós o reino de Deus’.
    Mas quando entrardes nalguma cidade e não vos receberem,
    saí à praça pública e dizei:
    ‘Até o pó da vossa cidade que se pegou aos nossos pés
    sacudimos para vós.
    No entanto, ficai sabendo:
    Está perto o reino de Deus’.
    Eu vos digo:
    Haverá mais tolerância, naquele dia, para Sodoma
    do que para essa cidade».
    Os setenta e dois discípulos voltaram cheios de alegria, dizendo:
    «Senhor, até os demónios nos obedeciam em teu nome».
    Jesus respondeu-lhes:
    «Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago.
    Dei-vos o poder de pisar serpentes e escorpiões
    e dominar toda a força do inimigo;
    nada poderá causar-vos dano.
    Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem;
    alegrai-vos antes
    porque os vossos nomes estão escritos nos Céus».

     

    CONTEXTO

    O Evangelho deste domingo situa-nos no cenário da caminhada de Jesus para Jerusalém. No entanto, não se identifica o lugar exato onde a cena descrita se terá desenrolado.

    Durante algum tempo, Jesus tinha anunciado o Reino de Deus pelas aldeias e vilas da Galileia. Essa etapa estava concluída. Para que o projeto de Deus se concretizasse, era preciso dar o passo seguinte. Ora, esse passo seria ir a Jerusalém, confrontar as autoridades religiosas judaicas e desafiá-las a acolher o Reino de Deus. De acordo com as tradições judaicas, era em Jerusalém que o Messias se iria manifestar a Israel e apresentar ao povo de Deus a sua proposta libertadora. Jerusalém era, portanto, o “lugar” onde a salvação de Deus iria irromper na história dos homens. Aliás, na segunda parte da sua obra (os “Atos dos Apóstolos”), Lucas irá contar como essa salvação, levada pelos discípulos, alcançará todas as nações e de todos os povos.

    Portanto Jesus, rodeado pelos discípulos, pôs-se a caminho de Jerusalém. O caminho para Jerusalém, tão importante no projeto teológico de Lucas (cf. Lc 9,51-19,28), mais do que um caminho geográfico, é um caminho espiritual e teológico. Ao longo desse caminho, Jesus vai confrontando os discípulos com a lógica do Reino de Deus e desafiando-os a aderir plenamente a esse projeto. À medida que caminham, os discípulos vão crescendo na fé e consolidando a sua adesão a Jesus. Aprendem a despir-se dos seus projetos pessoais e dos seus sonhos de grandeza humana, a fim de abraçar os valores do Reino. A caminhada para Jerusalém foi a “escola” que preparou os discípulos para serem, após a morte e ressurreição de Jesus, as testemunhas do Reino de Deus em toda a terra.

    A história do envio dos setenta e dois discípulos em missão, referida neste contexto da caminhada para Jerusalém, é uma tradição exclusiva de Lucas. Seria uma história estranha e inesperada, se a víssemos como um relato factual de acontecimentos: de onde vêm estes setenta e dois discípulos, que não são nomeados nem por Mateus nem por Marcos e que aqui aparecem de repente, surgidos do nada? O mais provável é que devamos entender este texto como uma catequese. Lucas teria representado, neste grupo, os discípulos de todas as épocas, que caminham com Jesus e que Jesus envia ao mundo a anunciar o Evangelho.

     

    MENSAGEM

    O texto tem duas partes. Na primeira (vers. 1-12), Lucas narra o envio dos setenta e dois discípulos; na segunda, Lucas descreve o regresso dos discípulos e as palavras com que Jesus comentou o trabalho missionário que eles tinham levado a cabo (vers. 17-20).

    A primeira indicação é sobre o número dos discípulos envolvidos na missão: são setenta e dois, escolhidos por Jesus (vers. 1a). Trata-se, evidentemente, de um número simbólico, que deve ser posto em relação com Gn 10 (na versão grega do Antigo Testamento), onde esse número se refere à totalidade das nações pagãs que habitam a terra. O número dos “enviados” sugere, portanto, que a proposta de Jesus é uma proposta universal, destinada a todos os povos da terra.

    Depois, Lucas refere que os discípulos foram enviados dois a dois (vers. 1b). Andar acompanhado era quase uma exigência para os viajantes antigos: permitia-lhes auxiliarem-se mutuamente no caminho e enfrentarem com alguma possibilidade de êxito os ataques dos malfeitores. Aqui, no entanto, pode referir-se à “validade” do testemunho que os enviados são chamados a dar: a lei judaica determinava que “um testemunho isolado não é suficiente; só com o depoimento de duas ou três testemunhas é que o caso será tomado em conta” (Dt 19,15). Também poderá sugerir, na catequese lucana, que o anúncio do Evangelho é uma tarefa comunitária, que não é feita por iniciativa pessoal e própria, mas em comunhão com os irmãos.

    Lucas indica, ainda, que os discípulos são enviados às aldeias e localidades onde Jesus “havia de ir” (vers. 1c). A intenção será, provavelmente, dizer que a missão dos discípulos é colaborar com Jesus e levar a Boa Nova de Jesus a todos os lugares onde a proposta de salvação de Deus deve chegar. Sugere-se, ao mesmo tempo, que a tarefa dos discípulos não é pregar a sua própria mensagem, mas preparar o caminho de Jesus e dar testemunho d’Ele.

    Antes de os setenta e dois discípulos se porem a caminho, Jesus dá-lhes uma série de indicações, recorrendo a imagens tiradas do mundo rural, sobre a forma como eles devem abordar e desempenhar a missão. Antes de mais, avisa-os da dificuldade da missão: os discípulos são enviados “como cordeiros para o meio de lobos” (vers. 3). Trata-se de uma imagem que, no Antigo Testamento, descreve a situação do justo, perdido no meio dos pagãos (cf. Ben Sira 13,17; nalgumas versões, esta imagem aparece em 13,21). Aqui, expressa a situação do discípulo fiel, que frequentemente tem de enfrentar a hostilidade e a perseguição por causa do testemunho que é chamado a dar. A missão dos discípulos é uma missão perigosa, que pode chegar à cruz.

    Depois, Jesus define pormenorizadamente a forma como os discípulos devem atuar, enquanto estão em missão: não devem levar consigo nem bolsa, nem alforge, nem sandálias; não devem deter-se a saudar ninguém pelo caminho (vers. 4); não devem saltar de casa em casa (vers. 7). As indicações de não levar nada para o caminho sugerem que a força do Evangelho não reside nos meios materiais, mas na força libertadora da Palavra; a indicação de não saudar ninguém pelo caminho indica a urgência da missão (que não permite deter-se nas intermináveis saudações típicas da cortesia oriental, sob pena de o essencial – o anúncio do Reino – ser continuamente adiado); a indicação de que não devem saltar de casa em casa sugere que a preocupação fundamental dos discípulos deve ser a dedicação total à missão e não o encontrar uma hospitalidade mais confortável. Despojados dos bens materiais, sem preocupações com o bem-estar ou com a própria segurança, libertos da ansiedade sobre a forma como vão ser acolhidos, os enviados de Jesus estão completamente disponíveis para servir o Reino de Deus. Essa será a preocupação suprema que os move.

    Qual deve ser o anúncio fundamental que os discípulos vão apresentar a todos aqueles com quem se cruzarem? Eles devem começar por anunciar “a paz” (vers 5-6). A indicação de Jesus não se refere certamente à saudação habitual com que os judeus se cumprimentavam (“shalom”); mas refere-se ao anúncio da paz messiânica, da paz que alcança o coração e a vida dos homens com a irrupção do Reino de Deus. É o anúncio do mundo novo de fraternidade, de harmonia com Deus e com os outros, de bem-estar, de felicidade (tudo aquilo que é sugerido pela palavra hebraica “shalom”) que, com Jesus, se vai concretizar. Esse anúncio deve, contudo, ser complementado por gestos concretos de libertação e de cura, que mostrem a presença libertadora do Reino no meio dos homens (vers. 9).

    As palavras de ameaça às cidades que se recusam a acolher a mensagem (vers. 10-11) não devem ser tomadas à letra: são uma forma bem oriental de sugerir que a rejeição do Reino trará consequências nefastas à vida daqueles que escolhem continuar a viver em caminhos de egoísmo, de orgulho e de autossuficiência.

    Nos vers. 17-20, Lucas refere o resultado da ação missionária dos discípulos. Diz-se, antes de mais, que eles “voltaram cheios de alegria” e comentando o triunfo do Reino de Deus sobre o mal (vers. 17). A alegria sentida pelos discípulos é a alegria de quem se sente colaborador de Deus na obra da salvação.

    As palavras com que Jesus acolhe os discípulos descrevem, figuradamente, a presença do Reino enquanto realidade libertadora (“Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago. Dei-vos o poder de pisar serpentes e escorpiões e dominar toda a força do inimigo; nada poderá causar-vos dano” – vers. 18-19): as serpentes e escorpiões são, frequentemente, símbolos das forças do mal que escravizam o homem; a “queda de Satanás” significa que o reino do mal começa a desfazer-se, em confronto com o Reino de Deus.

    Apesar do êxito da missão, Jesus põe os discípulos de sobreaviso para o orgulho pela obra feita: eles não devem ficar contentes pelo poder que lhes foi confiado, mas sim porque os seus nomes estão “inscritos no céu”. A imagem de um livro onde estão inscritos os nomes dos eleitos é frequente nesta época, particularmente nos apocalipses (cf. Dn 12,1; Ap 3,5; 13,8; 17,8; 20,12.15; 21,27). Aqueles cujos nomes constam desse “livro” estão destinados à vida eterna, à vida verdadeira.

    A Igreja nascida de Jesus e que caminha com Jesus é uma Igreja missionária. A sua missão é dar testemunho de Jesus em todos os lugares onde a Boa Nova da salvação deve chegar. Neste episódio do caminho para Jerusalém, temos um autêntico “manual de instruções” para os discípulos de todas as épocas, enviados ao mundo a anunciar a salvação de Deus.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Lucas procura dizer-nos, na “catequese” que nos deixa no Evangelho deste dia, que a Igreja nascida de Jesus é, na sua essência, uma Igreja missionária, uma Igreja “em saída”. Aqueles que caminham com Jesus são enviados “a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir”, para anunciar e propor a salvação de Deus. Se olharmos à nossa volta poderemos constatar como esse anúncio é necessário e urgente. Muitos dos homens e mulheres com quem nos cruzamos todos os dias sentem-se amarrados a vidas sem sentido e sem esperança; navegam à vista, sem conseguirem ver para além das banais preocupações do dia a dia; os valores sobre os quais constroem a sua existência são valores efémeros, que não conseguem saciar a fome de eternidade que existe no coração de cada pessoa. Necessitam de escutar a Boa Nova da salvação, de acolher no coração a paz de Deus, de serem curados dos ferimentos dolorosos que as injustiças, as maldades, as violências de todos os tipos lhes gravaram na alma. Estamos conscientes de que o nosso nome consta daquela lista de “setenta e dois discípulos” que Jesus envia “a todas as cidades e lugares” onde a Boa Notícia da salvação deve chegar? Inquieta-nos a escravidão em que tantos dos nossos irmãos vivem, ou limitamo-nos a seguir Jesus à distância, comodamente instalados numa prática religiosa ritualista, indolor e descomprometida?
    • Os enviados de Jesus não vão individualmente, cada um por si, mas vão dois a dois. O testemunho da Boa Nova da salvação tem uma dimensão comunitária. O enviado não parte por iniciativa pessoal, a fim de transmitir opiniões pessoais ou doutrinas próprias; não atua de acordo com as regras que ele próprio define, à revelia da comunidade ou contra a comunidade; ao dar testemunho, não dirige o foco para si próprio, nem se coloca sob as luzes da ribalta para que todos o vejam e admirem… O “missionário” de Jesus deve estar em comunhão com a Igreja, dar testemunho da fé da Igreja e fazer com que os destinatários do anúncio se liguem a Jesus através da Igreja. Como é o testemunho que damos? Anunciamos a fé que recebemos da comunidade e que vivemos em comunidade, ou impingimos aos outros as nossas teorias e visões pessoais? No centro do nosso testemunho está Jesus e o seu Evangelho, ou está a nossa pessoa?
    • Jesus pede aos seus enviados que, quando partem em missão, não levem “bolsa, nem alforge, nem sandálias”. Talvez o pedido de Jesus nos pareça excessivo; mas, por detrás deste excesso, está uma realidade incontornável: há coisas que arrastamos continuamente atrás de nós e que nos impedem de dar atenção ao essencial. Jesus quer ver os seus discípulos livres, sem “bagagem” que os distraia e atrase, apenas preocupados com o anúncio do Reino de Deus. Também quer que os seus discípulos não coloquem a sua esperança nas seguranças humanas, nas tecnologias de última geração, nas estratégias de marketing, na proteção dos poderosos, nos jogos de influência… Fundamentalmente, o discípulo de Jesus confia em Deus, na sua bondade, no seu amor de Pai; confia na força renovadora e transformadora do Evangelho, que é uma pequena semente lançada à terra mas que produz um fruto abundante. Como nos situamos face a isto? Chamados a dar testemunho da salvação de Deus diante dos nossos irmãos, em que realidades colocamos a nossa confiança e a nossa esperança?
    • “Eu vos envio como cordeiros para o meio de lobos” – diz Jesus aos seus enviados. Os discípulos, “armados” apenas com a força do Evangelho, terão frequentemente de enfrentar um mundo hostil, agressivo, que rejeitará a mensagem, que ridicularizará as propostas de que eles são arautos; e serão perseguidos, humilhados, maltratados, condenados pelas forças da injustiça, da maldade, da mentira, do pecado. Apesar disso, os discípulos de Jesus devem abordar o mundo com bondade, com mansidão, com paciência, com compreensão, com amor. A história já demonstrou muitas vezes que, sempre que os discípulos de Jesus utilizam os métodos dos “lobos” para lidar com o mundo, perdem toda a credibilidade e subvertem a lógica do Evangelho. Como é que nós, discípulos de Jesus, reagimos diante da incompreensão e da agressividade do mundo?
    • O anúncio do “Reino” não se esgota em palavras, mas deve ser acompanhado de gestos concretos. “Quando entrardes nalguma cidade, curai os doentes que nela houver” – pede Jesus aos discípulos. “Curar” é libertar os homens e mulheres que são prisioneiros da injustiça, da prepotência dos grandes, da exploração dos poderosos; “curar” é limpar, através do amor, as feridas que deixaram marcas no corpo e no espírito dos sofredores; “curar” é acolher aqueles que são desprezados, ignorados e abandonados pela sociedade e pelas igrejas; “curar” é tratar como irmãos os “diferentes”, os desadaptados, os que assumem atitudes ou comportamentos pouco ortodoxos; “curar” é cuidar de cada homem ou cada mulher que encontrarmos caído na berma da estrada da vida. Sentimo-nos enviados de Jesus a “curar” as feridas dos irmãos e das irmãs com quem nos cruzamos todos os dias?
    • Jesus garante aos seus enviados que o testemunho que eles vão dar terá resultados extraordinários: “Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago. Dei-vos o poder de pisar serpentes e escorpiões e dominar toda a força do inimigo; nada poderá causar-vos dano”. Talvez concluamos, a partir destas palavras, que o caminho que os discípulos são chamados a percorrer será fácil cómodo, indolor, sem crises nem obstáculos. Na realidade, será sempre um caminho difícil, duro, exigente, muitas vezes percorrido no meio de lágrimas, de incompreensões e de perseguições. As palavras de Jesus referem-se, sobretudo ao resultado final: apesar da presença do mal na história e na vida dos homens e do mundo, a vitória será de Deus e dos seus mensageiros. O mal irá “cair”, irá perder o seu poder. Do anúncio do Evangelho nascerá um mundo novo, um mundo desenhado de acordo como o projeto de Deus. Acreditamos nisso? Essa certeza alimenta a nossa vida e a nossa luta? Somos testemunhas desta esperança junto dos nossos irmãos desiludidos e desanimados?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 14.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (em parte adaptadas de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 14.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. ACOLHER OS FIÉIS DE PASSAGEM.

    Os textos de hoje convidam-nos à alegria, a ver longe… Neste domingo e ao longo dos meses de Julho e Agosto (tempo de férias, de passagens…), deveria haver uma atenção particular aos fiéis de passagem. Logo no início da celebração, poder-se-á fazer uma referência e, se possível, uma breve apresentação (sobretudo nas assembleias menos numerosas). Poderá haver mesmo uma saudação inicial aos fiéis de passagem que estão na assembleia. O celebrante pode ainda dirigir algumas palavras noutra língua, no caso de haver um bom grupo de estrangeiros. O importante é que eles se sintam acolhidos como irmãos em comunhão na Eucaristia.

    3. ECO AO EVANGELHO.

    A paz na construção do Reino de Deus… Seria bom “noticiar”, nos avisos finais, algumas ações concretas que acontecem no nosso mundo, no nosso país, no lugar onde estamos… a favor da paz e da construção do reino de Deus. Se possível, alguma ação onde os cristãos se possam envolver diretamente…

    4. ORAÇÃO NA LECTIO DIVINA.

    Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.

    No final da primeira leitura:
    “Deus fiel, que velas o teu Povo como uma mãe o seu filho, nós Te damos graças pelas consolações que Tu lhe anunciaste outrora, quando estava desanimado e desorientado.
    Confiamos-Te a nossa solidariedade para com os exilados e as vítimas das catástrofes, das guerras e das violências, para com todos aqueles que são expulsos das suas casas”.

    No final da segunda leitura:
    “Pai, nós Te damos graças pela cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Era um instrumento de morte, mas tornou-se para nós e para o mundo inteiro a origem de uma nova criação e de um novo Israel de Deus.
    Nós Te pedimos por todos os nossos irmãos que trazem no seu corpo a marca dos sofrimentos. Que a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo esteja sempre com o nosso espírito”.

    No final do Evangelho:
    “Mestre da seara, bendito sejas pelo teu Filho Jesus, pelos setenta e dois discípulos e todos os missionários que nos revelaram a presença do teu Reino. Nós Te bendizemos, porque os nossos nomes estão inscritos nos céus.
    Mestre da seara, nós Te pedimos: que o teu reino venha, haja paz nas nossas casas! Envia operários para a tua seara”.

    5. BILHETE DE EVANGELHO.

    Jesus envia os seus discípulos dois a dois, porque está consciente daquilo que lhes é confiado: uma mensagem difícil de proclamar, nem sempre bem recebida. Ele sugere-lhes para rezar para que sejam numerosos no campo da seara; se há trabalho, são precisos trabalhadores. Previne-os: a sua fragilidade encontrará forças hostis. Devem pregar o Reino de Deus, mas Satanás espera-os e procurará impedir o estabelecimento deste mundo melhor. Jesus pede-lhes para estarem completamente despojados de dinheiro, de saco, de sandálias, de congratulações, para estarem apenas preocupados com o crescimento do Reino que se reconhece no dom da Paz e com o levantar dos homens e mulheres que a doença impede de estar de pé. Os discípulos podem, então, pôr-se a caminho. Estão prevenidos, Jesus não os deixa na ilusão. É respeitando este contracto que encontrarão a felicidade, a alegria completa.

    6. À ESCUTA DA PALAVRA.

    «A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos. Pedi ao dono da seara que mande trabalhadores para a sua seara». É nesta palavra que se baseia a “oração pelas vocações”, em particular pelas vocações ao ministério presbiteral. Jesus dirige-se, primeiramente, a 72 discípulos que designou para além dos Doze Apóstolos. Os nomes têm muitas vezes um sentido simbólico. A tradução grega do Génesis (capítulo 10) dá uma lista de todas as nações que povoam a terra: 72! Podemos, assim, compreender que Jesus envia os discípulos a todas as nações. A missão de anunciar o Evangelho não está reservada apenas ao grupo dos Doze, é confiada, finalmente, a todos os discípulos, para irem até aos confins da terra. É toda a Igreja que é constituída missionária e missionada! Rezar pelas “vocações” é pedir a Deus para fazer de cada batizado um testemunho da Boa Nova da salvação dada em Jesus. E se os trabalhadores são poucos, é talvez porque os batizados não estão ainda suficientemente conscientes da sua missão. Em Igreja, normalmente não deveria haver cristãos que se contentam em ser “consumadores espirituais”. Todos são chamados a ser “pedras vivas”. Além disso, a seara não pertence aos ceifeiros. É a seara do mestre, que envia trabalhadores para a “sua seara”. Não se trata de um mero detalhe! É Deus que, em Jesus, semeou a boa semente. Este grão, de seguida, cresceu sozinho, até ao tempo da ceifa. Os trabalhadores vêm recolher o fruto de um trabalho que os precedeu. Os ceifeiros nunca devem esquecer que um Outro está em acção há muito tempo no coração dos homens para neles semear o grão do seu amor. Todo o ministério na Igreja está apenas ao serviço do Espírito Santo, já presente no segredo de cada ser humano. Então, compreendemos melhor o porquê de estes servos não deverem agir como se o êxito do seu ministério dependesse exclusivamente dos seus esforços!

    7. ORAÇÃO EUCARÍSTICA.

    Oração Eucarística I. É longa, mas é uma oportunidade para fazer memória dos santos que deram a sua vida pelo Reino. Depois dos nomes de Matias e Barnabé, pode-se acrescentar: “de todos os discípulos que o Senhor enviou a trabalhar na sua seara e de todos os santos…”

    8. PALAVRA PARA O CAMINHO…

    “Ide! Envio-vos!” Julho/agosto: multidões deslocam-se para lugares turísticos. Para uns, tempo de distância da prática religiosa. Para outros, ocasião para recuperar energias na fé. “A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos. Ide! Envio-vos!” Como os setenta e dois discípulos, eis-nos enviados àqueles que encontraremos neste verão. Com quem iremos “perder tempo” para falar desta espantosa notícia: “Está perto de vós o reino de Deus”? E porque não ocuparmos as férias (ou em parte delas) numa ação de voluntariado, no nosso país ou em país de missão?!

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

  • S. Bento, Abade, Padroeiro da Europa

    S. Bento, Abade, Padroeiro da Europa


    11 de Julho, 2025

    S. Bento, patriarca dos monges ocidentais, nasceu em Núrcia, no ano 480. Ainda muito jovem, seduzido e impelido pelo Espírito, abraçou um período de absoluta solidão numa gruta em Subiaco. A sua fama atraiu-lhe discípulos. Organizou para eles a vida cenobítica, inicialmente em doze pequenos mosteiros à volta de Subiaco e, depois, no célebre cenóbio de Monte Cassino. Escreveu uma Regra que resume sabiamente a tradição monástica oriental, adaptando-a ao mundo latino. Esta escola de "serviço ao Senhor" é construída à volta da Palavra de Deus (Lectio divina), da Liturgia de louvor realizada em coro, e do trabalho em ambiente de fraternidade, de humilde e obediente serviço. S. Bento faleceu com 67 anos de idade, em Monte Cassino, no ano 547.

    Lectio

    Primeira leitura: Provérbios 2, 1-9

    Meu filho, se receberes as minhas palavrase guardares cuidadosamente os meus mandamentos,2prestando o teu ouvido à sabedoria, e inclinando o teu coração ao entendimento; 3se invocares a inteligência e fizeres apelo ao entendimento, 4se a buscares como se procura a prata e a pesquisares como um tesouro escondido,5então, compreenderás o temor do Senhor e chegarás ao conhecimento de Deus. 6Porque o Senhor é quem dá a sabedoria e da sua boca procedem o saber e o entendimento. 7Ele reserva a salvação para os rectos e é um escudo para os que procedem honestamente. 8Protege os caminhos dos justos e dirige os passos dos seus fiéis. 9Então, compreenderás a justiça e a equidade, a rectidão e todos os caminhos que conduzem ao bem.

    Só a busca interessada da verdade permite estabelecer uma relação correta com Javé, que dá a sabedoria e protege o sábio. É o ensinamento preciso que um pai dá ao seu filho, segundo esta página do livro dos Provérbios.
    S. Bento utiliza o mesmo estilo literário ao introduzir a Regra que escreve para os seus monges: "Escuta, filho, os preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração; recebe de boa vontade e executa eficazmente o conselho de um bom pai,..." Acolher a Palavra de Deus é o caminho seguro para nos conformarmos a Cristo, Sabedoria do Pai.

    Evangelho: Mateus 19, 27-29

    Naquele tempo, disse Pedro a Jesus: «Nós deixámos tudo e seguimos-te. Qual será a nossa recompensa?»28Jesus respondeu-lhes: «Em verdade vos digo: No dia da regeneração de todas as coisas, quando o Filho do Homem se sentar no seu trono de glória, vós, que me seguistes, haveis de sentar-vos em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel. 29E todo aquele que tiver deixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos ou campos por causa do meu nome, receberá cem vezes mais e terá por herança a vida eterna

    Jesus responde a Pedro com a linguagem figurada do profeta Daniel (cf. Dn 7, 9-14), onde se fala de tronos e do Filho do homem. Jesus realça o aspeto judicial desta figura misteriosa. Os discípulos, a quem foi dado conhecer o mistério do Reino (13, 11), estão intimamente associados a Jesus. O prémio prometido por Jesus parece que terá lugar "no dia da regeneração de todas as coisas" (v. 28), isto é, no mundo renovado, que resultou da última intervenção de Deus na história, que já teve lugar, quando enviou o seu Filho. A "regeneração" é a nova vida do homem novo concedida pela ação de Deus. Indica, pois o tempo da Igreja e refere-se a todos os crentes, àqueles que se submetem à senhoria de Deus e participam dela. Os discípulos são "juízes", isto é, "dirigentes" do povo de Deus, que devem administrar e defender esse povo.

    Meditatio

    S. Bento, depois de longo tempo na presença de Deus, a escutar a sua Palavra, vivendo em total desapego do mundo, em completo silêncio e em austera solidão, tornou-se um homem, capaz de orientar outros, que buscavam a Deus. Só dá fruto quem acolhe no coração e medita a Palavra de Deus, quem se deixa transformar por ela. As comunidades criadas por S. Bento caraterizam-se pela busca apaixonada de Deus, pela escuta atenta da Palavra, meditada e guardada no coração. Assim descobrem Jesus Cristo como sabedoria do Pai, como o verdadeiro tesouro, ao qual nada se deve antepor. Permanecendo estavelmente unidos a Ele, os discípulos permitem ao Espírito produzir neles os seus frutos. Esses frutos são o melhor prémio para quem deixa tudo para estar com o Senhor e "permanecer" n´Ele.
    A união de S. Bento com Deus explica a sublimidade da sua Regra, exigente e equilibrada, e a sua influência perene na vida de perfeição da Igreja. Bossuet falou assim da Regra de S. Bento: "Suma do cristianismo, resumo douto e misterioso do Evangelho, das instituições dos Santos Padres, de todos os conselhos de perfeição, na qual atingem o seu mais alto apogeu a prudência e a simplicidade, a humildade e o valor, a severidade e a doçura, a liberdade e a dependência, na qual a correção encontra toda a firmeza, a condescendência todo o encanto, a voz de comando todo o vigor, a sujeição todo o repoiso, o silêncio a sua gravidade, a palavra a sua graça, a força o seu exercício e a debilidade o seu apoio".
    Chamado por Pio XII "Pai da Europa", S. Bento foi proclamado por Paulo VI patrono do mesmo continente, em 1964.

    Oratio

    Senhor, nosso Deus e nosso Pai, eis-nos aqui, como filhos que se sentem amados por ti. Os nossos ouvidos estão atentos à tua palavra. Queremos corresponder ao teu amor. Sabes como ainda somos instáveis na fé e frágeis na caridade. Faz-nos, uns para os outros, sinais e sacramentos da tua mansidão e da tua bondade. Que todos possam verificar como é bom amar-nos como filhos do mesmo Pai, que és Tu, e servir-nos e honrar-nos uns aos outros em teu santo Nome. Ámen.

    Contemplatio

    S. Bento teve também a graça de trabalhar pelas almas. Na sua solidão, catequizava os pastores da montanha. Mais tarde, aceitou fazer a educação de alguns jovens piedosos de Roma, que as suas famílias lhe confiavam em Subiaco. Foi entre eles que recrutou S. Mauro e S. Plácido, seus amáveis discípulos. Sabia falar corajosamente aos grandes e recordar-lhes os seus deveres. Repreendeu ao bárbaro Tótila as suas depredações e as suas crueldades. Ordenou-lhe que não abusasse das suas vitórias, especialmente na ocupação da cidade de Roma. Que variedade nas suas obras e na sua ação social! Os seus discípulos, ao longo dos séculos, dedicar-se-ão também ao apostolado em todas as suas formas, segundo os tempos e as necessidades da Igreja. É preciso tomar forças no recolhimento, especialmente em cada manhã, e dedicar-se depois às obras, segundo a nossa vocação, segundo a vontade de Deus que nos é conhecida. É um dever para nós hoje rezar pela conservação da vida regular e monástica através das dificuldades que o demónio lhe suscita. Senhor, não priveis a vossa Igreja dos asilos que lhe destes para pôr os seus filhos ao abrigo das tempestades do século; mas fazei que, ao renunciarem ao mundo, se entreguem verdadeiramente à perfeição no claustro. (Leão Dehon, OSP 3, p. 314s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "O Senhor é quem dá a sabedoria" (Prov 2, 6).

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    S. Bento, Abade, Padroeiro da Europa (11 Julho)

  • 15º Domingo do Tempo Comum – Ano C [atualizado]

    15º Domingo do Tempo Comum – Ano C [atualizado]

    13 de Julho, 2025

    ANO C

    15.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 15.º Domingo do Tempo Comum

    Na palavra de Deus que nos é proposta neste décimo quinto domingo do tempo comum, ecoa uma questão fundamental para todos os homens e mulheres que se preocupam com o sentido da existência: o que devemos fazer para encontrar a vida eterna? As respostas que nos são oferecidas ajudam-nos a definir os caminhos que devemos percorrer ao longo da nossa peregrinação pela terra.

    No Evangelho, Jesus ajuda um “mestre da Lei” a perceber que a vida deve ser construída à volta de dois eixos fundamentais: o amor a Deus e a compaixão pelo “próximo”. Para que as coisas fiquem perfeitamente claras, Jesus conta uma parábola que define claramente quem é esse “próximo”: é qualquer pessoa com quem nos cruzamos e que necessita do nosso cuidado, da nossa solicitude, do nosso amor. Quem vive guiado pelo amor caminha em direção à vida eterna.

    Na primeira leitura, Moisés lembra aos hebreus prestes a entrar na Terra Prometida que devem, em cada passo da sua vida e da sua história, escutar a voz de Deus, cumprir os preceitos e mandamentos que Deus lhes propôs, converterem-se a Deus com todo o coração e com toda a alma. Se o povo perseverar nesse caminho, encontrará vida e felicidade.

    Na segunda leitura, Paulo apresenta-nos um hino que celebra a grandeza universal de Cristo, aquele que tem soberania sobre toda a criação e que é a cabeça da Igreja. O hino exorta os crentes a fazerem de Cristo a sua referência e a viverem em comunhão com Ele. Por Cristo passa, indubitavelmente, o caminho que conduz à vida eterna.

     

    LEITURA I – Deuteronómio 30,10-14

    Moisés falou ao povo, dizendo:
    «Escutarás a voz do Senhor teu Deus,
    cumprindo os seus preceitos e mandamentos
    que estão escritos no Livro da Lei,
    e converter-te-ás ao Senhor teu Deus
    com todo o teu coração e com toda a tua alma.
    Este mandamento que hoje te imponho
    não está acima das tuas forças nem fora do teu alcance.
    Não está no céu, para que precises de dizer:
    ‘Quem irá por nós subir ao céu,
    para no-lo buscar e fazer ouvir,
    a fim de o pormos em prática?’.
    Não está para além dos mares,
    para que precises de dizer:
    ‘Quem irá por nós transpor os mares,
    para no-lo buscar e fazer ouvir,
    a fim de o pormos em prática?’.
    Esta palavra está perto de ti,
    está na tua boca e no teu coração,
    para que a possas pôr em prática».

     

    CONTEXTO

    O berço do livro do Deuteronómio costuma ser colocado no Reino do Norte (Israel), alguns anos antes da conquista da Samaria por Sargão II (721 a.C.). Descontentes com a divisão do Povo de Deus (consumada após a morte de Salomão, em 732 a.C.) e com a política religiosa dos reis do Norte, alguns teólogos elaboraram um documento que recordava aos israelitas a Aliança e os compromissos assumidos pelo povo em relação a Deus. Pretendiam, com esse documento, reconduzir o povo à fidelidade ao Deus com o qual Israel se tinha comprometido no Sinai. As linhas fundamentais da teologia deuteronomista, apresentadas nesse escrito, são claras: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com ele uma Aliança eterna; e o Povo de Deus deve ser um povo único, uma família unida que tem Deus como a sua grande referência.

    Pouco antes da queda da Samaria nas mãos de Sargão II, alguns teólogos deuteronomistas abandonaram Israel e procuraram refúgio a sul, no reino de Judá. Trouxeram consigo o livro que tinham elaborado e que resumia a sua visão teológica da Aliança. Em Jerusalém, as propostas religiosas desses teólogos do norte tiveram um êxito fulgurante; mas, durante os reinados dos ímpios Manassés (687-642 a.C.) e Amon (642-640 a.C.), a teologia deuteronomista tornou-se incómoda e teve de conservar-se escondida.

    Foi por volta de 622 a.C., que o livro do Deuteronómio (designado como “livro da Lei, ou “livro da Aliança”) foi descoberto no Templo de Jerusalém (cf. 2 Re 22,3-13). Serviu de motor à grande reforma religiosa promovida por Josias (640-609 a.C.), o rei de Judá que se empenhou em purificar a fé do Povo de Deus.

    Literariamente, o livro do Deuteronómio apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab, pouco antes de o Povo libertado do Egito atravessar o Jordão para tomar posse da Terra Prometida (cf. Dt 1,6-4,43; 4,44-28,68; 28,69-30,20). Pressentindo a proximidade da morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua Aliança com Javé.

    O texto que a liturgia do décimo quinto domingo do tempo comum nos propõe como primeira leitura faz parte do terceiro discurso de Moisés. Os biblistas pensam que esse discurso é, na realidade, uma homilia redigida na fase final do exílio da Babilónia, alertando a comunidade do Povo de Deus para as consequências da fidelidade ou da infidelidade face aos compromissos assumidos para com Deus.

     

    MENSAGEM

    O “pregador” desta homilia sobre a Aliança (os teólogos deuteronomistas identificam-no com Moisés) convida veementemente os israelitas a repensarem as suas opções e a recolocarem Deus no centro das suas vidas. Sim, Israel precisa de “converter-se” (vers. 10). O verbo hebraico “shub” (“voltar”), utilizado neste contexto, exprime bastante bem o que é necessário fazer: os israelitas que têm andado longe de Deus, devem “voltar para trás”, aproximando-se outra vez d’Ele; encontrando-O, devem escutar novamente a sua voz e dispor-se a seguir as indicações que Ele lhes dá (vers. 10). Só assim encontrarão vida em abundância e felicidade sem fim.

    No entanto, como será possível ao homem frágil e limitado aproximar-se desse Deus transcendente, misterioso, inacessível e inalcançável, a fim de escutar as suas indicações? Como pode um ser humano frágil e limitado escutar a voz de Deus e compreender os projetos de Deus?

    O teólogo deuteronomista responde: o homem pode conhecer perfeitamente os mandamentos e as prescrições de Deus através da Lei. A Lei mostra o caminho a seguir. Ora, a Lei não é inacessível ao homem; não está no céu (vers. 12), não está no mar (vers. 13), não está em qualquer lugar “impossível”. A Lei que Deus deu ao seu Povo pode ser escutada, proclamada, memorizada e guardada no coração do homem (vers. 14a). Se o homem a acolher no coração, terá sempre acesso a ela; e, através dela, terá acesso às indicações de Deus. A Lei, por sua vez, operando no interior do homem, transformá-lo-á. Levá-lo-á a um compromisso verdadeiro com Deus e ao cumprimento integral da vontade de Deus. Iluminado pela Lei, o coração do homem produzirá gestos bons, os frutos que Deus espera dos membros do Povo da Aliança (vers. 14b).

    Neste texto começa a desabrochar um conceito teológico que irá fazer história: o conceito de uma Aliança nova, inscrita nos corações dos membros do Povo de Deus. Os profetas Jeremias e Ezequiel vão retomá-lo, amadurecê-la e aprofundá-lo (cf. Jr 31,31-34; 32,37-40; Ez 18,31; 36,26). Anunciarão que Deus, além de oferecer ao Povo a sua Lei, vai imprimi-la no coração de cada pessoa, transformando os corações de pedra (duros e insensíveis) em corações de carne (sensíveis e bons), capazes de aderir a Deus, de escutar as indicações de Deus e de viver de acordo com os mandamentos de Deus.

     

    INTERPELAÇÕES

    • A reflexão que o teólogo deuteronomista nos apresenta neste texto tem por detrás uma das convicções mais firmes do credo israelita: Deus está, desde sempre e para sempre, empenhado em mostrar ao seu povo os caminhos que o levam em direção à vida em abundância; e, nesse sentido, propõe-lhe uma Lei, um conjunto de indicações que devem balizar o caminho que os crentes vão percorrendo todos os dias. A “Lei” de Deus não é um empecilho, uma maneira de limitar a liberdade ou a autonomia do ser humano; mas é a indicação “interessada” de um Pai cheio de amor, cuja preocupação essencial é ver os seus filhos caminhar rumo a uma felicidade completa. É frequente, nos nossos dias, olharmos para os mandamentos de Deus como expressões de uma moral ultrapassada ou de valores obsoletos, que não correspondem à realidade do nosso tempo, da nossa cultura, da nossa visão do mundo e da vida. Será assim? O caminho que os mandamentos de Deus apontam já não fará sentido? Vemos os mandamentos de Deus como uma forma de Deus nos “controlar” e prender, ou como sinais válidos que indicam como podemos contruir uma vida com sentido?
    • A nossa vida de todos os dias decorre no meio de muito ruído, de muita confusão, de uma infinidade de “vozes” divergentes que nos apontam caminhos contraditórios. Por vezes temos dificuldade em distinguir a voz de Deus de outras “vozes” que procuram captar a nossa atenção e tomar conta da nossa vida. Convém estarmos atentos: nem todas as “vozes” que soam à nossa volta, às vezes numa gritaria estridente e manipuladora, estão interessadas em apontar-nos caminhos com sentido; nem todas as indicações que nos são dadas têm como objetivo a nossa plena realização. Quais são as “vozes” que escutamos e que seguimos? Em que medida elas contribuem para definir o sentido essencial da nossa existência?
    • O teólogo deuteronomista, pedindo emprestada a voz de Moisés, convida o povo a “converter-se” ao Senhor “com todo o coração e com toda a alma”. “Converter-se” é regressar ao encontro de Deus, dispor-se a escutar novamente as indicações de Deus, refazer a própria existência de forma a que Deus volte a ocupar o primeiro lugar nas prioridades e interesses do homem. É fácil, no meio de tantas preocupações e de tantas solicitações, perdermos o rumo e começarmos a caminhar por caminhos que não nos levam a lado nenhum. De vez em quando precisamos de parar e de repensar o sentido da nossa existência. “Converter-se” é ter a possibilidade de refazer a vida, de a encarreirar na direção certa, de lhe dar um sentido pleno. Estamos disponíveis para essa “conversão”, mesmo que ela implique abandonarmos a nossa acomodação, a nossa segurança, as nossas velhas apostas já consolidadas?
    • Quando o crente escuta e acolhe as indicações de Deus, a Lei de Deus passa a residir no seu coração. Os pensamentos e as ações do homem passam a ser orientados pela Lei de Deus. O teólogo deuteronomista está plenamente convencido disso. Sendo assim, aquele que procura sinceramente o caminho que conduz à verdade e à vida plena, deve interrogar o seu coração. É lá que Deus lhe fala e lhe indica as opções corretas, os valores verdadeiros, as atitudes que fazem sentido. Quando nos confrontamos com aquilo que está no mais íntimo de nós mesmos, caem as nossas pequenas e grandes mentiras, as nossas inverdades, os nossos preconceitos, os nossos egoísmos, os nossos interesses rasteiros; ficamos apenas diante da verdade que Deus inscreveu na nossa consciência e na nossa alma. Procuramos escutar essa verdade, mesmo quando ela se apresenta como incómoda para os nossos interesses e projetos pessoais? Estamos decididos, para nos tornarmos melhores pessoas, a escutar o que Deus nos diz no coração?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 68 (69)

    Refrão: Procurai, pobres, o Senhor e encontrareis a vida.

    A Vós, Senhor, elevo a minha súplica,
    pela vossa imensa bondade respondei-me.
    Ouvi-me, Senhor, pela bondade da vossa graça,
    voltai-Vos para mim pela vossa grande misericórdia.

    Eu sou pobre e miserável:
    defendei-me com a vossa proteção.
    Louvarei com cânticos o nome de Deus
    e em ação de graças O glorificarei.

    Vós, humildes, olhai e alegrai-vos,
    buscai o Senhor e o vosso coração se reanimará.
    O Senhor ouve os pobres
    e não despreza os cativos.

    Deus protegerá Sião,
    reconstruirá as cidades de Judá.
    Os seus servos a receberão em herança
    e nela hão de morar os que amam o seu nome.

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 18B,8-11
    (em alternativa ao anterior)

    Refrão: Os preceitos do Senhor alegram o coração.

    A lei do Senhor é perfeita,
    ela reconforta a alma.
    As ordens do Senhor são firmes
    e dão sabedoria aos simples.

    Os preceitos do Senhor são retos
    e alegram o coração.
    Os mandamentos do Senhor são claros
    e iluminam os olhos.

    O temor do Senhor é puro
    e permanece eternamente.
    Os juízos do Senhor são verdadeiros,
    todos eles são retos.

    São mais preciosos que o ouro,
    o ouro mais fino;
    são mais doces que o mel,
    o puro mel dos favos.

     

    LEITURA II – Colossenses 1,15-20

    Cristo Jesus é a imagem de Deus invisível,

    o Primogénito de toda a criatura;
    porque n’Ele foram criadas todas as coisas
    no céu e na terra, visíveis e invisíveis,
    Tronos e Dominações, Principados e Potestades:
    por Ele e para Ele tudo foi criado.
    Ele é anterior a todas as coisas
    e n’Ele tudo subsiste.
    Ele é a cabeça da Igreja, que é o seu corpo.
    Ele é o Princípio, o Primogénito de entre os mortos;
    em tudo Ele tem o primeiro lugar.
    Aprouve a Deus que n’Ele residisse toda a plenitude
    e por Ele fossem reconciliadas consigo todas as coisas,
    estabelecendo a paz, pelo sangue da sua cruz,
    com todas as criaturas na terra e nos céus.

     

    CONTEXTO

    Colossos era uma cidade da Frígia (Ásia Menor), situada a cerca de 180 quilómetros a Este de Éfeso, no vale do rio Lico. Tinha sido, em tempos mais recuados, uma cidade rica e populosa; mas, no tempo de Paulo, tinha perdido a sua antiga importância e estava reduzida a uma pequena povoação.

    A comunidade cristã dessa cidade não foi fundada por Paulo mas por Epafras, discípulo de Paulo e colossense de origem (cf. Cl 4,12). A maior parte dos membros da comunidade eram de origem pagã; mas havia também alguns de origem judaica.

    A carta aos Colossenses terá sido escrita numa altura em que Paulo estava na prisão (provavelmente em Roma). Estaríamos entre os anos 61 e 63. Epafras visitou Paulo e levou-lhe notícias pouco satisfatórias sobre a comunidade cristã de Colossos. Alguns “doutores” locais (talvez membros de um movimento de índole sincretista, que misturava cristianismo com elementos de religiões mistéricas em voga no mundo helenista) propunham aos Colossenses um sistema religioso que incluía, além do Evangelho de Jesus, práticas ascéticas rigorosas, prescrições sobre os alimentos (cf. Cl 2,16.21), doutrinas especulativas sobre os anjos (cf. Cl 2,18), celebrações que não faziam parte do universo cristão (cf. Cl 2,16). Na opinião desses “doutores”, tudo isto devia comunicar aos crentes um conhecimento superior dos mistérios e uma maior perfeição. Paulo desmonta toda esta confusão doutrinal e afirma que nenhum destes elementos tem qualquer importância para a salvação: Cristo basta.

    O texto que hoje nos é proposto é um hino de duas estrofes, que provavelmente Paulo tomou da liturgia cristã primitiva, mas que está perfeitamente integrado no conteúdo geral da carta. Este hino cristão de inspiração sapiencial celebra a grandeza universal de Cristo.

     

    MENSAGEM

    A primeira estrofe deste hino (vers. 15-17), refere a soberania de Cristo sobre toda a criação. Começa por afirmar que Cristo é, para todos os homens e mulheres, a “imagem de Deus invisível”. Dizer que Cristo é “imagem de Deus” significa aqui que Ele é em tudo igual ao Pai, no ser e no agir, e que n’Ele reside a plenitude da divindade. Significa também que Deus, espiritual e transcendente, Se revela aos homens e Se faz visível através da humanidade de Cristo. Quem encontra Cristo, encontra Deus; quem escuta Cristo, escuta Deus; quem experimenta o amor de Cristo, experimenta o amor de Deus; quem está em comunhão com Cristo, está em comunhão com Deus. Cristo, feito homem, torna-se para os homens uma manifestação de Deus.

    Depois, o hino afirma que Cristo é o “primogénito de toda a criatura”. No contexto familiar judaico, o “primogénito” era o herdeiro principal, que tinha a primazia em dignidade e em autoridade sobre os seus irmãos. Aplicado a Cristo, significa a supremacia e a autoridade de Cristo sobre toda a criação. Dizer que Cristo é o “primogénito de toda a criatura” significa incluí-lo na classe das criaturas (apesar da sua primazia em dignidade sobre as outras criaturas)? Não. Para deixar as coisas claras, o hino afirma que “n’Ele foram criadas todas as coisas” e que “por Ele e para Ele tudo foi criado” (vers. 16). Ele colaborou com Deus na obra da criação.

    Dizer que “n’Ele, por Ele e para Ele foram criadas todas as coisas”, significa que todas as coisas têm em Cristo o seu centro supremo de unidade, de coesão, de harmonia (“n’Ele”); que é Ele que comunica a vida do Pai (“por Ele”); e que Cristo é o termo e a finalidade de toda a criação (“para Ele”). Ao mencionar expressamente que os “tronos, dominações, principados e potestades” estão incluídos na soberania de Cristo, Paulo desmonta as especulações dos “doutores” Colossenses acerca dos poderes angélicos, considerados em paralelo com o poder de Cristo. Cristo é único; Ele tem verdadeiramente a primazia sobre toda a criação.

    A segunda estrofe do hino (vers. 18-20) celebra a soberania e o poder de Cristo na redenção. Apresenta Cristo, antes de mais, como a “cabeça do corpo” que é a Igreja. A expressão, tipicamente paulina (cf. Ef 4,15-16; 5,23), significa, em primeiro lugar, que Cristo tem a primazia e a soberania sobre a comunidade cristã; mas significa, também, que é Ele quem comunica a vida aos membros desse “corpo” e que os une num conjunto vital e harmónico. Cristo é, portanto, a referência absoluta para todos aqueles que fazem parte da comunidade cristã. Não há outra referência.

    Depois, afirma-se que Cristo é o “princípio, o primogénito de entre os mortos”. Significa que Ele, não só foi o primeiro que ressuscitou, mas também que Ele é a fonte de graça e de glória para aqueles que vivem em comunhão com Ele e que fazem parte do “corpo” do qual Ele é a cabeça. Na sua ressurreição, está incluída a nossa ressurreição; a sua vitória sobre a morte tornou-se para nós fonte perene de vida.

    Finalmente, o hino afirma que em Cristo reside “toda a plenitude”. O termo grego “pleroma”, aqui utilizado, refere-se à totalidade de Deus. Significa que em Cristo e só n’Ele habita, efetiva e essencialmente, a divindade: tudo o que Deus nos quer comunicar, a fim de nos inserir na sua família, está em Cristo. Por isso, o autor deste hino pode dizer que por Cristo foram reconciliadas com Deus todas as criaturas na terra e nos céus: por Cristo a criação inteira, marcada pelo pecado, recebeu a oferta da salvação e pôde voltar a inserir-se na família de Deus.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Existem questões decisivas que, mais tarde ou mais cedo, se nos colocam: como dar significado pleno à nossa existência? Como construir uma vida que valha a pena? Por que caminhos devemos andar, na viagem da vida, para não ficarmos atolados em becos sem saída? O que é que é essencial e o que é que é secundário, quando se trata de definir o eixo fundamental da nossa existência? Os cristãos de Colossos também se debatiam com estas questões; e, na sua ânsia de encontrar respostas, abriam portas a doutrinas estranhas e a propostas incompatíveis com o Evangelho de Jesus. Hoje, em pleno séc. XXI, numa altura em que vivemos “em rede” e somos confrontados a cada instante com mil e uma propostas e sugestões, esta questão adquire uma particular relevância. Confundidos e baralhados por tanta informação, tornamo-nos permeáveis a propostas mais ou menos excêntricas, mais ou menos esotéricas, mais ou menos ecléticas, por vezes pouco condizentes com a pureza e a autenticidade da proposta cristã. Por outro lado, muitos cristãos continuam a colocar a sua esperança de realização em “poderes”, em figuras, em superstições, em instituições, em rituais “mágicos”, que não libertam e que não ajudam a encontrar caminhos de plena realização. Como nos situamos face a isto? Procuramos definir claramente, em coerência com a nossa fé, o caminho que devemos seguir?
    • Paulo lembra aos cristãos de Colossos (e aos cristãos de todos os tempos e lugares) que só Cristo é capaz de lhes fornecer as pistas certas para que possam construir vidas repletas de sentido. Rosto visível de Deus no mundo, Palavra eterna do Pai, “primogénito” de todos os homens, “cabeça” da Igreja, “Caminho, Verdade e Vida”, Cristo é o eixo à volta do qual podemos construir e articular toda a nossa existência. Cristo está bem vivo nas nossas comunidades cristãs? Ele é o centro à volta do qual se organiza e estrutura toda a vida da Igreja? Cristo é a referência fundamental à volta da qual construímos as nossas vidas? As palavras e os gestos de Jesus são “verdades” que dão forma às nossas opções e que procuramos concretizar no nosso dia a dia?

     

    ALELUIA – cf. João 6,63c.68c

    Aleluia. Aleluia.

    As vossas palavras, Senhor, são espírito e vida:
    Vós tendes palavras de vida eterna.

     

    EVANGELHO – Lucas 10,25-37

    Naquele tempo,
    levantou-se um doutor da lei
    e perguntou a Jesus para O experimentar:
    «Mestre,
    que hei de fazer para receber como herança a vida eterna?»
    Jesus disse-lhe:
    «Que está escrito na lei? Como lês tu?»
    Ele respondeu:
    «Amarás o Senhor teu Deus
    com todo o teu coração e com toda a tua alma,
    com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento;
    e ao próximo como a ti mesmo».
    Disse-lhe Jesus:
    «Respondeste bem. Faz isso e viverás».
    Mas ele, querendo justificar-se, perguntou a Jesus:
    «E quem é o meu próximo?»
    Jesus, tomando a palavra, disse:
    «Um homem descia de Jerusalém para Jericó
    e caiu nas mãos dos salteadores.
    Roubaram-lhe tudo o que levava, espancaram-no
    e foram-se embora, deixando-o meio morto.
    Por coincidência, descia pelo mesmo caminho um sacerdote;
    viu-o e passou adiante.
    Do mesmo modo, um levita que vinha por aquele lugar,
    viu-o e passou adiante.
    Mas um samaritano, que ia de viagem,
    passou junto dele e, ao vê-lo, encheu-se de compaixão.
    Aproximou-se, ligou-lhe as feridas deitando azeite e vinho,
    colocou-o sobre a sua própria montada,
    levou-o para uma estalagem e cuidou dele.
    No dia seguinte, tirou duas moedas,
    deu-as ao estalajadeiro e disse:
    ‘Trata bem dele; e o que gastares a mais
    eu to pagarei quando voltar’.
    Qual destes três te parece ter sido o próximo
    daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?»
    O doutor da lei respondeu:
    «O que teve compaixão dele».
    Disse-lhe Jesus:
    «Então vai e faz o mesmo».

     

    CONTEXTO

    Jesus e os discípulos caminham para Jerusalém. Ao longo desse percurso, mais espiritual do que geográfico, Jesus prepara os discípulos para serem, pelos tempos fora, testemunhas e arautos do Reino de Deus. A “parábola do bom samaritano” deve ser enquadrada neste contexto “pedagógico”.

    O interlocutor de Jesus, nesta cena, é um “doutor da Lei”. Lucas sugere que, ao interrogar Jesus, esse “doutor da Lei” não é movido por boas intenções: pretendia experimentá-lo, talvez arrancar-lhe alguma afirmação polémica, ou apanhá-lo nalguma contradição.

    A figura central da parábola que Jesus vai contar é um samaritano. Para percebermos o alcance real da parábola, convém também ter presente o quadro da relação entre judeus e samaritanos. Trata-se de dois grupos que as vicissitudes históricas tinham separado e cujas relações eram, no tempo de Jesus, bastante conflituosas.

    Em 932 a.C., as tribos do povo de Deus instaladas no norte e centro da Palestina recusaram-se a aceitar como rei Roboão, filho de Salomão, e separaram-se da dinastia davídica. Constituíram um reino (Israel) que, durante algum tempo viveu em conflito com as tribos do sul (Judá). Mais tarde, após um longo período de instabilidade política, o reino de Israel foi derrotado pelos assírios: em 721 a.C., a Samaria caiu nas mãos dos invasores e uma parte da sua população foi deportada para a Assíria. O reino de Israel, enquanto entidade política, deixou de existir.

    Na Samaria instalaram-se, então, colonos assírios que se misturaram com a população local. Para os judeus, os habitantes da Samaria começaram, então, a paganizar-se (cf. 2 Re 17,29-41): viam-nos como gente contaminada com sangue estrangeiro, que vivia completamente à margem da fé javista. A relação entre as duas comunidades deteriorou-se ainda mais quando, após o regresso do exílio, os judeus recusaram a ajuda dos samaritanos (cf. Esd 4,1-5) para a reconstrução do templo de Jerusalém (ano 437) e denunciaram os casamentos mistos. Os samaritanos, em resposta, procuraram por todos os meios dificultar a reconstrução da cidade de Jerusalém pelos judeus retornados da Babilónia (cf. Ne 3,33-4,17). Por volta de 333 a.C., os samaritanos construíram um templo no monte Garizim. Os judeus consideraram essa construção um desvio intolerável da fé javista. Mais tarde, no ano 128 a.C., as tropas de João Hircano destruíram o templo do Monte Garizim; no entanto, o lugar continuou a ser um local de culto para os samaritanos. As picardias entre os dois grupos continuaram: a mais famosa aconteceu no ano 19 d.C., quando os samaritanos profanaram o templo de Jerusalém espalhando ossos humanos sobre o altar. Este ato causou revolta e uma profunda indignação entre os judeus. Na época de Jesus, as orações na sinagoga incluíam quase sempre uma maldição contra os samaritanos.

     

    MENSAGEM

    Um mestre da Lei lança a Jesus uma questão: “que hei de fazer para receber como herança a vida eterna?” (vers. 25). Alguns grupos judaicos contemporâneos de Jesus não acreditavam que existisse um “mundo futuro”, para além do “mundo dos mortos” (o “sheol”) de que falava a catequese tradicional de Israel; mas outros grupos, como era o caso dos fariseus, acreditavam numa vida para além da morte, inspirados por textos como o de Dn 12,2: “Muitos dos que dormem no pó da terra acordarão, uns para a vida eterna, outros para a ignomínia, a reprovação eterna”. A pergunta do mestre da Lei que se aproximou de Jesus ia no sentido de perceber como devia viver para, no mundo futuro, ter garantida a vida eterna? É provável.

    Jesus não lhe responde diretamente. Com um toque de fina ironia, convida o homem a responder ele próprio à questão, uma vez que é “mestre da Lei”: “Que está escrito na lei? Como lês tu?” (vers. 26). Se o mestre da Lei procurava apanhar Jesus em falso, equivocou-se; Jesus mostra-lhe que não está contra a Lei e que todas as suas propostas estão em consonância com a Lei.

    Seja como for, o homem que veio interpelar Jesus mostra que, efetivamente, conhece a Lei. A sua resposta combina habilmente dois textos do Antigo Testamento: Dt 6,5 (“amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças”) e Lv 19,18b (“amarás o teu próximo como a ti mesmo”). Abrange as duas grandes dimensões da vida do homem: a dimensão vertical (a relação com Deus) e a dimensão horizontal (a preocupação com os irmãos). Jesus parece plenamente de acordo com o homem. Convida-o, simplesmente, a pôr em prática os princípios que acabou de formular. Diz-lhe que, vivendo assim, terá acesso à vida eterna (“respondeste bem. Faz isso e viverás” – vers. 28). Parece que a questão está encerrada.

    No entanto, o homem que interpelou Jesus não parece sentir-se cómodo. Talvez se sinta um pouco ridículo por ter trazido uma pergunta para a qual, afinal, sabia a resposta. Lucas diz-nos que o homem quis justificar-se. A forma que encontrou de se justificar foi fazer uma pergunta sincera, para a qual ainda não tinha encontrado uma resposta óbvia: “e quem é o meu próximo?” (vers. 29).

    A questão faz sentido. Na época de Jesus, os mestres de Israel discutiam, precisamente, quem era o “próximo”. Nos círculos judaicos, excluía-se da classificação de “próximo” os estrangeiros e os samaritanos. Em geral, considerava-se “próximo” todo aquele que fazia parte do povo de Deus. No entanto os fariseus, por exemplo, excluíam da categoria “próximo” a gente do povo que não cumpria a Lei, os essénios de Kûmran e os publicanos que trabalhavam para os opressores romanos. Como é que Jesus se situa em relação a tudo isto? Na sua perspetiva, haverá alguma barreira, algum limite, quando se trata de acolher os outros homens e mulheres que se cruzam connosco nos caminhos da vida?

    Jesus responde ao mestre da Lei contando uma das suas mais desafiantes parábolas. Situa-a no cenário do caminho de Jericó, uma estrada que se estendia por cerca de 28 quilómetros entre a cidade santa de Jerusalém (situada a oitocentos metros acima do nível do mar) e o oásis de Jericó (situado trezentos metros abaixo do nível do mar). Era a estrada percorrida pelos peregrinos de vinham da Galileia em peregrinação a Jerusalém. Na época de Jesus, era uma estrada perigosa, infestada de salteadores que atacavam os viajantes. Ora “um homem” não identificado (não se diz quem é, de que raça é, qual a sua religião, mas apenas que é “um homem”) foi assaltado pelos bandidos e deixado caído na berma da estrada. Trata-se, portanto (e isso é que é preponderante), de “um homem” ferido, abandonado, necessitado de ajuda.

    Pela estrada onde jazia o homem inanimado passaram sucessivamente um sacerdote e um levita. Eram pessoas consagradas ao serviço de Deus, que exerciam funções litúrgicas no Templo de Jerusalém. Viram o homem ferido, abandonado na berma da estrada e reagiram exatamente da mesma maneira: passaram ao largo. Jesus não explica porquê. Talvez tivessem medo de enfrentar a mesma sorte, se parassem naquele caminho perigoso; talvez tivessem afazeres urgentes e não quisessem perder tempo; talvez pensassem que o homem estava morto, ou às portas da morte, e quisessem evitar ficar contaminados pelo contacto com um cadáver. Fosse qual fosse a razão, o sacerdote primeiro e o levita depois ignoraram aquele homem necessitado de ajuda. A misericórdia, a compaixão, a bondade, o amor, eram realidades que eles não cultivavam. O sacerdote e o levita eram homens da religião; mas a religião que praticavam era uma religião oca, de ritos estéreis, de gestos vazios e sem sentido, de cerimónias faustosas e solenes que, contudo, não atingiam o coração e não conduziam ao amor.

    Pela estrada onde estava o homem ferido passou, finalmente, um samaritano. Trata-se de um desses “malditos” que a religião tradicional de Israel classificava como herege, impuro, igual a um endemoninhado (cf. Jo 8,48). No entanto, foi ele que parou para prestar auxílio ao homem ferido. Aquele samaritano não pensou se aquele homem caído na berma da estrada era “próximo” ou não. Também não pensou nos riscos que ia correr, nem se preocupou com o inevitável adiamento dos seus negócios. À vista do homem ferido, simplesmente “encheu-se de compaixão” (a palavra grega aqui usada por Lucas – o verbo splagknídzomai – é usada para falar do amor que uma mãe sente pelo seu filho que se magoou e que corre para os braços da mãe para ser consolado). Aquela “compaixão”, fruto do amor, irá depois traduzir-se em gestos concretos de cuidado: o samaritano ligou as feridas do homem, curou-as com os “remédios” que tinha à mão (azeite e vinho), deitou o homem no seu próprio cavalo, levou-o para uma estalagem onde ele podia ser tratado, pagou ao estalajadeiro para que cuidasse do ferido até ele se restabelecer. Afinal, aquele herege samaritano condenado pela religião do Templo parece ter o coração mais cheio de Deus do que os profissionais da religião. A parábola contada por Jesus não podia ser mais desafiante e provocadora.

    Depois de concluir a parábola, Jesus perguntou ao mestre da Lei qual daqueles três que desciam de Jerusalém para Jericó terá sido “o próximo” do homem que caiu nas mãos dos salteadores. O mestre da Lei não teve qualquer dúvida: o que teve compaixão do homem ferido e caído na berma da estrada. Jesus está de acordo com a resposta. O mestre da Lei pretendia saber quem era o seu “próximo”; Jesus, com subtileza, ajuda-o a perceber que a grande questão não é a definição de quem é o nosso “próximo”, mas é se estamos dispostos a aproximar-nos (a fazermo-nos “próximos”) de todas as pessoas, sejam elas quem forem, que necessitem da nossa ajuda, do nosso cuidado, do nosso amor.

    As palavras finais de Jesus ao mestre da Lei propõem todo um programa de vida: “vai e faz o mesmo” que aquele samaritano fez. Quer dizer: “aproxima-te de cada pessoa que precisa de ti, sem te preocupares com a sua raça, a sua história de vida, o seu estatuto social, as razões que tens contra ele, as coisas que te incomodam nele, os seus bons ou maus hábitos, as suas atitudes corretas ou incorretas; aquele homem ou aquela mulher que jaz ferido na berma da estrada da vida é teu irmão ou tua irmã”.

    Recordemos que a pergunta inicial do mestre da Lei era: “o que fazer para alcançar a vida eterna?” A parábola contada por Jesus garante que quem tem o segredo da vida eterna é quem, como aquele samaritano, sente compaixão por cada pessoa necessitada e se aproxima dela com amor.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Há perguntas que fazemos e que resultam do desejo indiscreto de nos metermos na vida dos outros. Há perguntas que colocamos e que se destinam apenas a satisfazer a nossa curiosidade mórbida. Há perguntas que nos inquietam e que correspondem à nossa legítima sede de saber, mas que não afetam o sentido geral da nossa vida. Mas há perguntas absolutamente decisivas, que determinam a forma como vivemos e como nos situamos no mundo. A pergunta que o mestre da Lei do relato evangélico faz a Jesus pertence à categoria das perguntas fundamentais, que nos ajudam a determinar o sentido da nossa existência: que hei de fazer para receber como herança a vida eterna? Ou: como devo viver para que a minha vida não fracasse e eu tenha acesso à vida verdadeira? Para um crente, há uma resposta óbvia (tão óbvia que o tal mestre da Lei não tem qualquer dificuldade em encontrá-la): “faz de Deus o centro da tua vida, ama-O e ama também os teus irmãos”. Notemos, no entanto, que não basta saber responder acertadamente a esta pergunta. Jesus diz ao mestre da Lei: “faz isso e viverás”. É preciso “fazer”; é preciso escutar Deus e viver de acordo com as suas indicações; é preciso acolher os projetos de Deus e viver em comunhão com Ele; é preciso ver em cada “próximo” um irmão ou uma irmã de quem devemos cuidar e a quem devemos amar. Quem vive pondo em prática estas indicações dá sentido pleno à sua existência e encontra a vida eterna. Estamos também nós interessados na vida eterna? Estamos dispostos a construir desta forma a nossa existência?
    • O mestre da Lei que interpelou Jesus não sabia bem identificar esse “próximo” que deveria amar como a si mesmo. Seriam os membros do seu Povo, ou os da sua classe social? Seriam aqueles por quem tinha alguma simpatia, ou os amigos que com ele se sentavam à mesa? Jesus oferece-lhe uma resposta muito simples, que não contempla barreiras ou limites de qualquer espécie: aproxima-te de todo todo aquele que necessita da tua ajuda, da tua solicitude, do teu amor; detém-te junto daquele que a vida magoou, daquele que encontras na estrada da vida caído, abandonado, carente, com dores, com fome, com sede; cuida daquele que precisa de ti, mesmo que ele seja maçador, conte sempre as mesmas histórias insuportáveis, seja desagradável ou antipático, nunca concorde contigo, tenha valores diferentes dos teus, tenha comportamentos que consideras incorretos… Como é que vivemos isto? Procuramos “aproximar-nos” de todos aqueles que precisam do nosso cuidado e do nosso amor?
    • Na parábola que contou, Jesus põe duas pessoas com responsabilidades na estrutura religiosa judaica (um sacerdote e um levita) a ignorarem o homem ferido caído na berma da estrada. A escolha destes dois personagens para descrever uma atitude de indiferença face ao sofrimento de um homem não acontece por acaso. Jesus conhecia bem o culto que se praticava no Templo de Jerusalém; e, como os antigos profetas de Israel, sentia que era sua missão denunciar esse culto feito de gestos vazios, de rituais estéreis, de formalismos sem conteúdo, de celebrações majestosas mas inconsequentes. Ele sentia que uma religião que não levava a um compromisso com a construção de um mundo mais humano e mais fraterno, era uma religião que não servia para nada. Deus não estava interessado num sistema religioso que olhava com indiferença para o sofrimento dos pobres, dos infelizes, daqueles que eram abandonados na estrada da vida. Para que serve uma religião se não é capaz de gerar sentimentos e atitudes de compaixão para com o ser humano que sofre? A religião que vivemos e praticamos é a religião dos ritos e das manifestações piedosas, ou é a religião do amor e da compaixão?
    • Nas atitudes daquele “bom samaritano” a Igreja de todos os tempos (a comunidade dos que caminham ao encontro da salvação, da vida plena) reconhece o programa que Jesus lhe pediu que concretizasse: cuidar, tratar, curar todos os homens e mulheres que a vida maltrata ou que a sociedade rejeita e que se encontram caídos nas bermas da estrada que a humanidade percorre. A nossa comunidade cristã revê-se nesta missão? A Igreja de Jesus esforça-se realmente por ser um “hospital de campanha” onde são acolhidos e tratados os “feridos” que a marcha inexorável da história vai deixando para trás? Os homens e mulheres que a vida magoou encontram lugar à mesa da nossa comunidade paroquial ou religiosa, mesmo que tenham histórias de vida que não estão exatamente de acordo com as leis canónicas?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 15.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (em parte adaptadas de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 15.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. “ESCUTA A VOZ DO TEU SENHOR!”

    Para exprimir a atenção à primeira leitura, pode-se pôr em relevo a Palavra de Deus por um gesto, um sinal: levar solenemente o lecionário aquando da procissão de entrada; ou fazer uma procissão do lecionário no início da liturgia da Palavra.

    3. EXPLICAR O SENTIDO DOS TRÊS SINAIS DA CRUZ.

    Antes da proclamação do Evangelho, o presidente pode explicitar o sentido dos três sinais da cruz (na fronte, na boca, no peito) e o seu relacionamento com a primeira leitura…

    4. ORAÇÃO NA LECTIO DIVINA.

    Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.

    No final da primeira leitura:
    “Senhor nosso Deus, que não ficas inatingível mas que Te tornas tão próximo de nós, nós Te damos graças pela tua Palavra. Ela está totalmente perto de nós. Tu nos fazes entendê-la e comentá-la nas nossas assembleias.
    Nós Te pedimos: faz-nos voltar para Ti, que o teu Espírito nos impregne com a tua Palavra, que ela esteja na nossa boca e no nosso coração, para que nós a ponhamos em prática”.

    No final da segunda leitura:
    “Cristo Jesus, imagem do Deus invisível, tudo é criado por Ti e para Ti, Tu existes antes de todos os seres e tudo subsiste em Ti, Tu és a cabeça da Igreja e nós somos o teu corpo, Tu tens o primado em tudo, na vida e na ressurreição, nós Te bendizemos.
    Nós Te pedimos: que a paz adquirida pelo teu sangue se estenda às nossas comunidades e a todo o universo”.

    No final do Evangelho:
    “Deus de ternura, nós Te damos graças pelo teu Filho Jesus, que enviaste como um bom Samaritano à nossa humanidade ferida pelos ódios e pelas injustiças. Ele toma conta de nós, levanta-nos e cura-nos.
    Nós Te pedimos por todos os feridos da vida e por nós próprios, porque Tu nos envias junto do nosso próximo, aqui e ao longe, para prosseguir a obra de teu Filho”.

    5. BILHETE DE EVANGELHO.

    O doutor da Lei compreendeu tudo. Para ele, o próximo é o que se aproxima do seu irmão, e que tem bondade para com ele. A diferença entre o sacerdote e o levita, e o samaritano, é que os dois primeiros se contentam em ver e passar ao lado, sem dúvida para não se sujarem ao tocar o sangue, enquanto o terceiro aproxima-se, vê e enche-se de compaixão. O sacerdote e o levita conhecem a Lei, conhecem o duplo mandamento do amor: passando ao lado do caminho, respeitam a Lei que proíbe tocar no sangue… Eles sabem. Ora, é o samaritano que talvez não saiba a Lei, mas faz prova de bondade, é ele que põe em prática a Lei de Deus. Então, é o samaritano que terá a vida, como promete Jesus, na medida em que faz o que Deus quer, mesmo se ele não sabe. E Jesus, o Mestre, do mesmo modo que convida o doutor da Lei, convida também este a fazer o mesmo, para ter a Vida, observando verdadeiramente a Lei divina.

    6. À ESCUTA DA PALAVRA.

    A parábola do Bom Samaritano é tão conhecida que podemos perder o sabor e o sentido que dela podemos tirar para a nossa vida. Sabemos bem que Jesus muda a ordem das coisas: não se trata de saber quem é o meu próximo, mas de me fazer, eu, o próximo de qualquer homem. Assim, para o discípulo de Jesus, não há mais estrangeiro. Todo o homem torna-se próximo para mim, na medida em que eu o considero como um irmão. Sem dúvida, temos ainda muito trabalho para concretizar nas nossas vidas o ensinamento do Senhor! Mas Jesus vai ainda mais longe. Reparemos, em primeiro lugar, que é um doutor da Lei que se dirige a Jesus, um conhecedor e, seguramente, um fiel observante da Lei. Ora, na parábola, Jesus não escolhe os protagonistas da história por acaso. Trata-se, primeiro, de um sacerdote e de um levita, dois especialistas do culto celebrado no Templo de Jerusalém. A Lei dá prescrições muito estritas aos membros do “clero” da época. Deviam respeitar escrupulosamente as leis da pureza e, em particular, evitar a qualquer preço o menor contacto com os mortos, com exceção dos mais próximos da sua família. Sabendo isso, compreendemos melhor porque o sacerdote e o levita se afastaram do ferido “meio morto”. Eles obedecem à Lei, não podiam aproximar-se do infeliz. Então, Jesus coloca em cena um samaritano. São João precisa: “os judeus não tinham relações com os samaritanos”. Este estrangeiro, este pária aos olhos dos judeus fiéis, não está encerrado no sistema da Lei. Pode encontrar a liberdade do amor sem fronteira. Eis a grande lição de Jesus. A Lei é boa, sem dúvida, mas com a condição de estar ao serviço do crescimento do amor. “O sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado”. A Igreja promulgou numerosas leis. É bom respeitá-las. Por exemplo, é bom não faltar à missa ao domingo. Mas se, no resto da minha vida, esqueço as exigências evangélicas do amor, arrisco passar ao lado do meu irmão ferido. Estou do lado do sacerdote e do levita, ou do lado do samaritano? Também a mim, Jesus diz-me: “Então vai e faz o mesmo”.

    7. ORAÇÃO EUCARÍSTICA.

    A Oração Eucarística V/D “para as circunstâncias particulares” situa-se na tonalidade do Evangelho do dia.

    8. PALAVRA PARA O CAMINHO…

    “E quem é o meu próximo?” Excelente questão a deste doutor da lei à procura de precisão e de uma boa receita “para ter a vida eterna”. Porém, não há resposta pré-estabelecida, nem nos lábios de Jesus, nem na Internet… “Amarás!” Resposta vasta como o mundo! No caminho da nossa semana procuremos inventar a nossa relação com os irmãos reencontrados: evitar? ignorar? aproximar-se? Quem será o nosso próximo? Mas sobretudo, de quem nos tornaremos nós próximos? De quem nos vamos aproximar concretamente para pôr em ação este convite a amar? “Então, vai e faz o mesmo!”, diz-nos Jesus.

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

  • 16º Domingo do Tempo Comum - Ano C [atualizado]

    16º Domingo do Tempo Comum - Ano C [atualizado]

    20 de Julho, 2025

    ANO C

    16.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 16.º Domingo do Tempo Comum

    As exigências da vida moderna obrigam-nos a correr a um ritmo estonteante e fazem-nos deixar para trás coisas fundamentais. A Palavra de Deus que a liturgia do décimo sexto domingo comum nos propõe convida-nos a redescobrir as prioridades e valores que tornam a nossa vida mais humana e mais cheia de sentido.

    A primeira leitura propõe-nos o exemplo de Abraão, o homem que não se importa de gastar tempo com o “outro”. Quando aparecem junto da sua tenda três visitantes inesperados, Abraão acolhe-os, prepara-lhes um banquete, oferece-lhes o que tem de melhor. Em cada pessoa que nos “visita”, é Deus que vem ao nosso encontro. O tempo que gastamos a acolher e a cuidar dos nossos irmãos é um tempo que enche de significado a nossa vida.

    No Evangelho duas irmãs – Marta e Maria – acolhem Jesus na sua casa. Marta prepara para o hóspede uma boa refeição; Maria senta-se aos pés de Jesus, a escutar o que Jesus diz. São duas atitudes válidas, próprias do discípulo. Mas Lucas, o narrador deste episódio, aproveita para sugerir que a escuta da Palavra de Jesus deve preceder a ação. A ação sem a escuta de Jesus torna-se mero ativismo que, mais tarde ou mais cedo, se esvazia de sentido.

    Na segunda leitura Paulo fala aos cristãos de Colossos da sua experiência: ele tem-se esforçado por testemunhar em todo o lado o projeto salvador de Deus revelado em Cristo. Espera que também os cristãos de Colossos se disponham a construir as suas vidas à volta de Cristo. Nesse sentido, exorta-os a viverem numa comunhão cada vez mais perfeita com Cristo, pois é em Cristo que os crentes encontrarão a salvação e a vida em plenitude.

     

    LEITURA I – Génesis 18,1-10a

    Naqueles dias,
    o Senhor apareceu a Abraão junto do carvalho de Mambré.
    Abraão estava sentado à entrada da sua tenda,
    no maior calor do dia.
    Ergueu os olhos e viu três homens de pé diante dele.
    Logo que os viu, deixou a entrada da tenda
    e correu ao seu encontro;
    prostrou-se por terra e disse:
    «Meu Senhor, se agradei aos vossos olhos,
    não passeis adiante sem parar em casa do vosso servo.
    Mandarei vir água, para que possais lavar os pés
    e descansar debaixo desta árvore.
    Vou buscar um bocado de pão, para restaurardes as forças
    antes de continuardes o vosso caminho,
    pois não foi em vão que passastes diante da casa do vosso servo».
    Eles responderam: «Faz como disseste».
    Abraão apressou-se a ir à tenda onde estava Sara e disse-lhe:
    «Toma depressa três medidas de flor da farinha,
    amassa-a e coze uns pães no borralho».
    Abraão correu ao rebanho e escolheu um vitelo tenro e bom
    e entregou-o a um servo que se apressou a prepará-lo.
    Trouxe manteiga e leite e o vitelo já pronto
    e colocou-o diante deles;
    e, enquanto comiam, ficou de pé junto deles debaixo da árvore.
    Depois eles disseram-lhe:
    «Onde está Sara, tua esposa?».
    Abraão respondeu: «Está ali na tenda».
    E um deles disse:
    «Passarei novamente pela tua casa daqui a um ano
    e então Sara tua esposa terá um filho».

     

    CONTEXTO

    A primeira leitura de hoje faz parte de um bloco de textos a que se dá o nome genérico de “tradições patriarcais” (cf. Gn 12-36). Trata-se de um conjunto de relatos singulares, originalmente independentes uns dos outros, sem grande unidade e sem carácter de documento histórico. Nesses capítulos aparecem, de forma indiferenciada, “mitos de origem” (descreviam a “tomada de posse” de um lugar pelo patriarca do clã), “lendas cultuais” (narravam como um deus tinha aparecido nesse lugar ao patriarca do clã), histórias sobre as vicissitudes diárias dos clãs nómadas que circularam pela Palestina durante o segundo milénio, e ainda reflexões teológicas posteriores destinadas a apresentar aos crentes israelitas modelos de vida e de fé.

    Os clãs referenciados nas “tradições patriarcais” – nomeadamente os de Abraão, de Isaac e de Jacob, grupos vagamente aparentados que mais tarde, numa fase posterior da história, aparecem ligados por laços “familiares” – viajavam de lugar em lugar à procura de pastos para os seus rebanhos. Transportavam consigo diversos sonhos e expetativas. Sonhavam encontrar uma terra fértil e com água abundante, onde pudessem instalar-se e descansar, fugindo aos perigos e às incertezas da vida nómada. Sonhavam também possuir uma família forte e numerosa que perpetuasse a “memória” da tribo e se impusesse aos inimigos. O deus ancestral que protegia a tribo e a conduzia ao longo das suas deambulações era o potencial concretizador desse ideal.

    O relato que a liturgia do décimo sexto domingo comum nos propõe como primeira leitura deve situar-se neste cenário. Na sua origem está, provavelmente, uma antiga “lenda cultual” que narrava como três figuras divinas tinham aparecido a um cananeu anónimo junto do carvalho sagrado de Mambré, como esse cananeu as tinha acolhido na sua tenda e como tinha sido recompensado com um filho pelos deuses. Mambré, perto de Hebron, era o local onde, já no terceiro milénio a.C., muito antes de Abraão aí ter chegado, existia um importante santuário cananeu. Mais tarde, quando Abraão se estabeleceu nesse lugar, a antiga lenda cananaica foi-lhe aplicada e ele passou a ser o herói desse encontro com as figuras divinas. Alguns séculos mais tarde, no reinado de Salomão (séc. X a.C.), os autores javistas recuperaram essa velha lenda para, através dela, propor Abraão como um modelo de hospitalidade e de bondade.

     

    MENSAGEM

    Qual é, então, o ensinamento que a catequese de Israel quer propor, recorrendo a essa velha lenda cultual?

    O herói da história já não é um cananeu anónimo (como provavelmente acontecia na história primitiva), mas o patriarca Abraão. Ele está “sentado à entrada da sua tenda, na hora de maior calor do dia” (vers. 1), quando levanta os olhos e repara que estão ali, diante dele, três misteriosos viajantes. Ao insinuar que Abraão não os viu chegar, o “catequista” que elaborou o relato pretenderá provavelmente sugerir que o divino se apresenta sempre por surpresa na vida do homem.

    Abraão levantou-se a aproximou-se deles (vers. 2). Ao pararem diante da tenda de Abraão, os três personagens já tinham mostrado a intenção de se deterem ali. Sem saber ainda de quem se trata, Abraão dirige-lhes respeitosamente um convite para entrarem na tenda e aceitarem a sua hospitalidade (vers. 3-5). O convite de Abraão é aceite de forma breve e quase condescendente pelos viajantes.

    À indicação de Abraão, todos os membros daquela família nómada se movimentam para acolher bem os hóspedes. Sara, a esposa de Abraão, amassa a farinha e coze o pão (vers. 6); Abraão escolhe um bezerro tenro, pede ao criado que o prepare (vers. 7), traz manteiga, leite e o vitelo já cozinhado para que os seus visitantes possam saciar a fome. Depois, enquanto eles comem, Abraão fica de pé, na atitude do servo vigilante, para que nada falte aos seus convidados (vers. 8). É a lendária hospitalidade nómada no seu melhor. Abraão aparece, antes de mais, como o modelo do homem íntegro, humano, solícito, bondoso, atento a quem passa e disposto a repartir aquilo que tem de melhor com aqueles que se cruzam com ele nos caminhos da vida.

    Terminada a refeição, os misteriosos viajantes anunciam a Abraão a realização do seu anseio mais profundo: Sara, a esposa de Abraão, ficará grávida e dará à luz um filho (vers. 9-10). Embora tal não seja afirmado abertamente, fica no ar a ideia de que o dom do filho é a resposta de Deus à atitude hospitaleira de Abraão. Deus recompensa o seu servo Abraão pela sua bondade, pela sua solicitude, pelo seu amor gratuito.

    Quem são esses três personagens que apareceram junto da tenda de Abraão e que aceitaram a sua hospitalidade? Até este momento o catequista que elaborou a história não o disse (só o explicitará inequivocamente mais à frente, no vers. 13, quando identificar um destes personagens com Javé); mas o leitor já percebeu que se trata de uma “visita” de Deus ao seu servo Abraão. A imagem de Deus que este texto apresenta é muito bela: o Deus de Abraão é um Deus que vem ao encontro do homem, que se detém junto dele, que aceita entrar na sua tenda e sentar-se à sua mesa, estabelecendo assim laços de família com o homem. É o Deus do diálogo e da comunhão, que se apresenta na vida do homem e que se dispõe a concretizar os sonhos e as aspirações do homem.

    E Abraão? Embora não seja claro se Abraão tem consciência de que está diante de Deus, a sua atitude pauta-se pela serena submissão, pelo respeito, pela confiança total (num desenvolvimento que, contudo, não aparece na leitura deste domingo, Sara ri diante da “promessa” de um filho; mas Abraão conserva-se em silêncio digno, sem manifestar qualquer dúvida – vers. 10b-15). O catequista que “vestiu” Abraão com estes traços insinua que devem ser essas as atitudes que o crente israelita deve assumir diante desse Deus que vem ao encontro do homem.

     

    INTERPELAÇÕES

    • A forma como Abraão acolhe aqueles três viajantes que, de surpresa, se apresentam à entrada da sua tenda, põe-nos a pensar no lugar que “o outro” – qualquer homem ou qualquer mulher – tem na nossa vida. Abraão não conhece nenhum daqueles homens, nem tem com eles qualquer negócio pendente; não espera ganhar seja o que for ao acolhê-los e ao disponibilizar-lhes tudo o que possui; não sabe ao certo a que é que eles vêm e se são de confiança… Mas, desde que se apercebe da sua presença, trata-os com se eles fossem enviados de Deus e tivessem direito a toda a consideração e a todos os cuidados. Como é que vemos as pessoas que, a cada passo, se cruzam connosco? Que valor lhes atribuímos? Vemos o “outro” – aquele ou aquela que Deus envia ao nosso encontro – como uma “prenda” de Deus ou como uma ameaça ao nosso bem-estar, à nossa segurança, ao nosso comodismo?
    • Todos os dias se apresentam pessoas à entrada da nossa “tenda”, ao espaço onde vivemos ou onde trabalhamos. Muitas vezes é mesmo nossa missão ou nossa responsabilidade acolhê-las, dar resposta às suas solicitações, esclarecer as suas dúvidas, desbloquear situações que as impedem de ter acesso a mecanismos de ajuda e de solidariedade. Como as tratamos? Como é que as pessoas são acolhidas nas nossas repartições dos serviços públicos, nas urgências dos nossos hospitais, nas secretarias dos nossos centros de saúde, nas receções das nossas igrejas, nas portarias das nossas casas religiosas?
    • Consideremos, especialmente, um dos “quadros” que marca o tempo histórico que estamos a viver: o dos imigrantes que vêm de longe à procura de condições dignas de vida para si e para as suas famílias. Em geral os imigrantes (mesmo quando não têm os “papéis” em ordem) não são criminosos, nem gente que chega para se apropriar dos recursos que nos pertencem; são irmãos nossos, que apenas querem uma oportunidade de trabalhar e de ganhar com dignidade o pão de cada dia. Como os vemos, como os valorizamos? Sentimo-nos responsáveis por eles? Acolhemo-los com indiferença, com agressividade, ou com a atitude humana e solícita que Abraão teve para com os seus hóspedes? Temos consciência de que, em cada homem sem documentos, sem pão, sem casa, sem trabalho, sem futuro, que chega às nossas fronteiras, está Deus que vem visitar-nos?
    • Através daquela velha lenda que narra a “visita” de Deus a Abraão, a catequese de Israel apresenta um Deus que vem ao encontro do homem, que aceita o convite do homem e entra na sua casa, que se senta à mesa com o homem e que estabelece com ele laços familiares, que conhece perfeitamente os sonhos do homem e os realiza. É esse Deus, o Deus da comunhão e do encontro, em quem acreditamos? É esse o Deus com quem caminhamos? Estamos disponíveis para o acolher na nossa vida, para lhe abrir as portas do nosso coração e para mergulharmos no seu amor?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 14 (15)

    Refrão 1: Quem habitará, Senhor, no vosso santuário?

    Refrão 2: Ensinai-nos, Senhor: quem habitará em vossa casa?

    O que vive sem mancha e pratica a justiça
    e diz a verdade que tem no seu coração
    e guarda a sua língua da calúnia.

    O que não faz mal ao seu próximo,
    nem ultraja o seu semelhante,
    o que tem por desprezível o ímpio,
    mas estima os que temem o Senhor.

    O que não falta ao juramento mesmo em seu prejuízo
    e não empresta dinheiro com usura,
    nem aceita presentes para condenar o inocente.
    Quem assim proceder jamais será abalado.

     

    LEITURA II – Colossenses 1,24-28

    Irmãos:
    Agora alegro-me com os sofrimentos que suporto por vós
    e completo na minha carne o que falta à paixão de Cristo,
    em benefício do seu corpo que é a Igreja.
    Dela me tornei ministro,
    em virtude do cargo que Deus me confiou a vosso respeito,
    isto é, anunciar em plenitude a palavra de Deus,
    o mistério que ficou oculto ao longo dos séculos

    e que foi agora manifestado aos seus santos.
    Deus quis dar-lhes a conhecer
    as riquezas e a glória deste mistério entre os gentios:
    Cristo no meio de vós, esperança da glória.
    E nós O anunciamos, advertindo todos os homens
    e instruindo-os em toda a sabedoria,
    a fim de os apresentarmos todos perfeitos em Cristo.

     

    CONTEXTO

    A cidade de Colossos estava situada no interior da região da Frígia (Ásia Menor, atual Turquia), no vale do rio Lico, a cerca de quinze quilómetros de Laodiceia. Tinha sido, nos sécs. V-IV a.C., uma cidade próspera e populosa; mas, na época de Paulo, tinha perdido uma grande parte do seu esplendor.

    Não foi o apóstolo Paulo que evangelizou a cidade. Pelos dados que constam da Carta aos Colossenses, foi um tal Epafras, convertido ao cristianismo por Paulo, que levou o Evangelho a Colossos (cf. Cl 1,7-8; 4,12-13). A maior parte dos membros da comunidade cristã de Colossos provinham do paganismo; mas havia também na comunidade um bom número de cristãos de origem judaica.

    Quando escreve a carta, Paulo parece estar na prisão. Poderia ser, talvez, a prisão que Paulo sofreu em Roma, entre os anos 61 e 63. Epafras está com Paulo, talvez de visita.

    As notícias que Epafras transmitiu a Paulo sobre a comunidade cristã de Colossos não eram boas. A Colossos tinham chegado pregadores cristãos, talvez de tendência judaizante, que procuravam induzir os Colossenses à observância de certas práticas judaicas, nomeadamente a circuncisão (cf. Cl 2,11), a abstinência de determinados alimentos, o cumprimento do sábado e de outras festas judaicas (cf. Cl 2,16.20-23). Havia também, na doutrina pregada por esses “mestres” judeo-cristãos, referências ao culto dos anjos, considerados guardiões da Lei, e a outros “poderes” cósmicos que governavam os astros; e os Colossenses eram exortados a enquadrar na sua visão de fé todos esses “poderes”. Paulo achava que as doutrinas ensinadas por esses “mestres” eram gravemente desviantes, pois punham em causa o papel e o lugar único de Cristo. A essas doutrinas, Paulo contrapõe a primazia de Cristo, Senhor da história, único mediador entre Deus e os homens, cabeça da Igreja, “lugar” onde habita a plenitude da divindade.

    O texto que nos é proposto como segunda leitura deste domingo inicia a parte polémica da carta. Paulo fala aos cristãos de Colossos sobre o papel que lhe foi destinado enquanto testemunha do mistério de Cristo.

     

    MENSAGEM

    Desde que encontrou Cristo na estrada de Damasco, Paulo pôs-se totalmente ao seu serviço. Desde esse dia, sofreu muito, conheceu a oposição e a perseguição. Precisamente na altura em que escreve aos cristãos de Colossos, está prisioneiro por causa do seu serviço ao Evangelho.

    Apesar de todos os sofrimentos que tem suportado, Paulo sente-se feliz: sabe que os sofrimentos que passou não foram em vão, pois contribuíram para que muitos homens e mulheres descobrissem Cristo e a sua proposta de salvação. Mais ainda: com os sofrimentos que tem suportado, Paulo sente que completa na sua carne “o que falta à paixão de Cristo, em benefício do seu corpo que é a Igreja” (vers. 24).

    O que é que isto significa? Alguns entendem a expressão no contexto da doutrina do corpo místico: Cristo é a cabeça de um corpo que é a Igreja; se Cristo, a cabeça, sofreu, é lógico que os membros do corpo (os cristãos) sofram também, uma vez que estão unidos a Cristo e participam do seu destino. Esta leitura põe em relevo a união dos cristãos com Cristo e dos cristãos entre si. Mas há também quem veja na “falta” a que Paulo se refere uma alusão à continuação do projeto salvador de Cristo em favor dos homens: Cristo, com a sua entrega até à morte, ofereceu aos homens a salvação; mas agora, para que a força salvadora de Cristo continue a chegar a todos os homens, os enviados de Cristo têm de esforçar-se, de sofrer, de enfrentar as forças que se opõem ao anúncio do Evangelho. Esta interpretação parece estar mais em consonância com o contexto.

    Paulo, no que lhe diz respeito, sente-se “servidor” (“diaconos”) da Igreja, com a missão de proclamar a todos o “mistério” (“mystêrion” – vers. 26). A palavra designa, em Paulo, o plano salvador de Deus, oculto aos homens durante séculos, revelado plenamente na pessoa, na ação e nas palavras de Jesus Cristo, proclamado e continuado pelos discípulos de Jesus (Igreja) na história. O esforço de Paulo (e dos cristãos em geral) deve ir no sentido de concretizar esse projeto de salvação/libertação que traz a vida em plenitude aos homens de toda a terra.

    Paulo tem-se esforçado por mostrar a todos os que se encontraram com Cristo a riqueza que é a plena compreensão do “mistério” (vers. 28-29). Espera que também os cristãos de Colossos se disponham a construir as suas vidas à volta de Cristo e da sua proposta de salvação. Nesse sentido, exorta-os a viverem numa comunhão cada vez mais perfeita com Cristo, pois é em Cristo (e não nos anjos, nos “poderes”, nas práticas legalistas judaicas, nos rituais estéreis) que os crentes encontrarão a salvação e a vida em plenitude.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Paulo de Tarso, o “apóstolo dos gentios”, é uma figura ímpar da história do cristianismo. Devemos-lhe o ter levado o Evangelho ao encontro do mundo greco-romano, fazendo com que a proposta de salvação quer Jesus veio trazer saltasse todas as fronteiras e chegasse a todos os homens. Mas devemos-lhe, especialmente, o exemplo de compromisso pleno, de doação total, de entrega completa a Jesus e ao Evangelho (“já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” – Gl 2,20). Temos consciência – como Paulo tinha – que a Igreja nascida de Jesus é, fundamentalmente, uma comunidade missionária? É com o mesmo empenho e decisão de Paulo que nós “agarramos” a missão que Cristo nos confiou e que damos testemunho de Cristo em todos os lugares onde a vida nos leva? Como é que a nossa comunidade cristã considera e valoriza os homens e as mulheres que dedicam toda a sua vida à causa do Evangelho?
    • Paulo de Tarso soube sempre discernir o essencial do secundário. Ele sabia que o essencial é para ser preservado a todo o custo e colocado no centro da nossa vida, enquanto o secundário pode ser dispensado. Para Paulo, o essencial é Cristo e o seu Evangelho. Tudo o resto só interessa enquanto conduz a Cristo. Mais: devemos ter cuidado para que o secundário não tome o lugar de Cristo e não nos oculte Cristo ou nos distraia de Cristo. Para os cristãos de Colossos, as “distrações” que impediam de “ver” Cristo eram as práticas judaicas, as doutrinas que enalteciam o lugar e o papel dos anjos, as reflexões sobre os “poderes cósmicos” que governavam os astros (“os Tronos e as Dominações, os Poderes e as Autoridades” (Col 1,16); para nós poderão ser certas práticas de piedade que colocamos no centro da nossa experiência de fé, a fixação em rituais antigos e estéreis, as imagens e figuras religiosas que dizemos “adorar”, as “aparições” e “revelações” que pretendem falar mais alto do que o Evangelho anunciado por Jesus, as práticas supersticiosas por vezes apresentadas com um verniz cristão… Que lugar ocupa Cristo na nossa experiência de fé? Quais são os valores e as figuras que sustentam o edifício religioso que vamos construindo?

     

    ALELUIA – cf. Lucas 8,15

    Aleluia. Aleluia.

    Felizes os que recebem a palavra de Deus
    de coração sincero e generoso
    e produzem fruto pela perseverança.

     

    EVANGELHO – Lucas 10,38-42

    Naquele tempo,
    Jesus entrou em certa povoação
    e uma mulher chamada Marta recebeu-O em sua casa.
    Ela tinha uma irmã chamada Maria,
    que, sentada aos pés de Jesus,
    ouvia a sua palavra.
    Entretanto, Marta atarefava-se com muito serviço.
    Interveio então e disse:
    «Senhor, não Te importas
    que minha irmã me deixe sozinha a servir?
    Diz-lhe que venha ajudar-me».
    O Senhor respondeu-lhe:
    «Marta, Marta,
    andas inquieta e preocupada com muitas coisas,
    quando uma só é necessária.
    Maria escolheu a melhor parte,
    que não lhe será tirada».

     

    CONTEXTO

    Jesus vai com os discípulos a caminho de Jerusalém. A cada passo detém-se a instruí-los. Na “escola de Jesus”, os discípulos vão interiorizando os valores do Reino e preparando-se para serem, após a ressurreição, os arautos da salvação que Jesus veio propor.

    O episódio que a liturgia deste domingo nos propõe como Evangelho é exclusivo de Lucas: não aparece em mais nenhum dos Evangelhos. A história passa-se numa casa de família onde vivem duas irmãs: Marta e Maria. O nome “Marta” é a forma feminina da palavra aramaica “mar”, que significa “senhor”. Marta é a “senhora” daquela casa.

    Marta e Maria são referidas em Jo 12,1-12 como irmãs de Lázaro, aquele que Jesus ressuscitou dos mortos (cf. Jo 11,144). No Evangelho de João, o lugar de residência desta família amiga de Jesus é Betânia (a atual “al-Azariye”), uma pequena povoação situada na encosta oriental do Monte das Oliveiras, a cerca de três quilómetros de Jerusalém. Lucas, no entanto, não faz qualquer referência ao nome do lugar onde vivem estas irmãs (“Jesus entrou em certa povoação” – vers. 38). No esquema de Lucas, o episódio parece até situar-se numa localidade longe de Jerusalém, pois Jesus tinha iniciado há pouco a sua caminhada em direção à cidade santa.

    O mais provável, para explicar estas incongruências, é que Lucas tivesse recolhido este episódio da tradição e o tivesse enquadrado no seu esquema teológico sem se preocupar com o seu enquadramento geográfico.

    Mais do que uma história de acolhimento ou de hospitalidade, esta narração parece ser, sobretudo, uma catequese sobre o discipulado. Quem é o verdadeiro discípulo de Jesus? Qual deve ser a preocupação primordial daquele que se dispõe a seguir Jesus?

     

    MENSAGEM

    Na casa onde Jesus é recebido há, portanto, duas mulheres, irmãs. Marta parece ser, quer pelo nome, quer pelo protagonismo que assume, a “dona” da casa. A outra mulher, Maria, seria provavelmente a mais nova, pois aparece em segundo plano. Não há qualquer referência, no texto de Lucas, a uma figura masculina que habitasse naquela casa.

    Jesus é recebido na casa de Marta. A narração não faz qualquer referência aos discípulos e ao grupo de mulheres que vêm com Jesus desde a Galileia e que se dirigem com Ele para Jerusalém. Lucas pretende fazer incidir o foco apenas sobre Jesus e as mulheres daquela casa. Outros eventuais personagens seriam “ruído de fundo” que não interessa considerar.

    Lucas não se detém nos pormenores da chegada de Jesus à casa de Marta. Passa imediatamente a descrever a forma como as duas irmãs “responderam” à presença de Jesus.

    Marta, a dona da casa, “atarefava-se com muito serviço” (vers. 40). Podemos imaginar Marta na cozinha, a cozer o pão, a preparar o vinho, a assar o cordeiro e, a cada instante, a correr para a sala para pôr a mesa e para deixar tudo em ordem. Maria, por sua vez, está simplesmente sentada aos pés de Jesus, a ouvir a sua palavra (vers. 39). A posição de Maria, “sentada aos pés de Jesus”, é a posição típica de um discípulo que escuta com toda a atenção as lições do seu mestre (alguns anos mais tarde, na altura em que foi preso em Jerusalém, Paulo de Tarso apresenta-se ao povo como “judeu… instruído aos pés de Gamaliel, em todo o rigor da Lei” – At 22,3). É um quadro pouco ortodoxo, pois no mundo judaico era extremamente difícil que um “mestre” aceitasse uma mulher no seu grupo de discípulos. Jesus, no entanto, está apostado em fazer nascer uma comunidade nova, onde todos têm lugar. As mulheres, que na sociedade judaica tinha um estatuto de subalternidade, na comunidade do Reino são discípulas de pleno direito.

    Marta, sobrecarregada de trabalho, dirige-se a Jesus e pergunta-lhe se Ele não se importa que Maria fique ali a escutá-lo e não ajude na cozinha (vers. 40). Curiosamente, Marta não se dirige a Maria, talvez por achar que a culpa é de Jesus e que deve ser Jesus a resolver a situação. Marta parece estar à vontade com Jesus: não o trata como uma pessoa distante, “de cerimónia”, mas como alguém “da casa”, que pertence à família e que, portanto, deve ter uma palavra a dizer nas questões domésticas.

    Jesus responde a Marta com carinho, repetindo duas vezes o seu nome: “Marta, Marta”. Não quer criticá-la pelo que ela anda a fazer, pois sabe que o serviço de Marta é um sinal de amor. No entanto, constata que Marta anda “inquieta e preocupada com muitas coisas” (vers. 41), mas que prescindiu daquela que é mesmo necessária (vers. 42). Maria, em contrapartida, escolheu sentar-se aos pés de Jesus a escutar a sua palavra. Ela está totalmente concentrada em Jesus. Não há outra forma de dizer as coisas: “Maria escolheu a parte boa”, aquela que está na base de tudo e que dá consistência a tudo o que fazemos. Certo disso, Jesus nunca poderá pedir a Maria que coloque em lugar secundário a escuta da Palavra.

    Muitas vezes, este episódio foi lido à luz da oposição entre ação e contemplação, com Marta representando a vida ativa e Maria a vida contemplativa. Mas a questão essencial que sobressai neste relato não é a “bondade” de um estilo de vida em detrimento de outro. O que está em causa, nesta história de duas irmãs que acolhem Jesus na sua casa, é a definição da “atitude” do discípulo, de qualquer discípulo. Há discípulos que, diante da urgência do trabalho apostólico, se envolvem completamente na ação, com generosidade e entrega; mas, absorvidos pela voragem do trabalho, deixam de ter tempo para se sentar aos pés de Jesus e para escutar Jesus; no meio da agitação que os envolve, perdem o sentido das coisas, deixam de perceber o rumo em que devem caminhar. É verdade que “a messe é grande e os trabalhadores são poucos” (Mt 9,37); mas nenhuma ação dará frutos consistentes se não assentar na escuta de Jesus, no encontro com a Palavra de Jesus. Todos os discípulos – todas as Martas – necessitam de encontrar tempo para se sentarem calmamente aos pés de Jesus, para escutarem a Palavra de Jesus, para acolherem a paz que brota de Jesus, para redescobrirem o caminho que Jesus os convida a percorrer. Os discípulos que vão com Jesus a caminho de Jerusalém e os discípulos que se dispõem a seguir Jesus em qualquer época da história devem estar conscientes disto.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Os nossos dias vivem-se a um ritmo sufocante. A sobrecarga de trabalho, a pressão para corresponder às expetativas, a obrigação de fazer tudo para ontem, o cumprimento dos objetivos que nos impõem, obrigam-nos a uma correria sem fim. Dizemos estupidamente que “tempo é dinheiro” e procuramos aproveitar avidamente cada instante, não percebendo que a vida nos vai escapando por entre as mãos e que nos vamos desumanizando sempre mais. Mudamos de fila no trânsito da manhã vezes incontáveis para ganhar uns metros, arriscamos a vida passando semáforos vermelhos, comemos de pé ao lado de pessoas para quem nem sequer olhamos, chegamos a casa tarde, extenuados, enervados, vencidos pelo cansaço e pelo stress, sem tempo e sem vontade de brincar com os filhos ou de lhes ler uma história e dormimos algumas horas com a consciência de que o dia a seguir vai ser exatamente igual… Temos ótimas desculpas: são as exigências da vida moderna; temos de viver a este ritmo para não ficar para trás; não podemos perder a batalha diária pela existência. Contudo, mesmo que tudo isso seja verdade, acabamos por transigir com o sistema e por prescindir de coisas essenciais. Que espaço fica para nos encontrarmos com Deus? Que tempo fica para nos encontrarmos com Jesus, para O escutarmos, para acolhermos as suas propostas? Que tempo e que espaço ficam para a família, para os amigos, para tudo isso que torna a nossa vida mais humana e mais feliz?
    • Marta e Maria, respetivamente a discípula que vive para servir e a discípula que se senta aos pés de Jesus para escutar a Palavra, não representam duas realidades opostas; mas representam duas facetas que, no conjunto, “compõem” a figura do verdadeiro discípulo. Viver como discípulo de Jesus não se resume simplesmente em “fazer coisas”, ainda que boas e úteis; um ativismo que não parte do encontro com Jesus e da escuta da Palavra de Jesus, acaba a médio prazo por se tornar um “cumprir calendário” sem sentido e sem objetivo. Por outro lado, viver como discípulo de Jesus também não é ficar simplesmente sentado a “olhar para o céu”, desligado das realidades da terra, alheio às necessidades, aos sofrimentos e às alegrias dos homens. O discípulo de Jesus senta-se primeiro aos pés de Jesus, como Maria, a fim de escutar as indicações de Jesus e receber as indicações que Ele dá; depois, como Marta, dispõe-se a servir os irmãos, com dedicação e generosidade. É desta forma que procuramos viver o nosso seguimento de Jesus? Nas nossas comunidades cristãs, onde há sempre tanta coisa a fazer, a ação é sempre precedida da escuta de Jesus?
    • Há alturas do ano que, no calendário das sociedades, são tradicionalmente épocas privilegiadas de férias, de descanso, de libertação da rigidez dos horários e da tensão que resulta das responsabilidades laborais… É provável que muitos de nós estejamos, nesta altura, a viver esta experiência. Se assim for, procuremos que este tempo não seja mais uma corrida desenfreada para lugar nenhum, mas um tempo de reencontro connosco, com a nossa família, com os nossos amigos, com Deus e com as nossas prioridades. A oração e a escuta da Palavra podem ajudar-nos a recentrar a nossa vida e a redescobrir o sentido da nossa existência. O espaço para Deus, a escuta de Jesus, o tempo para a família, o encontro com os amigos, a leitura de um bom livro, a preocupação com a cultura, o contacto com a natureza, a reflexão sobre o sentido da nossa vida e das nossas opções, fazem parte do nosso “calendário” de férias?
    • Qual é a nossa perspetiva da hospitalidade e do acolhimento? Como é que acolhemos as pessoas que entram na nossa vida e na nossa casa? Ao narrar-nos uma “visita” de Jesus a casa de uma família amiga, Lucas sugere-nos delicadamente que o verdadeiro acolhimento não se limita a abrir a porta, a instalar a pessoa no sofá mais cómodo, a ligar a televisão para que ela se entretenha sozinha enquanto corremos para a cozinha para lhe preparar uma refeição memorável; mas o verdadeiro acolhimento passa por dar atenção àquele que veio ao nosso encontro, por escutá-lo, por partilhar com ele a nossa vida, por fazê-lo sentir o quanto nos preocupamos com aquilo que ele sente… Temos consciência de que, muitas vezes, o “estar com” a pessoa é muito mais expressivo do que o “fazer coisas” para ela?
    • Jesus, contra os costumes da época, aceita hospitalidade na casa de duas mulheres; Jesus, contra o costume da época aceita que uma das mulheres – Maria – assuma o lugar de sua discípula. Nas mais diversas situações Jesus mostrou, com gestos bem concretos, que no projeto de Deus não há lugar para a discriminação de seja quem for. Estamos conscientes disso? Não será já altura de eliminarmos da sociedade e da Igreja atitudes discriminatórias que não vêm de Deus ou do Evangelho, mas sim do nosso egoísmo, da nossa prepotência, dos nossos preconceitos?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 16.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (em parte adaptadas de “Signes d’aujourd’hui”)

    1- A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 16.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. CONTEMPLAR A TRINDADE.

    Em consonância com o relato da visita das três personagens ao acampamento de Abraão, poder-se-ia propor à contemplação da assembleia o conhecido ícone de Roublev, “a hospitalidade de Abraão” (título original), correntemente chamado “a Trindade de Roublev”…

    3. PRIVILEGIAR OS TEMPOS DE SILÊNCIO.

    Pode-se privilegiar, neste domingo, os tempos de silêncio. Mais longos do que habitualmente, serão escuta e “ruminação” da Palavra: depois de cada leitura; depois da homilia; depois da comunhão… Hoje, tomemos tempo para ficar sentados aos pés do Senhor!

    4. ORAÇÃO NA LECTIO DIVINA.

    Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.

    No final da primeira leitura:
    “Deus, que nenhuma inteligência pode atingir, fazes-nos ver o mistério da tua personalidade nos três mensageiros que enviaste a Abraão e que falam a uma só voz. Proclamamos a tua glória.
    Nós Te recomendamos todos os profissionais e os voluntários da hospitalidade, nos seus trabalhos da saúde, da entreajuda e da hotelaria. Torna-nos recetivos à tua vinda na pessoa do próximo”.

    No final da segunda leitura:
    “Pai, bendito sejas, porque nos fizeste conhecer o mistério escondido desde as origens, mas revelado em Jesus, teu Filho, presente no meio de nós; nós Te damos graças pelos apóstolos, que puseram completamente ao teu serviço.
    Nós Te pedimos pelos teus mensageiros, que revelam ao nosso mundo o mistério da tua presença e do teu amor. Que a esperança da tua glória os apoie nas suas dificuldades”.

    No final do Evangelho:
    “Cristo Jesus, Palavra de vida, luz do mundo, sabedoria eterna, Tu nos ofereces a melhor parte, que ninguém nos pode tirar; bendito sejas pela tua vinda e pela tua presença nos nossos bairros, nas nossas casas e nas nossas vidas.
    Nós Te confiamos as nossas assembleias e as nossas reuniões: que o teu Espírito nos torne sem cessar atentos ao único necessário, a tua presença”.

    5. BILHETE DE EVANGELHO.

    O que apreciamos numa refeição entre amigos não é, antes de mais, que o molho esteja bom ou que a toalha esteja bem posta, mas a qualidade da partilha, a escuta de cada um, a sinceridade dos sentimentos. Marta, recebendo Jesus, parece pensar apenas no que pode fazer para bem O acolher. Não arrisca, desse modo, esquecer o seu hóspede com tudo o que Ele é e tudo o que tem para dizer? Muitas vezes, opôs-se a ação à contemplação. Marta é ativa, mas não reserva o tempo para escutar. Maria escuta para poder pôr em prática a Palavra de Deus proferida por Jesus: nisso é uma verdadeira discípula. Quando agimos, não esqueçamos o essencial: o crescimento do nosso ser e o respeito do ser dos outros.

    6. À ESCUTA DA PALAVRA.

    Esta página de Evangelho serviu, muitas vezes, para distinguir a vida ativa, simbolizada por Marta, e a vida contemplativa, simbolizada por Maria. Jesus rebaixaria a primeira para ressaltar a segunda… Mas esta distinção não estava, certamente, nem no espírito de Jesus nem de São Lucas! Como compreender a resposta de Jesus: “Marta, Marta, andas inquieta e preocupada com muitas coisas, quando uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada”? Uma primeira coisa a dizer é que Jesus não despreza o trabalho de Marta. Ele apreciou a refeição que ela tão bem preparou. Mas Ele quer chamar a atenção para uma “hierarquia de valores”: “O homem não vive só de pão, mas de toda a Palavra que sai da boca de Deus”. O pão para o corpo é indispensável, a Palavra de Deus é ainda mais vital para aquele que quer encontrar o verdadeiro sentido da sua vida. As grandes testemunhas do amor concreto, ao longo da história da Igreja, compreenderam bem que a fecundidade da sua ação decorria, antes de mais, da intimidade que tinham com o Senhor. A autenticidade da nossa contemplação verifica-se pela qualidade do nosso empenho na construção de relações fraternas, para amar como Deus nos ama. Colocar-nos na escuta da Palavra de Deus, bem longe de nos fazer sair do mundo real, reenvia-nos à nossa vida quotidiana. É à luz de Jesus que poderemos colocar-nos a escutar verdadeiramente os outros, a acolhê-los como Ele nos acolhe. Em todos os seus encontros, Jesus manifesta total disponibilidade para cada um, como se a pessoa encontrada fosse única no mundo. Ele quer dar-Se a Si próprio, porque o seu Pai Se dá primeiro a Ele. Assim, reservar tempo para escutar a Palavra, para nos retirarmos no segredo do nosso coração e para rezar, não é perder tempo. É enraizar a nossa ação no único “terreno” capaz de a vivificar verdadeiramente, para que ela dê fruto na vida eterna. Não é preciso opor Marta e Maria, mas uni-las, vivificar o serviço de uma pela escuta atenta da outra. O tempo do verão é propício para nos convidar a viver a esta luz…

    7. ORAÇÃO EUCARÍSTICA.

    Pode-se utilizar a Oração Eucarística I, que faz alusão a Abraão…

    8. PALAVRA PARA O CAMINHO…

    O acolhimento de Maria ou o de Maria? Qual será o nosso acolhimento nesta semana, para aqueles que vamos encontrar e que são Cristo no nosso caminho? Deixarmo-nos absorver, como Marta, por tudo aquilo que vamos fazer para eles? Ou antes, ao jeito de Maria, procurar partilhar um tempo gratuito com eles, sentarmo-nos, parar um pouco para os escutar?…

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

  • S. Maria Madalena

    S. Maria Madalena


    22 de Julho, 2025

    Maria, presumivelmente nascida em Magdala, pequena povoação nas margens do lago de Tiberíade, é uma das mulheres que seguiram e serviram o Senhor durante a sua vida pública (cf. Mt 20, 55s.). Diz-se que, libertada por Jesus da opressão dos demónios, O seguiu fielmente até aos pés da cruz. Quando, no primeiro dia da semana, foi ao túmulo de Jesus, e o encontrou vazio, permaneceu junto dele a chorar e a perguntar pelo seu Mestre. Encontrou-O quando O ouviu chamar pelo seu nome: "Maria!". E tornou-se a primeira testemunha da Ressurreição, levando a Boa Notícia aos próprios Apóstolos.

    Lectio

    Primeira leitura: Cântico dos Cânticos 3, 1-4ª

    Eis o que diz a esposa: No meu leito, toda a noite, procurei aquele que o meu coração ama; procurei-o e não o encontrei. 2Vou levantar-me e dar voltas pela cidade: pelas praças e pelas ruas, procurarei aquele que o meu coração ama.Procurei-o e não o encontrei.3Encontraram-me os guardas que fazem ronda pela cidade: «Vistes aquele que o meu coração ama?» 4Mal me apartei deles, logo encontrei aquele que o meu coração ama.

    O livro do Cântico dos Cânticos, não só consagra o amor entre o homem e a mulher, mas é, sobretudo, a expressão simbólica do amor de Deus pelo seu povo. Também aquele e aquela que têm sede de Deus experimentam longas noites de silêncio, de incompreensível ausência, que lhes purificam os desejos, por vezes bastante redutivos. E, então, reacende-se o desejo de Deus, mais ardente, mais desinteressado, mais vital. É preciso perseverar na ânsia de encontrar a Deus, pedir ajuda e conselho a quem possa ajudar a encontrá-lo, sabendo que Ele é maior do que os nossos desejos e do que aqueles que nos ajudam a procurá-lo. Se não desistirmos de O procurar, Ele aparecerá quando e onde menos O esperarmos.

    Evangelho: João 20, 1.11-18

    No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo logo de manhã, ainda escuro, e viu retirada a pedra que o tapava. 11E ficou junto ao túmulo, da parte de fora, a chorar. Sem parar de chorar, debruçou-se para dentro do túmulo, 12e contemplou dois anjos vestidos de branco, sentados onde tinha estado o corpo de Jesus, um à cabeceira e o outro aos pés. 13Perguntaram-lhe: «Mulher, porque choras?» E ela respondeu: «Porque levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram.» 14Dito isto, voltou-se para trás e viu Jesus, de pé, mas não se dava conta que era Ele. 15E Jesus disse-lhe: «Mulher, porque choras? Quem procuras?» Ela, pensando que era o encarregado do horto, disse-lhe: «Senhor, se foste tu que o tiraste, diz-me onde o puseste, que eu vou buscá-lo.» 16Disse-lhe Jesus: «Maria!» Ela, aproximando-se, exclamou em hebraico: «Rabbuni!» - que quer dizer: «Mestre!» 17Jesus disse-lhe: «Não me detenhas, pois ainda não subi para o Pai; mas vai ter com os meus irmãos e diz-lhes: 'Subo para o meu Pai, que é vosso Pai, para o meu Deus, que é vosso Deus.'» 18Maria Madalena foi e anunciou aos discípulos: «Vi o Senhor!» E contou o que Ele lhe tinha dito.

    Maria de Magdala, com o seu ardente amor por Jesus, permanece fiel mesmo depois da tragédia do Calvário. Procura-o obstinadamente, e nem o sepulcro vazio a fazem desanimar. Esta mulher é símbolo da Igreja/Esposa, e de toda a alma que procura a Cristo, sabendo que não tem para Lhe oferecer senão lágrimas de amor. O Senhor Ressuscitado e Glorioso deixa-se encontrar por quem assim O procura. Mas só O reconheceremos quando Ele nos chamar pelo nome e nos der a perceber que nos conhece mais a fundo do que pensamos. O encontro encher-nos-á de alegria e far-nos-á viver uma vida nova transfigurada pelo Senhor.

    Meditatio

    Maria Madalena é, para nós, modelo de amor ardente, fiel, reverente, um amor que não sabe e não quer estar longe d´Aquele que ama e que O procura mesmo depois da morte.

    Há diversos tipos de investigação, de procura. A investigação científica, a investigação literária, a procura do sucesso. E todas dão algum sentido à vida. Mas a investigação mais adequada ao homem, mais digna dele é a procura de Deus por amor. Tal procura faz o homem sair de si mesmo em direção ao outro, ao amado, a Cristo, Deus feito homem. "Procurei-o e não o encontrei", diz a esposa dos Cantares. E teve que sair de casa e da cidade para o encontrar. Maria Madalena poderia dizer o mesmo, pois nem sequer encontrou o corpo do seu Senhor. Mas não desistiu de O encontrar, como, tantas vezes, fazemos nós, nos momentos de desolação. Ficou junto ao túmulo, a chorar, a fazer perguntas... E encontrou-O! Encontrou-O quando, Ele mesmo, se deu a conhecer, chamando-a pelo nome: "Maria!". Então, abriram-se-lhe os olhos da mente e do coração: "Rabuni!", exclamou. Os nossos esforços são precisos. Mas não são suficientes para encontrar Jesus. A fé é um dom, uma graça. Há que procurar persistentemente, tenazmente, na oração. Mais tarde ou mais cedo o Senhor revela-nos a sua grandeza e poderemos gritar: "Vi o Senhor!" e dar testemunho do Ressuscitado, como Madalena, os Apóstolos e tantos irmãos ao longo da história, e ainda nos nossos dias. Quem conheceu a longa noite da espera e do desejo tornou-se, muitas vezes, testemunha ardorosa e eficaz da Ressurreição do Senhor.

    Oratio

    Santa Maria Madalena, derramando lágrimas, e procurando Jesus, acabaste por encontrá-lo. Bebeste na fonte da misericórdia, e foste saciada. Tornaste-te a primeira testemunha da Ressurreição, e a evangelizadora dos próprios Apóstolos. Hoje, dirijo-me a ti, confiando na tua poderosa intercessão junto do Senhor Jesus. Também eu sou pecador. Também eu procuro o meu Senhor, no meio de muitas trevas. Alcança-me a graça da compunção, a graça da humildade, e o desejo da pátria celeste. Que lave os meus pecados nas lágrimas do arrependimento e seja saciado do amor e da misericórdia que brotam do Lado aberto e do Coração trespassado do meu Senhor. Ámen.

    Contemplatio

    Jesus pede o amor puro, o amor desinteressado. Quer que aceitemos a aridez, se ela se apresenta, e que mesmo procurando-o, saibamos prescindir da doçura da sua presença. Procuremos Jesus com um amor desvelado, como Madalena, com um amor verdadeiramente dedicado, com o desejo de lhe oferecer o perfume do nosso afeto e da nossa compaixão. Não podemos estar sempre junto de Jesus na oração, saibamos também servi-lo na pessoa dos seus irmãos. Jesus diz a Madalena: «Vai ter com os meus irmãos para lhes participares a minha ressurreição». Vamos ter com os seus irmãos para lhes sermos piedosamente úteis, edificando-os, falando-lhes d'Ele, realizando junto deles algum ato de apostolado. Procuremos Jesus fielmente e de todo nunca o abandonemos, nem por temor, nem por desânimo, nem por causa da nossa vida passada, nem por causa das tentações e das perseguições. Com que ardor Madalena procura o seu bem amado! Ela é a primeira junto do sepulcro no dia de Páscoa. Lá está antes do nascer do dia. Corre a informar-se junto de S. Pedro e de S. João. Volta, mantém-se lá à espera, chora. Dirige-se àquele que ela julga ser o jardineiro, e é Jesus mesmo que a recompensa com o seu afeto tão terno. Mas diz-lhe o «Não me toques!», para lhe recordar que o nosso amor deve ser absolutamente puro, sobrenatural e desinteressado. (Leão Dehon, OSP 4, p. 82s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:

    "Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura" (2 Cor 5, 17)

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    S. Maria Madalena (22 Julho)

  • S. Brígida, Religiosa, Padroeira da Europa

    S. Brígida, Religiosa, Padroeira da Europa


    23 de Julho, 2025

    Santa Brígida nasceu na Suécia em 1303. Casou muito jovem e teve oito filhos. Já membro da Ordem terceira de S. Francisco, depois da morte do marido, iniciou uma vida de grande austeridade e penitência, continuando a viver na família. Acabou por fundar uma Ordem Religiosa e, partindo para Roma, foi para todos exemplo de grande virtude. Fez diversas peregrinações e escreveu muitas obras em que narra as suas experiências místicas. Morreu em Roma em 1373. É a santa mais famosa dos países escandinavos. Com S. Catarina de Sena e S. Teresa Benedita da Cruz, é padroeira da Europa.

    Lectio

    Primeira leitura: Gálatas 2, 19-20

    Irmãos: Eu pela Lei morri para a Lei, a fim de viver para Deus. Estou crucificado com Cristo. 20Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim.

    Paulo diz, "pela Lei morri para a Lei, a fim de viver para Deus" (v. 19). Ele era um daqueles judeus que afirmavam que a aceitação da Lei produzia por si mesma (ex opere operato) a vinculação a Deus. Ao converter-se, morreu para essa conceção pelagiana do religioso: considerar que, nas relações do homem com Deus, é o homem que tem a iniciativa. Pelo contrário, a vida religiosa está, por assim dizer, acima do "eu": "Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim." (v. 20). Não se trata de nenhuma substituição. Paulo não está a fazer antropologia, mas a expor a sua experiência religiosa. Se a presença de Deus no homem fosse o resultado de um esforço puramente humano, "a graça de Deus" seria como que "inútil". A fé é sempre um dom gratuito. Não há mecanismo catequético ou evangelizador que, por si só, produza a graça nos crentes. A "graça" é mesmo gratuidade de Deus. Compete-nos "apenas" acolhê-la e corresponder-lhe.

    Evangelho: João 15, 1-8

    Naquele tempo, Jesus disse aos seus discípulos: "Eu sou a videira verdadeira e o meu Pai é o agricultor. 2Ele corta todo o ramo que não dá fruto em mim e poda o que dá fruto, para que dê mais fruto ainda. 3Vós já estais purificados pela palavra que vos tenho anunciado. 4Permanecei em mim, que Eu permaneço em vós. Tal como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, mas só permanecendo na videira, assim também acontecerá convosco, se não permanecerdes em mim. 5Eu sou a videira; vós, os ramos. Quem permanece em mim e Eu nele, esse dá muito fruto, pois, sem mim, nada podeis fazer. 6Se alguém não permanece em mim, é lançado fora, como um ramo, e seca. Esses são apanhados e lançados ao fogo, e ardem. 7Se permanecerdes em mim e as minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes, e assim vos acontecerá. 8Nisto se manifesta a glória do meu Pai: em que deis muito fruto e vos comporteis como meus discípulos."

    A alegoria da videira e dos ramos garante-nos que a promessa da presença de Jesus no meio de nós está cumprida. Há que "permanecer" n´Ele para produzir os frutos que Deus espera de nós, ou melhor, permitir ao Espírito, a "seiva" divina, que produza em nós os seus frutos. Por nós mesmos, não podemos produzi-los. A obra de Jesus, que culminou na sua morte, "limpou-nos". No nosso texto é a Palavra que aparece como meio de purificação. Esta Palavra é a comunicação de Jesus aos seus discípulos através da sua vida, da sua morte, da sua pessoa. Há que permanecer n´Ele.

    Meditatio

    Santa Brígida deixou-se purificar pela Palavra. Na capela do SS. Sacramento, na Basílica de S. Paulo, em Roma, há uma estátua de mármore da santa em atitude de quem escuta a voz de Jesus Cristo, que lhe fala da cruz. Aos pés da estátua há uma legenda que diz: "Com o ouvido atento recebe as palavras do seu Deus Crucificado; recebe o Verbo de Deus no seu coração". Efetivamente, uma caraterística de S. Brígida foi a sua intimidade constante com Jesus, a sua familiaridade, as suas íntimas comunicações, e a sua docilidade infantil. O que mais nos espanta nela é a união extraordinária da vida interior e exterior. É uma santa mística que vivia no céu e também uma santa peregrina, em constante movimento de fundações e visitas a santuários.
    Casada com o príncipe Merício, descendente dos reis da Suécia, levou, com o marido, uma vida feliz, no cumprimento fiel dos seus deveres de esposos e de pais. Deus, todavia, tinha um outro projeto de vida para ela. O marido morreu muito mais cedo do que ambos imaginavam. Então, Brígida repartiu equitativamente os bens pelos filhos e consagrou-se inteiramente a Deus, numa vida austera de oração e penitência. Em 1349, Brígida seguiu para Roma com uma filha, a futura S. Catarina da Suécia. Praticou uma vida de grande pobreza, chegando a pedir esmolas. A quem a repreendia, por causa da sua condição nobre, respondeu: "Como Jesus se abaixou sem pedir o vosso consentimento, porque não havia eu de prescindir dele quando me esforço por imitá-lo?".
    Uns dez anos antes de morrer, fundou a ordem de S. Salvador, que ainda hoje existe em diversos países. Depois de peregrinar à Terra Santa, com a filha Catarina e outros dois filhos, regressou a Roma, onde faleceu a 23 de Julho de 1373. Da peregrinação à Terra Santa, dizia: "Foram os mais belos quinze meses da minha vida". Foi na Terra Santa que "se cumpriu o mistério da nossa redenção e donde a Palavra de Deus se difundiu até aos confins do mundo... As pedras sobre as quais caminhou o nosso Redentor permanecem para nós carregadas de recordações e continuam a "gritar" a Boa Nova". É uma espécie de "quinto evangelho". (Exortação Apostólica pós-sinodal Verbum Dei, 89). Como tantos outros cristãos, ao longo dos séculos, S. Brígida, fez essa experiência, no século XIV.

    Oratio

    "Bendito sejais, meu Senhor Jesus Cristo, que, para nossa salvação, permitistes que o vosso Lado e o vosso Coração fossem trespassados pela lança e fizestes brotar abundantemente do vosso peito sangue e água para nossa redenção... Honra sempiterna vos seja dada, meu Senhor Jesus Cristo, que ao terceiro dia ressuscitastes dos mortos e Vos manifestastes vivo àqueles que escolhestes... Louvor e glória eterna a Vós, Senhor Jesus Cristo, que enviastes o Espírito Santo aos corações dos discípulos e comunicastes às almas o vosso imenso amor. Louvor e glória eterna a Vós, Senhor Jesus Cristo". Ámen. (S. Brígida).

    Contemplatio

    Permaneçamos unidos à videira. O agricultor corta da videira os ramos mortos e aqueles que não dão frutos. Limpa os sarmentos que dão frutos, para que produzam ainda mais. «É assim que fará o Pai celeste, diz-nos Nosso Senhor: todo o ramo que não der fruto em mim, cortá-lo-á; atirá-lo-á para longe de mim, será privado da seiva que é a graça e cairá na morte espiritual. Mas os que prometem fruto, podá-los-á, purificá-los-á através de alguma prova e curá-los-á das suas inclinações depravadas, para que deem ainda mais frutos». «Quanto a vós, dizia ainda Nosso Senhor, estais todos podados e purificados pelas instruções que vos dei; mas para que esta purificação se conserve e complete, para que a vossa fecundidade em obras de salvação se desenvolva, uni-vos sempre mais intimamente a mim, permanecei em mim e eu, por minha parte, permanecerei em vós. Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na vinha, se não está aderente à cepa donde tira a seiva vivificante, assim não podeis produzir nada, se não permanecerdes em mim». Sim, Senhor, quero permanecer em vós. Sinto que é a condição da vida, da fecundidade e da felicidade. Quero permanecer em vós pela fidelidade da minha recordação, da minha ternura e da minha dedicação, pela conformidade dos meus pensamentos aos vossos pensamentos, dos meus sentimentos aos vossos sentimentos, das minhas alegrias às vossas alegrias, das minhas tristezas às vossas tristezas, do meu querer à vossa vontade. Só quero ter convosco uma existência, um fim, uma felicidade: a glória de Deus, o reino do Sagrado Coração e a salvação das almas. (Leão Dehon, OSP 3, p. 457s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Permanecei em mim, que Eu permaneço em vós" (Jo 15, 4).

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    S. Brígida, Religiosa, Padroeira da Europa (23 Julho)

  • S. Tiago, Apóstolo

    S. Tiago, Apóstolo


    25 de Julho, 2025

    S. Tiago, chamado "o Maior", para se distinguir de outro apóstolo do mesmo nome, era filho de Zebedeu e de Salomé, e irmão de S. João Evangelista (cf. Mc 15, 40; Mt 27, 56). Com ele, e com Pedro, fez parte do grupo dos primeiros três discípulos de Jesus, o grupo mais íntimo, que acompanhou o Senhor na Transfiguração e na Agonia. Figura proeminente da igreja, Tiago foi preso em Jerusalém, por ordem de Herodes Agripa, sendo o primeiro apóstolo a derramar o seu sangue, em testemunho da sua fé, nos dias da Páscoa (cf. At 12, 1-3), por volta do ano 44. O seu culto desenvolveu-se notavelmente em Compostela que, desde a Idade Média, se tornou um dos centros de peregrinação mais concorridos, em todo o mundo.

    Lectio

    Primeira leitura: Segunda Coríntios 4, 7-15

    Irmãos: Nós trazemos este tesouro em vasos de barro, para que se veja que este extraordinário poder é de Deus e não é nosso. 8Em tudo somos atribulados, mas não esmagados; confundidos, mas não desesperados; 9perseguidos, mas não abandonados; abatidos, mas não aniquilados. 10Trazemos sempre no nosso corpo a morte de Jesus, para que também a vida de Jesus seja manifesta no nosso corpo. 11Estando ainda vivos, estamos continuamente expostos à morte por causa de Jesus, para que a vida de Jesus seja manifesta também na nossa carne mortal. 12Assim, em nós opera a morte, e em vós a vida. 13Animados do mesmo espírito de fé, conforme o que está escrito: Acreditei e por isso falei, também nós acreditamos e por isso falamos, 14sabendo que aquele que ressuscitou o Senhor Jesus, também nos há-de ressuscitar com Jesus, e nos fará comparecer diante dele junto de vós. 15E tudo isto faço por vós, para que a graça, multiplicando-se na comunidade, faça aumentar a acção de graças, para a glória de Deus.

    A liturgia aplica literalmente ao apóstolo Tiago o que Paulo diz a partir da sua própria experiência: "Trazemos sempre no nosso corpo a morte de Jesus" (10ª). Há uma mensagem que começa em Jesus, passa de Jesus a Paulo, de Paulo a Tiago e assim sucessivamente, ao longo da história, formando uma corrente de testemunhas, ou melhor, de "mártires" no sentido próprio do termo. Quem recebe a graça de derramar o sangue por amor de Cristo e dos irmãos, pode dizer, com verdade, que leva em si a morte de Cristo. Mas também o pode dizer quem vive serenamente a radicalidade evangélica no seu dia-a-dia. A Palavra do "mártir" é significativa e eficaz porque, à eloquência da palavra, junta a do sangue derramado.

    Evangelho: Mateus 20, 20-28

    Naquele tempo, aproximou-se de Jesus a mãe dos filhos de Zebedeu, com os seus filhos, e prostrou-se diante dele para lhe fazer um pedido. 21«Que queres?» - perguntou-lhe Ele. Ela respondeu: «Ordena que estes meus dois filhos se sentem um à tua direita e o outro à tua esquerda, no teu Reino.» 22Jesus retorquiu: «Não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que Eu estou para beber?» Eles responderam: «Podemos.»23Jesus replicou-lhes: «Na verdade, bebereis o meu cálice; mas, o sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não me pertence a mim concedê-lo: é para quem meu Pai o tem reservado.» 24Ouvindo isto, os outros dez ficaram indignados com os dois irmãos. 25Jesus chamou-os e disse-lhes: «Sabeis que os chefes das nações as governam como seus senhores, e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. 26Não seja assim entre vós. Pelo contrário, quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo; e 27quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo. 28Também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para resgatar a multidão.»

    Mateus parece usar de uma fina ironia ao narrar o episódio que hoje escutamos. Facilmente desculpamos a mãe, que, como tal, quere o melhor para os filhos. Mas já não somos tão compreensivos para com os dois irmãos que, sem pensar muito, se declaram prontos a beber o cálice com Jesus. Mas Jesus, muito ao seu jeito, transformando a hipótese em profecia, prediz, efetivamente, a morte que Tiago irá padecer por causa da sua radical fidelidade ao Mestre e ao Evangelho. Ao mesmo tempo, aproveita para dar uma lição de humildade útil a todos, também outros apóstolos irritados e desdenhosos.

    Meditatio

    Partimos, hoje, de uma afirmação de Jesus que nos permite penetrar no seu coração, conhecer as suas disposições mais profundas: "o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para resgatar a multidão" (v. 28). Jesus tem consciência de ser o Filho imolado por amor, para redenção dos irmãos. Vive conscientemente e decididamente a espiritualidade do Servo de Javé, a espiritualidade do Cordeiro imolado. E não fica por belas palavras ou ideais meramente românticos. A sua espiritualidade "vitimal" ou, se preferirmos, "oblativa" até à imolação concretiza-se no "serviço" vivido no total despojamento de si mesmo e em plena confiança no Pai. É o Servo de Deus, mas também o servo "de muitos", isto é, de todos aqueles que o Pai lhe confiou como irmãos, oprimidos pelo pecado mas abertos ao dom da libertação. Recebeu das mãos do Pai o cálice da paixão, e bebeu-o até à última gota, até à morte de cruz, entregando-se confiadamente nas mãos do Pai.
    Os Apóstolos também "beberam o cálice do Senhor, e tornaram-se amigos de Deus", como diz a antífona da comunhão da festa de S. Tiago inspirada em Mt 20, 22-23. Foi esta a glória dos Apóstolos, e concretamente a de Tiago, que esperava outra bem diferente, quando decidiu seguir Jesus. Quem está com Jesus só pode aspirar a uma glória semelhante à d´Ele: a de participar na sua cruz, nos seus sofrimentos, em profunda união com Ele, em favor de muitos.

    Oratio

    Senhor Jesus, tu és o Filho de Deus Pai que vives e manifestas a tua submissão numa total disponibilidade. Tu és a Palavra que ilumina o nosso caminho: o que dizes vale para ti e vale para nós, e para todos os que livremente te escolheram como Senhor e Mestre. Viveste o teu martírio em todos os momentos da tua vida na terra. Quem te conhece sabe que, para ti, ser servo significa viver tudo por Deus e tudo pelos irmãos. É a "lei real", de que fala na sua carta, o teu apóstolo Tiago. Enche-me do teu Espírito, para toda a minha vida se torne uma oblação santa e agradável ao Pai, pelos homens. Ámen.

    Contemplatio

    Tiago e João, Pedro e André eram muito afetuosos, muito amigos para com Nosso senhor, sobretudo os três primeiros. Eram os discípulos do Sagrado Coração, os amigos de Jesus. Por isso, Nosso Senhor os tinha sempre junto de si. Eram os seus íntimos, os seus confidentes. Muitas vezes os tomava à parte e lhes dava uma confiança que não dava aos outros. Para a ressurreição da filha de Jairo, a exclusão dos outros é fortemente assinalada no Evangelho. S. Marcos diz: «Jesus não permitiu a nenhum dos seus discípulos que o seguisse, exceto Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago». S. Lucas diz: «Não permitiu a ninguém entrar na casa com os pais, exceto Pedro, Tiago e João» (8, 51). Para a transfiguração, S. Mateus (17, 2) e S. Marcos (9, 1) dizem-nos: Jesus tomou à parte Pedro, Tiago e João, sozinhos consigo, e levou-os à montanha para rezar. O privilégio é ainda acentuado. No repouso do Monte das Oliveiras, diante de Jerusalém, da qual Nosso Senhor predisse a destruição, tem alguns privilegiados sentados junto de si. E era sem dúvida normalmente assim. Estes tinham os seus segredos. Interrogavam-no em segredo, secretamente, diz S. Mateus (24, 4) à parte, separadamente, diz S. Marcos (13, 3); mas quem eram estes quatro privilegiados? S. Marcos dá-nos os seus nomes. Era Pedro, Tiago, João e André. Na Ceia, Pedro, João e Tiago estavam sentados junto de Jesus. Se eu pudesse pelo meu amor e pela minha fidelidade merecer ser um verdadeiro discípulo do Sagrado Coração! Para o Getsémani, S. Mateus (26, 36) e S. Marcos (14, 33) dizem-nos: «Jesus deixou os seus discípulos à entrada do jardim, mas tomou consigo Pedro, Tiago e João». Os outros não estavam suficientemente formados para suportarem sem escândalo o espetáculo da agonia, mas estes três fizeram um melhor noviciado, foram tão dóceis e tão afetuosos! (L. Dehon, OSP 3, p. 311-312).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Beberam o cálice do Senhor, e tornaram-se amigos de Deus"
    (antífona da comunhão da festa de S. Tiago).
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    S. Tiago, Apóstolo (25 Julho)

     

  • S. Joaquim e S. Ana, Pais de Nossa Senhora

    S. Joaquim e S. Ana, Pais de Nossa Senhora


    26 de Julho, 2025

    O evangelho de S. Tiago, escrito apócrifo do século II, reconstrói, decalcando a história de Ana, mãe de Samuel (cf. 1 Sam 1, 1-28), a história da Virgem Maria. Joaquim, idoso sacerdote do templo de Jerusalém, era casado com Ana, mulher estéril. Depois de uma aparição angélica, concebem a futura Mãe do Redentor, que oferecerão a Deus no templo (cf. 21 de Novembro). Mas não há qualquer referência a estes santos nos evangelhos canónicos. Na tradição da Igreja, Joaquim e Ana são protótipos dos esposos cristãos. De há uns anos para cá, a sua festa é também celebrada como "Dia dos Avós".

    Lectio

    Primeira leitura: Ben Sirá 44, 1.10-15

    Louvemos os homens ilustres, nossos antepassados,segundo as suas gerações.10Foram homens de misericórdia, cujas obras de piedade não foram esquecidas. 11Na sua descendência permanecem os seus bens, e a sua herança passa à sua posteridade. 12Os seus descendentes mantiveram-se fiéis à Aliança, os seus filhos também, graças a eles. 13A sua posteridade permanecerá para sempre, e a sua glória não terá fim. 14Os seus corpos foram sepultados em paz, e o seu nome vive de geração em geração; 15Os povos proclamarão a sua sabedoria, e a assembleia cantará os seus louvores.

    Ben Sirá evoca figuras ilustres que marcaram o passado da história de Israel, em ordem a infiltrar, com o seu exemplo, nova vida no presente e a projetar a esperança do povo na direção do futuro. O bem paticado é um capital precioso e fecundo, que permanece, e de que se pode dispor. Quando é praticado em e por homens virtuosos, tece a verdadeira trama da história da salvação. Deus intervém nessa história, para redimir o homem, mas servindo-se do próprio homem. A fidelidade do Senhor tem o seu fundamento no céu, mas radica na terra, graças aos que permanecem fiéis às suas promessas.

    Evangelho: Mateus 13, 16-17

    Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: "Ditosos os vossos olhos, porque vêem, e os vossos ouvidos, porque ouvem.17Em verdade vos digo: Muitos profetas e justos desejaram ver o que estais a ver, e não viram, e ouvir o que estais a ouvir, e não ouviram.»

    Os discípulos de Jesus têm a sorte de ver a realização das promessas. Gerações de profetas e justos construíram, degrau a degrau, uma história de confiança, de espera e de esperança. Esses profetas e justos são ditosos porque, ainda que não tenham visto nem ouvido o que os discípulos veem e ouvem, acreditaram e apostaram a sua vida baseando-se na Palavra da aliança. Os discípulos são ditosos porque veem e ouvem a Palavra feita carne, Jesus Cristo nossa Vida e Salvação. Eles são o último elo da geração herdeira das promessas e o primeiro da que deve transmitir o testemunho da sua realização.

    Meditatio

    Sabemos muito pouco sobre os pais de Maria. Também eles estão sob a lei do silêncio e do escondimento que Deus aplicou à vida de Maria e à maior parte da vida histórica de Jesus.
    Os evangelhos apócrifos falam das suas dificuldades. Um texto da igreja arménia do século XIII diz-nos que Joaquim e Ana eram justos e puros, levavam uma vida piedosa e um comportamento inocente e imune à calúnia. Eram zelosos na oração, no jejum e na abstinência. Eram uma família assídua ao templo, cheia de caridade, incansável no trabalho e, em consequência, rica de bens. Dividiam o rendimento anual em três partes: uma para o Templo e sustento dos sacerdotes; outra para os pobres, e a terceira para eles mesmos. É lógico pensar que Deus os tenha chamado a participar no mistério de Jesus, cuja chegada prepararam. Permanece a glória de terem sido os pais de Nossa Senhora.
    S. Joaquim e S. Ana encorajam a nossa confiança: Deus é bom e na história da humanidade, história de pecado e de misericórdia, o que fica é a glória, é o positivo que construiu em nós.
    Joaquim e Ana foram escolhidos entre o povo eleito, mas de dura cerviz, para que, entre esse povo, florescesse Maria e, dela, Jesus. É a maior manifestação do amor misericordioso de Deus.
    Agradeçamos ao Senhor. Nós somos os ditosos, nós que vemos e ouvimos, o que muitos profetas e justos apenas entreviram na fé e na esperança.
    Lembremos os nossos avós. Um provérbio africano afirma: "Das panelas velhas, tira-se a melhor sopa". Os "avós" são verdadeiras preciosidades. Há que rodeá-los de cuidados e carinhos, e não desperdiçar o muito que têm para nos dizer e ensinar, particularmente a sua fé e a sua esperança.

    Oratio

    Pai Santo, hoje, "invocarei com confiança S. Joaquim e Santa Ana, que Jesus, teu Filho, honra como seus avós. Eles são poderosos sobre o seu Coração. Dai-me a graça de imitar a sua humildade, a sua confiança, o seu espírito de sacrifício. Lembrando-me de Nazaré, levá-los-ei em espírito até junto de Jesus e de Maria. Ámen. (cf. Leão Dehon, OSP 4, p. 95).

    Contemplatio

    S. Joaquim e Santa Ana tinham chegado a uma idade avançada sem terem filhos como a santa mãe de Samuel. Resignados à vontade de Deus, suplicavam, no entanto, ao mesmo Deus que realizasse os seus desejos dando-lhes um fruto da sua união, que consagrariam ao serviço do templo. Ana sobretudo multiplicava as orações e as boas obras para obter este favor. Um dia em que Joaquim rezava sobre uma colina, onde pastava o seu rebanho, e Ana no seu jardim onde ela tinha feito para si uma solidão, um anjo veio anunciar-lhes que o céu tinha atendido os seus pedidos e que eles iam ser consolados com uma criança de bênção. A oração perseverante é a fonte das maiores graças. No dia 8 de Setembro, Ana deu ao mundo uma filha que, segundo a ordem do Senhor, ela chamou Maria. Com que cuidado educou esta criança abençoada! É representada tendo diante de si a sua filha privilegiada e ensinando-a a ler as divinas Escrituras. Quando Maria atingiu a idade de três anos, Ana e Joaquim, lembrando-se da promessa que tinham feito, levaram-na ao templo de Jerusalém para a oferecerem ao Senhor. Segundo a tradição, Sant'Ana vivia ainda nos primeiros anos de Nosso Senhor. Ela pôde, portanto, levá-lo nos seus braços e sentá-lo nos seus joelhos. Contemplou os seus traços infantis tão belos. Teve conhecimento dos milagres do seu nascimento. Oh! As doces emoções que ela sentiu! A recordação destes felizes momentos faz a sua alegria no céu, bem como a contemplação do seu neto, que reina nos céus eternamente. Invejamos a sua sorte, mas não esquecemos que na comunhão nós levamos também Nosso Senhor no nosso coração. (Leão Dehon, OSP 4, p. 93s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "O fruto do justo é uma árvore de Vida" (Prov 11, 30).

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    S. Joaquim e S. Ana, Pais de Nossa Senhora (26 Julho)

  • 17º Domingo do Tempo Comum – Ano C [atualizado]

    17º Domingo do Tempo Comum – Ano C [atualizado]

    27 de Julho, 2025

    ANO C

    17.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 17.º Domingo do Tempo Comum

    Como nos relacionamos com Deus? Comunicamos com Ele? Sentimos necessidade de falar com Ele sobre a nossa vida, as nossas inquietações, dúvidas, alegrias e tristezas? Estamos interessados em escutar o que Deus tem para nos dizer? Como se processa o nosso diálogo com Deus? É sobre estas questões que a Palavra de Deus deste domingo nos fala.

    Na primeira leitura o patriarca Abraão dirige-se ao Deus que veio visitá-lo e dialoga com Ele. Abraão expõe a Deus as suas inquietações, as suas dúvidas, as suas questões, num diálogo respeitoso, mas também frontal, sincero, confiante. Deus responde de forma franca às perguntas de Abraão e partilha com ele os planos que tem para o mundo e para os homens. É um diálogo honesto e verdadeiro de amigos que têm apreço um pelo outro e que se interessam pelo que o outro pensa e sente. Esta “conversa” pode ser modelo da nossa oração, do nosso diálogo com Deus.

    No Evangelho Jesus conta aos discípulos a sua experiência de Deus e mostra-lhes como devem falar com Deus. Convida-os a verem Deus como um pai bom e cheio de amor, sempre disponível para escutar os seus filhos; pede-lhes que, quando falarem com esse Pai, procurem perceber e acolher os projetos que Ele tem para o mundo e para os homens; sugere-lhes que se entreguem nas mãos desse Pai e que confiem n’Ele incondicionalmente. Assim, cada momento de oração será uma experiência inolvidável de intimidade, de familiaridade e de comunhão.

    Na segunda leitura Paulo, dirigindo-se aos cristãos da cidade de Colossos, recorda-lhes o papel e o lugar de Cristo no projeto salvador de Deus em favor dos homens; e convida-os a serem coerentes com os compromissos que assumiram no dia em que escolheram caminhar com Cristo.

     

    LEITURA I – Génesis 18,20-32

    Naqueles dias, disse o Senhor:
    «O clamor contra Sodoma e Gomorra é tão forte,
    o seu pecado é tão grave
    que Eu vou descer para verificar
    se o clamor que chegou até Mim
    corresponde inteiramente às suas obras.
    Se sim ou não, hei de sabê-lo».
    Os homens que tinham vindo à residência de Abraão
    dirigiram-se então para Sodoma,
    enquanto o Senhor continuava junto de Abraão.
    Este aproximou-se e disse:
    «Irás destruir o justo com o pecador?
    Talvez haja cinquenta justos na cidade.
    Matá-los-ás a todos?
    Não perdoarás a essa cidade,
    por causa dos cinquenta justos que nela residem?
    Longe de Ti fazer tal coisa:
    dar a morte ao justo e ao pecador,
    de modo que o justo e o pecador tenham a mesma sorte!
    Longe de Ti!
    O juiz de toda a terra não fará justiça?»
    O Senhor respondeu-lhe:
    «Se encontrar em Sodoma cinquenta justos,
    perdoarei a toda a cidade por causa deles».
    Abraão insistiu:
    «Atrevo-me a falar ao meu Senhor,
    eu que não passo de pó e cinza:
    talvez para cinquenta justos faltem cinco.
    Por causa de cinco, destruirás toda a cidade?»
    O Senhor respondeu:
    «Não a destruirei se lá encontrar quarenta e cinco justos».
    Abraão insistiu mais uma vez:
    «Talvez não se encontrem nela mais de quarenta».
    O Senhor respondeu:
    «Não a destruirei em atenção a esses quarenta».
    Abraão disse ainda:
    «Se o meu Senhor não levar a mal, falarei mais uma vez:
    talvez haja lá trinta justos».
    O Senhor respondeu:
    «Não farei a destruição, se lá encontrar esses trinta».
    Abraão insistiu novamente:
    «Atrevo-me ainda a falar ao meu Senhor:
    talvez não se encontrem lá mais de vinte justos».
    O Senhor respondeu:
    «Não destruirei a cidade em atenção a esses vinte».
    Abraão prosseguiu:
    «Se o meu Senhor não levar a mal,
    falarei ainda esta vez:
    talvez lá não se encontrem senão dez».
    O Senhor respondeu:
    «Em atenção a esses dez, não destruirei a cidade».

     

    CONTEXTO

    Designados genericamente como “tradições patriarcais”, os capítulos 12 a 36 do livro do Génesis apresentam diversos relatos singulares, originalmente independentes uns dos outros e sem caráter de exatidão histórica. Nas “tradições patriarcais encontramos “mitos de origem” (relatos que contam como um qualquer “patriarca” chegou a um determinado lugar e tomou posse daquela terra), “lendas cultuais” (lendas ligadas a “lugares sagrados” que contam como um deus ali apareceu) e memórias diversas relativas à luta diária pela existência das tribos nómadas que circulavam pela Palestina no segundo milénio antes de Cristo. Os teólogos de Israel, muitos séculos mais tarde, soldaram esses materiais uns aos outros, enriqueceram-nos com as suas reflexões teológicas e apresentaram-nos aos crentes israelitas com o objetivo de fazer catequese.

    Entre os materiais que compõem as “tradições patriarcais” está a memória de um cataclismo que atingiu e destruiu diversas povoações situadas nas margens do Mar Morto (cf. Gn 19). Sodoma foi uma das cidades destruídas (as outras teriam sido Gomorra, Adama, Seboim e Segor). Alguns estudiosos modernos têm procurado uma explicação para essa catástrofe na geologia da área: a região fica situada na falha do vale do Jordão, numa zona sujeita a terramotos e a atividades vulcânicas. Depósitos de betume e de petróleo têm sido descobertos nesta região; e alguns escritores antigos atestam a presença de gases que, uma vez inflamados, poderiam causar uma terrível destruição, do tipo relatado em Gn 19.

    As marcas desse cataclismo ainda eram visíveis muitos séculos depois (como, aliás, são visíveis ainda hoje); por isso, é natural que os israelitas se interrogassem sobre as razões de uma tão terrível devastação. Os teólogos israelitas compreenderam que essa memória oferecia uma oportunidade para fazer catequese. A destruição de Sodoma e das cidades à volta do Mar Morto foi então apresentada, pela catequese de Israel, como o castigo de Deus para o pecado dos homens. Os crentes israelitas eram assim convidados a descobrir que o pecado leva o homem por caminhos sem saída e sem futuro. Simultaneamente, os teólogos de Israel aproveitaram o “diálogo” entre Deus e Abraão sobre Sodoma para propor aos crentes um ensinamento sobre o “peso” do justo nas “contas” de Deus (cf. Gn 18,16-33).

     

    MENSAGEM

    Depois de ter experimentado a hospitalidade de Abraão (cf. Gn 18,1-15), Deus dispõe-se a enviar os seus mensageiros a Sodoma, a cidade pecadora, para saber, de fonte segura, se a conduta dos habitantes da cidade corresponde “ao brado” que chegou até Ele (cf. Gn 18,20-22). Entretanto, Deus demora-se a conversar com Abraão sobre os seus planos para Sodoma.

    É precisamente aí que o autor javista resolve inserir a pergunta fundamental que o inquieta: que acontecerá se a “investigação” de Deus revelar a existência na cidade de um pequeno grupo de “justos”? Deus vai castigar todos os habitantes da cidade, incluindo os “justos”? Será que um punhado de “justos” vale tanto que, por amor deles, Deus esteja disposto a perdoar o castigo a uma multidão de culpados?

    A ideia de que um punhado de “justos” possa salvar a cidade pecadora é, em pleno séc. X a.C. (a época do javista), uma ideia revolucionária. Para a mentalidade religiosa dos israelitas dessa altura, todos os membros de uma comunidade (família, cidade, nação) eram solidários no bem e no mal; se alguém falhasse, o castigo devia, invariavelmente, atingir toda a comunidade. Apesar disso, os teólogos javistas atrevem-se a sugerir que talvez a “justiça” de uns tantos seja, para Deus, mais importante do que o pecado da maioria.

    O problema que Abraão procura resolver é, portanto, se aos olhos de Deus um grupo de “justos” tem tal peso que, por amor deles, Deus esteja disposto a suspender o castigo que pesa sobre toda a comunidade. Quantos “justos” serão necessários para que Deus suspenda o castigo? Os números sucessivamente avançados por Abraão (em forma descendente, de cinquenta até dez) fazem parte do folclore do “regateio”, procedimento habitual nos mercados do Médio Oriente; mas servem, também, para pôr em relevo a misericórdia e a “justiça de Deus”: a descida até aos dez “justos” e as sucessivas declarações de Deus manifestando-se disponível para suspender o castigo mostram que, n’Ele, a misericórdia é maior do que vontade de castigar, a vontade de salvar é infinitamente maior do que a vontade de condenar.

    Definida a questão fundamental, reparemos agora na forma como se desenrola a “conversa” entre Abraão e Deus. Deus faz questão de não ocultar nada ao seu amigo Abraão (cf. Gn 18,17-19). Explica-lhe francamente o que está em causa e desvela-lhe o seu plano, se se confirmar a culpa dos habitantes de Sodoma (cf. Gn 18,20-21). É muito sugestiva a ideia de que Deus, apesar da sua grandeza e omnipotência, quer manter o homem a par dos projetos que tem para o mundo. Abraão, por sua vez, apresenta-se com humildade e respeito, pois sente-se “pó e cinza” diante da grandeza de Deus; no entanto, à medida que o diálogo avança e percebe que pode contar com a benevolência de Deus, vai ganhando confiança. A certa altura ficamos mesmo com a sensação de que Abraão está mesmo a ser importuno na sua insistência e ousado no seu regateio. No papel do “orante” que intercede pela cidade pecadora, Abraão atreve-se a apelar à misericórdia e a “lembrar” a Deus que a inocência de alguns deve ter mais valor do que a culpabilidade de muitos. Em nenhum momento Deus se recusa a escutar Abraão ou contesta as observações do seu amigo.

    O diálogo franco, confiante, insistente, ousado, familiar, que Abraão estabelece com Deus poderá ser visto como um modelo de oração para todo o crente. Afinal, o Deus de Abraão (que é também o nosso) é um Deus que se dispõe a vir ao encontro do homem, a entrar na tenda do homem, a sentar-se à mesa com o homem, a estabelecer comunhão com o homem, a contar ao homem os seus projetos, a escutar tudo aquilo que o homem lhe quiser dizer. Um Deus que Se revela dessa forma é um Deus com quem o homem pode dialogar, com amor e sem temor.

     

    INTERPELAÇÕES

    • O diálogo entre Deus e Abraão sobre a sorte dos “justos” que habitavam na cidade de Sodoma, expõe um “dogma” que a catequese de Israel muito cedo percebeu e integrou na sua reflexão: Deus é clemente e compassivo; a sua misericórdia é muito maior do que a sua vontade de castigar a maldade. Deus até – diz a catequese de Israel – está disposto a perdoar uma cidade pecadora se nela houver apenas dez “justos”! Contudo, trinta séculos depois, ainda há quem acredite num Deus cuja principal ocupação é “tomar nota” das maldades dos homens e retaliar contra aqueles que desafiaram as suas “ordens”. Como vemos e entendemos Deus? Caminhamos pela vida esmagados pelo medo da “vingança” de um deus justiceiro e castigador, ou confiantes na misericórdia e na compaixão de um Deus que ama os seus filhos com amor de pai?
    • O Deus que conta a Abraão os seus planos para a cidade de Sodoma não é um Deus distante e inacessível, que vive alheado da realidade e da história dos homens; mas é um Deus que se atreve a vir ao encontro do homem, que aceita a hospitalidade que o homem lhe oferece e que até discute com o homem os projetos que tem para o mundo. Esse Deus da relação, do diálogo, do encontro, da comunhão, é um Deus com quem podemos falar, com quem podemos partilhar as nossas dúvidas, inquietações, sonhos e esperanças. Quando vemos Deus desta forma, o nosso encontro com Ele torna-se diálogo de amigos ou, noutra dimensão, diálogo de um filho com o seu pai. Então, começamos a perceber que esse Deus nos “faz falta”. Sentimos continuamente vontade de “conversar” com Ele, de lhe dizer o que nos vai no coração, de escutar os seus conselhos e indicações, de passar tempo com Ele. É essa a “experiência de Deus” que fazemos?
    • O diálogo de Abraão com Deus poderia servir de modelo para a oração de qualquer crente: é um diálogo humilde, reverente, respeitoso, mas também confiante, ousado, verdadeiro. Não é uma repetição de palavras ocas ou de fórmulas estereotipadas, gravadas e repetidas por um qualquer aparelho mecânico ou uma mente acrítica, mas um diálogo espontâneo e sincero, no qual o crente se expõe e coloca diante de Deus tudo aquilo que lhe enche o coração. As nossas orações são um diálogo espontâneo, vivo, confiante com Deus, ou são repetições fastidiosas de fórmulas fixas, mastigadas à pressa, sem significado e sem alma?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 137 (138)

    Refrão: Quando Vos invoco, sempre me atendeis, Senhor.

    De todo o coração, Senhor, eu Vos dou graças,
    porque ouvistes as palavras da minha boca.
    Na presença dos Anjos hei de cantar-Vos
    e adorar-Vos, voltando para o vosso templo santo.

    Hei de louvar o vosso nome pela vossa bondade e fidelidade,
    porque exaltastes acima de tudo o vosso nome e a vossa promessa.
    Quando Vos invoquei, me respondestes,
    aumentastes a fortaleza da minha alma.

    O Senhor é excelso e olha para o humilde,
    ao soberbo conhece-o de longe.
    No meio da tribulação Vós me conservais a vida,
    Vós me ajudais contra os meus inimigos.

    A vossa mão direita me salvará,
    o Senhor completará o que em meu auxílio começou.
    Senhor, a vossa bondade é eterna,
    não abandoneis a obra das vossas mãos.

     

    LEITURA II – Colossenses 2,12-14

    Irmãos:
    Sepultados com Cristo no batismo,
    também com Ele fostes ressuscitados
    pela fé que tivestes no poder de Deus
    que O ressuscitou dos mortos.
    Quando estáveis mortos nos vossos pecados
    e na incircuncisão da vossa carne,
    Deus fez que voltásseis à vida com Cristo
    e perdoou-nos todas as nossas faltas.
    Anulou o documento da nossa dívida,
    com as suas disposições contra nós;
    suprimiu-o, cravando-o na cruz.

     

    CONTEXTO

    A cidade de Colossos pertencia à província romana da Ásia e estava situada na Frígia, a leste de Éfeso, a poucos quilómetros de Hierápolis e Laodiceia. A comunidade cristã de Colossos nasceu do trabalho missionário de Epafras, discípulo de Paulo (cf. Cl 1,7; 4,12-13). Era constituída maioritariamente por cristãos vindos do paganismo, embora também incluísse um certo número de judeo-cristãos.

    Quando escreveu esta carta, Paulo estava na prisão (talvez em Roma, nos anos 61 a 63). Epafras tinha ido visitá-lo e tinha-lhe falado dos problemas que a comunidade cristã de Colossos estava a enfrentar. Esses problemas resultavam da presença em Colossos de pregadores cristãos que propunham doutrinas pouco consentâneas com o Evangelho de Jesus. Misturando elementos judaicos com elementos sincretistas de origem diversa, esses pregadores exigiam a circuncisão (Cf. Cl 2,11-13), a observância do sábado, a celebração de certas festas religiosas (cf. Cl 2,16), a abstinência de determinados alimentos (cf. Cl 2,16.20-22); sublinhavam o papel e o lugar dos poderes cósmicos que governavam os astros; recomendavam o culto dos anjos; propunham rituais de iniciação e o exercício de diversas práticas ascéticas destinadas a comunicar aos fiéis um conhecimento superior dos mistérios.

    Paulo percebeu que estes erros eram graves, pois ameaçavam subalternizar o lugar central de Cristo, único salvador e redentor do homem. Paulo, procurando esclarecer os cristãos de Colossos, exorta-os a não darem ouvidos a esses pregadores e a não se deixarem enredar em filosofias vazias e enganadoras, fundadas em tradições humanas e não em Cristo (cf. Cl 2,8). Garante-lhes que Cristo basta, pois é n’Ele que reside a plenitude da divindade; Cristo é a cabeça de todo o principado e potestade e foi Ele que nos redimiu com a sua morte (cf. Col 2,9-15).

     

    MENSAGEM

    No dia em que aderiu a Cristo e recebeu o batismo, o crente incorporou-se em Cristo e identificou-se com Cristo. A vida de Cristo passou a circular nele. Revivificado por essa vida, o crente morreu para o pecado e ressuscitou para uma vida nova, para uma vida totalmente outra (“sepultados com Cristo no batismo, também com Ele fostes ressuscitados pela fé que tivestes no poder de Deus que O ressuscitou dos mortos” – vers. 12). Portanto, quem escolheu Cristo, libertou-se de todas as cadeias que o tolhiam e lhe roubavam a vida. Não precisa de recorrer a outras filosofias, a outros “poderes”, a outras propostas (anjos, poderes cósmicos, leis véterotestamentários, práticas ascéticas rígidas) para ter acesso à salvação. É Cristo que salva; Cristo basta.

    Para explicitar, através de uma imagem gráfica, a intervenção salvadora de Cristo, Paulo refere-se a um “documento de dívida” que a morte de Cristo teria “anulado” (vers. 14). Em que é que o autor da carta está a pensar quando refere esse documento? Não sabemos exatamente. Pode ser uma alusão à lei de Moisés que, com as suas leis, exigências e prescrições impossíveis de cumprir na totalidade, constituía uma “acusação” contra as falhas dos homens; ou pode também evocar certas tradições judaicas da época, que falavam de um “registo” onde Deus inscreveria as “contas” dos homens (cf. Sl 139,16). Seja como for, o crente já não precisa de viver no medo do castigo. Cristo, com a sua entrega na cruz, anulou o documento que listava os débitos do homem. Agora esses débitos estão saldados.

    Enxertado em Cristo, vivificado pela comunhão com Cristo, o crente é um Homem Novo. Pode caminhar a passos largos em direção à vida em plenitude.

     

    INTERPELAÇÕES

    • É frequente termos, nas nossas experiências de vida, momentos que consideramos decisivos, que marcam e definem o sentido do nosso caminho. Para Paulo, o momento decisivo da sua vida foi o seu encontro com Cristo na estrada de Damasco (cf. At 9,1-18; 22,4-21; 26,9-18). Desde esse instante, Paulo percebeu que queria Cristo no centro da sua vida. Passou a construir toda a sua existência à volta de Cristo e da sua proposta de salvação. Considerou fundamental tudo aquilo que o aproximava de Cristo e o punha em comunhão com Cristo, e secundário tudo aquilo que não o ajudava a chegar a Cristo. Tudo isso aparece bem evidente na reflexão e nos desafios que Paulo deixa aos cristãos de Colossos. Também nós, como Paulo de Tarso, nos encontramos com Cristo num determinado momento do nosso caminho; também nós aderimos a Cristo e nos dispusemos a caminhar com Ele; também nós vimos no Evangelho anunciado por Cristo uma proposta de salvação capaz de mudar o mundo e de dar um sentido pleno às nossas vidas. Cristo tem-se mantido no centro das nossas vidas, ou substituímo-lo por outras figuras e interesses? O Evangelho proposto por Cristo é a lei fundamental à volta da qual construímos o nosso projeto de vida?
    • O nosso batismo foi, para cada um de nós, o momento do compromisso com Cristo. Nesse dia, renunciámos ao pecado e comprometemo-nos a caminhar sempre atrás de Cristo no caminho da doação, do serviço simples e humilde, da entrega da vida por amor; fomos ungidos com o óleo do crisma e enviados ao mundo como testemunhas da salvação de Deus; recebemos a luz de Cristo e fomos desafiados a iluminar o mundo com a verdade de Cristo. É este “caminho” que temos vindo a percorrer? A nossa vida, as nossas opções, as nossas palavras, os nossos gestos e o nosso testemunho têm sido coerentes com os compromissos que assumimos no dia em que fomos batizados e começamos a caminhar com Cristo?
    • Paulo fala de um “documento da nossa dívida” que Cristo “suprimiu, cravando-o na cruz”. É uma imagem muito expressiva para dizer que Cristo, oferecendo a sua vida até ao dom total de si mesmo, nos libertou do egoísmo, do orgulho, da ambição, da violência, da autossuficiência, da maldade, do medo, de tudo o que leva à morte. Agora, libertos de todo esse “lastro” que nos prendia e nos impedia de dar sentido pleno à nossa existência, podemos viver como Homens Novos, que caminham decididos em direção à vida verdadeira. A consciência de que Cristo nos libertou é para nós fonte de alegria e de esperança ao longo do caminho que vamos fazendo todos os dias? Estamos decididos a mantermo-nos livres, seguindo os passos e as indicações de Cristo?

     

    ALELUIA – Romanos 8,15bc

    Aleluia. Aleluia.

    Recebestes o espírito de adoção filial;
    nele clamamos: «Abba, ó Pai».

     

    EVANGELHO – Lucas 11,1-13

    Naquele tempo,
    Estava Jesus em oração em certo lugar.
    Ao terminar, disse-Lhe um dos discípulos:
    «Senhor, ensina-nos a orar,
    como João Baptista ensinou também os seus discípulos».
    Disse-lhes Jesus:
    «Quando orardes, dizei:
    ‘Pai,
    santificado seja o vosso nome;
    venha o vosso reino;
    dai-nos em cada dia o pão da nossa subsistência;
    perdoai-nos os nossos pecados,
    porque também nós perdoamos a todo aquele que nos ofende;
    e não nos deixeis cair em tentação’».
    Disse-lhes ainda:
    «Se algum de vós tiver um amigo,
    poderá ter de ir a sua casa à meia-noite, para lhe dizer:
    ‘Amigo, empresta-me três pães,
    porque chegou de viagem um dos meus amigos
    e não tenho nada para lhe dar’.
    Ele poderá responder lá de dentro:
    ‘Não me incomodes;
    a porta está fechada,
    eu e os meus filhos estamos deitados
    e não posso levantar-me para te dar os pães’.
    Eu vos digo:
    Se ele não se levantar por ser amigo,
    ao menos, por causa da sua insistência,
    levantar-se-á para lhe dar tudo aquilo de que precisa.
    Também vos digo:
    Pedi e dar-se-vos-á;
    procurai e encontrareis;
    batei à porta e abrir-se-vos-á.
    Porque quem pede recebe;
    quem procura encontra
    e a quem bate à porta, abrir-se-á.
    Se um de vós for pai e um filho lhe pedir peixe,
    em vez de peixe dar-lhe-á uma serpente?
    E se lhe pedir um ovo, dar-lhe-á um escorpião?
    Se vós, que sois maus,
    sabeis dar coisas boas aos vossos filhos,
    quanto mais o Pai do Céu
    dará o Espírito Santo àqueles que Lho pedem!».

     

    CONTEXTO

    Jesus percorre com os discípulos o caminho que leva da Galileia a Jerusalém (cf. Lc 9,51-19,28). No esquema teológico de Lucas esse caminho é, mais do que um caminho geográfico, um caminho espiritual, ao longo do qual os discípulos vão interiorizando os valores do Reino de Deus e crescendo na adesão a Jesus. No caminho para Jerusalém, os discípulos recebem as lições que os habilitam para continuarem, no “tempo da Igreja”, a obra de Jesus.

    Desta vez, a lição é sobre a oração. O narrador leva-nos até um lugar – possivelmente isolado – onde Jesus está em oração. Os discípulos estão um pouco afastados. Não ousam interrompê-lo, mas estão impressionados com a forma como Ele se relaciona com Deus. Quando Jesus termina a sua oração, pedem-lhe que que os ensine a rezar, pois também eles querem seguir o seu exemplo e aproximar-se desse Pai bom do qual tanto ouvem falar.

    Lucas dá grande importância à oração de Jesus. Ele refere a oração de Jesus em diversas situações, nomeadamente no Batismo (cf. Lc 3,21), antes da eleição dos Doze (cf. Lc 6,12), antes do primeiro anúncio da paixão (cf. Lc 9,18), no contexto da transfiguração (cf. Lc 9,28-29), após o regresso dos discípulos da missão (cf. Lc 10,21), na última ceia (cf. Lc 22,32), no Getsemani (cf. Lc 22,40-46) e na cruz (cf. Lc 23,34.46). Lucas pretende insinuar que Jesus, antes de tomar decisões fundamentais, fala com o Pai e procura, pela oração, discernir a vontade do Pai.

    A oração do “Pai nosso” – a oração que Jesus ensinou aos seus discípulos – aparece também, embora noutro contexto, no Evangelho de Mateus (cf. Mt 6,9-13). As fórmulas usadas por um e outro evangelista apresentam significativas diferenças. Isso significa, provavelmente, que Lucas e Mateus colheram as suas fórmulas do “Pai nosso” em tradições litúrgicas distintas. A versão de Mateus condiz com um meio judeo-cristão, enquanto que a de Lucas – mais breve e com menos embelezamentos litúrgicos – poderá estar mais próxima da fórmula original proposta por Jesus.

     

    MENSAGEM

    Como é que os discípulos de Jesus devem rezar? Jesus refere-se a dois aspetos que devem ser considerados no diálogo com Deus. O primeiro diz respeito à “forma”: deve ser um diálogo como o de um filho com o seu pai; o segundo diz respeito ao “assunto”: esse diálogo incidirá na realização do plano do Pai para o mundo e para os homens.

    Os discípulos de Jesus devem experimentar Deus como um pai e dirigir-se a Ele como a um pai (“quando orardes, dizei: ‘Pai’” – vers. 2). Ver Deus como um “pai” não é, para os contemporâneos de Jesus, uma novidade. No Antigo Testamento, Deus é “o pai” que manifesta amor e solicitude pelo seu Povo (Os 11,1-9; cf. Dt 32,6; Is 63,16; 64,7-8; Jr 3,19; 31,9; Mal 2,10); mas na época de Jesus não era habitual os crentes usarem este título na oração individual para se dirigirem a Deus.

    No entanto, Jesus usava-o (cf. Lc 10,21; 23,34). É provável até que utilizasse a palavra aramaica “abba” (“Abbá, Pai, tudo te é possível; afasta de mim este cálice!” – Mc 14,36), um termo do mundo das crianças que expressa a ternura, a simplicidade, a dependência, a confiança de um filho pequenino quando se dirige ao seu “papá” (a comunidade cristã primitiva, “tocada” pela utilização que Jesus fez da palavra, recolheu-a e utilizou-a, por sua vez, para referir-se a Deus – cf. Rm 8,15; Gl 4,6). Para Jesus, Deus era o “Abbá”, o Pai muito querido. Jesus sentia-se intimamente ligado a esse Pai, experimentava a ternura desse Pai, confiava plenamente nesse Pai. Era dessa forma que Ele experimentava e sentia Deus.

    Ao pedir aos discípulos que tratem Deus por “Pai”, Jesus admite-os à comunhão que existe entre Ele e Deus. Identificados com Jesus, os discípulos estabelecem com Deus uma relação íntima, única, familiar. Passam a ser irmãos de Jesus e entram na família de Deus. Tornam-se “filhos de Deus”.

    Sentir-se “filho” de Deus significa, por outro lado, reconhecer a fraternidade, a comunhão com uma imensa família que reúne homens e mulheres de todas as raças, culturas e nações. Dizer a Deus “Pai” implica sair do individualismo que aliena, superar as divisões e destruir as barreiras que impedem de amar e de ser solidários com os outros irmãos, filhos queridos do mesmo “Pai”.

    Definida a “atitude”, falta definir o “assunto” ou o “tema” da oração. Jesus sugere diversas “petições” que podem entrar no diálogo dos seus discípulos com o “Pai”.

    A primeira tem a ver com a santificação do nome de Deus (“santificado seja o vosso nome”). O crente expressa o desejo de que Deus se manifeste como Salvador aos olhos de todos os povos e todos reconheçam a grandeza e a soberania de Deus sobre o mundo e sobre a história. Reconhecendo a autoridade de Deus, os homens passarão a viver na obediência aos seus preceitos e mandamentos. Será o fim de todas as injustiças e o início de uma nova realidade.

    A segunda refere-se à vinda do Reino de Deus (“venha o vosso reino”). O “Reino de Deus” é o grande tema e a grande “paixão” de Jesus. Jesus, sentindo que esse era o projeto do Pai, anuncia e propõe um mundo que funcione de acordo com os valores de Deus: um mundo de paz, de justiça, de fraternidade, de igualdade entre todos os homens. Esse “Reino de Deus” opõe-se aos grandes impérios deste mundo, construídos sobre injustiças, violências, ambições, guerras e mortes. Para Jesus, faz todo o sentido pedir a Deus que o “Reino” se torne uma realidade na vida do mundo e dos homens.

    A terceira implora o pão quotidiano para todos os filhos de Deus (“dai-nos em cada dia o pão da nossa subsistência” – vers. 3). Jesus via todos os dias desfilar pelos caminhos da Galileia homens sem trabalho, que não tinham pão para dar aos seus filhos. É provável que, ao passar por zonas despovoadas e pobres, Ele próprio e os discípulos nem sempre encontrassem o pão de que necessitavam para se alimentar. No entanto, Ele sabia que Deus tinha alimentado o seu povo ao longo da caminhada pelo deserto e fazia em cada ano florescer as sementes nos campos. O pão, necessário para subsistir em cada dia, é um dom de Deus; é Deus que provê às necessidades dos seus filhos. Assim, é necessário pedir a Deus o pão de cada dia. E esse pão que Deus distribui é “nosso” (não “meu”); destina-se à subsistência de todos os filhos de Deus e não apenas daquele que reza. A visão egoísta e açambarcadora dos bens dados por Deus não cabe nesta oração.

    A quarta pede a Deus o perdão dos pecados (“perdoai-nos os nossos pecados, porque também nós perdoamos a todo aquele que nos ofende” – vers. 4a). O pedido para que Deus perdoe os pecados é frequente nas orações dos judeus. Também para os discípulos que rodeavam Jesus, o pedido para que o Pai perdoasse os “pecados” fazia todo o sentido: apesar das boas intenções que tinham, eles deixavam-se dominar a cada passo do caminho por medos e receios, por invejas e ciúmes, por ambições e projetos egoístas. Necessitavam do perdão de Deus. No entanto, na oração ensinada por Jesus havia algo novo: a sugestão de um compromisso com o perdão aos irmãos. Quem quiser experimentar o perdão de Deus que cura e regenera, deve comprometer-se a perdoar aos seus irmãos. Ninguém pode sentir-se em paz com o Pai se não se sentir em paz com o seu irmão.

    A quinta e última (“não nos deixeis cair em tentação” – vers. 4b) solicita a ajuda de Deus para que os discípulos não se deixem seduzir pelo apelo das felicidades ilusórias, dos caminhos fáceis que não levam a lado nenhum, das lógicas que afastam dos valores do Evangelho, das solicitações de um mundo materialista, violento, injusto e desumano.

    Embora seja uma oração breve, o “Pai nosso” sintetiza tudo o que Jesus viveu e sentiu a propósito de Deus e dos seus projetos. Constitui também um resumo de tudo o que Jesus disse e ensinou, um verdadeiro compêndio do Evangelho. Faz todo o sentido, portanto, que esta seja a oração dos discípulos de Jesus; faz todo o sentido que, sempre que os discípulos se reúnem à volta da mesa eucarística, rezem “a oração que Jesus ensinou”.

    A lição de Jesus sobre a oração, no caminho para Jerusalém, conclui-se com duas parábolas. Na primeira (vers. 5-8), há um “amigo importuno” que pede insistentemente pães emprestados, e um outro amigo que se levanta da cama a horas impróprias para entregar ao primeiro os pães que ele reclama. O acento não deve ser posto na insistência do “amigo importuno”, mas sim na ação do amigo que satisfaz o pedido que lhe é feito. O que Jesus sugere parece claro: se os homens são capazes de escutar o apelo de um amigo importuno, muito mais Deus atenderá generosamente aqueles que se Lhe dirigem. A segunda parábola (vers. 9-13) convida à confiança em Deus. Um pai escuta sempre os pedidos do seu filho e não o defraudará. Da mesma forma, Deus conhece-nos bem, escuta os nossos pedidos e sabe do que necessitamos. Seja qual for a “resposta” de Deus, de uma coisa podemos estar certos: Ele nunca dará nada que nos faça mal. Nos momentos mais complicados da nossa vida, a oração insistente fará com que o Pai nos dê o seu Espírito. Animados e fortalecidos pela força de Deus, podemos enfrentar todas as crises e dificuldades.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Lucas faz questão de nos dizer que Jesus manteve, ao longo de toda a sua vida, um constante diálogo com o Pai. Depois de cada jornada gasta a percorrer as aldeias da Galileia, a curar as feridas dos homens, a contar parábolas que anunciavam a chegada iminente de um mundo novo, a experimentar a oposição dos líderes judaicos, a constatar a falta de fé dos habitantes das cidades do lago, a verificar a dificuldade dos discípulos em aceitar os valores do Reino, Jesus sentia necessidade de se afastar para um sítio isolado para passar tempo de qualidade com o Pai. Era nesse tempo que Ele contava ao Pai o que lhe ia no coração, experimentava a ternura do Pai, procurava discernir os projetos do Pai, recebia do Pai a força para enfrentar as oposições e servir o Reino de Deus. E nós, formados na “escola de Jesus”, também procuramos encontrar espaço, no final de cada dia, para dialogar com Deus? No meio da agitação e dos problemas que todos os dias nos visitam, encontramos tempo para “sentirmos o pulso” de Deus, para contarmos a Deus as nossas dúvidas e inquietações, para tentarmos perceber o projeto de Deus tem para nós e para o mundo?
    • Jesus sentia Deus como um pai bom, que acolhe com ternura e bondade os seus filhos, que os escuta interessadamente, que partilha com eles os seus projetos, que os apoia e abraça, que lhes dá a força necessária para enfrentarem os ventos e marés da vida e da história. Quando se experimenta Deus desse jeito, sentimo-nos bem a dialogar com Deus, a contar-lhe o que nos vai no coração, a procurar discernir o que Ele quer de nós, a fazer a sua vontade. Como vemos Deus? Ele é para nós, como o era para Jesus, o “papá” a quem amamos e por quem nos sentimos amados, em quem confiamos incondicionalmente, a quem recorremos confiadamente, com quem partilhamos tudo o que nos acontece, ou é o Deus distante, inacessível, indiferente, que facilmente deixamos de lado porque não tem qualquer lugar especial no nosso projeto de vida?
    • Jesus pede aos seus discípulos que, sempre que falarem com Deus, tenham presente o projeto de Deus para o mundo e para os homens. Para Jesus, a oração não é o momento para tentarmos pôr Deus ao serviço das nossas negociatas pessoais e dos nossos interesses mesquinhos; mas é o momento de olharmos para além de nós, para as necessidades do mundo e dos irmãos que partilham connosco o caminho da vida; é o momento de procurarmos perceber o que é que Deus quer de nós e qual o papel que nos destina na concretização dos seus planos. Quando falamos com Deus, o que lhe dizemos? Que questões pomos em cima da mesa? A nossa oração cinge-se ao âmbito restrito dos nossos interesses pessoais, ou contempla os interesses de Deus e dos homens nossos irmãos?
    • Dialogarmos com o nosso Pai do céu é tomarmos consciência de que fazemos parte de uma grande família, de uma família constituída por homens e mulheres de todas as raças e culturas. Tratar a Deus por “Pai” leva-nos à descoberta da fraternidade. A melhor forma de rezar o “Pai nosso” é de mãos dadas com os nossos irmãos. Quando rezamos o “Pai nosso”, temos consciência dos laços fraternos que nos unem a todos os homens e mulheres que se cruzam connosco nos caminhos da vida? Quando rezamos o “Pai nosso” sentimo-nos responsáveis por todos os nossos irmãos, sobretudo pelos mais frágeis, por aqueles que necessitam dos nossos cuidados, por aqueles que tantas vezes são abandonados nas bermas da estrada da vida?
    • Jesus não vê inconveniente que, no diálogo com Deus, lhe peçamos que cuide do “nosso pão” de cada dia. Não do “meu pão”, mas do “nosso pão”. Não fazemos este pedido para Deus não se esquecer de nos providenciar as coisas necessárias à subsistência dos seus filhos e filhas. Deus nunca poderia esquecer isso. Jesus convida-nos a fazer este pedido para nos lembrarmos, nós próprios, que tudo aquilo que Deus nos dá para a nossa subsistência pertence a todos os filhos e filhas de Deus e deve ser partilhado com todos os nossos irmãos. Como consideramos os bens que Deus coloca à nossa disposição? Como conquistas pessoais, que se destinam apenas a alimentar o nosso bem-estar pessoal, ou como “prendas” de Deus destinadas a todos os seus filhos e filhas, sem exceção?
    • Jesus convida os discípulos a pedir a Deus que compreenda as faltas que são inerentes à condição humana e perdoe os pecados que tiverem cometido. Mas também vincula, de algum modo, o perdão de Deus ao perdão que os seus discípulos devem oferecer uns aos outros. Aquele que se recusa a perdoar as fragilidades do seu irmão, não tem moral para pedir a Deus que lhe perdoe as suas próprias fragilidades. Poderemos rezar o “Pai nosso” e pedir a Deus que nos perdoe quando nos recusamos a abraçar um irmão que nos magoou ou a quem magoamos?
    • Jesus pede aos seus discípulos: “pedi e dar-se-vos-á; procurai e encontrareis; batei à porta e abrir-se-vos-á. Porque quem pede recebe; quem procura encontra e a quem bate à porta, abrir-se-á”. No entanto, parece-nos muitas vezes que Deus não atende as nossas preces ou que as atende “fora de prazo”; e perguntamo-nos porquê… Será que Deus não é “fiável”? Será que, afinal, Deus se “está nas tintas” para aquilo que lhe pedimos? Jesus estava convicto de que Deus acolhe cada um dos nossos pedidos. Talvez o “tempo” de Deus não coincida com o “tempo” dos homens; talvez algumas das coisas que pedimos não encaixem nos projetos de Deus; talvez Deus tenha uma forma diferente da nossa de ver as coisas; talvez Deus saiba melhor do que nós aquilo que nos conduz à vida… Seja qual for a razão da (aparente) indiferença de Deus às solicitações que lhe fazemos, somos convidados por Jesus a confiar em Deus, no seu amor de Pai, no seu interesse pela nossa salvação. Estamos dispostos a confiar incondicionalmente em Deus, mesmo quando Ele parece ignorar a nossa vontade?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 17.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (em parte adaptadas de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 17.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. RECORDAR OS LUGARES DE ORAÇÃO.

    Este domingo “da oração” pode ser ocasião para recordar os lugares de oração da paróquia (igreja, capela…), dalgum santuário próximo, dalguns lugares que são destino de férias… Pode-se colocar essas indicações à entrada da igreja, precisando os lugares, horários e todas as informações úteis. De qualquer modo, para além do lugar de culto, é bom recordar que o grande espaço de oração é o coração da própria pessoa, aberto a Deus, e a nossa casa-família.

    3. O LIVRO DAS INTENÇÕES DE ORAÇÃO.

    Pode-se colocar um livro à entrada da igreja, para quem quiser escrever uma intenção de oração. Todas essas orações (ou apenas algumas) podem ser proclamadas no momento da oração universal.

    4. ORAÇÃO NA LECTIO DIVINA.

    Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.

    No final da primeira leitura:
    “Deus de bondade, nós Te damos graças pelo teu Filho Jesus; inocente, aceitou morrer pelos pecadores.
    Como é grande o clamor que sobe de todas as regiões atingidas pelos cataclismos, os da natureza divina e os de origem humana. Ilumina-nos sobre as formas de socorrer as vítimas”.

    No final da segunda leitura:
    “Deus da vida e da ressurreição, nós Te damos graças pelo nosso batismo. Estávamos votados à morte e Tu nos deste a vida, perdoaste os pecados da humanidade e apagaste os nossos.
    Nós Te pedimos pelos jovens e os adultos que se preparam para o batismo e por aqueles que reencontram a fé, após períodos de abandono. Mantém-nos no caminho de conversão”.

    No final do Evangelho:
    “Pai Nosso, nós Te damos graças pela oração, porque Jesus teu Filho ensinou-nos a procurar-Te, a bater à tua porta, a pedir-Te o pão e a falar-Te diretamente e com confiança, como filhos a seu Pai.
    Nós Te pedimos: que o teu nome seja santificado, que venha a nós o teu reino, dá-nos o teu pão de vida, perdoa, dá-nos o teu Espírito Santo”.

    5. BILHETE DE EVANGELHO.

    Nós não pedimos a mesma coisa a um pai, a um filho, a um amigo, a um vizinho, ao chefe da empresa. A oração dirige-se a Deus que chamamos “Pai” (“Abba” em arameu, palavra cuja melhor tradução seria “Paizinho querido”). Não se trata de pedir qualquer coisa sem mais ao nosso Pai. Jesus indica-nos os objetos do nosso pedido. Primeiro, que Deus seja reconhecido como Deus e que o seu projeto de amor sobre o mundo seja posto em ação. Em seguida, pedimos-lhe aquilo que é vital para nós: o alimento para viver, o perdão para amar, a liberdade para permanecer de pé. Eis os pedidos essenciais. Então, não hesitemos em insistir de todos os modos: se Lhe pedimos isso, Ele não pode ficar surdo.

    6. À ESCUTA DA PALAVRA.

    O “Pai Nosso” é a única oração que Jesus ensinou aos seus discípulos. É também a própria oração de Jesus. “Senhor, ensina-nos a orar”. Como ensinar os outros a rezar, se nós próprios não rezamos? Jesus foi buscar à sua experiência a oração que deu aos seus discípulos. Assim, dizemos palavras que o próprio Jesus diz connosco. A sua oração e a nossa oração são uma única e mesma súplica. Jesus está sempre vivo para interceder em nosso favor. Cada dia, Jesus reza connosco a seu Pai e nosso Pai. Hoje, coloca-se o acento numa oração de louvor e ação de graças. A oração de pedido não é tão valorizada. Porém, a oração que Jesus ensina aos seus discípulos é, antes de mais, uma oração de pedido. O verbo “pedir” aparece seis vezes na passagem de hoje (ver no Evangelho). A experiência parece dizer que os nossos pedidos não são atendidos. Mas Jesus dá-nos uma chave de leitura: é o Espírito Santo que o Pai nos quer dar, o Amor infinito. Trata-se, portanto, de pedir, antes de mais, que este Amor infinito nos modele cada vez mais profundamente, para que aprendamos a ver como Deus nos vê, a amar como Ele nos ama. Ora, entrar numa aventura de amor exige paciência, e também renúncia a nós mesmos para nos abrirmos cada vez mais ao outro. Na realidade, aí está todo o sentido da nossa vida. Nós somos muitas vezes impacientes, ficamos no imediato, na superfície das coisas. Deus olha o coração, vai além das aparências, numa confiança total. Caminho exigente, este que nos conduzirá para além de nós próprios, até à Casa do Nosso Pai.

    7. ORAÇÃO EUCARÍSTICA.

    Pode-se escolher a Oração Eucarística I para a Reconciliação. Ela recorda, de maneira significativa, a intercessão e a mediação de Cristo, de que fala a primeira leitura.

    8. PALAVRA PARA O CAMINHO…

    Como se fosse a primeira vez… Como os discípulos, coloquemo-nos sem cessar na escola de Jesus para rezar. Reaprender d’Ele o sentido e a força das palavras que Ele nos deixou. Redizê-las, saboreá-las e deixar que elas nos transformem… Nesta semana, procuremos rezá-las como se fizéssemos uma primeira descoberta recebendo-as da própria boca de Jesus. Rezar o Pai Nosso como se fosse a primeira vez…

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

  • SS. Marta, Maria e Lázaro, Hospedeiros do Senhor

    SS. Marta, Maria e Lázaro, Hospedeiros do Senhor


    29 de Julho, 2025

    (Próprio da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus - Dehonianos)

    Marta é irmã de Maria e de Lázaro de Betânia. No evangelho aparece em apenas três episódios (Lc 10, 38-42; Jo 11, 1-44; Jo 12, 1-11). É uma mulher dinâmica, que acolhe desveladamente Jesus. Maria, também aparece apenas três vezes em cena, nos evangelhos, (Lc 10; Jo 11; Mt 26). É a mulher atenta e contemplativa, que dá mais atenção ao Senhor do que às "coisas do Senhor". De Lázaro sabemos apenas o que dele se diz no evangelho de João (11, 1-14; 12, 1-2). Os três são amigos e hospedeiros do Senhor.

    Lectio

    Primeira leitura: 1 João 4,7-16

    Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. 8Aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor. 9E o amor de Deus manifestou-se desta forma no meio de nós: Deus enviou ao mundo o seu Filho Unigénito, para que, por Ele, tenhamos a vida. 10É nisto que está o amor: não fomos nós que amámos a Deus, mas foi Ele mesmo que nos amou e enviou o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados. 11Caríssimos, se Deus nos amou assim, também nós devemos amar-nos uns aos outros. 12A Deus nunca ninguém o viu; se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor chegou à perfeição em nós. 13Damos conta de que permanecemos nele, e Ele em nós, por nos ter feito participar do seu Espírito. 14Nós o contemplámos e damos testemunho de que o Pai enviou o seu Filho como Salvador do mundo. 15Quem confessar que Jesus Cristo é o Filho de Deus, Deus permanece nele e ele em Deus. 16Nós conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele. Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele.

    "Amor com amor se paga", diz o nosso povo. "Deus é amor" e amou-nos por primeiro; "Amemo-nos uns aos outros". São os pensamentos centrais deste texto. No capítulo III da sua carta, João abordou o tema do amor do ponto de vista negativo: quem não ama, comete pecado, e o pecador não pode ver a Deus. Agora expõe o mesmo pensamento, mas do ponto de vista positivo: o amor é necessário porque Deus é amor, "porque o amor vem de Deus".
    O nosso amor a Deus é sempre resposta ao seu amor por nós. O amor de Deus manifestou-se, historicamente, em Cristo. A família de Lázaro de Betânia experimentou esse amor, e correspondeu-lhe acolhendo Jesus com delicadeza e generosidade.

    Evangelho: Lucas 10,38-42

    Naquele tempo, Jesus, continuando o seu caminho, entrou numa aldeia. E uma mulher, de nomeMarta, recebeu-o em sua casa.39Tinha ela uma irmã, chamada Maria, a qual, sentada aos pés do Senhor, escutava a sua palavra. 40Marta, porém, andava atarefada com muitos serviços; e, aproximando-se, disse: «Senhor, não te preocupa que a minha irmã me deixe sozinha a servir? Diz-lhe, pois, que me venha ajudar.» 41O Senhor respondeu-lhe: «Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas; 42mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada.»

    Amar o próximo, como Jesus ensinou na parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37), é necessário. Mas não basta, como verificamos logo a seguir, em Lc 10, 38-42. Jesus entra em casa de Marta e Maria. Marta entrega-se ao trabalho por Jesus; Maria, sentada aos pés do Senhor, escuta-O. Marta protesta, e Jesus diz-lhe: "Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada." (v. 41s.). Não se trata de opor ação e contemplação. Marta apenas representa aqueles cuja ação não se baseia na palavra de Jesus; Maria, pelo contrário, representa os que dão atenção à palavra, que necessariamente deve traduzir-se em serviço amoroso a Deus e ao próximo.

    Meditatio

    Santa Marta é a mulher eficiente e segura de si mesma. Por isso, se deixa levar excessivamente pelo que deve fazer, perdendo de vista a motivação do seu trabalho. No confronto com Jesus, percebe que a eficiência não é o valor mais alto, e que só é importante na medida em que for equilibrado pelo acolhimento, pela atenção ao outro e pelo "temor de Deus", isto é, movido pelo amor. Se assim não for, a ação pode tornar-se ativismo, que descuida o essencial e se torna fonte de ansiedade e de fragmentação.
    O episódio que hoje escutamos levou Santa Marta, não só a fazer coisas pelo Senhor, mas, sobretudo, a colocar-se diante d´Ele em verdade e diálogo. Dessa atitude resultou aquela fé segura com que, ainda que chorosa e desiludida com a morte do irmão Lázaro, se dirigiu ao Senhor: "Senhor, se Tu cá estivesses, o meu irmão não teria morrido. Mas, ainda agora, eu sei que tudo o que pedires a Deus, Ele to concederá." (Jo 11, 21s.). Marta deixou-se conduzir por Jesus no caminho do sofrimento que a levou a conhecer melhor a Jesus e a si mesma.
    Maria é exemplo do discípulo que descobre a Palavra de Deus em Jesus Cristo e a acolhe com atenção. Ela não é um místico que se eleva até Deus, mas um crente que está atento à palavra concreta que Deus lhe dirige, e a procura pôr em prática.
    Lázaro é o chefe de família que acolhe Jesus, Palavra de Deus feita carne, e se deixa transformar por ela. O amor de Jesus fê-lo regressar da morte à vida. E Lázaro, com as suas irmãs, souberam corresponder ao amor de Jesus, acolhendo com entusiasmo, delicadeza e generosidade em sua casa: "Seis dias antes da Páscoa, Jesus foi a Betânia, onde vivia Lázaro, que Ele tinha ressuscitado dos mortos. Ofereceram-lhe lá um jantar. Marta servia e Lázaro era um dos que estavam com Ele à mesa. Então, Maria ungiu os pés de Jesus com uma libra de perfume de nardo puro, de alto preço, e enxugou-lhos com os seus cabelos. A casa encheu-se com a fragrância do perfume." (Jo 12, 1-3).

    Oratio

    Pai santo, que na casa de Betânia, fizeste experimentar ao teu Filho muito amado a alegria da amizade, a solicitude do serviço e a escuta atenta da sua palavra, concede, também a nós, a graça de aderirmos a Ele, nosso único Mestre, pelo ardor da meditação e das obras de caridade, para que, tornando-nos agradáveis aos seus olhos, sejamos acolhidos na alegria eterna. Ámen. (uma das coletas propostas para esta festa).

    Contemplatio

    Marta e Maria têm cuidados assíduos por Nosso Senhor e pelos apóstolos. Assistem-nos nas suas necessidades. Recebem-nos e cuidam deles em Betânia. Nosso Senhor encontra lá o seu repouso, a sua consolação. Volta para lá à noite, depois das suas pregações no templo e é envolvido de cuidados. Marta e Maria são fiéis a Jesus nas suas provações. São vítimas com Ele. Seguem-no até ao Calvário, partilham as suas dores. São humilhadas e insultadas com Ele e por Ele. Madalena não conhece temor nem hesitação. Está ao pé da cruz com a santa Virgem e S. João. É regada com o sangue de Jesus. Recolhe este sangue precioso. Sepulta Jesus. Leva o sudário e os perfumes. O grande sábado mantém-na afastada do sepulcro, mas volta lá na primeira hora depois do sábado. Procura o seu Jesus crucificado. Madalena e as santas mulheres são os nossos modelos para procurarmos Jesus. Procuremo-lo sempre, procuremo-lo por toda a parte. Procuremo-lo, não para fruirmos já, para dele recebermos graças gratuitas e extraordinárias, mas para compreendermos o seu amor, para imitarmos o seu exemplo, para nos imolarmos com ele. O anjo diz às santas mulheres: «Não temais, procurais Jesus crucificado». Nós também já nada temos a temer, se procurarmos Jesus crucificado. Não nos podemos enganar, se seguirmos Jesus até ao Calvário, na humildade e na imolação. Podemos encontrar a ilusão nas consolações espirituais, não temos que a temer na obediência e no sacrifício, no humilde serviço de Jesus e na fidelidade à nossa regra de vida. Vemos em todas as circunstâncias Santa Madalena, aos pés de Jesus, era assim que ela exprimia a sua humildade e a sua fidelidade. Imitemo-la. (Leão Dehon, OSP 4, p. 81s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Eu estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta,
    Eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo" (Ap 3, 20).

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    SS. Marta, Maria E Lázaro, Hospedeiros do Senhor (29 Julho)