Eventos Fevereiro 2025

  • Ano C - Festa da Apresentação do Senhor

    Ano C - Festa da Apresentação do Senhor

    Todo o dia
    2 de Fevereiro, 2025

    ANO C
    FESTA DA APRESENTAÇÃO DO SENHOR

    Tema da Festa da Apresentação do Senhor

    A “Festa da Apresentação do Senhor” já era celebrada no Oriente no séc. IV. A partir do ano 450, é designada, pelos nossos irmãos do Oriente, como “Festa do Encontro”: “encontro” de Deus com o seu povo, mas também encontro de Maria, José e Jesus com Simeão e Ana, os representantes do Israel fiel, que esperava a salvação de Deus. O “encontro” também é connosco: é o dia para encontrarmos Jesus, a “luz” que ilumina o mundo e as nossas vidas.

    Na primeira leitura, o profeta Malaquias anuncia a proximidade do “Dia do Senhor”, o dia em que Deus vai entrar no seu Templo para purificar o seu povo, para lhe renovar o coração e para o capacitar para viver num dinamismo novo. Começará nesse dia um tempo novo, o tempo da nova Aliança entre Deus e os homens.

    No Evangelho, Lucas mostra como Jesus, poucos dias após o seu nascimento, entrou no Templo de Jerusalém para concretizar a promessa outrora feita por Deus através do profeta Malaquias. Recebido por Simeão e Ana, representantes do Israel fiel que esperava ansiosamente o Messias de Deus, Jesus é apresentado como “luz para as nações” e “glória de Israel”. Ele traz ao mundo a salvação de Deus.

    Na segunda leitura um catequista cristão, escrevendo “aos Hebreus”, apresenta Jesus como o irmão dos homens, que veio ao mundo para promover os “descendentes de Abraão” à categoria de Filhos amados de Deus. Oferecendo a sua vida por amor, ele introduziu na nossa débil, frágil e pecadora natureza humana, dinamismos de superação dos nossos limites, dinamismos de vida nova, de vida verdadeira e eterna.

     

    LEITURA I – Malaquias 3,1-4

    Assim fala o Senhor Deus:
    «Vou enviar o meu mensageiro,
    para preparar o caminho diante de Mim.
    Imediatamente entrará no seu templo
    o Senhor a quem buscais,
    o Anjo da Aliança por quem suspirais.
    Ele aí vem – diz o Senhor do Universo –.
    Mas quem poderá suportar o dia da sua vinda,
    quem resistirá quando Ele aparecer?
    Ele é como o fogo do fundidor
    e como a lixívia dos lavandeiros.
    Sentar-Se-á para fundir e purificar:
    purificará os filhos de Levi,
    como se purifica o ouro e a prata,
    e eles serão para o Senhor
    os que apresentam a oblação segundo a justiça.
    Então a oblação de Judá e de Jerusalém será agradável ao Senhor,
    como nos dias antigos, como nos anos de outrora.

     

    CONTEXTO

    O nome "Malaquias" não é um nome próprio. A palavra significa "o meu enviado". É o título tomado por um profeta anónimo, sobre o qual praticamente nada sabemos e que se apresenta como "enviado" de Javé.

    Esse profeta exerceu a sua missão em Jerusalém, no período pós-exílico. O Templo já havia sido reconstruído (cf. Ml 1,10) e o culto já funcionava — ainda que mal (cf. Ml 1,7-9. 12-13). No entanto, o entusiasmo pela reconstrução estava apagado. Desanimado ao ver que as antigas promessas de Deus (veiculadas por Ezequiel e pelo Deutero-Isaías) não se tinham cumprido, o Povo tinha caído na apatia religiosa e na absoluta falta de confiança em Deus. Duvidava do amor de Deus, da sua justiça, do seu interesse por Judá. Todo este ceticismo tinha repercussões no culto (cada vez mais desleixado) e na ética (multiplicavam-se as falhas, as injustiças, as arbitrariedades). Este quadro, posterior à restauração do Templo, situa-nos na primeira metade do séc. V a.C. (entre 480 e 450 a.C.), muito próximo da época de Esdras e Neemias.

    Malaquias, o "mensageiro de Javé" reage vigorosamente contra a situação em que o Povo de Judá está a cair. Defende intransigentemente os valores judaicos, a fé dos antepassados; aponta o dedo aos sacerdotes, aos levitas e a outros responsáveis pelo culto, denunciando o seu desleixo e venalidade; profetiza a chegada do tempo em que se oferecerá a Deus um culto puro e santo; coloca cada pessoa diante das suas responsabilidades para com Javé e para com o próximo; exige a conversão do Povo e o afastamento da idolatria; condena veementemente os casamentos mistos (entre judeus e não judeus), que fazem perigar a fidelidade a Javé. A sua lógica é a lógica deuteronomista: se o Povo se obstinar em percorrer caminhos de infidelidade à Aliança, voltará a conhecer a morte e a infelicidade, como aconteceu num passado recente; mas se o Povo se voltar para Javé e cumprir os mandamentos, voltará a gozar da vida e da felicidade que Deus oferece àqueles que seguem os seus caminhos.

    O texto de Malaquias que hoje nos é oferecido faz parte de uma perícope que avisa os habitantes de Jerusalém para a inevitabilidade do juízo de Deus: vai chegar o "Dia do Senhor", esse momento decisivo em que Deus colocará cada pessoa diante das suas responsabilidades e retribuirá a cada um conforme os seus merecimentos (cf. Ml 2,17-3,5).

     

    MENSAGEM

    O povo de Judá, cansado e desanimado, extravasa a sua desilusão comentando com amargura que quem faz o mal parece bem visto aos olhos do Senhor e que Deus parece dar-se bem com quem pratica a iniquidade. Afinal, onde é que está a justiça de Deus? – pergunta-se (Ml 2,17). Ora, diz Malaquias, Deus está cansado dessa conversa. Ele, ao contrário do que o povo insinua, não é conivente com o mal; por isso, propõe-se vir ao encontro do seu povo para o julgar.

    A chegada de Deus será precedida por um “mensageiro”, que terá como função preparar o caminho para o Senhor. Não se explica, no nosso texto, quem é esse "mensageiro"; contudo, mais à frente, identifica-se a figura que vai surgir para preparar o "Dia do Senhor" com o profeta Elias (cf. Ml 3,23).

    Depois da vinda do “mensageiro”, chegará o Senhor para exercer o seu juízo sobre os pecadores. Não fica claro, no texto, se esse “Senhor” que vem é o próprio Deus ou se é o seu “Ungido” (“messias”). De qualquer forma, é possível que haja aqui uma referência messiânica, uma vez que o “mensageiro” que antecede “o Senhor” se identifica com a figura de Elias (para os círculos religiosos de Judá, o profeta que havia de vir antes do “Messias”).

    Esse "Senhor" que vem é designado como “o mensageiro da Aliança”. Evidentemente, esta "Aliança" será a "nova Aliança" anunciada por Jeremias (cf. Jr 31,31; 32,40) e por Ezequiel (cf. Ez 16,60; 34,25; 36,26-28), da qual nascerá um povo de coração renovado, um povo que vive em comunhão com Deus e que cumpre os mandamentos e preceitos de Javé. A função do “Senhor” é, pois, possibilitar o aparecimento de uma “nova Aliança” que comprometa Judá com o seu Deus.

    O resultado da intervenção do Senhor, será a purificação do Povo. Para descrever essa purificação, o profeta utiliza elementos e imagens tradicionais: o fogo do fundidor e a lixívia dos lavandeiros, a fundição e a purificação do ouro e da prata vers. 2-3a).

    Dessa “purificação” resultará um novo sacerdócio (“os filhos de Levi... serão para o Senhor os que apresentam a oblação segundo a justiça” – vers. 3), que fará “a oblação de Judá e de Jerusalém” voltar a ser “agradável ao Senhor como nos dias antigos, como nos anos de outrora” (vers. 4).

    A purificação do sacerdócio e do culto operada pelo Senhor, será um sinal claro da chegada de um novo tempo, o tempo em que Deus estará com o seu Povo e em que um Povo de coração renovado prestará um culto sincero, verdadeiro, agradável a Deus.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Na Festa da Apresentação do Senhor, Malaquias “apresenta” o Senhor que vem para purificar o seu Povo e inaugurar um tempo novo, o tempo da nova Aliança. Esta “vinda” mostra que Deus não se conforma com a apatia, o imobilismo, o comodismo, a instalação, o derrotismo que nos impedem de avançar em direção à vida plena; mostra como Deus nunca desiste de nos desafiar à conversão, à renovação, à construção de uma vida mais feliz e realizada. Malaquias compara a intervenção purificadora de Deus com o “fogo do fundidor”, que destrói as escórias e faz aparecer os metais preciosos, ou com a “lixívia dos lavandeiros” que queima, desinfeta, tira as nódoas, purifica e deixa as roupas limpas. Quais são as escórias e os lixos que cobrem a nossa vida e obscurecem a nossa condição de filhos e de filhas de Deus? Quais são as manchas que temos de limpar com lixívia para que a nossa vida brilhe sempre com a brancura de Deus? Estamos disponíveis para acolher as interpelações e desafios purificadores que Deus nos traz?
    • Podemos entender a referência que Malaquias faz à purificação dos “filhos de Levi”, a fim de que eles apresentem a Deus um culto renovado e purificado, como um convite à purificação da nossa forma de viver e de celebrar a fé. Muitas vezes “dizemos” a nossa fé com um conjunto de ritos religiosos meramente exteriores, ocos e vazios, secos e estéreis, que não envolvem o nosso coração e a nossa mente; muitas vezes a nossa forma de viver a fé é uma simples repetição de práticas religiosas tradicionais, de orações decoradas e descoradas, que não expressam o nosso amor e a nossa comunhão com Deus; muitas vezes as nossas celebrações, cheias de pompa e circunstância, são apenas o cumprimento de um folclore religioso que a tradição consagrou… Como podemos purificar a nossa forma de viver e de celebrar a fé? O que teremos de fazer para que as nossas celebrações sejam mais autênticas? As nossas eucaristias são um verdadeiro encontro com Jesus e com os irmãos com quem partilhamos a fé? Depois de celebrar a eucaristia voltamos para a nossa vida transformados, menos egoístas e mais comprometidos com a construção do Reino de Deus?
    • A profecia de Malaquias concretiza-se plenamente quando Jesus entrou na nossa história e se apresentou no meio de nós. Ela fornece-nos uma chave de leitura para entendermos Jesus, o seu mistério, as suas palavras, os seus gestos, o seu projeto. Como acolhemos e concretizamos o convite à purificação, à conversão (“convertei-vos e acreditai”) que Jesus veio deixar-nos? O que valem para nós os apelos que Jesus nos lançou para vivermos desprendidos dos bens, para servirmos de forma simples e humilde os irmãos que precisam de nós, para nos libertarmos do nosso egoísmo, da nossa vaidade e das nossas manias de grandeza? Qual o peso que tem na nossa forma de viver a lição da cruz, da entrega total ao serviço do projeto de Deus, do dom total de si próprio por amor?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 23 (24), 7.8.9.10 (R. 10b)

    Refrão: O Senhor do Universo é o Rei da glória.

    Levantai, ó portas, os vossos umbrais,
    alteai-vos, pórticos antigos,
    e entrará o Rei da glória.

    Quem é esse Rei da glória?
    O Senhor forte e poderoso,
    o Senhor poderoso nas batalhas.

    Levantai, ó portas, os vossos umbrais,
    alteai-vos, pórticos antigos,
    e entrará o Rei da glória.

    Quem é esse Rei da glória?
    O Senhor dos Exércitos,
    é Ele o Rei da glória.

     

    LEITURA II – Hebreus 2,14-18

    Uma vez que os filhos dos homens
    têm o mesmo sangue e a mesma carne,
    também Jesus participou igualmente da mesma natureza,
    para destruir, pela sua morte,
    aquele que tinha poder sobre a morte, isto é, o diabo,
    e libertar aqueles que estavam a vida inteira
    sujeitos à servidão,
    pelo temor da morte.
    Porque Ele não veio em auxílio dos Anjos,
    mas dos descendentes de Abraão.
    Por isso devia tornar-Se semelhante em tudo aos seus irmãos,
    para ser um sumo sacerdote misericordioso e fiel
    no serviço de Deus,
    e assim expiar os pecados do povo.
    De facto, porque Ele próprio foi provado pelo sofrimento,
    pode socorrer aqueles que sofrem provação.

     

    CONTEXTO

    O escrito a que chamamos “Carta aos Hebreus” parece ser, mais do que uma carta, um sermão ou discurso destinado a ser proclamado oralmente. Não sabemos quem foi o seu autor. A tradição das Igrejas do oriente atribui-o a Paulo; mas as Igrejas do ocidente há muito que descartaram a autoria paulina deste documento: a forma literária, a linguagem, o estilo, a maneira de citar o Antigo Testamento e mesmo a doutrina exposta estão bastante longe de qualquer outro escrito paulino. Pensa-se que teria sido elaborado por um cristão anónimo – talvez um discípulo de Paulo – que, no entanto, conhecia muito bem o Antigo Testamento.

    A tradição antiga põe os “hebreus” como destinatários deste escrito; porém, não há qualquer indicação, ao longo do escrito, de que o texto se destinasse especificamente a cristãos oriundos do mundo judaico. É verdade que refere constantemente o Antigo Testamento; mas o Antigo Testamento já era, à data em que a Carta aos Hebreus apareceu, património comum de todos os cristãos, seja os de origem judaica, seja os de origem pagã. Tratava-se, em qualquer caso, de comunidades cristãs em situação difícil, expostas a perseguições e que viviam num ambiente hostil à fé… Os membros dessas comunidades perderam já o fervor inicial pelo Evangelho, deixaram-se contaminar pelo desânimo e começam a ceder à sedução de certas doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos… O objetivo do autor deste “discurso” é estimular a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a crescer na fé.  Teria sido elaborado nos anos que antecederam a destruição da cidade de Jerusalém (que ocorreu no ano 70), uma vez que o autor se refere à liturgia do Templo como uma realidade ainda atual. É provável, portanto, que tenha aparecido por volta do ano 67, muito perto da altura em que Paulo e Pedro foram martirizados em Roma.

    A Carta aos Hebreus apresenta – recorrendo à linguagem da teologia judaica – o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência – através de quem os homens têm acesso livre a Deus e são inseridos na comunhão real e definitiva com Deus. O autor aproveita, na sequência, para refletir nas implicações desse facto: postos em relação com o Pai por Cristo/sacerdote, os crentes são inseridos nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã e devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a sua experiência de fé, enfraquecida pela acomodação e pela perseguição.

    O texto que nos é proposto, pertence à primeira parte da carta (Heb 1,5-2,18). Aí, o autor apresenta o mistério de Cristo, o Filho de Deus que é muito superior aos anjos e que o Pai enviou ao mundo para que apresentasse aos homens uma proposta de vida e de salvação. Nesta secção, o autor da carta reflete sobre o “kerigma” tradicional cristão:  Deus glorificou o seu Filho Jesus, ressuscitando-O de entre os mortos, depois de Ele ter assumido a sorte dos homens e de se ter identificado com eles até ao extremo da morte na cruz. Mais especificamente, na perícope de Heb 2,10-18, o “catequista” procura explicar porque é que o plano do Pai previa que Jesus tivesse de passar pela cruz, aparecendo como um homem sofredor e aniquilado, despido das suas prerrogativas divinas. Na perspetiva do autor do texto, a morte de Cristo não foi um absurdo, um capricho, um acidente; mas foi algo que se insere e que se explica no contexto do plano salvador de Deus.

     

    MENSAGEM

    O plano salvador de Deus para os homens tem como objetivo fazer aparecer o Homem Novo, isto é, o homem que superou a sua condição limitada e pecadora, que se despiu do egoísmo, do orgulho e da autossuficiência e que chegou à total realização do seu ser, à situação definitiva do homem libertado, à vida verdadeira e eterna, à condição de "filho de Deus".

    Ora, para concretizar esse projeto, Deus enviou o seu Filho ao encontro dos homens. Cristo nasceu no meio de nós, vestiu a nossa carne mortal, solidarizou-se com a nossa humanidade, conheceu as nossas limitações e as nossas fragilidades. Assemelhou-se aos homens e partilhou a condição dos homens. Tornando-se homem, Ele fez-se nosso irmão; tornando-se nosso irmão, inseriu-nos na família divina e promoveu-nos à categoria de "filhos de Deus".

    A condição de "filhos de Deus" exige, no entanto, a superação de tudo aquilo que em nós é frágil, débil, corruptível, finito... Cristo, cumprindo o plano do Pai, procurou mostrar-nos como superar a fragilidade, a finitude, a debilidade da natureza humana e revelou-nos que o segredo da vida eterna passa por uma vida feita dom e amor radical a Deus e aos irmãos. O último passo que Ele deu para derrotar a finitude e a debilidade foi precisamente vencer a morte, pois a morte é a manifestação extrema da debilidade, da corruptibilidade, da finitude da nossa condição... Enquanto gera medo, sofrimento, escravidão, a morte perpetua a nossa debilidade e fragilidade, impedindo-nos de chegar à vida plena do homem libertado. Por isso, para nos tornar “filhos de Deus”, Jesus tinha de vencer a morte.

    É neste contexto que o autor da Carta aos Hebreus situa a morte de Jesus. Enfrentando a morte, Cristo assemelhou-se aos seus irmãos; vencendo a morte, Cristo libertou-os do medo e da escravidão. Cristo aceitou morrer na cruz para derrotar o maior inimigo da vida e da liberdade do homem: a própria morte.

    Ao fazer-se homem, Jesus tornou-se “um sumo sacerdote misericordioso e fiel” (vers. 17). A função do sumo sacerdote é servir de ponte entre os homens e Deus; e, ao vir ao nosso encontro, ao fazer-se nosso irmão, ao vencer a morte, ao associar-nos à família de Deus, Jesus refez a comunhão entre os homens e Deus. Como sumo sacerdote, ele realizou também a expiação dos pecados do povo (vers. 17), isto é, ele introduziu na nossa débil, frágil e pecadora natureza humana, dinamismos de superação dos nossos limites e falhas, dinamismos de vida nova, de vida verdadeira e eterna, de vida divina.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Esta história de um Deus que aceitou cancelar as suas prerrogativas divinas para vir ao nosso encontro, assumir as nossas fragilidades e limitações, enfrentar a nossa insensatez e o nosso egoísmo, entregar a sua própria vida para que nós descobríssemos a verdadeira vida, é uma história quase incompreensível para quem a tenta ler à luz dos nossos critérios e da nossa lógica humana; mas é uma história que ilustra, sem deixar margem para dúvidas, a intensidade e a radicalidade do amor de Deus por nós. Na Festa da Apresentação do Senhor somos convidados a olhar para esse “Senhor” que se apresenta na nossa história “armado” de um desígnio de amor, para nos abrir as portas da família de Deus e da vida em plenitude. Como é que esta realidade influi na nossa vida? É fonte de alegria, de esperança, de coragem? Como é que respondemos à iniciativa de Deus? Tentamos ser testemunhas, no meio dos nossos irmãos, desse Deus que nos ama de uma forma tão absoluta e tão comprometida?
    • Porque é que Jesus teve de passar pela cruz? Porque quis enfrentar os mecanismos de maldade, de injustiça, de violência e de morte que destruíam a vida dos seus irmãos; porque quis mostrar-nos que a vida deve ser vivida em registo de dom total, de amor até ao extremo; porque quis olhar a morte de frente e derrotá-la para que nós nunca mais tivéssemos medo dela; porque quis selar com a sua morte trágica a sua entrega ao projeto de Deus e o seu amor aos homens. Dando a vida, Cristo “expiou” os nossos pecados: agiu sobre nós no sentido de transformar a nossa condição débil e pecadora e de nos levar a viver uma vida plenamente transformada. Como vemos a morte de Cristo? Que efeitos tem ela em nós? A contemplação da entrega de Cristo leva-nos a viver num dinamismo de amor e de vida nova? A vitória de Jesus sobre a morte liberta-nos do medo e leva-nos a olhar para a vida com mais confiança?
    • Jesus experimentou a nossa fragilidade e os nossos limites; solidarizou-se com todos os homens e mulheres, independentemente do lugar que a sociedade lhes atribuía. Esteve especialmente do lado dos mais frágeis, dos mais pequenos, dos mais esquecidos. O seu exemplo convida-nos à solidariedade com os últimos, com os pobres, com os mais humildes, com aqueles que o mundo rejeita e marginaliza; convida-nos a identificarmo-nos com os sofrimentos e as angústias, as alegrias e as esperanças de cada homem ou mulher; convida-nos a fazer o que estiver ao nosso alcance para promover aqueles que são humilhados, explorados, incompreendidos, colocados à margem da vida e da história. Sentimo-nos solidários com os irmãos e as irmãs que fazem caminho connosco, especialmente com aqueles dos quais ninguém cuida, que ninguém quer, que ninguém defende? Sentimos que as dores e feridas que fazem sofrer os nossos irmãos também são nossas?

     

    ALELUIA – Lucas 2, 32

    Aleluia. Aleluia

    Luz para se revelar às nações
    e glória de Israel, vosso povo.

     

    EVANGELHO – Lucas 2,22-40

    Ao chegarem os dias da purificação, segundo a Lei de Moisés,
    Maria e José levaram Jesus a Jerusalém,
    para O apresentarem ao Senhor,
    como está escrito na Lei do Senhor:
    «Todo o filho primogénito varão será consagrado ao Senhor»,
    e para oferecerem em sacrifício
    um par de rolas ou duas pombinhas,
    como se diz na Lei do Senhor.
    Vivia em Jerusalém um homem chamado Simeão,
    homem justo e piedoso,
    que esperava a consolação de Israel;
    e o Espírito Santo estava nele.
    O Espírito Santo revelara-lhe que não morreria
    antes de ver o Messias do Senhor;
    e veio ao templo, movido pelo Espírito.
    Quando os pais de Jesus trouxeram o Menino,
    para cumprirem as prescrições da Lei no que lhes dizia respeito,
    Simeão recebeu-O em seus braços
    e bendisse a Deus, exclamando:
    «Agora, Senhor, segundo a vossa palavra,
    deixareis ir em paz o vosso servo,
    porque os meus olhos viram a vossa salvação,
    que pusestes ao alcance de todos os povos:
    luz para se revelar às nações
    e glória de Israel, vosso povo».
    O pai e a mãe do Menino Jesus estavam admirados
    com o que d’Ele se dizia.
    Simeão abençoou-os
    e disse a Maria, sua Mãe:
    «Este Menino foi estabelecido
    para que muitos caiam ou se levantem em Israel
    e para ser sinal de contradição;
    – e uma espada trespassará a tua alma –
    assim se revelarão os pensamentos de todos os corações».
    Havia também uma profetisa,
    Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser.
    Era de idade muito avançada
    e tinha vivido casada sete anos após o tempo de donzela
    e viúva até aos oitenta e quatro.
    Não se afastava do templo,
    servindo a Deus noite e dia, com jejuns e orações.
    Estando presente na mesma ocasião,
    começou também a louvar a Deus
    e a falar acerca do Menino
    a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém.
    Cumpridas todas as prescrições da Lei do Senhor,
    voltaram para a Galileia, para a sua cidade de Nazaré.
    Entretanto, o Menino crescia,
    tornava-Se robusto e enchia-Se de sabedoria.
    E a graça de Deus estava com Ele.

     

    CONTEXTO

    O interesse fundamental dos primeiros cristãos não se centrou na infância de Jesus, mas na sua mensagem e proposta; por isso, a catequese cristã dos primeiros tempos interessou-se, de forma especial, por conservar as memórias da vida pública e da paixão do Senhor.

    Só num estádio posterior houve uma certa curiosidade acerca dos primeiros anos da vida de Jesus. Coligiram-se, então, algumas informações históricas sobre a infância de Jesus; e esse material foi, depois, amassado e trabalhado, de forma a transmitir aquilo que a catequese primitiva ensinava sobre Jesus e o seu mistério. O chamado “Evangelho da Infância” (de que faz parte o texto que nos é hoje proposto) assenta nessa base; parte de algumas indicações históricas e desenvolve uma reflexão teológica para explicar quem é Jesus. Nesta secção do Evangelho, Lucas está muito mais interessado em dizer quem é Jesus, do que em contar-nos factos memoráveis da sua infância.

    Lucas propõe-nos, no Evangelho que a liturgia desta festa nos propõe, o quadro da apresentação de Jesus no Templo de Jerusalém. Segundo a Lei de Moisés, todos os primogénitos (tanto dos homens como dos animais) pertenciam a Javé e deviam ser oferecidos a Javé (cf. Ex 13,1-2.11-16). O costume de oferecer aos deuses os primogénitos é um costume cananeu que, no entanto, Israel transformou no que dizia respeito aos primogénitos humanos: estes não deviam ser oferecidos em sacrifício, mas resgatados por um animal, que seria imolado ao Senhor.

    De acordo com Lv 12,6-8, quarenta dias após o nascimento de uma criança, esta devia ser apresentada no Templo, onde a mãe oferecia um ritual de purificação. Nessa cerimónia, devia ser oferecido um cordeiro de um ano (para as famílias mais abastadas) ou então duas pombas ou duas rolas (para as famílias de menores recursos).

    A cena desenrola-se no Templo de Jerusalém. Construído por Salomão, no séc. X a.C., o Templo tinha sido destruído no ano 586 a.C., quando os babilónios conquistaram Jerusalém e levaram a população da cidade para o Exílio. Reconstruído depois do Exílio, por ação de Zorobabel, em moldes bastante modestos, o Templo era, para os judeus, o grande centro religioso do judaísmo, o lugar onde Deus residia no meio do seu Povo. No séc. I a.C. Herodes, para agradar aos judeus, propôs-se restaurá-lo. As obras começaram no ano 19 a.C. e continuaram por largos anos. O Templo dessa época – da época de Jesus – acabaria por ser destruído no ano 70, quando as tropas romanas comandadas por Tito sitiaram e destruíram Jerusalém.

     

    MENSAGEM

    O profeta Malaquias profetizara (como vimos no texto que a liturgia deste dia nos propôs como primeira leitura) sobre o dia em que “o Senhor” viria ao encontro do seu povo e entraria no Templo, cheio de glória e esplendor, para purificar o seu Povo (cf. Ml 3,1), “como o fogo do fundidor e como a lixívia dos lavandeiros (Ml 3,2-3). Lucas entende que chegou o tempo da concretização dessa profecia. Mas, contra todas expetativas, Deus apresenta-se na figura de um bebé nascido há poucos dias, débil e indefeso, apresentado nos braços da sua mãe. São bem estranhos os caminhos que Deus usa para chegar até nós, para se apresentar ao mundo.

    Aquela família pobre da Galileia que vem a Jerusalém para cumprir a Lei do Senhor, no que dizia respeito ao resgate dos primogénitos que pertenciam ao Senhor, encontra no Templo um homem chamado Simeão. Lucas diz, sobre Simeão, que era “justo e piedoso”, que “esperava a consolação de Israel” e que “o Espírito Santo estava nele” (vers. 25). Simeão é, nesta catequese de Lucas, a figura do Israel que esperava ansiosamente o cumprimento das promessas de Deus. Lucas explica que o Espírito Santo lhe revelara que não morreria antes de ver o Messias do Senhor; e que, naquele dia, tinha vindo ao Templo movido pelo Espírito (vers. 26-27). Simeão viu naquele menino, filho de uns pobres camponeses da Galileia, a concretização das promessas de Deus. Tomou o menino nos braços – como se estivesse a apresentá-lo a Israel e ao mundo – e pronunciou um oráculo muito belo (vers. 29-32), que a liturgia conhece pelas palavras latinas que o iniciam: “Nunc Dimittis”.

    Nesse cântico, Simeão começa por dizer a Deus que já pode morrer em paz (vers. 29), pois já viu a salvação de Deus chegar, na figura daquele menino que tem nos braços (vers. 30). Com estas palavras, Simeão declara solenemente que a fase da espera terminou e que o Messias de Deus chegou. Esse Messias vem como “salvação de Deus”, isto é, traz consigo os bens que Deus quer oferecer aos seus filhos para que eles tenham vida em abundância. A salvação que o Messias traz brilhará como “luz”, não apenas para Israel, mas para todos os povos (vers. 31-32). O tema da “luz” leva-nos até aos cânticos do Servo de Javé, do Deutero-Isaías, onde se profetiza a chegada de um “Servo” designado por Deus como “luz das nações” para “abrir os olhos aos cegos”, para “tirar do cárcere os prisioneiros” e “da prisão os que vivem nas travas” (Is 42,6-7), para fazer chegar a salvação de Deus “até aos confins da terra” (Is 49,6). Simeão está absolutamente seguro de que essa luz chegou finalmente, na figura daquele menino. Lucas refere, ainda, um tema que lhe é muito caro: o da universalidade da salvação de Deus. Deus não tem já um Povo eleito, mas a sua salvação é para todos os povos, independentemente da sua raça, da sua cultura, das suas fronteiras, das suas representações religiosas.

    Lucas acrescenta que Maria e José “estavam admirados” com que Simeão lhes disse sobre o menino (vers. 33). Simeão não lhes explica como chegou às conclusões que acabou de formular. No entanto, dirige-se a Maria e proclama um segundo oráculo (vers. 34-35). Profetiza, antes de mais, que o menino será causa de divisões em Israel e que a proposta que Ele traz não será aceite pacificamente (vers. 34). Lucas irá mostrar mais à frente, ao contar a história de Jesus, a verdade destas palavras. Depois, Simeão avisa Maria que “uma espada trespassará a sua alma (vers. 35a). A expressão tanto pode referir-se ao sofrimento que atingirá Maria quando vir o seu filho condenado à morte e crucificado no calvário, como à divisão de Israel face à proposta de Jesus (Maria, como figura do Povo fiel, terá de optar por Jesus, afastando-se do Israel infiel que não quer acolher a proposta que Jesus traz).

    Da figura de Simeão, o foco passa para uma outra figura: uma mulher de idade, chamada Ana, que “não se afastava do templo, servindo a Deus noite e dia, com jejuns e orações” (vers. 37). A sua figura apresenta traços de outras mulheres da Bíblia, como Judite (que permaneceu sempre viúva após a morte do seu marido, e que libertou Israel das mãos do cruel Holofernes, general assírio) ou como uma outra Ana, a mãe do profeta Samuel (cf. 1 Sm 1,7-12). É apresentada como “profetiza”, o que confere à sua intervenção autoridade e verdade. Ela, naquela circunstância, “começou também a louvar a Deus e a falar acerca do Menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém” (vers. 38). Ela, enquanto “profetiza”, confirma que tudo o que os profetas de Israel disseram sobre o Messias se confirma naquele menino apresentado no Templo de Jerusalém.

    Simeão e Ana, cada um à sua maneira, reconhecem no menino que se apresenta no Templo, o cumprimento das promessas de Deus. Vêm nesse menino uma luz que se acende na noite do mundo e que ilumina o caminho e a vida dos homens. Acolhem esse menino como “a salvação” prometida por Deus e longamente esperada pelo Israel fiel. Acreditam que essa salvação ultrapassará as fronteiras estreitas de Israel e será oferecida a todos os homens e mulheres, de todas as raças.

    Terminada a “apresentação” de Jesus, a família de Nazaré volta para a sua casa. Do espaço do Templo, o plano salvador de Deus passa a desenrolar-se na casa pobre de uma família de camponeses pobres de uma aldeia das montanhas da Galileia. Longe das luzes da ribalta, o menino crescia, “enchia-Se de sabedoria, e a graça de Deus estava com Ele” (vers. 40). O plano salvador de Deus, agora oculto durante algum tempo, voltará, a seu tempo, a manifestar-se publicamente.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Não é raro, no meio de tantas vicissitudes que marcam este século em que nos tocou viver, que nos sintamos desorientados e à deriva, como se a história do mundo e dos homens nos escapasse das mãos e não soubéssemos bem para onde devemos dirigir os nossos passos. Quem nos mostrará o terreno firme onde poderemos sentir-nos seguros? Quem nos guiará na viagem atribulada da história e da vida? Na Festa da “Apresentação do Senhor”, Jesus é-nos apresentado como “a salvação colocada ao alcance de todos os povos”, a “luz para se revelar às nações e a glória de Israel”, o messias com uma proposta de libertação para todos os homens. Que eco é que esta “apresentação” de Jesus encontra no nosso coração? Jesus é, de facto, a luz que ilumina as nossas vidas e que nos conduz nos caminhos do mundo? Ele é, para nós, o caminho certo e inquestionável para a salvação, para a vida verdadeira e plena? É nele que colocamos a nossa ânsia de libertação e de vida nova? Caminhamos atrás dele, certos de que o caminho que Ele propõe conduz à vida plena? Se tantos homens ignoram a "luz" libertadora que Jesus veio acender ou não se sentem interpelados pelo projeto de Jesus, a culpa não será, um pouco, do nosso imobilismo, da nossa instalação, do nosso "cinzentismo" na vivência da fé, da forma pouco entusiasta como damos testemunho?
    • Simeão e Ana, os dois anciãos que acolhem Jesus no Templo de Jerusalém, são pessoas atentas ao Deus libertador que vem ao seu encontro e que sabem ler os sinais de Deus naquele menino que chega. Não vivem centrados em futilidades, não “gastam o tempo” de vida que ainda têm em atividades inconsequentes, não aceitam viver instalados numa reforma dourado que os afasta do mundo e os dispensa de colaborar no projeto de Deus para o mundo e para os homens. Atentos à voz do Espírito, vivendo em diálogo contínuo com Deus, detetam a chegada de Deus e testemunham diante dos seus conterrâneos a presença salvadora e redentora de Deus no meio do seu Povo. São pessoas que cultivam a intimidade com Deus, que escutam Deus, que se esforçam por perceber as indicações de Deus e que são sinais vivos de Deus na vida daqueles que se cruzam com eles. Sabem que, enquanto caminharem na terra, são chamados a dar testemunho de Deus e do seu projeto salvador. Através deles a luz de Deus brilha no mundo e ilumina o mundo. É assim que nós vivemos também? Procuramos entender os sinais de Deus e sermos testemunhas ativas, no meio do mundo, de Deus e do seu projeto de salvação?
    • Quer Simeão, quer a profetiza Ana, são pessoas de bastante idade. Mas não vivem de recordações, voltados para o passado, a carpir mágoas porque se sentem velhos e fragilizados. Têm memória das antigas promessas de Deus; mas vivem de olhos postos no presente, preocupados em ver como no “hoje” da história dos homens Deus concretiza as suas promessas de salvação; e, quando descobrem a presença de Deus, proclamam-na com alegria e entusiasmo. Os anciãos – quer pela sua maturidade, sabedoria e equilíbrio, quer pelo tempo de que normalmente dispõem – podem ser testemunhas privilegiadas dos valores de Deus, intérpretes dos sinais de Deus, profetas credíveis que obrigam o mundo a confrontar-se com os desafios de Deus. É preciso que não vivam voltados para o passado, refugiados numa realidade que aliena, transformados em “estátuas de sal”, mas que vivam de olhos postos no futuro, de espírito aberto e livre, pondo a sua sabedoria e experiência ao serviço da comunidade humana e cristã, ensinando os mais jovens a distinguir entre o que é eterno e importante e o que é passageiro e acessório. Aqueles de entre nós a quem Deus concede a graça de uma vida longa, é assim que vivem? Comunicam alegria, otimismo, fé, esperança num futuro onde Deus está presente?
    • Lucas apresenta-nos neste episódio evangélico uma família – a Sagrada Família – em que Deus é a referência fundamental. Por quatro vezes (vers. 22.23.24.27), Lucas refere, a propósito da família de Jesus, o cumprimento da Lei de Moisés, da Lei do Senhor ou da Palavra do Senhor. A família de Jesus, Maria e José é, portanto, uma família que escuta a Palavra de Deus e que constrói a sua existência ao ritmo da Palavra de Deus e dos desafios de Deus. Maria e José sabiam que uma família que escuta a Palavra de Deus e que procura responder aos desafios postos por essa Palavra é uma família com um projeto de vida com sentido; e sabiam que uma família que se deixa guiar pela Palavra de Deus é uma família que se constrói sobre a rocha firme dos valores eternos. Que importância é que Deus assume na vida das nossas famílias? Procuramos que cada membro das nossas famílias cresça numa progressiva sensibilidade à Palavra de Deus e aos desafios de Deus? Encontramos tempo para reunir a família à volta da Palavra de Deus e para partilhar, em família, a Palavra de Deus?
    • Quando numa família Deus “conta”, os valores de Deus passam a ser, para todos os membros daquela comunidade familiar, as marcas que definem o sentido da existência. O espaço familiar torna-se, então, a escola onde se aprende o amor, a solidariedade, a partilha, o serviço, o diálogo, o respeito, o cuidado, o perdão, a fraternidade universal, o cuidado da criação, a atenção aos mais frágeis, o sentido do compromisso, do sacrifício, da entrega e da doação… São esses valores – os valores de Deus – que procuramos cultivar na nossa comunidade familiar?
    • Segundo a Lei judaica, todo o primogénito devia ser consagrado e dedicado ao Senhor. Também Jesus é apresentado no Templo e consagrado ao Senhor. Nas nossas famílias cristãs há normalmente uma legítima preocupação com o proporcionar a cada criança condições ótimas de vida, de educação, de acesso à instrução e aos cuidados essenciais… Haverá sempre uma preocupação semelhante no que diz respeito à formação para a fé e em proporcionar aos filhos uma verdadeira educação para a vida cristã e para os valores de Jesus Cristo? Os pais cristãos preocupam-se sempre em proporcionar aos seus filhos um exemplo de coerência com os compromissos assumidos no dia do Batismo? Preocupam-se em ser os primeiros catequistas dos próprios filhos, transmitindo-lhes os valores do Evangelho? Preocupam-se em acompanhar e em potenciar a formação e a caminhada catequética dos próprios filhos, em inseri-los numa comunidade de fé, em integrá-los na família de Jesus, em consagrá-los ao serviço de Deus?
    • Depois daqueles momentos gloriosos no Templo de Jerusalém, o plano salvador de Deus “escondeu-se” naquela pobre casa de família, na aldeia de Nazaré, onde viviam Maria, José e Jesus. O projeto salvador de Deus concretiza-se muitas vezes longe das luzes da ribalta, na simplicidade das nossas vidas, das nossas famílias, das nossas casas, das nossas aldeias e cidades. Estamos conscientes disso? Somos capazes de ler os sinais e perceber o acontecer da salvação de Deus na nossa vida simples de todos os dias?

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

    Apresentação do Senhor

    Apresentação do Senhor


    2 de Fevereiro, 2025

    Esta festa já era celebrada em Jerusalém, no século IV. Chamava-se festa do encontro,hypapántè , em grego. Em 534, a festa estendeu-se a Constantinopla e, no tempo do Papa Sérgio, chegou a Roma e ao Ocidente. Em Roma, a festa incluía uma procissão até à Basílica de S. Maria Maior. No século X, começaram a benzer-se as velas.

    José e Maria levam o Menino Jesus ao templo, oferecendo-o ao Pai. Como toda a oferta implica renúncia, a Apresentação do Senhor é já o começo do mistério do sofrimento redentor de Jesus, que atingirá o seu ponto culminante no Calvário. Maria e José unem-se à oferta do seu divino Filho estando a seu lado e colaborando, cada um a seu modo, na obra da Redenção.

    Lectio

    Primeira Leitura: Malaquias 3, 1-4

    Assim fala o Senhor: "Eis que Eu vou enviar o meu mensageiro, a fim de que ele prepare o caminho à minha frente. E imediatamente entrará no seu santuário o Senhor, que vós procurais, e o mensageiro da aliança, que vós desejais. Ei-lo que chega! - diz o Senhor do universo. 2Quem suportará o dia da sua chegada? Quem poderá resistir, quando ele aparecer?Porque ele é como o fogo do fundidor e como a barrela das lavadeiras.  3Ele sentar-se-á como fundidor e purificador. Purificará os filhos de Levi e os refinará, como se refinam o ouro e a prata. E assim eles serão para o Senhor os que apresentam a oferta legítima. 4Então, a oferta de Judá e de Jerusalém será agradável ao Senhor como nos dias antigos, como nos anos de outrora".

    Os dois mensageiros anunciados pelo profeta introduzem-se mutuamente: um prepara a vinda do Senhor e outro realiza a Aliança, é o Esperado. Estas duas figuras perspetivam João Baptista e Cristo. Um é apenas precursor; o outro é o Messias esperado, de origem divina, o Redentor. O primeiro prepara o caminho; o segundo entra efetivamente no templo, santificando, pela oferta de si mesmo, o sacrifício da nova Aliança, os ministros e o culto.

    Segunda leitura: Hebreus 2, 14-18

    Uma vez que os filhos dos homens têm em comum a carne e o sangue, também Ele partilhou a condição deles, a fim de destruir, pela sua morte, aquele que tinha o poder da morte, isto é, o diabo, 15e libertar aqueles que, por medo da morte, passavam toda a vida dominados pela escravidão. 16Ele, de facto, não veio em auxílio dos anjos, mas veio em auxílio da descendência de Abraão. 17Por isso, Ele teve de assemelhar-se em tudo aos seus irmãos, para se tornar um Sumo Sacerdote misericordioso e fiel em relação a Deus, a fim de expiar os pecados do povo. 18É precisamente porque Ele mesmo sofreu e foi posto à prova, que pode socorrer os que são postos à prova.

    A carne e o sangue, submetidos ao poder da morte pelo inimigo, são divinizados e libertados por Cristo, Deus feito homem. A descendência de Abraão é restituída à vida. O Filho de Deus apresenta-se como primeiro entre muitos irmãos e como sacerdote, mediador na sua divindade e humanidade, da fidelidade de Deus, Pai da vida.

    Evangelho: Lucas 2, 22-40

    Ao chegarem os dias da purificação, segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém para o apresentarem ao Senhor, 23conforme está escrito na Lei do Senhor: «Todo o primogénito varão será consagrado ao Senhor» 24e para oferecerem em sacrifício, como se diz na Lei do Senhor, duas rolas ou duas pombas. 25Ora, vivia em Jerusalém um homem chamado Simeão; era justo e piedoso e esperava a consolação de Israel. O Espírito Santo estava nele. 26Tinha-lhe sido revelado pelo Espírito Santo que não morreria antes de ter visto o Messias do Senhor.27Impelido pelo Espírito, veio ao templo, quando os pais trouxeram o menino Jesus, a fim de cumprirem o que ordenava a Lei a seu respeito. 28Simeão tomou-o nos braços e bendisse a Deus, dizendo:  29«Agora, Senhor, segundo a tua palavra, deixarás ir em paz o teu servo, 30porque meus olhos viram a Salvação  31que ofereceste a todos os povos,  32Luz para se revelar às nações e glória de Israel, teu povo.» 33Seu pai e sua mãe estavam admirados com o que se dizia dele.  34Simeão abençoou-os e disse a Maria, sua mãe: «Este menino está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição; 35uma espada trespassará a tua alma. Assim hão-de revelar-se os pensamentos de muitos corações.»36Havia também uma profetisa, Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser, a qual era de idade muito avançada. Depois de ter vivido casada sete anos, após o seu tempo de donzela, 37ficou viúva até aos oitenta e quatro anos. Não se afastava do templo, participando no culto noite e dia, com jejuns e orações. 38Aparecendo nessa mesma ocasião, pôs-se a louvar a Deus e a falar do menino a todos os que esperavam a redenção de Jerusalém. 39Depois de terem cumprido tudo o que a Lei do Senhor determinava, regressaram à Galileia, à sua cidade de Nazaré. 40Entretanto, o menino crescia e robustecia-se, enchendo-se de sabedoria, e a graça de Deus estava com Ele.

    O Evangelho da Infância de Jesus tem o seu ponto alto no templo, lugar da plenitude do povo de Israel. É aí que Zacarias ouve a palavra que dirige a história para a sua meta (anúncio de João); é aí que o Menino é apresentado a Deus, revelado a Simeão e a Ana. É daí que regressa a Nazaré. Pano de fundo da cena da apresentação é lei judaica segundo a qual os primogénitos são sagrados e, por isso, devem ser apresentados a Deus. O Pai responde à apresentação e oferta de Jesus com o dom do Espírito ao velho Simeão, que profetiza. Israel pode estar descansado: a sua história não acaba em vão. Simeão viu o Salvador e sabe que a meta é agora o triunfo da vida.

    Meditatio

    Os pais de Jesus, de acordo com a lei mosaica, 40 dias depois do nascimento do primeiro filho, foram ao Templo de Jerusalém para oferecer o primogénito ao Senhor e para a mãe ser purificada. Mas este rito não foi exatamente igual aos outros. Nos ritos comuns, eram os pais que apresentavam os filhos a Deus em sinal de oferta e de pertença; neste rito é Deus que apresenta o seu Filho aos homens. Fá-lo pela boca do velho Simeão e da profetisa Ana. Simeão apresenta-O ao mundo como salvação para todos os povos, como luz que iluminará as gentes, mas também como sinal de contradição; como Aquele que revelará os pensamentos dos corações.
    O encontro de Jesus com Simeão e Ana no Templo de Jerusalém é símbolo de uma realidade maior e universal: a Humanidade encontra o seu Senhor na Igreja. Malaquias preanunciava este encontro: «Eis que Eu vou enviar o meu mensageiro, a fim de que ele prepare o caminho à minha frente. E imediatamente entrará no seu santuário o Senhor, que vós procurais». No Templo, Simeão reconheceu Jesus como o Messias esperado e proclamou-o salvador e luz do mundo. Compreendeu que, doravante, o destino de cada homem se decidia pela atitude assumida perante Ele; Jesus será ruína ou salvação. Como dirá João Baptista: Ele tem na mão a joeira para separar o trigo bom da palha (cf. Mt 3, 12).
    É o que acontece, a outra escala, também hoje: no novo templo de Deus que é a Igreja, os homens «encontram» Cristo, aprendem a conhecê-lo, recebem-no na Eucaristia, como Simeão o recebeu nos braços; a sua palavra torna-se, aí, para eles, luz e o seu corpo força e alimento. É a experiência que fazemos, sempre que vamos à missa. A comunhão é um verdadeiro encontro entre Deus e nós. Hoje, essa experiência é acentuada pelo simbolismo da festa: a procissão com que entramos na igreja com o sacerdote, levando a vela acesa e cantando, era, sinal deste ir ao encontro de Jesus que nos chama no interior da sua igreja, na esperança de irmos ao seu encontro um dia no Hypapante eterno, quando formos nós a ser apresentados por Ele ao Pai.
    A Candelária é festa de luz. A luz da fé não nos foi dada apenas para iluminar o nosso caminho, desinteressando-nos dos outros... A luz da fé também não é para ter acesa apenas na igreja, ou em certos momentos, mas em todos os momentos e situações da nossa vida... A nossa fé há de ser luz que ilumina, fogo que aquece... É luz e fogo quem é compreensivo e bom com todos... quem sabe apoiar os pequenos esforços... os pequenos progressos... quem tem palavras de amizade, de estímulo, de apoio... quem sabe dizer uma boa palavra, dar uma ajuda... O amor cristão tem a sua origem em Deus que nos amou e nos enviou o seu Filho com quem nos encontramos em vários momentos da nossa vida, particularmente quando celebramos a Eucaristia. Esse é o nosso encontro, enquanto esperamos o encontro definitivo no Céu.

    Oratio

    Ó Jesus, eis-me aqui para fazer a vossa vontade. Quero estar atento e ouvir as vossas ordens, os vossos desejos, que me chegam através da vossa Palavra, das orientações dos vossos representantes na terra, dos acontecimentos da minha vida e da vida dos meus irmãos. Uno-me à oblação generosa do vosso divino Coração. Que quereis que vos faça? Dizei-mo, pelos meus pastores, pelas vossas inspirações, pela vossa providência. Falai, Senhor, que o vosso servo escuta. Iluminai-me com a vossa luz divina e refleti-la-ei nos meus irmãos. Ámen.

    Contemplatio

    «Eis-me aqui, meu Deus, para vos servir e para fazer a vossa vontade: Eis a serva do Senhor: faça-se em mim segundo a tua palavra». Esta é a regra, Maria obedece. Está escrito na lei, no Levítico e no Êxodo. A jovem mãe apresentar-se-á no templo para ser purificada, quarenta dias depois do nascimento de um filho e oitenta dias depois do nascimento de uma filha. Maria não costuma hesitar quando se trata da lei. Cumpre tudo à letra, segundo a Lei de Moisés. No quadragésimo dia, está em Jerusalém. Não examina se está dispensada pelo carácter sobrenatural da sua maternidade. A hesitação não lhe vem, é a lei. Como o seu divino Filho, renuncia a todo o privilégio e, contente com a sorte comum, obedece à lei. Jesus obedece e deixa-se levar, apresentar, resgatar, Maria obedece também e deixa-se purificar. Como Jesus, Maria leva no meio do seu Coração a lei de Deus, como sua regra de vida. Oh! Como esta obediência pontual, humilde, heroica, condena todas as nossas hesitações, toda a nossa procura de exceções e de dispensas! Maria podia dizer: Eis a serva do Senhor. E eu posso dizer: Ecce venio: eis que venho, Senhor, para obedecer, para fazer a vossa vontade. Eis o teu servo. (Leão Dehon, OSP 3, p. 120).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a Palavra do Senhor:
    "Eu sou a luz do mundo" (Jo 8, 12).

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    Apresentação do Senhor (02 Fevereiro)

  • S. João de Brito, Presbítero e Mártir

    S. João de Brito, Presbítero e Mártir


    4 de Fevereiro, 2025

    João de Brito nasceu em Lisboa, a 1 de Março de 1647. Ainda criança, perdeu o pai, que fora mandado governar o Brasil por D. João IV, e lá faleceu. Aos 16 anos, João entrou no Noviciado da Companhia de Jesus em Lisboa. Foi ordenado sacerdote em 1673. Anelando conquistar almas para Jesus Cristo e sacrificar-se a exemplo de S. Francisco Xavier, partiu, pouco depois, para a Índias, onde trabalhou com ardor na missão do Maduré. A 4 de Fevereiro de 1693, sofreu o martírio, por decapitação, em Urgur. Foi canonizado em 1947.

    Lectio

    Primeira leitura: da féria (ou tempo Comum)

    Evangelho: Marcos 6, 7-17

    Naquele tempo, Jesus percorria as aldeias vizinhas a ensinar. 7Chamou os Doze, começou a enviá-los dois a dois e deu-lhes poder sobre os espíritos malignos. 8Ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser um cajado: nem pão, nem alforge, nem dinheiro no cinto;9que fossem calçados com sandálias e não levassem duas túnicas. 10E disse-lhes também: «Em qualquer casa em que entrardes, ficai nela até partirdes dali. 11E se não fordes recebidos numa localidade, se os seus habitantes não vos ouvirem, ao sair de lá, sacudi o pó dos vossos pés, em testemunho contra eles.» 12Eles partiram e pregavam o arrependimento, 13expulsavam numerosos demónios, ungiam com óleo muitos doentes e curavam-nos. 4O rei Herodes ouviu falar de Jesus, pois o seu nome se tornara célebre; e dizia-se: «Este é João Baptista, que ressuscitou de entre os mortos e, por isso, manifesta-se nele o poder de fazer milagres»;15outros diziam: «É Elias»; outros afirmavam: «É um profeta como um dos outros profetas.»16Mas Herodes, ouvindo isto, dizia: «É João, a quem eu degolei, que ressuscitou.» 17Na verdade, tinha sido Herodes quem mandara prender João e pô-lo a ferros na prisão, por causa de Herodíade, mulher de Filipe, seu irmão, que ele desposara.

    Marcos apresenta-nos uma das facetas essenciais da eclesiologia do Novo Testamento: a proclamação do Reino não é feita ao acaso; há uma "instituição" que põe em movimento e planifica o anúncio da Boa Nova.
    Pregar o Reino implica ser enviado por Jesus. Da pregação faz parte um conteúdo intelectual, mas também uma dimensão prática. Por isso, Jesus deu aos Doze "poder sobre os espíritos impuros" (v. 7). Estes "espíritos impuros" ou "alienações" são tudo o que ameaça exteriormente o homem, não o deixando realizar-se como ser humano. A Boa Nova não é apenas uma determinada interpretação do mundo e da história, mas uma indicação de transformação desse mundo e dessa história, uma dinâmica desalienante.
    Os discípulos são enviados "dois a dois": o anúncio faz-se sempre de forma comunitária. Os discípulos não podem levar consigo senão o estritamente necessário: nada de exageros, nem de triunfalismos. Mas, mais que a pobreza dos missionários, o nosso texto acentua a pobreza da missão: o missionário é enviado por Aquele que é o único responsável pelo êxito da missão. No cumprimento da missão, o apóstolo há-de estar pronto a dar própria vida. João de Brito deu-a como supremo testemunho da Verdade que anunciava.

    Meditatio

    Marcos, ao falar da escolha dos Doze, diz que Jesus os chamou "para estarem com ele" e para "os enviar". Não se trata de contradição, mas de complementaridade: chamou-os para estarem em intimidade com Ele e serem enviados a propagar a sua mensagem.
    S. João de Brito viveu este mistério. Educado piedosamente pela sua mãe, desde muito novo sonhou com o sacrifício e a imolação de si mesmo a Deus, por amor. A coerência e o fervor com que vivia a sua fé provocavam a mofa de alguns dos seus colegas pajens da corte. Por isso, bem cedo, começou a ser apelidado de mártir. Tendo entrado na Companhia de Jesus, em breve se distinguiu pela sua piedade e observância religiosa. A sua vida eucarística, a sua devoção a Nossa Senhora eram notáveis. Nesta vida de intimidade com Deus, sonhou partir para a Índia, e imitar o zelo de S. Francisco Xavier no anúncio da Boa Nova. E foi enviado pelos seus superiores com mais 17 missionários, em Março de 1673. Foi destinado à missão do Maduré, uma das mais difíceis por causa do clima ardente, das viagens longas pelas areias, pelos pântanos, pelas florestas. Mas havia dificuldades ainda maiores por causa da condição dos hindus e pelas suas ideias a respeito dos europeus. Tinham-nos como párias por verem que tratavam com estes "fora de castas". Por isso, não lhes consentiam que morassem nas suas aldeias. Mas a caridade inspirou aos missionários o modo de vencer tais dificuldades: adotaram os trajes, os costumes e o modo de viver dos brâmanes saniássis, espécie de religiosos letrados. Assim puderam prosseguir o seu apostolado. Em 1686, João de Brito esteve a ponto de perder a vida para socorrer os cristãos do Maravá sobre os quais se desencadeara tremenda tempestade. Saiu-lhe ao encontro o comandante das tropas do maravá que o prendeu com um grupo de catequistas e os mandou açoitar a todos, pretendendo que invocassem o deus Xivá. Resistiram, passando por muitos tormentos físicos e psicológicos. Dezoito dias depois, o rei condenava o padre à morte: seria espetado, depois de lhe cortarem os pés e as mãos. Seguiram-se novas tribulações, até que o rei, ouvindo João de Brito expor-lhe a doutrina cristã, ficou tão admirado com ela que acabou por declarar que os cristãos são justos e santos. Pouco depois, o P. João de Brito foi chamado à Europa pelo Provincial. Assim, a 8 de Setembro de 1688, chegou a Lisboa, sendo recebido por todos com grande admiração e com a benevolência do rei D. Pedro II, a quem expôs os seus trabalhos. Depois de percorrer os colégios da Companhia, João de Brito regressou à Índia, apesar das súplicas que muitos lhe fizeram para que não voltasse. O seu trabalho missionário produziu tais frutos, que se levantou contra ele nova perseguição, que acabou por levá-lo ao martírio, a 4 de Fevereiro de 1693. Na véspera da sua morte, o santo escrevia do cárcere: "Agora espero padecer a morte por meu Deus e meu Senhor... A culpa de que me acusam vem a ser que ensino a Lei de Deus Nosso Senhor... Quando a culpa é virtude, o padecer é glória". João de Brito continuava, na missão, a vida de intimidade com Deus, iniciada na sua infância e juventude. Se queremos relacionar-nos positivamente com os outros, se queremos ser missionários, precisamos de uma relação íntima, profunda e amorosa com Deus. Sem ela, a nossa vida não é verdadeira, a nossa entrega é vazia. Mas também não podemos viver a intimidade com Ele, fechando-nos aos outros. O egoísmo não conduz à adesão ao Senhor, à comunhão com Ele. Para ser vida de amor, a vida do cristão, particularmente a vida do dehoniano, deve ter o mesmo dinamismo que a de Cristo: ser um movimento de amor para Deus e para os irmãos.

    Oratio

    Senhor, que fortalecestes com invencível constância o mártir São João de Brito para pregar a fé entre os povos da Índia, concedei-nos, por seus méritos e intercessão, que, celebrando a memória do seu triunfo, imitemos os exemplos da sua fé. Por Cristo, nosso Senhor. Ámen. (Coleta da missa).

    Contemplatio

    Nosso Senhor não responde (a Herodes). O momento é grave. Cumpre o seu sacrifício para a redenção do mundo. Não tem tempo para dar às questões frívolas e curiosas de Herodes. Aqui está para nós uma grande lição de vida interior, de gravidade, de dignidade. Nosso Senhor vive unido ao seu Pai, e não condescende em conversar com os homens a não ser que algum motivo de caridade ou de justiça o exija. O silêncio tem as suas preferências. Assim devia ser também para nós. É o que diz S. Paulo aos Filipenses: «Que a vossa modéstia seja manifesta a todos os homens!». A modéstia é aqui a moderação nas palavras e nas ações. "Guardai a calma, acrescenta S. Paulo, ocupai o vosso coração a louvar a Deus, a dar-lhe graças, a rezar. Se for preciso conversar com os homens, que seja sobre temas de edificação, de piedade ou de necessidade" (Fil 4,5)... Paulo recomendava a todos os seus discípulos esta modéstia de Cristo: «Revesti-vos, diz aos Colossenses, da doçura, da modéstia, da paciência de Jesus Cristo» (Col 3,12). A paciência infinita do bom Mestre manifesta-se também com brilho em casa de Herodes. O príncipe e a sua corte tratam Jesus como um louco. Zombam dele, insultam-no. Não lhe batem como os criados do Templo, mas gozam dele. É uma outra prova, não menos cruel para o Filho de Deus. (L. Dehon, OSP 3, p. 325s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Quando a culpa é virtude, o padecer é glória." (S. João de Brito)

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    S. João de Brito, Presbítero e Mártir (04 Fevereiro)

  • S. Paulo Miki e Companheiros

    S. Paulo Miki e Companheiros


    6 de Fevereiro, 2025

    Paulo Miki, jesuíta japonês, é um dos 26 mártires que, a 5 de Fevereiro de 1597, morreram crucificados na colina de Tateyama - depois chamada «colina santa» - junto de Nagasaki. A evangelização do Japão, iniciada por S. Francisco Xavier (1549-1551), tinha dado os seus grupos e a comunidade cristã atingia, em 1587, os 250.000 membros. O imperador, que inicialmente tinha favorecido os missionários, decretou a expulsão dos jesuítas e mandou prender 6 franciscanos espanhóis e três jesuítas japoneses. Foi um tempo de dura repressão.

    Paulo Miki era filho de um oficial. Foi educado num colégio jesuíta e, em 1580, entrou na Companhia de Jesus. Tornou-se muito conhecido pela qualidade da sua vida e pela sua capacidade de evangelizar. Ainda não era sacerdote quando foi martirizado com outros 25 cristãos: 6 missionários franciscanos espanhóis, um escolástico e um irmão, jesuítas japoneses, e 17 leigos também japoneses. Foram canonizados por Pio IX, em 1862.

    Lectio

    Primeira leitura: Gálatas, 2, 19s.

    Irmãos, eu pela Lei morri para a Lei, a fim de viver para Deus. Estou crucificado com Cristo.20Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim.

    A forte experiência a que Paulo faz alusão neste texto, está inserida na vida da comunidade da Galácia, que, se por um lado vive em grande fervor, por outro é provada pelos irmãos que julgam necessário continuar a observar a lei de Moisés, com tudo o que ela implica, também a circuncisão (cf. Gal 1, 2 e Act 15, 1).
    É na provação que os discípulos descobrem a verdadeira origem da salvação. Em consequência, chegam a uma relação viva com o Senhor Jesus, a uma maior consciência da sua identidade, aprendem a reconhecer a acção do Espírito no desenvolvimento da Igreja e descobrem o seu lugar na sociedade. Trata-se de fazer, mais uma vez, uma opção por Cristo e pelo único evangelho, fundamentando a própria vida, não em normas e rituais, como acontecia entre os judeus, mas em Cristo e em Cristo Crucificado. Paulo não quer propor aos Gálatas uma doutrina a discutir, mas levá-los a reflectir, narrando a sua experiência (1, 10-2,21), na «verdade do evangelho» (2, 14), a reconhecer que a justificação vem da fé e não das obras da lei, a encontrar-se com Cristo crucificado, a viver a vida em liberdade, guiados pelo Espírito.
    Paulo «sabe» quem é o seu Senhor! «Estou crucificado com Cristo» (2, 20): é o nascimento da vida nova e é a plena identificação com Jesus. A vida desenrola-se na comunhão profunda, única e misteriosa, com Cristo, que o amou e deu a vida por ele.

    Evangelho: Mateus, 28, 16-20

    Naquele tempo, os onze discípulos partiram para a Galileia, para o monte que Jesus lhes tinha indicado. 17Quando o viram, adoraram-no; alguns, no entanto, ainda duvidavam.18Aproximando-se deles, Jesus disse-lhes:«Foi-me dado todo o poder no Céu e na Terra. 19Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, 20ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos.»

    Jesus convoca a comunidade dos discípulos para a revelação definitiva. O lugar é significativo: a Galileia, um Monte. Foi na Galileia que Jesus anunciou, pela primeira vez, a vinda do Reino (4, 17); foi sobre um monte que Jesus foi tentado pelo Demónio que Lhe oferecia o domínio sobre os reinos do mundo (4, 8-10); foi sobre um monte que Jesus proclamou as Bem-aventuranças (5, 1ss.); foi sobre um monte que aconteceu a Transfiguração (7, 1). Agora, sobre um monte, o Ressuscitado manifesta-se aos seus e revela-lhes que o Pai Lhe deu todo o poder «no Céu e na Terra» (v. 17).
    Jesus confia aos Apóstolos a missão, que é a missão universal da Igreja. Promete-lhes a sua presença perene: «Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos» (v. 20). A senhoria universal do Ressuscitado é a fonte donde brota a missão universal da Igreja: «ir e ensinar todos os povos», «fazer discípulos todos os povos». Mas o Senhor não deixa a Igreja só nesta missão longa e difícil. Ele está com eles como guia, apoio, purificação, luz. Está com eles para apoiar a sua obediência ao Pai e o seu amor activo para com todos.

    Meditatio

    A leitura da Carta aos Gálatas, na memória dos Mártires do Japão, leva-nos a confrontar-nos, mais uma vez, com o «evangelho de Deus» (Rm 1, 1), convidando-nos a renovar a nossa opção por Cristo em todas as situações da nossa vida: na alegria, no sofrimento, no êxito, no fracasso... «a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim» (Gal 2, 20). O testemunho dos Mártires Japoneses e das suas comunidades cristãs é Palavra e conforto para nós, os crentes, e é anúncio e luz transformadora para a humanidade. A vida nasce da vida que se gasta, que se faz dom. Nos fundamentos da Igreja está o sangue e a fidelidade, isto é, o amor. A Igreja nasce do ágapedivino e vive dele. O ágape é o princípio vital da sua existência e da sua acção, que o irradia e comunica.
    O evangelho faz brotar a gratidão e o louvor, porque leva a tocar com mão a realização do mandato confiado a por Cristo ressuscitado aos seus. A Igreja contempla-O nas terras do Japão, onde o Espírito abriu corações e mentes e agregou novos membros ao novo povo. Todos, com efeito, «são admitidos à mesma herança, membros do mesmo Corpo e participantes da mesma promessa, em Cristo Jesus, por meio do Evangelho». É com este coração apaixonado que também nós queremos ver o homem e a sociedade de hoje. Abertos a todos, dados a todos.
    As comunidades cristãs envolvem o mundo no amor de Cristo crucificado, atestam o senhorio de Cristo, a universalidade do mandato e do amor do Pai, e são, por sua vez, seu ícone entre os homens porque são membros do seu corpo, animados pelo mesmo Espírito.

    Oratio

    Pai santo, nós Te bendizemos e damos graças porque és o autor e dador de todos os bens. Hoje, queremos particularmente agradecer-Te pelo testemunho dos nossos irmãos mártires. À imitação de Cristo, teu Filho, derramaram o seu sangue pela confissão do teu nome. A sua vida é conforto, apoio e luz para nós. Neles manifestas as maravilhas do teu poder. Neles tiras força da fraqueza humana e fazes da fragilidade testemunho da tua grandeza.
    O nosso espírito emudece de espanto na contemplação destes mártires crucificados como o teu Filho e por causa d´Ele. Por sua intercessão, queremos pedir-Te força e coragem para prosseguirmos a nossa peregrinação terrena na fidelidade ao teu amor, mesmo quando tivermos de participar na paixão do teu Filho Jesus. Infunde em nós a sabedoria da cruz e ajuda-nos para aderirmos totalmente a Cristo e com Ele cooperarmos na redenção do mundo. Amen.

    Contemplatio

    Esperando a glória dos céus, os perseguidos experimentam já uma alegria íntima sobre a terra. É uma recompensa da graça divina. «Vêem o fruto do que as suas almas sofreram, diz-nos o profeta, e são assim saciados» (Is 53, 2). É a alegria íntima do apostolado e o triunfo do sofrimento e do sacrifício: «O meu servo é justo e pelo ensino da sua doutrina tornará justo um grande número de homens...Dar-lhe-ei em partilha uma multidão de discípulos; vencerá os seus inimigos e partilhará os seus despojos» (Is 53, 11-12). Isto aplica-se ao Salvador e àqueles que propagam o seu reino. A salvação das almas! Que recompensa consoladora pelas lágrimas derramadas, pelas fadigas suportadas, pelas perseguições sofridas e pelo ódio do mundo!... Seguindo a Jesus, que levou a cruz com alegria, com os apóstolos e os mártires, que louvam a Deus nas perseguições, levemos generosamente a nossa cruz quotidiana. - O Coração de Jesus ama a cruz redentora: o meu coração esperou o opróbrio e a vergonha (Sl 68). Amemos a nossa cruz de cada dia, o trabalho, a fadiga, a humildade, a obscuridade. Suportemos com uma doce paciência as incomodidades da vida comum e as provações que a Providência nos envia. (Leão Dehon, OSP 4, p. 61s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a Palavra do Senhor:
    «Já não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim» (Gal 2, 20).

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    S. Paulo Miki e Companheiros (6 Fevereiro)

  • As cinco Chagas do Senhor

    As cinco Chagas do Senhor


    7 de Fevereiro, 2025

    O culto das Cinco Chagas do Senhor, isto é, das feridas que recebeu na cruz e manifestou aos Apóstolos depois da Ressurreição, foi impulsionado por S. Bernardo, e encontrou sentida e profunda adesão no povo português, desde os começos da nacionalidade. Luís de Camões, nos Lusíadas, faz eco dessa devoção (I, 7). Prestando culto às Chagas do Redentor, é para Jesus Cristo que se dirige a nossa adoração, para quem nos amou até à morte e morte de cruz (cf. Fl 2, 8). A contemplação das Chagas do Senhor deu particular atenção ao Lado aberto, conduzindo os místicos medievais e posteriores à contemplação do Coração trespassado, a mais viva expressão do seu amor. Essa contemplação move-nos espontaneamente à correspondência, "amor com amor se paga".

    Lectio

    Primeira leitura: Isaías 53, 1-10

    Quem acreditou no nosso anúncio?A quem foi revelado o braço do Senhor? 2O servo cresceu diante do Senhor como um rebento, como raiz em terra árida, sem figura nem beleza. Vimo-lo sem aspecto atraente,  3desprezado e abandonado pelos homens, como alguém cheio de dores, habituado ao sofrimento, diante do qual se tapa o rosto, menosprezado e desconsiderado.  4Na verdade, ele tomou sobre si as nossas doenças, carregou as nossas dores. Nós o reputávamos como um leproso, ferido por Deus e humilhado. 5Mas foi ferido por causa dos nossos crimes, esmagado por causa das nossas iniquidades. O castigo que nos salva caiu sobre ele, fomos curados pelas suas chagas.  6Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas perdidas, cada um seguindo o seu caminho. Mas o Senhor carregou sobre ele todos os nossos crimes.7Foi maltratado, mas humilhou-se e não abriu a boca, como um cordeiro que é levado ao matadouro, ou como uma ovelha emudecida nas mãos do tosquiador. 8Sem defesa, nem justiça, levaram-no à força. Quem é que se preocupou com o seu destino? Foi suprimido da terra dos vivos, mas por causa dos pecados do meu povo é que foi ferido.  9Foi-lhe dada sepultura entre os ímpios, e uma tumba entre os malfeitores, embora não tenha cometido crime algum, nem praticado qualquer fraude. 10Mas aprouve ao Senhor esmagá-lo com sofrimento, para que a sua vida fosse um sacrifício de reparação. Terá uma posteridade duradoura e viverá longos dias, e o desígnio do Senhor realizar-se-á por meio dele.

    O quarto cântico do Servo de Javé é um dos momentos mais altos da revelação do Antigo Testamento. Nele encontramos uma interpretação da história de Israel como expiação vicária e redentora do resto em favor de toda a comunidade judaica e de todos os povos da terra. Tudo isto se realiza plenamente em Cristo, membro eminente da comunidade dos que foram salvos, dos Pobres de Israel, do Resto, dos Fiéis. Os evangelistas, inspirados por Deus, leram os acontecimentos da vida de Jesus de Nazaré à luz deste misterioso Servo de que fala o profeta. Jesus é o Servo fiel e sofredor, o "homem das dores" que nos salvou. As suas Chagas são o testemunho mais eloquente do amor, com que realizou a sua intervenção em favor do povo de Deus.

    Segunda leitura: João 19, 28-37

    Naquele tempo, sabendo Jesus que tudo se consumara, para se cumprir totalmente a Escritura, disse: «Tenho sede!» 29Havia ali uma vasilha cheia de vinagre. Então, ensopando no vinagre uma esponja fixada num ramo de hissopo, chegaram-lha à boca. 30Quando tomou o vinagre, Jesus disse: «Tudo está consumado.» E, inclinando a cabeça, entregou o espírito.31Como era o dia da Preparação da Páscoa, para evitar que no sábado ficassem os corpos na cruz, porque aquele sábado era um dia muito solene, os judeus pediram a Pilatos que se lhes quebrassem as pernas e fossem retirados. 32Os soldados foram e quebraram as pernas ao primeiro e também ao outro que tinha sido crucificado juntamente. 33Mas, ao chegarem a Jesus, vendo que já estava morto, não lhe quebraram as pernas. 34Porém, um dos soldados traspassou-lhe o peito com uma lança e logo brotou sangue e água. 35Aquele que viu estas coisas é que dá testemunho delas e o seu testemunho é verdadeiro. E ele bem sabe que diz a verdade, para vós crerdes também. 36É que isto aconteceu para se cumprir a Escritura, que diz: Não se lhe quebrará nenhum osso. 37E também outro passo da Escritura diz: Hão-de olhar para aquele que trespassaram.

    Depois de tudo o que aconteceu na paixão, a sede de Jesus é completamente natural. Mas João na se limita a esse fato. Para ele, a sede de Jesus significa a sua intensa tendência para Deus. O Sl 63, 1 ajuda-nos a compreender a sede de Jesus crucificado: "Ó Deus! Tu és o meu Deus! Anseio por ti! A minha alma tem sede de ti!". O clamor de Jesus era uma oração. Para João, Jesus recitava o salmo 63.
    Jesus morre como verdadeiro cordeiro pascal. É por isso que o evangelista fixa a sua morte no dia e na hora em que, no templo, eram sacrificados os cordeiros que, no dia seguinte, eram comidos na ceia pascal.
    Do seu Lado aberto "saiu sangue e água". Isto é possível fisiologicamente. Mas, para João, mais uma vez, o que interessa é o símbolo do acontecimento: do Lado de Cristo, morto na cruz, brotam os sacramentos da Igreja: a Eucaristia e o Batismo.
    Os homens "hão-de olhar para Aquele que trespassaram", e aqueles que neste olhar de fé, se converterem receberão a água misteriosa do Espírito de Deus. Com o seu sacrifício, o Cordeiro Pascal libertou o seu Povo do pecado. As suas Chagas não são sinais de derrota, mas de triunfo.

    Meditatio

    Nas Chagas do Senhor, particularmente na do seu Lado aberto, contemplamos o caminho do amor de Deus até nós e o nosso caminho de amor até Ele. S. Agostinho realça bem este caminho nos seus discursos: "Cristo é a porta. Esta porta foi aberta para ti quando o Seu Lado foi aberto pela lança. Recorda-te do que saiu e escolhe por onde entrar". Percorrendo este caminho de amor, chegamos à devoção ao Coração de Jesus. Foi este o caminho de Santa Margarida Maria. Desde pequena, teve uma afetuosa devoção à Paixão de Cristo e às cinco Chagas, atraindo particularmente a sua atenção a chaga do Lado. Finalmente, a convite de Jesus, fez a descoberta do Coração, reconhecido como símbolo da Pessoa amante do Redentor. Foi este, também, o caminho "místico" do Pe. Dehon. No "Ano com o Coração de Jesus", escreve: "O profeta não disse: "Verão Aquele que trespassaram", mas "Voltarão o olhar para dentro d'Aquele que trespassaram" ("Videbunt in quem transfixerunt") (Jo 19, 37 - Vulgata). S. João aplica estas palavras à abertura do Lado de Jesus, ao próprio Coração de Jesus que pôde entrever através da chaga do lado aberto...". Para além de todas as questões críticas de tal leitura e interpretação bíblica, a verdade é que "ver em alguém" e muito mais do que "ver alguém". Uma coisa é conhecer uma pessoa só externamente, outra é conhecê-la na sua interioridade e intimidade. O Pe. Dehon fala deste olhar íntimo também na Vida de amor... E põe na boca de Jesus as seguintes palavras: "Eu sou, de verdade, nos mistérios da Minha Paixão, um livro escrito por dentro e por fora (cf. Ap 5, 1) e o que aí está escrito é o Meu amor... Não vos contenteis em ler e admirar esta divina escritura somente do lado de fora, mas penetrai até ao Meu Coração e vereis". E, nas "Coroas de amor"... "Leiamos e voltemos a ler este livro de amor do Coração de Jesus, devoremos este livro de amor que é o próprio amor e, quando ardermos de amor, a nossa oblação será facilmente generosa, pronta, sem cedências". Deste modo, o Pe. Dehon faz eco a S. João: "Hão-de olhar para Aquele que trespassaram" (19, 37); isto não é só uma profecia, é uma exortação, um convite, porque do mistério do Lado aberto (e do Coração Trespassado do Salvador), "nasce o homem de coração novo" (Cst 2-3). "Com S. João, vemos no Lado aberto do Crucificado o sinal do amor que, na doação total de Si mesmo, recria o homem segundo Deus" (Cst 21). Assim contemplamos o Trespassado, no ato supremo da Redenção, não como os israelitas contemplavam a serpente de bronze, elevada no deserto, para curar as mordeduras das serpentes, mas penetramos na realidade suprema do Seu amor, no Seu Coração trespassado, e acolhemos o seu apelo à oblação, à reparação, à imolação, à consolação, àquele "culto de amor e de reparação que o Seu Coração deseja", que nos torna criaturas de coração novo.

    Oratio

    Rezemos com o P. Dehon: "Meu Senhor e meu Deus! Quero tirar nas vossas chagas a bebida da salvação. Sede condescendente comigo como foste com S. Tomé. Emprestai-me as vossas mãos e os vossos pés para que aí cole os meus lábios. Tenho tanta necessidade de forças. Ousarei mesmo aproximar-me do vosso Coração para daí tirar o arrependimento e o fervor. Perdoai-me!" (OSP 2, p. 296).

    Contemplatio
    Jesus aparece no meio dos apóstolos, na sua majestade e na sua bondade. Intervém para curar Tomé das suas dúvidas. Pax vobis! A paz esteja convosco, diz. É a saudação habitual de Jesus aos seus amigos, saudação afetuosa e verdadeiramente eficaz. Tomé com dificuldade ousa acreditar nos seus olhos. Está perturbado. É sobretudo para ele que Jesus aparece hoje. Vem cumprir um milagre moral, a mudança das disposições de Tomé, e é pelas suas cinco chagas que Jesus quer fazer este milagre. Dirige-se, de seguida, a Tomé: «Vem, diz-lhe, coloca o teu dedo aqui, vê as minhas mãos; aproxima a tua mão e mete-a no meu lado», neste lado aberto pela lança e onde se sente bater o mais amável dos corações, - «e não sejas incrédulo, mas fiel». Os apóstolos observam e aguardam. Tomé vai levar mais longe a incredulidade e tocar as chagas do Salvador? Não, coloca-se de joelhos, e exclama: «Meu Senhor e meu Deus!». Nosso Senhor tinha respondido diretamente às palavras de dúvida que tinha formulado. Nada o podia impressionar mais. Aqui está o começo da devoção às cinco chagas, que preludia à do Sagrado Coração. Nosso Senhor tinha querido mostrar-nos a eficácia das suas chagas. Têm um enorme papel na mística cristã. São as fontes misteriosas pelas quais correu o sangue redentor. Estavam figuradas nas fontes do paraíso terrestre, que levavam a toda a parte a fecundidade e a alegria. Foram profetizadas por Isaías: «Bebereis nas fontes do Salvador». Aparecem no Apocalipse sob a forma das fontes que correm sob os pés do Cordeiro divino. Foram reproduzidas nos membros benditos de alguns santos, como S. Francisco de Assis e santa Catarina de Sena. São o objeto de uma das devoções tradicionais da Igreja. (L. Dehon, OSP 3, p. 295s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Meu Senhor e meu Deus!" (Jo 20, 28).

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    As cinco Chagas do Senhor (07 Fevereiro)

  • 05º Domingo do Tempo Comum – Ano C [atualizado]

    05º Domingo do Tempo Comum – Ano C [atualizado]

    9 de Fevereiro, 2025

    ANO C
    5.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

     Tema do 5.º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia deste domingo fala-nos de “vocação”. Lembra-nos que Deus conta connosco para concretizar o seu projeto de salvação para o mundo e para os homens. Desafia-nos a responder com generosidade ao chamamento de Deus.

    A primeira leitura traz-nos a descrição plástica do chamamento de um profeta – Isaías. Enquanto dialoga com Deus, Isaías apercebe-se de que Deus tem planos para ele. Apesar de se sentir frágil e indigno, Isaías abraça o convite de Deus e responde, com toda a convicção: “eis-me aqui: podeis enviar-me”. A resposta de Isaías poderia muito bem ser o modelo da nossa resposta ao Deus que chama.

    No Evangelho, Lucas oferece-nos uma imagem do “barco de Simão Pedro”, metáfora da comunidade cristã. Jesus está lá, sentado a ensinar todos aqueles que se dispõem a escutá-l’O. Os que viajam nesse barco devem orientar-se pela Palavra e pelas indicações de Jesus. O Mestre quer entregar-lhes uma missão: serem “pescadores de homens”. Eles são chamados a trabalhar com Jesus na libertação de todos os homens e mulheres afogados no sofrimento sem sentido.

    Na segunda leitura, São Paulo fala-nos da ressurreição de Cristo, uma realidade que nos abre perspetivas novas e que nos permite encarar a vida com esperança. Recorda-nos que somos chamados – como o próprio Paulo foi – a acreditarmos e a sermos testemunhas da vida nova que brota de Jesus e da sua proposta.

     

    LEITURA I – Isaías 6,1-2a.3-8

    No ano em que morreu Ozias, rei de Judá,
    vi o Senhor, sentado num trono alto e sublime;
    a fímbria do seu manto enchia o templo.
    À sua volta estavam serafins de pé,
    que tinham seis asas cada um
    e clamavam alternadamente, dizendo:
    «Santo, santo, santo é o Senhor do Universo.
    A sua glória enche toda a terra!»
    Com estes brados as portas oscilavam nos seus gonzos
    e o templo enchia-se de fumo.
    Então exclamei:
    «Ai de mim, que estou perdido,
    porque sou um homem de lábios impuros,
    moro no meio de um povo de lábios impuros
    e os meus olhos viram o Rei, Senhor do Universo».
    Um dos serafins voou ao meu encontro,
    tendo na mão um carvão ardente
    que tirara do altar com uma tenaz.
    Tocou-me com ele na boca e disse-me:
    «Isto tocou os teus lábios:
    desapareceu o teu pecado, foi perdoada a tua culpa».
    Ouvi então a voz do Senhor, que dizia:
    «Quem enviarei? Quem irá por nós?»
    Eu respondi:
    «Eis-me aqui: podeis enviar-me».

     

    CONTEXTO

    O profeta Isaías (autor dos capts. 1-39 do Livro de Isaías) nasceu por volta do ano 760 a. C., no tempo do rei Ozias. De origem nobre, parece ter vivido em Jerusalém: demonstra uma cultura que dificilmente poderia ter conseguido fora do ambiente sofisticado da capital.

    Isaías sentiu-se chamado por Deus à vocação profética quando tinha cerca de vinte anos (de acordo com Is 6,1, “no ano da morte do rei Ozias”, isto é, por volta de 740-739 a.C.). Sabemos também que casou e teve filhos.  Desconhecemos o nome da esposa, conhecida somente como “a profetiza” (Is 8,3). Quanto aos filhos, receberam nomes simbólicos: Sear Yasub (“um resto voltará” - Is 7,3) e Maher Salal Hash Baz (“toma despojos, apanha velozmente a presa” - Is 8,3). Neste pormenor, Isaías identifica-se com o profeta Oseias: toda a sua existência, inclusive no âmbito familiar, está ao serviço da mensagem que Deus lhe confia.

    O carácter de Isaías pode conhecer-se suficientemente através da sua obra. É um homem decidido, sem falsa modéstia, que se oferece voluntariamente a Deus no momento do seu chamamento vocacional. Seguramente, faz parte dos notáveis do país: participa nas decisões relativas ao Reino, falando com autoridade aos altos funcionários (cf. Is 22,15) e mesmo aos reis (Is 7,10). É enérgico e nunca se deixa desanimar. É inimigo da anarquia (cf. Is 3,1-9); mas isso não significa que apoie as classes altas. Na verdade, os seus maiores ataques são dirigidos aos grupos dominantes: autoridades, juízes, latifundiários, políticos. É duro e irónico com as mulheres da classe alta de Jerusalém (cf. Is 3,16-24; 32,9-14). Defende com paixão os oprimidos, os órfãos, as viúvas (cf. Is 1,17), o povo explorado e desencaminhado pelos governantes (cf. Is 3,12-15).

    Os últimos oráculos de Isaías são de 701 ou, talvez, de 689 a. C., alturas em que o rei assírio Senaquerib invadiu Judá e pôs cerco a Jerusalém. Isaías deve ter morrido poucos anos depois, embora não saibamos ao certo quando. Um apócrifo judeu do séc. I d. C. – “Ascensão de Isaías” – afirma que foi assassinado pelo rei ímpio Manassés.

    O texto que a liturgia deste quinto domingo comum nos propõe como primeira leitura narra o momento em que Deus chama Isaías à vocação profética. O cenário é o templo de Jerusalém, construído por Salomão no séc. X a.C., o lugar onde Deus residia no meio do seu Povo e onde o Povo ia encontrar-se com Deus. No texto que nos é proposto, esse relato não está completo. Mas, de acordo com o relato original, essa experiência vocacional resume-se a quatro pontos: a consciência da santidade de Deus; a constatação de que a vida de Judá é marcada pelo pecado (pessoal e coletivo); o reconhecimento da necessidade de um castigo; e, no final de tudo, a afirmação da esperança na salvação de Deus. Estes quatro temas, unidos às tradições sobre Jerusalém e sobre a dinastia davídica, estarão sempre presentes na pregação do profeta Isaías.

     

    MENSAGEM

    O texto de Isaías 6,1-8 não deve ser visto como uma narração factual do momento em que Deus chamou o profeta para o seu serviço; mas deve ser considerado uma reflexão sobre esse mistério sempre pessoal e sempre íntimo que é a vocação. Isaías descreve a sua experiência do chamamento de Deus através de imagens que procuram traduzir o que ele sentiu intimamente quando percebeu que Deus contava com ele para a missão profética.

    De acordo com o texto, Isaías estava no templo de Jerusalém quando “ouviu” o chamamento de Deus. Os elementos com que Isaías enfeita a sua descrição refletem a compreensão que o profeta tem da grandeza, da omnipotência, da santidade e da transcendência de Deus: Deus está sentado num trono elevado, como rei que governa o mundo e preside à história dos homens; é tal a grandeza de Deus, que a simples fímbria do seu manto enche todo o espaço sagrado do templo (vers. 1); à volta de Deus, fazendo parte da sua corte, estão os anjos (os “serafins”) que aclamam a sua santidade, a sua realeza universal, a sua glória (vers. 2-3). O “fumo” que enche o templo e o tremor que agita os gonzos das portas quando se ouve a voz de Deus, são elementos usados pelos autores véterotestamentários para “compor” o cenário das manifestações de Deus (cf. Ex 19, 16-18; 1Rs 8,10; Sl 104,32). Foi esse Deus santo, majestoso, Senhor do mundo e da história que, por desígnios insondáveis e que são incompreensíveis para o homem, escolheu e chamou Isaías para a missão profética.

    Diante da grandeza e da santidade de Deus, Isaías sente-se pequeno, frágil e, sobretudo, indigno. Como poderá ele, homem frágil e pecador, que vive no meio de um povo de lábios impuros, estar diante de Deus e testemunhar a majestade infinita de Deus? (vers. 5). Mas Deus tem uma missão para confiar a Isaías; a fragilidade e a indignidade daquele homem que Deus quer para o seu serviço não são obstáculo para o Deus que tudo pode. Portanto, Deus capacita Isaías para a missão que lhe vai entregar: um dos anjos que estava junto de Deus vem ao encontro de Isaías trazendo um carvão ardente tirado do altar; toca-lhe com ele os lábios, purificando-o e tornando-o apto para ser profeta de Deus (vers. 6-7). Com os lábios purificados, Isaías já pode ser palavra viva de Deus que ecoa no mundo dos homens. O profeta pode, agora, aceitar a missão. Apesar dos seus limites bem humanos, ele tem a autoridade de Deus para fazer ouvir no mundo a Palavra de Deus.

    Depois disto, só resta ao profeta aceitar a missão. Rendido a esse Deus santo e poderoso que o chama, Isaías responde: “eis-me aqui: podeis enviar-me” (vers. 8). Entrega-se nas mãos de Deus e põe-se incondicionalmente ao serviço desse Deus que o chama.

    Embora a vocação seja sempre uma experiência única e pessoal, nunca divergirá essencialmente dos traços aqui definidos: o “caminho vocacional” percorrido por Isaías é o mesmo caminho que qualquer pessoa chamada por Deus tem de percorrer.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Deus, para concretizar o seu plano de salvação, conta com todos os seus filhos e filhas. Cada um de nós tem o seu lugar e o seu papel no projeto que Ele tem para o mundo e para os homens. É Deus que, de acordo com critérios que só Ele conhece e define, escolhe quem quer, chama quem quer e envia quem quer. A nossa “história de vocação” é a história de como Deus vem ao nosso encontro, entra na nossa vida, desafia-nos para a missão, pede uma resposta à proposta que nos faz. Temos consciência de que Deus nos chama, às vezes de formas bem banais, para o seu serviço? Estamos atentos aos sinais que Ele semeia na nossa vida e através dos quais nos diz, a cada momento, o que quer de nós? Estamos disponíveis para responder com generosidade aos desafios que Deus nos lança, mesmo quando eles vão contra os nossos projetos pessoais ou contra os nossos interesses particulares?
    • O “chamamento” de Isaías acontece quando ele está no templo de Jerusalém, presumivelmente em oração. Os grandes “vocacionados” que a Bíblia nos apresenta são sempre pessoas que cultivam a intimidade com Deus e que buscam o diálogo com Deus. É nesse diálogo que se apercebem do projeto de Deus e do papel que Deus lhes reserva nesse projeto; é nesse diálogo que aprendem a escutar Deus e as propostas que Ele faz; é nesse diálogo que apresentam a Deus as suas inquietações, dúvidas e incertezas e descobrem as respostas e “soluções” de Deus para as questões que a vida traz… Os que “conversam” com Deus saem dessas “conversas” mais enamorados de Deus, mais conscientes do que Deus quer, mais preparados para aceitar a vontade de Deus e para lhe dizer “sim”. Procuramos aproximar-nos de Deus e cultivar a intimidade com Ele? No meio da agitação e das preocupações que enchem a nossa vida de todos os dias, arranjamos tempo para escutar Deus, para falar com Ele, para discernir os seus caminhos?
    • Isaías é um homem plenamente consciente dos seus limites, da sua debilidade e da sua indignidade. Descobre, no entanto, que Deus quer contar com ele, apesar de tudo isso. Deus, desde sempre, escolheu instrumentos frágeis e “improváveis” para intervir no mundo e para oferecer aos seus filhos a sua proposta de salvação. Aliás, é na fraqueza e na fragilidade que se manifestam a grandeza, a força e a santidade de Deus. Se Deus nos pede um serviço, dar-nos-á também a força para superarmos os nossos limites e para fazermos o que Ele nos pede. A consciência da nossa pequenez e fragilidade alguma vez nos impediu de aceitarmos a missão que Deus tinha para nós? Mais: alguma vez usamos o pretexto da nossa indignidade para permanecermos comodamente à margem das tarefas que Deus queria confiar-nos?
    • No relato da vocação de Isaías impressiona o facto de ele, ainda antes de saber em concreto a missão que Deus lhe ia confiar, se ter disponibilizado sem condições: “eis-me aqui, podeis enviar-me!”. A resposta que Isaías dá a Deus é a resposta de quem está disposto a arriscar tudo, a oferecer toda a sua vida para o serviço de Deus; é a resposta de quem dá tudo a Deus, sem cálculos nem condições; é a resposta de alguém para quem Deus é o centro e a prioridade máxima. É desta forma – total, absoluta, incondicional, “limpa” – que nós nos damos a Deus e nos disponibilizamos para o serviço de Deus?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 137 (138)

    Refrão:  Na presença dos Anjos, eu Vos louvarei, Senhor.

    De todo o coração, Senhor, eu Vos dou graças,
    porque ouvistes as palavras da minha boca.
    Na presença dos Anjos Vos hei de cantar
    e Vos adorarei, voltado para o vosso templo santo.

    Hei de louvar o vosso nome pela vossa bondade e fidelidade,
    porque exaltastes acima de tudo o vosso nome e a vossa promessa.
    Quando Vos invoquei, me respondestes,
    aumentastes a fortaleza da minha alma.

    Todos os reis da terra Vos hão de louvar, Senhor,
    quando ouvirem as palavras da vossa boca.
    Celebrarão os caminhos do Senhor,
    porque é grande a glória do Senhor.

    A vossa mão direita me salvará,
    o Senhor completará o que em meu auxílio começou.
    Senhor, a vossa bondade é eterna,
    não abandoneis a obra das vossas mãos.

     

    LEITURA II – 1 Coríntios 15,1-11

    Recordo-vos, irmãos, o Evangelho
    que vos anunciei e que recebestes,
    no qual permaneceis e pelo qual sereis salvos,
    se o conservais como eu vo-lo anunciei;
    aliás teríeis abraçado a fé em vão.
    Transmiti-vos em primeiro lugar o que eu mesmo recebi:
    Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras;
    foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras,
    e apareceu a Pedro e depois aos Doze.
    Em seguida apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez,
    dos quais a maior parte ainda vive,
    enquanto alguns já faleceram.
    Posteriormente apareceu a Tiago e depois a todos os Apóstolos.
    Em último lugar, apareceu-me também a mim,
    como o abortivo.
    Porque eu sou o menor dos Apóstolos
    e não sou digno de ser chamado Apóstolo,
    por ter perseguido a Igreja de Deus.
    Mas pela graça de Deus sou aquilo que sou
    e a graça que Ele me deu não foi inútil.
    Pelo contrário, tenho trabalhado mais que todos eles,
    não eu, mas a graça de Deus, que está comigo.
    Por conseguinte, tanto eu como eles,
    é assim que pregamos;
    e foi assim que vós acreditastes.

     

    CONTEXTO

    Corinto, cidade cosmopolita situada na região do Peloponeso, era, no séc. I, um dos grandes expoentes da cultura grega. Paulo passou lá durante a sua segunda viagem missionária; do seu anúncio nasceu uma comunidade cristã viva e interessada, mas que mergulhava as suas raízes no terreno inquinado de uma cultura que estava distante da proposta cristã. Os valores culturais gregos – que os coríntios cultivavam com orgulho – vão constituir um contraponto aos valores do Evangelho que Paulo anunciava. O choque entre essas duas realidades está particularmente evidente em algumas das temáticas que Paulo julgou útil tratar na primeira carta aos coríntios, escrita em Éfeso durante a terceira viagem missionária do apóstolo.

    Uma das questões que trazia algumas dificuldades aos cristãos de Corinto era a questão da ressurreição. A ressurreição dos mortos era relativamente bem aceite no judaísmo em geral (embora os saduceus, um grupo elitista constituído fundamentalmente por membros das famílias sacerdotais, não partilhassem dessa crença), habituado a ver o ser humano na sua unidade; mas constituía um problema sério para a mentalidade grega. A cultura grega, fortemente influenciada por filosofias dualistas (como a filosofia de Platão, por esta altura muito em voga) que viam no corpo uma realidade negativa e na alma uma realidade ideal e nobre, recusava-se a aceitar a ressurreição do homem integral. Como poderia o corpo – essa realidade material, carnal, sensual, que aprisionava a alma e a impedia de subir ao mundo ideal, ao mundo luminoso dos espíritos – seguir a alma?

    Portanto, alguns cristãos de Corinto diziam que “não há ressurreição dos mortos” (1Cor 15,12). Outros faziam perguntas (“como ressuscitam os mortos?”; “com que corpo os mortos regressam à vida?”) que Paulo considera “insensatas” (cf. 1Cor 15,35). O apóstolo decide abordar esta questão para esclarecer uns e outros e ajudar todos os membros da comunidade a purificar a sua fé.

     

    MENSAGEM

    Propõe-se recordar aos cristãos de Corinto a “Boa Notícia” que lhes anunciou e que eles acolheram com fé. É por esse “evangelho” que os coríntios serão salvos (cf. 1Cor 15,1-2). Essa “Boa Notícia” não foi algo que Paulo inventou; foi algo que o próprio Paulo recebeu (“o que eu mesmo recebi”) e que passou aos seus filhos de Corinto (“transmiti-vos”). Os dois verbos aqui usados por Paulo (“receber” e “transmitir”) são utilizados no rabinismo para descrever o processo de transmissão da fé.

    Ora, no centro da fé dos cristãos, está a ressurreição de Cristo: “Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras” (vers. 3-4). A expressão poderá ser uma primitiva confissão de fé utilizada na pregação cristã dos primeiros tempos. A que textos das Escrituras se refere Paulo? Talvez ele tenha em mente Is 53,8-12 (o quarto poema do Servo de Javé) e Os 6,2; mas o mais certo é que esteja a falar de forma geral, a partir de acontecimentos salvíficos previstos em numerosas passagens véterotestamentárias, e em particular nos textos proféticos. Em qualquer caso, Paulo considera que a ressurreição de Cristo está em consonância com a Escritura sagrada.

    Como comprovativo da ressurreição de Jesus, Paulo cita seis aparições do Ressuscitado: Ele apareceu “a Pedro e depois aos Doze; em seguida apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez, dos quais a maior parte ainda vive, enquanto alguns já faleceram; posteriormente apareceu a Tiago e depois a todos os Apóstolos”; em último lugar, apareceu ao próprio Paulo, embora ele se considere o mais indigno de todos os apóstolos (vers. 5-9). Na verdade, nenhuma das pessoas que Paulo refere testemunhou o momento exato em que Jesus saiu vivo do sepulcro. O que elas atestaram é que Jesus, depois de morrer na cruz, lhes apareceu cheio de vida; e elas tornaram-se testemunhas de que a morte não tinha derrotado Jesus. Foi precisamente essa “Boa Notícia” que Paulo transmitiu aos cristãos de Corinto e que eles acolheram pela fé.

    A ressurreição de Jesus poderá ser catalogada na categoria dos factos históricos? Não. É um facto real, mas não um facto histórico. É um facto sobrenatural e meta-histórico que ultrapassa completamente as categorias humanas do espaço e do tempo e entre na dimensão da fé. A experiência que aqueles que se encontraram com Jesus vivo fizeram foi uma experiência de fé. No entanto, foi uma experiência verdadeira e convincente.  A prová-lo está na espantosa transformação que todos eles sofreram depois de se encontrarem com o Ressuscitado: de homens cheios de medo, de frustração e de cobardia, converteram-se em arautos destemidos de Jesus, vivo e ressuscitado.

    Os cristãos de Corinto poderão, também eles, fazer uma experiência de encontro com Cristo ressuscitado. Deverão, para chegar a fazer essa experiência, escutar as Escrituras, deixar-se iluminar pelo Espírito, acolher a tradição da Igreja. Acabarão, ao longo do caminho, por se encontrar com Jesus, vivo e ressuscitado, e por se deixar transformar por Ele.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Para nós, cristãos, a ressurreição de Jesus não é apenas uma verdade que professamos quando dizemos o credo, mas é uma certeza que ilumina a nossa vida e imprime um sentido novo à história dos nossos dias. Nós, discípulos de Jesus, não vivemos da memória de um “morto” que a história conheceu, digeriu e arrumou na galeria das figuras notáveis cobertas pelo pó dos tempos, mas caminhamos atrás de alguém que está vivo, que continua a encontrar-se connosco, a caminhar ao nosso lado, a alimentar-nos com a sua Palavra e com o seu Pão, a apontar-nos o caminho que conduz à vida. Como é que sentimos a ressurreição de Jesus? Experimentamos a presença de Jesus, sentimos que o seu Espírito nos anima e conduz enquanto viajamos pela vida? O facto de Jesus ter vencido a morte muda a nossa perspetiva da vida?
    • A vitória de Jesus sobre a morte, a injustiça, a mentira, a maldade, traz à nossa vida um suplemento de coragem e de esperança. Garante-nos que não há morte para quem aceita fazer da sua vida uma luta pela justiça, pela verdade, pelo projeto de Deus. Fornece-nos as armas de que precisamos para vencer o medo e fortalece-nos na decisão de lutar pela instauração do Reino de Deus. Foi isso que os apóstolos perceberam quando se encontraram com Jesus ressuscitado. A certeza da ressurreição encoraja-nos a lutar, sem a paralisia que vem do medo, por um mundo mais justo, mais fraterno, mais humano?
    • Paulo acredita que os seguidores de Jesus podem descobri-lo, vivo e ressuscitado, a partir da escuta da Palavra de Deus e do testemunho da comunidade cristã. Quando nos reunimos à volta da mesa da eucaristia, no “dia do Senhor”, com outros nossos irmãos na fé, sentimos que Jesus está vivo no meio de nós? A eucaristia é, para nós, um momento privilegiado de encontro com Jesus ressuscitado?

     

    ALELUIA – Mateus 4,19

    Aleluia. Aleluia.

    Vinde comigo, diz o Senhor,
    e farei de vós pescadores de homens.

     

    EVANGELHO – Lucas 5,1-11

    Naquele tempo,
    estava a multidão aglomerada em volta de Jesus,
    para ouvir a palavra de Deus.
    Ele encontrava-Se na margem do lago de Genesaré
    e viu dois barcos estacionados no lago.
    Os pescadores tinham deixado os barcos
    e estavam a lavar as redes.
    Jesus subiu para um barco, que era de Simão,
    e pediu-lhe que se afastasse um pouco da terra.
    Depois sentou-Se
    e do barco pôs-Se a ensinar a multidão.
    Quando acabou de falar, disse a Simão:
    «Faz-te ao largo
    e lançai as redes para a pesca».
    Respondeu-Lhe Simão:
    «Mestre, andámos na faina toda a noite
    e não apanhámos nada.
    Mas, já que o dizes, lançarei as redes».
    Eles assim fizeram
    e apanharam tão grande quantidade de peixes
    que as redes começavam a romper-se.
    Fizeram sinal aos companheiros que estavam no outro barco
    para os virem ajudar;
    eles vieram e encheram ambos os barcos
    de tal modo que quase se afundavam.
    Ao ver o sucedido,
    Simão Pedro lançou-se aos pés de Jesus e disse-Lhe:
    «Senhor, afasta-Te de mim, que sou um homem pecador».
    Na verdade, o temor tinha-se apoderado dele
    e de todos os seus companheiros,
    por causa da pesca realizada.
    Isto mesmo sucedeu a Tiago e a João, filhos de Zebedeu,
    que eram companheiros de Simão.
    Jesus disse a Simão:
    «Não temas.
    Daqui em diante serás pescador de homens».
    Tendo conduzido os barcos para terra,
    eles deixaram tudo e seguiram Jesus.

     

    CONTEXTO

    No início do Evangelho que a liturgia hoje nos apresenta, Jesus encontra-se nas margens do Mar da Galileia, rodeado por uma grande multidão que viera “para escutar a palavra de Deus” (Lc 5,1). Esse “mar” – também chamado “lago de Tiberíades” ou “lago de Kineret” – é um lago com cerca de 11 quilómetros de largura e 21 quilómetros de comprimento máximo. Era um lago de água doce, rico em peixe. Muitos dos que habitavam nas suas margens viviam da pesca. O rio Jordão era a principal fonte de alimentação desse lago.

    Nas margens do Mar da Galileia situavam-se diversas cidades, como Tiberíades ou Cafarnaum. Cafarnaum era a cidade onde Pedro e o seu irmão André residiam. Era uma cidade estratégica, pois estava ao lado da “Via Maris” (“estrada do Mar”), uma importante via de comunicação que ligava o Egito à Síria e ao Líbano e que passava por Cesareia Marítima (o local onde residia habitualmente o prefeito romano da Judeia). Jesus, depois de ter estado algum tempo com João Batista no deserto de Judá, estabelecera-se em Cafarnaum.

    De acordo com o esquema teológico de Lucas, Jesus tinha começado há pouco o seu ministério na Galileia (cf. Lc 4,14-15). Na sinagoga de Nazaré apresentara o seu “programa”: anunciar a “Boa Notícia” aos pobres, libertar os cativos, iluminar os caminhos de quem vivia na escuridão, proclamar a chegada de um tempo novo de graça e de paz (cf. Lc 4,16-21); e logo depois, na sinagoga de Cafarnaum deixara toda a gente maravilhada com o seu ensino e os seus gestos poderosos (cf. Lc 4,31-37).

    Até agora, Jesus tinha estado sozinho na tarefa de anunciar o Reino de Deus. Na secção que começa neste capítulo e que vai até 6,16, Jesus começa a rodear-se de discípulos. Algumas pessoas respondem ao seu anúncio e aceitam colaborar com Jesus na missão que o Pai lhe confiou.

     

    MENSAGEM

    Jesus está na margem do lago. A sua atuação na sinagoga de Cafarnaum, no sábado anterior (cf. Lc 4,31-37), tinha atraído sobre Ele a atenção das gentes da cidade. Rodeiam-no muitas pessoas que estão curiosas em relação àquele profeta itinerante e à mensagem nova que Ele traz. Intuem vagamente que aquele homem vem de Deus e traz uma mensagem de Deus. Ali perto estão alguns pescadores a limpar as redes, depois de uma noite de pesca que não teve qualquer resultado.

    Em pé junto da linha de água, rodeado por pessoas, Jesus apenas é escutado por alguns que estão mesmo ao lado d’Ele (vers. 1). Sobe então para um dos barcos, o de Simão Pedro, um pescador que Jesus conhece bem (cf. Lc 4,38-41) e pede-lhe que afaste um pouco o barco da margem. Senta-se no barco e começa a falar às pessoas que o escutam da margem (vers. 3). Agora está na posição de um rabi que, sentado na sua cátedra, instrui os seus discípulos; mas a sua cátedra é um humilde barco de pescadores.

    Quando Jesus acaba de falar, a multidão afasta-se lentamente. Jesus, ainda no barco, dirige-se agora a Simão Pedro e convida-o a lançar as redes (vers. 4). Do ensino, Jesus passa à ação, à pesca. Precisa da colaboração daqueles pescadores que estão com Ele no barco. Simão, contudo, coloca objeções bem lógicas à pretensão de Jesus: ele e os companheiros estão cansados depois de uma noite de trabalho; a manhã não é a melhor altura do dia para pescar; ali não há peixe, pois passaram toda a noite a tentar e não apanharam nada (vers. 5). Que pode um carpinteiro saber sobre pesca que aqueles “profissionais” não saibam? Vale a pena seguir as indicações de Jesus?

    Apesar de tudo, Simão decide acolher a sugestão de Jesus. Interna-se no lago e, com a colaboração de outros – possivelmente também de seu irmão André – lança as redes. Confia nas palavras de Jesus. Essa confiança é recompensada: as redes enchem-se de tal quantidade de peixes que ameaçam romper-se (vers. 6). Simão faz sinal a alguns companheiros de pesca que estavam noutro barco (à frente dir-se-á que se tratava de Tiago e João, filhos de Zebedeu) para que viessem ajudá-lo. Os dois barcos encheram-se de tal maneira que quase se afundavam (vers. 7).

    Simão estava melhor preparado do que os outros para entender Jesus. Já o conhecia e já o tinha acolhido na sua casa. Reagiu lançando-se aos pés de Jesus – um gesto de humildade – e reconhecendo-O como “Senhor” (“Kyrie” – vers. 8)). No texto grego do Antigo Testamento, a palavra designa o próprio Deus. Pedro sente-se pequeno e indigno diante de Jesus, como acontece com todos aqueles que são testemunhas da manifestação de Deus. Para Jesus, no entanto, a indignidade de Pedro não é obstáculo. Os outros pescadores envolvidos na pesca comungam do mesmo espanto e admiração que Simão sente em relação a Jesus (vers. 9-10).

    O episódio conclui-se com Jesus a anunciar a Simão qual vai ser a sua vocação futura: “pescador de homens” (vers. 10). Lucas não explica o que é que Jesus quer dizer ao usar essa expressão.

    Depois deste encontro e desta pesca, Simão e os seus companheiros de pesca “deixaram tudo e seguiram Jesus” (vers. 11).

    A narração lucana é uma história sobre uma pesca milagrosa no Mar da Galileia, no final da manhã de um dia não identificado, pouco depois de Jesus ter começado o seu ministério profético? É muito mais do que isso: é uma catequese sobre o projeto de Jesus e a nossa envolvência nesse projeto.

    O barco de Simão Pedro é uma metáfora da Igreja, comunidade cristã. É nela que Jesus entra e se senta; e é dela que Ele dirige a sua Palavra ao mundo (“pôs-Se a ensinar, da barca, a multidão”). Os que estão “na margem” e que estão interessados na proposta de Jesus voltam-se para o “barco de Pedro” e escutam com toda a atenção a palavra libertadora que Jesus lhes oferece.

    Os que estão no “barco de Pedro” são aqueles que já optaram por Jesus. Podem ser gente que trabalha muito; mas o seu esforço é inglório se Jesus não estiver com eles. O seu trabalho só dá fruto quando eles seguem as orientações de Jesus. Às vezes, as propostas de Jesus podem parecer ilógicas, incoerentes, ridículas (e quantas vezes o parecem, face aos esquemas e valores do mundo…); mas é preciso confiar incondicionalmente em Jesus, entregar-se nas mãos d’Ele e cumprir à risca as suas indicações (“porque Tu o dizes, lançarei as redes”). Então sim, a “pesca” é abundante.

    Os que viajam no barco com Jesus conhecem-n’O bem. Sabem que Ele veio de Deus e que a sua proposta gera vida e fecundidade para todos. Por isso, como Simão Pedro, reconhecem Jesus como “o Senhor” (em grego, “kyrios”), que é o título que a comunidade cristã primitiva dava a Jesus ressuscitado, aquele que preside ao mundo e à história. Naturalmente, sentem-se pequenos e indignos diante do “Senhor”; mas são pessoas “normais” – isto é, frágeis, pecadoras, cheias de defeitos e qualidades – que Jesus convida para irem com Ele no “barco”.

    Aqueles que acolhem a proposta de Jesus e que escutam as suas indicações, são chamados a serem “pescadores de homens”. Para entendermos esta expressão, temos de recordar o que significava o “mar” no ideário judaico: era o lugar onde residiam os espíritos e as forças demoníacas que roubavam a vida e a felicidade do homem. Ser “pescador de homens” é continuar a obra libertadora de Jesus, procurando libertar o homem de tudo aquilo que o impede de ter vida. Trata-se de salvar o homem de morrer afogado no mar da opressão, do egoísmo, da maldade. Trata-se, afinal, da mesma missão de Jesus: “anunciar a boa nova aos pobres”, “proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos”, “restituir a liberdade aos oprimidos”, “proclamar o ano da graça do Senhor” – Lc 4,18-19).

    Os que se dispõem a trabalhar com Jesus devem deixar tudo – todas as seguranças, todos os confortos, todas as certezas, todas as cadeias que os prendem – para irem atrás de Jesus. Esta alusão ao desprendimento total do discípulo é típica de Lucas (cf. Lc 5,28;12,33;18,22): sugere que a generosidade e o dom total devem ser sinais distintivos das comunidades e dos crentes que seguem Jesus.

    Uma palavra final para o papel proeminente que Simão Pedro assume nesta catequese: a comunidade lucana é uma comunidade estruturada, que reconhece em Pedro o “porta-voz” de todos e o principal animador dessa comunidade de Jesus que navega nos mares da história.

     

    INTERPELAÇÕES

    • O “barco de Simão Pedro”, de onde Jesus proclama a Boa Notícia do Reino de Deus, é uma bela e sugestiva imagem da comunidade cristã. Muitos homens e mulheres que estão “na margem” da vida e da história, olham para o “barco de Simão Pedro” e aguardam ansiosamente as palavras de Jesus. Não veem outra saída, não vislumbram outra esperança. A comunidade cristã é, neste agitado séc. XXI, o espaço privilegiado onde a voz de Jesus ecoa no mundo para consolar, para animar, para curar, para apontar caminhos, para dar vida? No meio do rugido das tempestades que o mundo enfrenta, fazemos tudo o que podemos para tornar percetível, para os nossos irmãos e irmãs que esperam “nas margens”, a voz de Jesus? As palavras que dizemos aos homens e mulheres que anseiam por uma vida mais humana, são as palavras de Jesus? O “barco de Simão Pedro” em que viajamos com Jesus está pintado com as cores da misericórdia, da solicitude, da compreensão, do acolhimento, do perdão, da bondade, da ternura de Deus? O “barco de Simão Pedro” cumpre o seu papel de levar a todos os homens e mulheres o testemunho de Jesus?
    • Olhemos agora para o interior do “barco de Simão Pedro”, onde viajamos nós, os que fazemos parte da comunidade de Jesus… O que andamos a fazer? Como trabalhamos? O nosso trabalho está a dar resultado? Quando desenhamos os nossos projetos pastorais e elaboramos os nossos organogramas paroquiais, temos em conta as orientações que Jesus nos oferece, ou fazemos as coisas de acordo com os nossos critérios pessoais e as nossas visões estreitas? Acolhemos as propostas de Jesus, mesmo quando elas nos parecem ilógicas, irracionais, pouco modernas, à luz da nossa compreensão das coisas ou dos valores rasteiros dos fazedores de opinião que ditam a moda? Gastamos mais tempo nas nossas reuniões de programação e nas nossas discussões estéreis, ou a escutar o Evangelho que Jesus nos propõe? Confiamos plenamente em Jesus e na sua Palavra?
    • Simão Pedro, depois de ver o extraordinário resultado da “pesca”, lançou-se aos pés de Jesus e chamou-lhe “Kyrios”, “Senhor”. Reconheceu em Jesus aquele que pode tudo, aquele que é capaz de dar sentido a tudo o que fazemos e vivemos. O “credo” de Simão Pedro mostra que ele decidiu confiar plenamente em Jesus e entregar toda a sua vida nas mãos de Jesus. Jesus tornou-se a sua referência, o seu “Senhor”, o centro à volta do qual Simão Pedro decidiu construir toda a sua existência, aquele em quem Simão Pedro decidiu apostar todas as fichas que tinha para jogar… Para nós, Jesus também é o “Kyrios”? Reconhecemos, de facto, que Jesus é o “Senhor” que preside à nossa história e à nossa vida? Ele é o centro à volta do qual articulamos a nossa existência e os nossos passos, ou deixamos que outros “senhores” nos manipulem e controlem?
    • Jesus convida Simão Pedro a tornar-se “pescador de homens”. O convite, no entanto, não será apenas para Simão Pedro; deve estender-se a todos aqueles que vão naquele barco. Simão Pedro e os seus companheiros têm como missão salvar todos os homens e mulheres que vivem mergulhados no desespero, no medo, na opressão, na morte. A missão a que Simão Pedro e os seus companheiros são chamados é a mesma de Jesus: curar as feridas, libertar das cadeias, iluminar o caminho dos que vivem nas trevas, levar vida e esperança a todos os homens e mulheres. Temos consciência de que esta é a nossa missão? Como a vivemos? Os homens e mulheres com quem nos cruzamos a cada instante descobrem, nas nossas palavras e nos nossos gestos, essa vida nova que Jesus veio oferecer a todos? Os homens e mulheres que a sociedade atira para “as margens” e abandona à sua sorte, os que vivem afogados na solidão, os que ninguém quer e ninguém ama, as vítimas de todas as guerras e de todas as opressões, encontram em nós o gesto fraterno que os tira do fundo do mar e que lhes devolve a esperança?
    • Aqueles pescadores do Mar da Galileia, depois de terem levado “os barcos para terra, deixaram tudo e seguiram Jesus”. De repente, tudo aquilo em que tinham construído até ali tornou-se irrelevante diante de um projeto muito mais aliciante: colaborar com Jesus na libertação do mundo e dos homens. Deixaram tudo; passaram a viver para o Reino de Deus e foram atrás de Jesus. O seguimento de Jesus passou a ser a verdade fundamental das suas vidas. Como é o nosso seguimento de Jesus? A nossa entrega ao projeto de Jesus é total, ou parcial e calculada? Deixamos tudo na praia para seguir Jesus, porque o seu projeto se tornou a prioridade da nossa vida?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 5.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 5.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. DA PALAVRA À EUCARISTIA.

    As palavras do nosso Sanctus vêm da primeira leitura deste domingo. Se o Sanctus programado para este dia tiver um refrão, este último poderá ser utilizado como antífona do salmo responsorial. Será um modo simples de valorizar a ligação entre as duas mesas, a mesa da Palavra e a mesa da Eucaristia.

    3. ORAÇÃO NA LECTIO DIVINA.

    Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.

     

    No final da primeira leitura:

    “Deus Altíssimo, Rei e Senhor do universo, juntamo-nos à imensa multidão celeste das tuas criaturas espirituais para Te aclamar: Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do universo. Toda a terra está cheia da tua glória!

    Pai, que desejas tanto estar próximo de nós e de Te fazer conhecer, nós Te pedimos: envia os teus mensageiros, que o teu Nome seja santificado em toda a terra.”

     

    No final da segunda leitura:

    “Pai, nos Te damos graças pela Boa Nova de Jesus ressuscitado, Ele que foi manifestado aos Apóstolos e revelado a todos aqueles que Te procuram com fé. Bendito sejas pelo testemunho apostólico transmitido de geração em geração.

    Jesus, Filho do Deus vivo, salva-nos pela tua ressurreição, acolhe todos os nossos irmãos e irmãs defuntos na tua comunhão, na luz da tua Páscoa eterna”.

     

    No final do Evangelho:

    “Jesus, Mestre e Senhor, bendito sejas pelos apelos que nos diriges em cada dia, convidando-nos a seguir-Te.

    Mestre, nós Te confiamos os nossos desencorajamentos, porque também nós sofremos para avançar ao largo, no teu caminho. Mas na tua Palavra e com o sopro do Espírito, retomaremos o caminho”.

    4. BILHETE DE EVANGELHO.

    Estes pescadores tinham, sem dúvida, ouvido falar de Jesus. O seu ensinamento parecia ter autoridade, mas não era um homem do Lago. Não era Ele que ia dar lições a estes três pescadores experimentados. Então, que se passou? Ele devia inspirar confiança, para que Simão lhe emprestasse a sua barca, fazendo dela lugar de pregação e, mais ainda, para que este mesmo Simão obedecesse à sua ordem, uma ordem insensata: lançar novamente as redes, quando a pesca tinha sido infrutífera toda a noite. Diante da prodigalidade da pesca, Simão lança-se aos pés daquele que reconhece como mestre, enquanto ele mesmo se reconhece como homem pecador. Jesus faz um segundo sinal, um segundo milagre: vai fazer de Pedro um outro homem. De pescador de peixes torna-se pescador de homens, torna-se um homem cheio de confiança. Deixando tudo, como Tiago e João, segue Jesus!

    5. À ESCUTA DA PALAVRA.

    Pedro era um pescador profissional. Conhecia o seu ofício. Aquele dia era um dia “não”, um dia de pesca infrutífera. E chega Jesus, carpinteiro, a dizer-lhe o que fazer, para lançar as redes. A primeira atitude de Simão é, naturalmente, de hesitação. Apesar de tudo, manifesta uma atitude de confiança, ao lançar as redes. A palavra e a personalidade de Jesus inspiraram-lhe alguma confiança. Segundo Lucas, Pedro já tinha tido ocasião para experimentar a presença de Jesus junto da sua sogra, doente com febre. A pesca é verdadeiramente milagrosa. Humanamente, não seria possível! Pedro e os companheiros admitem que este jovem rabino tem poderes sobre-humanos. Pelo menos, é um profeta, um enviado de Deus. Mas para Pedro ficam interrogações: a presença de Deus não acontece no Templo, em Jerusalém, onde são necessários ritos de purificação para se aproximar d’Ele? Daí o grito de Pedro: “afasta-Te de mim, que sou um homem pecador!” Em Jesus, Deus sai do Templo, de todos os templos. Vem caminhar na estrada dos homens. Vem ao encontro dos homens, os mais pequenos, os pescadores e pecadores, independentemente de qualquer purificação. Será isso o mundo ao contrário? Certamente! Jesus vem colocar o mundo face a Deus, numa relação de amor que suprime todas as barreiras e que suscita infinita confiança. Isso continua a ser verdade hoje!

    6. ORAÇÃO EUCARÍSTICA.

    Pode-se escolher a Oração Eucarística I, que recorda o nome dos apóstolos de que fala o Evangelho e na Carta de Paulo. As palavras “na presença da tua glória sobre o teu altar celeste” evocam, de certo modo, o clima da primeira leitura.

    7. PALAVRA PARA O CAMINHO…

    As últimas palavras do sacerdote na missa são palavras de paz: “Ide em paz e o Senhor vos acompanhe!” Eis-nos enviados entre os homens, nossos irmãos, como Isaías, como Simão, como Paulo… E, como eles, não nos sentimos dignos de cumprir a missão que Deus nos confia em cada Eucaristia. Mas, como a Isaías, a Simão, a Paulo, uma palavra forte é dita a cada um de nós: “Não tenhas medo…” Partamos, como Paulo… com a certeza de que não sou eu que trabalho sozinho, “é a graça de Deus, que está comigo!”

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

  • S. Cirilo, Monge e S. Metódio, Bispo, Padroeiros da Europa

    S. Cirilo, Monge e S. Metódio, Bispo, Padroeiros da Europa


    14 de Fevereiro, 2025

    Os Santos Cirilo e Metódio nasceram em Salónica, na primeira metade do século IX. Bizantinos de formação, tornaram-se apóstolos dos povos eslavos, na Morávia, atuais repúblicas Checa e Eslovaca, e na Panónia, atual Croácia. Para eles, traduziram A Bíblia e os livros litúrgicos para a língua paleoeslava, e reuniram discípulos. As suas iniciativas missionárias foram aprovadas pelo Papa Adriano II. Entretanto, Cirilo adoeceu, acabando por morrer na cidade, e sendo sepultado na igreja de S. Clemente. Metódio, ordenado bispo, regressou à Morávia, falecendo aí no ano de 885. Os seus discípulos, expulsos do país, refugiaram-se na Bulgária. Daí a liturgia e a literatura eslava passaram para o reino de Kiev, na Rússia e para todos os países eslavos de rito bizantino.

    Lectio

    Primeira leitura: Atos 13, 46-49

    Naqueles dias, Paulo e Barnabé disseram aos judeus: «Era primeiramente a vós que a palavra de Deus devia ser anunciada. Visto que a repelis e vós próprios vos julgais indignos da vida eterna, voltamo-nos para os pagãos,47pois assim nos ordenou o Senhor: Estabeleci-te como luz dos povos, para levares a salvação até aos confins da Terra.»48Ao ouvirem isto, os pagãos encheram-se de alegria e glorificavam a palavra do Senhor; e todos os que estavam destinados à vida eterna abraçaram a fé.49Assim, a palavra do Senhor divulgava-se por toda aquela região.

    Os pagãos escutaram com interesse e entusiasmo Paulo e Barnabé, o que suscitou a inveja e os ciúmes dos Judeus contra os missionários, que são insultados e rejeitados. E dá-se a separação entre o Evangelho e o Judaismo. Os Judeus eram os primeiros destinatários da Boa Nova. Uma vez que a rejeitaram, ela é oferecida aos pagãos, que a aceitam. Nesse contexto, Barnabé e Paulo declaram que vão passar a dirigir-se aos pagãos, baseando a sua dercisão, não só na rejeição dos Judeus, mas também nas palavras da Escritura que falam da luz das nações (Is 49, 6). Quem acolher o Evangelho e abraçar a fé torna-se herdeiro das promessas, seja judeu ou pagão. Fica destinado à "vida eterna" (v. 48).

    Evangelho: Lucas 10, 1-9

    Naquele tempo, o Senhor designou outros setenta e dois discípulos e enviou-os dois a dois, à sua frente, a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir. 2Disse-lhes:«A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Rogai, portanto, ao dono da messe que mande trabalhadores para a sua messe.3Ide! Envio-vos como cordeiros para o meio de lobos. 4Não leveis bolsa, nem alforge, nem sandálias; e não vos detenhais a saudar ninguém pelo caminho.5Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: 'A paz esteja nesta casa!' 6E, se lá houver um homem de paz, sobre ele repousará a vossa paz; se não, voltará para vós. 7Ficai nessa casa, comendo e bebendo do que lá houver, pois o trabalhador merece o seu salário. Não andeis de casa em casa.8Em qualquer cidade em que entrardes e vos receberem, comei do que vos for servido, 9curai os doentes que nela houver e dizei-lhes: 'O Reino de Deus já está próximo de vós.'

    Além dos Apóstolos, fundamento da missão da Igreja, Jesus escolheu outros setenta e dois discípulos e enviou-os a pregar a Boa Nova. Ao longo dos séculos escolheu muitos outros. Foi o caso de Cirilo e Metódio, enviados a missionar os povos eslavos. Quem acolhe o Reino, sente a necessidade de o anunciar. Por isso, a missão é tarefa de todos os batizados. Isso, todavia, não impede que alguns sejam particularmente destinados a pregar que Deus salva, isto é, que o seu "Reino está no meio de nós". O reino vem como "paz". Por isso, é dever dos missionários invocar a paz de Deus sobre as casas e cidades onde vão. A palavra de Jesus assegura ao missionário a possibilidade da sua mensagem ser ouvida. Mas, quando surgem perseguições, os missionários não têm outro caminho senão o de Jesus, isto é, o que leva à morte, como supremo testemunho do Evangelho.

    Meditatio

    S. Cirilo e S. Metódio sentiram a urgência de levar a salvação para fora das fronteiras do mundo helénico, tal como Paulo e Barnabé tinham sentido a necessidade de levar a Boa Nova para fora das fronteiras do mundo judaico. Isaías falava de Boa Nova e de um movimento centrípto de todos os povos em direção a Jerusalém. No evangelho o movimento é inverso. Jesus envia os discípulos para todo o mundo: "Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura... Eles, partindo, foram pregar por toda a parte." (Mc 16, 15.20). São duas dinâmicas diferentes: Isaías pensa em Jerusalém como centro do mundo, para onde devem acorrer todos os povos, e subir ao monte do Senhor, que a todos atrai. No Novo Testamento, o centro do mundo já não é Jerusalém, mas o corpo de Cristo ressuscitado, misteriosamente presente onde estão os seus discípulos. É aí que encontram a unidade todos os que acreditam em Jesus.
    S. Cirilo e S. Metódio partiram para meio dos eslavos, apesar das dificuldades das viagens e, sobretudo, do problema que era evangelizar povos que não pertenciam à cultura grega e latina. Estes santos foram verdadeiramente pioneiros naquilo que hoje se chama a "inculturação", isto é, em traduzir a fé para a cultura dos povos a evangelizar, sem querer impôr a própria cultura. Traduziram a Bíblia e os textos litúrgicos para eslavo. Esse atrevimento valeu-lhes ser denunciados em Roma pelos missionários latinos. Tiveram que rumar à cidade eterna, e explicar-se às autoridades. Felizmente foram compreendidos pelo Papa Adriano II, que aprovou o seu método missionário.
    Hoje, é questão pacífica que, uma coisa é a fé e outra a cultura, que são realidades separáveis, que a fé deve radicar nas diversas culturas como fermento que as impregna de Evangelho. Mas o mesmo se deve pensar em relação à diferentes gerações: em cada geração a fé deve ser expressa de modo novo. A fé, com efeito, é um fermento de vida que tem de crescer e encontrar novas formas de progresso. Temos de aprender a ir ao encontro dos outros, e não obrigá-los a uniformizar-se com os nosso costumes, ou àquilo que pensamos ser melhor. Há que ir aos outros como Jesus veio até nós, isto é, fazendo-se homem e aceitando tudo o que é humano para se fazer entender por nós, e poder introduzir-nos na sua intimidade.
    O P. Dehon recebeu "a graça e a missão de enriquecer a Igreja com um Instituto religioso apostólico que vivesse da sua inspiração evangélica" (Cst 1). A mística oblativa-reparadora, inspirada pela contemplação do Coração trespassado de Cristo, levou-o a viver uma espiritualidade profundamente sacerdotal e eucarística, e a empenhar-se num apostolado característico onde a atividade missionária tem um lugar importante. Essa atividade tem de ser devidamente insculturada entre os povos, "para que a comunidade humana, santificada pelo Espírito, se torne uma oblação agradável a Deus" (Cst 30. 31).

    Oratio

    Resplandeça sobre nós, Senhor, a luz incorrutível da tua sabedoria. Abre-nos os olhos da mente, para podermos entender os teus preceitos evangélicos. Que, desprezados os desejos carnais, possamos levar uma vida verdadeiramente espiritual, pensando e fazendo o que é do teu agrado. Nós to pedimos por intercessão dos Santos Cirilo e Metódio. Ámen.

    Contemplatio

    Jesus percorria as cidades e as vilas da Galileia, anunciando a boa nova e curando os doentes; mas não podia acorrer tudo sozinho e ao ver todo este povo sofrendo e abatido, foi tomado de compaixão, e disse aos discípulos: «A messe é grande, peçamos ao divino Mestre para lhe enviar operários», depois chamou os seus doze apóstolos e enviou-os dois a dois para pregarem com o poder de expulsarem os demónios e de curarem os doentes... Nosso Senhor indica aos apóstolos três condições requeridas para o sucesso da sua missão. A primeira é o espírito de desinteresse. «Recebestes gratuitamente, dai gratuitamente». Que os vossos ouvintes vejam que não é por ganho, mas pela salvação das almas e pela felicidade dos homens que trabalhais. A segunda é o desapego das coisas da terra e o amor da santa pobreza: «Não leveis convosco nem ouro nem provisões». A terceira é a mais inteira confiança nos cuidados e na proteção da divina Providência: «O trabalhador tem direito ao seu alimento». Estas condições são ainda hoje as do sucesso. (L. Dehon, OSP 4, p. 267s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Rogai ao dono da messe
    que mande trabalhadores para a sua messe" (Lc 10, 2).

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    S. Cirilo, Monge e S. Metódio, Bispo, Padroeiros da Europa (14 Fevereiro)

  • S. Cláudio de La Colombière

    S. Cláudio de La Colombière


    15 de Fevereiro, 2025

    S. Cláudio de La Colombière nasceu em Saint-Symphorien d´Ozon, França, no ano de 1641. Em 1659 ingressou na Companhia de Jesus. Ordenado sacerdote em 1669, ensinou retórica e dedicou-se ao ministério da pregação. Prestou auxílio eficaz a S. Margarida Maria Alacoque na difusão do culto ao Sagrado Coração de Jesus. Enviado para Londres, como pregador da Condessa de York, sofreu calúnias, o cárcere e o exílio. Morreu em 1682, na cidade de Paray, em França, onde se pode venerar o seu túmulo. Foi canonizado por João Paulo II, em 1992.

    Lectio

    Primeira leitura: Efésios 3, 8-9.14-19.

    A mim, o menor de todos os santos, foi dada a graça de anunciar aos gentios a insondável riqueza de Cristo 9e a todos iluminar sobre a realização do mistério escondido desde séculos em Deus, o criador de todas as coisas. 14É por isso que eu dobro os joelhos diante do Pai,15do qual recebe o nome toda a família, nos céus e na terra: 16que Ele vos conceda, de acordo com a riqueza da sua glória, que sejais cheios de força, pelo seu Espírito, para que se robusteça em vós o homem interior; 17que Cristo, pela fé, habite nos vossos corações; que estejais enraizados e alicerçados no amor, 18para terdes a capacidade de apreender, com todos os santos, qual a largura, o comprimento, a altura e a profundidade... 19a capacidade de conhecer o amor de Cristo, que ultrapassa todo o conhecimento, para que sejais repletos, até receberdes toda a plenitude de Deus.

    Paulo, o antigo fariseu, "hebreu descendente de hebreus, circuncidado ao oitavo dia, da raça de Israel" (Fl 3, 5) reconhece que a graça que lhe foi concedida foi precisamente a de fazer tábua rasa do nacionalismo judaico e dirigir-se abertamente aos gentios. Este anúncio, segundo o próprio Paulo, é um mistério, algo que estava escondido nos recônditos da transcendência e que unicamente se descobre por meio de uma gratuita revelação de Deus. Nas gerações passadas não foi dado a conhecer aos filhos dos homens, como agora foi revelado pelo Espírito aos seus santos apóstolos e profetas. Paulo considera-se o último desses santos, porque a sua integração no grupo dos responsáveis foi tardia. Mas foi-lhe "concedida a graça de anunciar aos gentios a insondável riqueza de Cristo".
    A Igreja utiliza este testo na memória de S. Cláudio de La Colombière, que recebeu a graça de conhecer e divulgar as revelações do Coração de Jesus feitas a S. Margarida Maria.

    Evangelho: Mateus, 11, 25-30

    Naquele tempo, Jesus tomou a palavra e disse: «Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos.26Sim, ó Pai, porque isso foi do teu agrado. 27Tudo me foi entregue por meu Pai; e ninguém conhece o Filho senão o Pai, como ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar.» 28«Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei-de aliviar-vos. 29Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso espírito. 30Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.»

    Nesta perícopa encontramos descrito o mistério da filiação de Jesus, Filho de Deus, da sua relação com o Pai, com a terminologia e profundidade peculiares do Quarto Evangelho. Até se diz que esta perícopa teria pertencido inicialmente ao evangelho segundo S. João. Ela consta de três pares: a) a ação de graças ao Pai pela revelação recebida; b) o conteúdo dessa revelação; o convite e chamamento. Os escribas e fariseus recusaram a revelação. O mistério do Reino não é acessível a toda a espécie de sabedoria humana. Só aqueles que se apresentam diante de Deus conscientes da sua pequenez, a podem receber. Jesus é o único revelador do Pai, a plenitude da revelação. Os que acolhem a revelação são chamados a tornar-se discípulos submissos e obedientes, tomando sobre si o "jugo" do Senhor, um jugo suave porque motivado e carregado por amor.

    Meditatio

    Cláudio de la Colombière, nascido em 1641 em S. Sinfrónio, perto de Lião, foi enviado pelo seu provincial a Paray em 1675 para ser superior da casa que os Jesuítas tinham nessa cidade. Aí conheceu a S. Margarida Maria, tornando-se seu confessor. Era precisamente o momento da grande revelação do Sagrado Coração, que data de 16 de Junho de 1675. Depois de um exame atento e prudente, o P. Cláudio de la Colombière julgou esta revelação autêntica. Adotou a devoção ao Sagrado Coração e tornou-se o seu propagador mais zeloso, depois de ter confirmado Margarida Maria e a sua superiora a Madre de Saumaise. No ano seguinte, teve de partir para Inglaterra, onde inspirou esta bela devoção em muitas almas. Banido da Inglaterra e já doente, passou por Paray, indo para Lião; aí reviu Margarida Maria, confirmou-a, fortaleceu-a; confirmou igualmente a Madre Greyfié, que tinha sucedido a Madre de Saumaise. Deus quis que viesse morrer a Paray, e que pudesse ver ainda e encorajar Margarida Maria. A sua morte aconteceu no dia 15 de Fevereiro de 1682. O próprio Nosso Senhor fez saber a Margarida Maria que tinha escolhido o P. de la Colombière para a secundar na sua missão.
    Oh! Como importa ter um bom diretor! E preciso pedi-lo a Deus e escolhê-lo com cuidado. A nossa santificação e a nossa salvação estão fortemente interessadas nisso.
    O Padre de la Colombière consagrou-se, ele mesmo, ao Sagrado Coração na sexta-feira 21 de Junho de 1675; era o dia seguinte à oitava do Corpo de Deus, o dia designado por Nosso Senhor para a futura festa. Começou desde então a inspirar esta devoção em todas as suas filhas espirituais em Paray. Chamado a Londres no ano seguinte, como pregador da duquesa de York, deu a conhecer e a amar o Sagrado Coração, a começar pela própria duquesa, que interveio mais tarde com outros príncipes e princesas junto do Papa Inocêncio XII, para o estabelecimento da nova devoção. Ele mesmo fala disso em alguns dos seus sermões da Quaresma. Regressado a França, continuou o seu apostolado, de uma maneira muito persuasiva, nas suas cartas de direção. Pedia aos superiores para a estabelecerem nas suas comunidades. Exercia o mesmo apostolado junto dos jovens religiosos de quem tinha, em Lião, a direção espiritual. É a ele que o Padre de Gallifet faz remontar a sua própria devoção ao Sagrado Coração. Mas seria sobretudo depois da sua morte que o Padre iria cumprir a sua missão. Partiu para o céu no dia 15 de Fevereiro de 1682. Dois anos depois, eram publicados os seus sermões em quatro volumes, e, num volume à parte, o diário dos seus retiros espirituais. Aí lia-se isto: "Reconheci que Deus queria que eu o servisse procurando o cumprimento dos seus desígnios no tocante à devoção que sugeriu a uma pessoa à qual se comunica de modo muito confidencial, e para a qual quis servir-se da minha fraqueza. Depois fazia o relato da grande aparição de 16 de Junho de 1675. Este escrito foi muito lido, porque o seu autor gozava de grande fama de santidade. Anexado ao diário dos retiros estava um belo ato de oferenda ou de oblação ao Sagrado Coração que também teve a sua parte no desenvolvimento da devoção. E eu, o que é que fiz até ao presente para propagar esta bela devoção segundo o desejo de Nosso Senhor? ". (Leão Dehon, OSP 3, p. 171s.).

    Oratio

    Senhor, que farei, senão unir-me à oblação do Padre de la Colombière e fazê-la também? Sim, Senhor, dou-me e consagro-me ao vosso divino Coração. Ofereço-vos tudo aquilo de que posso dispor, e proponho unir-me a vós frequentemente durante o dia (Leão Dehon, OSP 3, p. 173).

    Contemplatio

    O belo ato do Padre de la Colombière caracteriza admiravelmente a devoção ao Coração de Jesus. Começa por dizer qual o seu fim: «Esta oferenda, diz, faz-se para honrar este divino Coração, a sede de todas as virtudes, a fonte de todas as bênçãos e o retiro de todas as almas santas». «Por todas as suas bondades, diz, este divino Coração não encontra no coração dos homens senão dúvida, esquecimento, desprezo, ingratidão». O santo religioso formula então a sua oferenda: «Para reparação de tantos ultrajes e de tão cruéis ingratidões, ó muito adorável Coração do meu amável Jesus, e para evitar cair numa semelhante infelicidade, ofereço-vos o meu coração com todos os movimentos de que é capaz, e dou-me inteiramente a vós... Ofereço ao vosso divino Coração todo o mérito, toda a satisfação de todas as minhas missas, de todas as orações, de todos os atos de mortificação, de todas as práticas religiosas, de todos os atos de zelo, de humildade, de obediência e de todas as outras virtudes que praticar até ao último momento da minha vida. Não só tudo isto será para honrar o Coração de Jesus, mas ainda lhe peço que aceite a doação inteira que lhe faço, de dela dispor do modo que lhe agradar e em favor de quem lhe agradar». Este belo ato contribuiu muito para determinar e para propagar a verdadeira devoção ao Sagrado Coração. (Leão Dehon, OSP 3, p. 142s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a Palavra do Senhor:
    «Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração» (Mt 25, 30).

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    S. Cláudio de La Colombière (15 Fevereiro)

  • 06º Domingo do Tempo Comum – Ano C [atualizado]

    06º Domingo do Tempo Comum – Ano C [atualizado]

    16 de Fevereiro, 2025

    ANO C
    6.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 6.º Domingo do Tempo Comum

    A Palavra de Deus que nos é proposta neste sexto domingo comum fala-nos de opções, de escolhas acertadas para construir uma vida com sentido. De um lado está o caminho que Deus propõe; do outro está o caminho que nos é apontado pela lógica dos homens. O caminho que Deus aponta parece um caminho “improvável” e obriga-nos frequentemente a navegar contra a corrente; mas é, garantidamente, o caminho que nos leva à vida verdadeira.

    Na primeira leitura o profeta Jeremias garante que, se apostarmos tudo em realidades humanas e efémeras estaremos a desperdiçar a nossa existência; mas se colocarmos a nossa esperança em Deus e aceitarmos viver de acordo com as indicações de Deus, encontraremos vida em abundância e felicidade sem fim.

    No Evangelho Jesus mostra aos discípulos e à multidão como chegar à felicidade verdadeira. O caminho que Ele aponta – o das “bem-aventuranças” – contradiz absolutamente a lógica humana e inverte completamente a nossa escala de valores; mas apresenta-se com o selo de garantia do próprio Deus. De acordo com Jesus, é o caminho para um mundo mais humano, mais fraterno e mais feliz.

    Na segunda leitura Paulo, dirigindo-se aos cristãos de Corinto – e aos crentes de todos os lugares e tempos – convida-os a acreditar na ressurreição e a viver de olhos postos no mundo que há de vir. Se esse for o nosso horizonte, saberemos que as coisas deste mundo são passageiras e não devem ser a prioridade da nossa vida.

     

    LEITURA I – Jeremias 17, 5-8

    Eis o que diz o Senhor:
    «Maldito quem confia no homem
    e põe na carne toda a sua esperança,
    afastando o seu coração do Senhor.
    Será como o cardo na estepe
    que nem percebe quando chega a felicidade:
    habitará na aridez do deserto,
    terra salobre, onde ninguém habita.
    Bendito quem confia no Senhor
    e põe no Senhor a sua esperança.
    É como a árvore plantada à beira da água,
    que estende as suas raízes para a corrente:
    nada tem a temer quando vem o calor
    e a sua folhagem mantém-se sempre verde;
    em ano de estiagem não se inquieta
    e não deixa de produzir os seus frutos».

     

    CONTEXTO

    Jeremias nasceu em Anatot, uma pequena cidade levítica situada nas proximidades de Jerusalém, por volta de 650 a.C.; e exerceu a sua missão profética desde 627/626 a.C., até depois da destruição de Jerusalém pelos Babilónios (586 a.C.).

    A época de Jeremias é uma época de grande instabilidade política e social. Quando Jeremias assumiu a missão profética, o rei Josias estava a concretizar uma grande reforma religiosa destinada a banir do país os cultos aos deuses estrangeiros, depois de décadas de infidelidade a Deus e de sincretismo religioso. Jeremias, nessa fase, envolveu-se na reforma religiosa de Josias, exortando os habitantes de Judá a converterem-se e a serem fiéis a Javé.

    Contudo, em 609 a.C. Josias foi morto em Megido, em combate contra os egípcios. Depois de uns meses de instabilidade, o trono de Judá foi ocupado por Joaquim (609-597 a.C.). Judá voltou a trilhar caminhos de incerteza e insegurança. As injustiças sociais, às vezes fomentadas pelo próprio rei, fragilizavam irremediavelmente o tecido social de Judá; a política de alianças militares com potências estrangeiras, punha em risco a independência nacional. Jeremias entendia, além disso, que ao colocarem a esperança da nação em exércitos estrangeiros, os líderes de Judá estavam a mostrar que não confiavam em Deus. Convencido de que Judá tinha ultrapassado todas as marcas, Jeremias anunciou, a dada altura, a iminência de uma invasão babilónica que castigaria os pecados da nação. As previsões funestas de Jeremias concretizaram-se: em 597 a.C., Nabucodonosor invadiu Judá e deportou para a Babilónia uma parte da população de Jerusalém.

    No trono de Judá ficou, então, Sedecias (597-586 a.C.). Inicialmente, Sedecias manteve-se à margem das convulsões políticas que agitavam os povos da região; mas, após alguns anos de calma submissão à Babilónia, Sedecias voltou a experimentar a velha política das alianças com potências regionais, buscando a ajuda do Egito contra a Babilónia. Jeremias, uma vez mais, manifestou o seu desacordo, prevendo o desastre da nação.

    Os receios de Jeremias confirmaram-se uma vez mais. Em 587 a.C. Nabucodonosor, rei da Babilónia, pôs cerco a Jerusalém. Um exército egípcio veio em socorro de Judá e os babilónios retiraram-se. Mas Jeremias, convencido de que tinha chegado o fim, anunciou o recomeço do cerco e a destruição de Jerusalém (cf. Jr 32,2-5). Acusado de traição, o profeta foi encarcerado (cf. Jr 37,11- 16), chegando a correr perigo de vida (cf. Jr 38,11-13). Pouco depois, Nabucodonosor entrou em Jerusalém, destruiu a cidade e deportou a sua população para a Babilónia (586 a.C.).

    É difícil situar, neste quadro histórico acima apresentado, o momento exato em que Jeremias teria pronunciado as palavras que a primeira leitura deste domingo nos apresenta. Mas poderemos situá-las, provavelmente, no contexto das políticas erráticas de Joaquim (609-597 a.C.) ou de Sedecias (597-586 a.C.), que colocavam a segurança de Judá nas mãos de exércitos estrangeiros, em lugar de confiar em Javé.

     

    MENSAGEM

    Em Jr 16,10 Deus, falando com o profeta, prevê que o Povo lhe porá a seguinte questão: “Que pecado ou que crime cometemos contra o Senhor, nosso Deus?”. Jeremias deverá responder: “Os vossos pais abandonaram-me e foram atrás de deuses estranhos, para os servir e adorar, e não guardaram a minha lei. Mas vós fizestes ainda pior que os vossos pais; cada um, sem me escutar, segue os maus desejos do seu coração” (Jr 16,11-12). O texto de Jr 17,5-8 vem na sequência de tudo isto. Refere-se ao pecado de um povo que deixou de confiar em Deus, virou as costas a Deus e passou a construir a sua história sobre realidades humanas, realidades que não lhe asseguram vida verdadeira.

    Para Jeremias, uma das manifestações da infidelidade de Judá para com Javé está na política de alianças militares que os reis de Judá procuram celebrar, a fim de se defenderem dos planos imperialistas de certas potências regionais, como o Egito ou a Babilónia. Isso significa, para Jeremias, que Israel confia mais em exércitos estrangeiros do que em Deus. Deus já não é a segurança e a esperança de Judá. Deus perdeu o seu lugar no coração do Povo.

    Ao melhor estilo sapiencial, Jeremias denuncia o pecado daqueles que “confiam no homem” e “põem na carne (isto é, nos seres humanos) toda a sua esperança” (vers. 5). Os militares estrangeiros e os seus cavalos de guerra parecem, aos reis de Judá, mais fiáveis do que Deus quando se trata de garantir a segurança da nação. Os que confiam mais em realidades humanas, limitadas e falíveis, são “malditos”. As suas apostas estão condenadas ao fracasso, pois não é nessas realidades que encontrarão a vida e a segurança que buscam. O profeta compara-os a “um cardo na estepe que nem percebe quando chega a felicidade”. Esses que colocam a sua esperança em realidades efémeras e falíveis vivem “na aridez do deserto”: as suas vidas raquíticas e áridas estão condenadas a uma morte precoce (vers. 6). Nunca conhecerão a vida em plenitude.

    Bem diferente é a sorte daqueles que “confiam no Senhor e põem no Senhor a sua esperança” (vers. 7). Aqueles que sabem que só Deus é fonte de vida verdadeira e se voltam para Ele, são “como árvore plantada à beira da água, que estende as suas raízes para a corrente” e bebe a água revigorante e vivificadora (vers. 8). Quem coloca a sua esperança em Deus, mergulha as suas raízes bem fundo e encontra vida em plenitude. Não o inquietam os tempos de seca e de aridez (as crises e vicissitudes da vida e da história), pois sabe que Deus não lhe falha; e, com uma confiança e uma esperança que nunca serão desmentidas, pode continuar a produzir frutos verdadeiros, frutos de vida.

    Provavelmente haverá aqui um aviso a Judá: se o Povo confiar no Senhor e viver de acordo com as suas indicações, lançará as suas raízes de forma permanente na Terra Prometida, onde há vida em abundância; mas, se Judá insistir em ignorar Deus, será arrancado da sua terra e conhecerá a experiência dolorosa do exílio numa terra estrangeira.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Só vivemos uma vez. Não podemos arriscar-nos a falhar a nossa existência. A nossa vida é um capital demasiado importante para ser esbanjado. Por isso, temos de escolher bem as nossas apostas, os valores em que investimos, as escolhas que fazemos. No entanto, as coisas nem sempre são claras e definidas. Há muita confusão no nosso mundo e muitos interesses cruzados: há coisas que nos são oferecidas como oiro, mas que não passam de um qualquer metal sem valor; há caminhos que nos dizem levar à felicidade e à plena realização, mas que acabam por não nos conduzir a lado nenhum; há investimentos que nos são apresentados como “garantidos”, mas que acabam por nunca nos trazer qualquer retorno. Sobre que bases devemos assentar a nossa vida para que ela valha a pena? O que significa construir a nossa existência sobre rocha firme? Quais os valores a que não podemos renunciar para que a nossa vida não seja um fracasso?
    • “Maldito quem confia no homem e põe na carne toda a sua esperança” – diz-nos Jeremias. As palavras de Jeremias vão no sentido de nos recomendar que não confiemos nas pessoas que nos rodeiam? São palavras que brotam da experiência amarga de quem se sentiu traído pelas pessoas em quem confiou e que agora desconfia de tudo e de todos? Não. As palavras de Jeremias são apenas um aviso para não colocarmos a nossa esperança e a nossa segurança em realidades humanas, sempre falíveis e sempre efémeras. São palavras que fazem sentido: as relações pessoais desgastam-se, as seguranças humanas que construímos falham, os nossos bens materiais volatilizam-se, as nossas certezas desfazem-se com o embate contra realidades que as desmentem. Em que realidades temos estado a pôr a nossa confiança e a nossa esperança? Não serão realidades com um “prazo de validade” limitado? Podemos construir firmemente a nossa vida sobre elas?
    • “Bendito quem confia no Senhor e põe no Senhor a sua esperança” – diz-nos Jeremias. O profeta está convencido de que Deus é sempre fiel e que nunca nos falhará. Podemos confiar na sua bondade, no seu perdão, na sua misericórdia, no seu amor de Pai; podemos confiar nas suas palavras, que nos indicam caminhos válidos para chegarmos à vida verdadeira; podemos entregar-nos confiadamente nas suas mãos e confiar n’Ele, do mesmo modo que a criança pequenina confia no seu pai ou na sua mãe. Confiamos em Deus dessa forma? É nas mãos d’Ele que entregamos a nossa vida? Deus é a nossa melhor aposta, a nossa segurança, a nossa suprema esperança?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 1

    Refrão: Feliz o homem que pôs a sua esperança no Senhor.

    Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios,
    nem se detém no caminho dos pecadores,
    mas antes se compraz na lei do Senhor,
    e nela medita dia e noite.

    É como árvore plantada à beira das águas:
    dá fruto a seu tempo e sua folhagem não murcha.
    Tudo quanto fizer será bem sucedido.

    Bem diferente é a sorte dos ímpios:
    são como palha que o vento leva.
    O Senhor vela pelo caminho dos justos,
    mas o caminho dos pecadores leva à perdição.

     

    LEITURA II – 1 Coríntios 15,12.16-20

    Irmãos:
    Se pregamos que Cristo ressuscitou dos mortos,
    porque dizem alguns no meio de vós
    que não há ressurreição dos mortos?
    Se os mortos não ressuscitam,
    também Cristo não ressuscitou.
    E se Cristo não ressuscitou,
    é vã a vossa fé, ainda estais nos vossos pecados;
    e assim, os que morreram em Cristo pereceram também.
    Se é só para a vida presente
    que temos posta em Cristo a nossa esperança,
    somos os mais miseráveis de todos os homens.
    Mas não.
    Cristo ressuscitou dos mortos,
    como primícias dos que morreram.

     

    CONTEXTO

    A cidade de Corinto situada a cerca de 10 quilómetros do istmo de Corinto, servida por dois portos de mar, era umas das grandes cidades do Mediterrâneo. Era também um dos grandes centros da cultura grega: sem ter a fama de Atenas tinha, contudo, grande número de poetas, filósofos, oradores e médicos; todas as escolas filosóficas e todas as culturas estavam representadas na cidade. Corinto era, além de tudo isso, um centro religioso onde todos os cultos e religiões estavam representados. O culto principal girava à volta de Afrodite, deusa do amor, que tinha um grande santuário na acrópole da cidade. O culto de Apolo era também muito importante. Adoravam-se ainda diversas divindades estrangeiras, como Ísis e Serapis. Havia numerosos grupos religiosos, ou “Thiasoi”, com um líder à sua frente. Religiões do Oriente e religiões mistéricas estavam representadas no universo religioso de Corinto.

    Quando o Evangelho chegou a Corinto, levado por Paulo (no decurso da sua segunda viagem missionária), encontrou-se com toda esta realidade. No entanto, o cristianismo propunha valores muito diferentes daqueles que os coríntios conheciam. O choque dos valores cristãos com a realidade da cultura greco-romana foi inevitável.

    Uma das ideias cristãs que encontrou resistência entre os coríntios foi a ressurreição dos mortos. Muitos gregos, influenciados por filosofias dualistas muito em voga (nomeadamente a filosofia platónica), viam no corpo uma realidade negativa e na alma uma realidade ideal e nobre; e, a partir daí, recusavam-se a aceitar que a ressurreição integral do homem. Como poderia o corpo – uma realidade material, carnal, sensual, que aprisionava a alma e a impedia de subir ao mundo ideal – seguir a alma nesse mundo luminoso para onde a alma tendia?

    Paulo teve de abordar esta questão que dividia os coríntios. Fê-lo na primeira carta que lhes dirigiu (cf. 1Cor 15). Afinal, a ressurreição estava no centro da fé cristã. Paulo começa por falar aos coríntios da ressurreição de Cristo, realidade sem a qual todo o edifício cristão cai por terra (cf. 1Cor 15,1-11); depois, parte daí para afirmar a ressurreição de todos aqueles que aderiram a Cristo e que d’Ele recebem vida.

     

    MENSAGEM

    A ressurreição de Cristo – o tal “Evangelho” (cf. 1Cor 15,1-11) que Paulo recebeu da tradição apostólica e que transmitiu aos seus “filhos” de Corinto – não era contestada pelos membros da comunidade cristã. O que causava problemas aos cristãos de Corinto era a ressurreição dos homens. Como poderia falar-se na ressurreição do homem na sua totalidade, sendo o “corpo” humano uma realidade material, sensível e carnal, que não poderia ter lugar no mundo de Deus?

    Paulo, alheio ao dualismo da filosofia grega sobre a realidade do homem, não entra em distinções entre “alma” e “corpo”. O seu raciocínio é linear. Cristo não ressuscitou? Ora, se os coríntios admitem a ressurreição de Cristo também têm de admitir a ressurreição dos homens (vers. 12). A fé em Cristo ressuscitado desemboca inexoravelmente na inquebrantável esperança de que também os cristãos ressuscitarão. O inverso também é verdadeiro: não esperar a ressurreição dos mortos equivale a não acreditar na ressurreição de Cristo (vers. 16).

    Paulo passa, então, a enumerar as consequências fatais que adviriam, para a vida cristã, se Cristo não tivesse ressuscitado: a fé que anima a existência cristã, a libertação da escravidão do pecado, a salvação que todos esperam não teriam qualquer sentido e os cristãos seriam gente enganada, ridícula, “os mais miseráveis de todos os homens” (vers. 17-19). Mas Paulo está absolutamente certo de que os cristãos não são um rebanho de gente iludida… A partir da ressurreição de Cristo, podemos acreditar nessa vida plena que Deus reserva para todos os que O amam. É essa certeza que dá sentido à caminhada que o cristão faz neste mundo.

    Chegados aqui, Paulo detém-se para lançar um grito jubiloso de fé e de esperança: “Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram!” (vers. 20). Jesus ressuscitou não como o único, como um caso excecional, mas como o primeiro de uma longa cadeia da qual fazemos parte. Este “primeiro” não deve ser entendido em sentido cronológico, mas no sentido de que Cristo é o princípio ativo da nossa ressurreição, o princípio que gera essa nova humanidade sobre a qual as forças da morte não têm qualquer poder. Ele arrasta atrás de Si a humanidade solidária com Ele, até à realização plena, à vida definitiva, à salvação total.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Há questões que, mais tarde ou mais cedo, não podemos deixar de equacionar… Qual o sentido último da nossa vida? Para onde caminhamos? Que nos espera no final do caminho (sempre tão breve!) que percorremos aqui na terra? Estamos condenados ao nada, ao absoluto desaparecimento, ou há uma existência nova, totalmente outra, à nossa espera? Paulo, depois de conhecer a ressurreição de Cristo, a sua vitória sobre a morte, acredita firmemente que estamos destinados à ressurreição, a uma vida nova e definitiva, imersos no amor de Deus. Cristo abriu-nos as portas dessa vida nova que nos espera, ao encontro definitivo com o amor de Deus. Se essa vida futura não existisse, seríamos “os mais miseráveis de todos os homens” e a nossa fé não faria qualquer sentido – diz Paulo. Como vivemos e sentimos tudo isto? No horizonte da nossa existência está a certeza do encontro com o Amor, com a vida nova que Deus oferece aos seus filhos queridos?
    • A maneira como olhamos para o nosso horizonte último afetará, provavelmente, a forma como encaramos a vida de todos os dias. Será diferente caminharmos presos a uma sentença de “morte definitiva”, depois de alguns anos de trabalhos e vicissitudes sem fim, ou de caminharmos de olhos postos num horizonte de vida ilimitada, no encontro com o amor de Deus. Como é que a fé na ressurreição dos mortos afeta a nossa vida presente? Muda a nossa perspetiva das coisas, dos valores que cultivamos, das apostas que fazemos, dos comportamentos que assumimos? Ajuda-nos a viver com mais alegria e mais esperança?
    • Viver de olhos postos na vida nova que nos espera em Deus implicará renunciar às coisas boas e belas deste mundo? Não. O projeto de Deus para nós é que tenhamos vida em abundância, não apenas no mundo futuro, mas mesmo quando ainda caminhamos na terra. No entanto, a nossa realização e a nossa felicidade – já aqui na terra – depende de escolhas acertadas. Há formas de viver que não nos realizam; há apostas que apenas nos trazem desilusão e vazio; há escolhas que nos levam por caminho onde a vida e a felicidade não estão. Podemos abraçar, ao longo do nosso caminho nesta terra, as coisas boas e belas que nos proporcionam vida verdadeira e que não nos afastam de Deus e do seu amor. É assim que procuramos construir o nosso caminho enquanto andamos cá na terra?
    • O medo da morte pode destruir irremediavelmente a nossa existência. Pode paralisar-nos, limitar as nossas opções, fazer-nos viver escondidos, impedir-nos de lutar contra a maldade, a mentira, o pecado que desfeia o mundo. Mas, quando sabemos que estamos destinados à ressurreição, o medo da morte já não nos domina; podemos comprometer-nos na luta pela justiça e pela paz, com a certeza de que a injustiça e a opressão não podem pôr fim à vida que nos anima; e é na medida em que nos comprometemos com esse mundo novo e o construímos com gestos concretos que estamos a anunciar a ressurreição plena do mundo, dos homens e das coisas. A certeza da ressurreição é para mim uma certeza libertadora, que me ajuda a viver com coragem e a assumir o meu compromisso com a construção de um mundo mais justo e mais humano?

     

    ALELUIA – Lucas 6,23ab

    Aleluia. Aleluia.

    Alegrai-vos e exultai, diz o Senhor,
    porque é grande no Céu a vossa recompensa.

     

    EVANGELHO – Lucas 6,17.20-26

    Naquele tempo,
    Jesus desceu do monte, na companhia dos Apóstolos,
    e deteve-Se num sítio plano,
    com numerosos discípulos e uma grande multidão
    de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e Sidónia.
    Erguendo então os olhos para os discípulos, disse:
    Bem-aventurados vós, os pobres,
    porque é vosso o reino de Deus.
    Bem-aventurados vós, que agora tendes fome,
    porque sereis saciados.
    Bem-aventurados vós, que agora chorais,
    porque haveis de rir.
    Bem-aventurados sereis, quando os homens vos odiarem,
    quando vos rejeitarem e insultarem
    e prescreverem o vosso nome como infame,
    por causa do Filho do homem.
    Alegrai-vos e exultai nesse dia,
    porque é grande no Céu a vossa recompensa.
    Era assim que os seus antepassados tratavam os profetas.
    Mas ai de vós, os ricos,
    porque já recebestes a vossa consolação.
    Ai de vós, que agora estais saciados,
    porque haveis de ter fome.
    Ai de vós, que rides agora,
    porque haveis de entristecer-vos e chorar.
    Ai de vós, quando todos os homens vos elogiarem.
    Era assim que os seus antepassados
    tratavam os falsos profetas.

     

    CONTEXTO

    Depois de apresentar o seu “programa” pastoral na sinagoga de Nazaré (“anunciar a boa nova aos pobres”, “proclamar a redenção aos cativos”, abrir os olhos aos cegos, “a restituir a liberdade aos oprimidos”, “proclamar o ano da graça do Senhor” – Lc 4,18-19), Jesus andou pela Galileia a falar da chegada do Reino de Deus. Os líderes judaicos – especialmente os fariseus e doutores da lei – assumiram, desde os primeiros momentos, uma atitude crítica face ao projeto de Jesus (cf. Lc 5,21-25.33-39; 6,11); mas muitas outras pessoas escutavam Jesus com entusiasmo e todos os dias o procuravam.

    À volta de Jesus foi-se rapidamente consolidando um grupo de discípulos. Havia aqueles que Ele tinha chamado – como Simão Pedro, André, Tiago, João e Mateus (cf. Lc 5,10-11. 27-28) – e havia outros que tinham vindo espontaneamente para O ouvir e que tinham ficado com Ele. Um dia, depois de ter passado a noite em oração no cimo de um monte, Jesus escolheu Doze dentre esses discípulos e designou-os como “apóstolos” (cf. Lc 6,12-16). Esses Doze serão o núcleo central da comunidade de Jesus, aqueles em quem Jesus se apoiava e com quem contava de forma especial.

    Depois de ter escolhido os Doze, Jesus desceu à planície. Estava acompanhado pelos discípulos e por muita gente que tinha vindo “de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e Sídon” (Lc 6,17) para o ouvir e ser curada dos seus males. Nessa circunstância, Jesus pronunciou uma longa “instrução”, que ficou conhecida como o “sermão da planície” (cf. Lc 6,20-49). Nessa “instrução”, falou aos que o rodeavam da libertação que trazia e do caminho que devia ser seguido por todos aqueles que quisessem integrar a comunidade do Reino. O Evangelho que a liturgia deste sexto domingo comum nos propõe apresenta-nos o início dessa “instrução": as “bem-aventuranças”.

    O evangelista Mateus também nos apresenta um discurso de Jesus que começa com as “bem-aventuranças” (cf. Mt 5,1-7,29). Na versão de Mateus, contudo, esse discurso é feito no cimo de um monte e não na planície; e não comporta “maldições”. A versão de Lucas é significativamente mais curta. Lucas suprime, no seu texto, muitos elementos tipicamente judaicos que não eram significativas para as comunidades de cultura grega a quem o seu Evangelho se destinava.

    A “bem-aventurança” – o género literário aqui utilizado – aparece frequentemente na literatura egípcia e grega. Na sua base está a ideia de que a divindade pode pronunciar palavras poderosas, palavras que uma vez lançadas, têm a faculdade de atuar na vida dos indivíduos e das comunidades. No caso da “bem-aventurança”, a palavra atua de forma positiva, sendo fonte de vida, de bênção e de felicidade.

    Frequentemente, a par das “bem-aventuranças” também aparecem “maldições”. A “maldição é uma imprecação ou ameaça destinada a um inimigo ou a alguém que tem comportamentos considerados errados. Muitas vezes começa com a palavra “ai”: evoca o mundo assustador da morte, da desgraça, da infelicidade, sobre a pessoa que é objeto da “maldição”.

     

    MENSAGEM

    Lucas inicia este “discurso da planície” – dirigido aos discípulos de todas as épocas – com quatro bem-aventuranças (em Mateus, as “bem-aventuranças” são oito). Os que são referidos como “bem-aventurados” são os pobres (vers. 20b), os que têm fome (vers. 21a), os que choram (vers. 21b), os que são perseguidos (vers. 22-23).

    Quem são os “pobres” (“ptôchos”)? A palavra grega usada por Lucas traduz vários termos hebraicos (“‘anawim”, “dallim”, “ebionim”) que, no Antigo Testamento, definem uma classe de pessoas privadas de bens e à mercê da prepotência dos ricos e dos poderosos; são os desprotegidos, os explorados, os pequenos e sem voz, os que são vítimas da injustiça, os que são despojados dos seus direitos e da sua dignidade pela arbitrariedade dos grandes. No entanto, a palavra não define um âmbito meramente sociológico: os “pobres” serão também aqueles que, privados de tudo, põem a sua confiança em Deus e se entregam confiadamente nas mãos de Deus. Considera-se, talvez com alguma ingenuidade, que aqueles que não têm qualquer segurança humana estão mais disponíveis para acolher os dons de Deus.

    “Os que têm fome” são aqueles que não têm o pão de cada dia para si próprios e para as suas famílias; mas são também todos aqueles que, excluídos e desconsiderados, não têm lugar à mesa do banquete onde os seus irmãos saciam a sua fome de vida. São aqueles que, de qualquer forma, vivem em situação de carência. Deus irá oferecer-lhes o alimento de que necessitam para que tenham vida em abundância.

    “Os que choram” são aqueles que vivem mergulhados numa dor sem fim e sem remédio: os doentes incuráveis, as vítimas de todas as injustiças, os que são magoados pelo egoísmo e pela maldade dos seus irmãos. O mundo é para eles um vale de lágrimas, e os seus dias esgotam-se na tristeza e no desalento. Deus irá enxugar as lágrimas amargas que brotam dos seus corações doloridos.

    Quem são “os perseguidos”? Lucas utiliza quatro vocábulos para definir aquilo que lhes acontece: são os odiados (“miseo”), os rejeitados (“aphorizo”), os insultados (“oneidizo”), os marcados como infames (“poneron”). Eles são vítimas da intolerância e do desprezo dos seus irmãos por causa das suas convicções e pela forma acolhem o Evangelho da verdade. O seu sofrimento coloca-os na linha dos profetas; mas Deus dar-lhes-á razão e fá-los-á triunfar sobre os seus detratores.

    A todos esses que sofrem, Jesus promete que a sua triste situação vai mudar. Eles irão conhecer a felicidade, pois a chegada do Reino de Deus introduzirá um dinamismo novo no mundo. O sofrimento que conhecem e que os afoga será vencido. Através da ação de Jesus, Deus vai proporcionar a todos os seus queridos filhos o encontro com uma vida nova e plenamente realizada. O Deus que outrora libertou o seu Povo do cativeiro egípcio está decidido a continuar a sua obra salvadora em favor dos seus filhos que sofrem. O Deus que age em Jesus é o Deus libertador e salvador do Êxodo.

    Do lado oposto estão os ricos (vers. 24), os saciados (vers. 25a), os que riem (vers. 25b), os elogiados por toda a gente (vers. 26). “Ai de vós” – diz-lhes Jesus. A exclamação “ai” com que começa cada uma das “maldições” equivale às lamentações que se usam em contexto funerário. É uma exclamação de dor e de pena dita por alguém que contempla uma realidade e lamenta a desgraça que dela vai resultar. A expressão aparece frequentemente nas admoestações dos profetas (cf. Is 5,8-23; Hab 2,6-19; Am 6,1; Sir 2,12-14).

    Os “ricos” são aqueles que têm dinheiro em abundância e que colocam toda a sua esperança e segurança nos bens materiais. Acham que não precisam de Deus, pois o dinheiro oferece-lhes tudo o que necessitam para uma vida de tranquilidade e bem-estar. Na verdade, são prisioneiros dos bens que endeusaram; e nunca alcançarão uma vida feliz e plenamente realizada.

    Os “saciados” são aqueles que, não apenas têm pão com fartura, mas têm abundância de todas as coisas boas que a vida pode oferecer. “De barriga cheia”, apostados em gozar a vida, tendem a esquecer-se de Deus e dos seus irmãos. Acham que a fome do mundo não lhes diz respeito. Chegará a altura em que serão privados daquilo que agora lhes sobra; então, considerarão que a sua vida perdeu todo o sentido e lamentarão a sua desgraça.

    “Os que agora riem” são aqueles vivem permanentemente em festa e zombam das lágrimas dos seus irmãos. O verbo usado (“gelao”) pode traduzir a ideia de “troçar da miséria” dos outros (cf. Lm 1,7). Jesus garante-lhes que esse riso sarcástico e desdenhoso lhes desaparecerá dos lábios quando perceberem que estão fora da comunidade do Reino.

    Os “elogiados” por toda a gente, não são aqueles que toda a gente aprecia pela sua bondade e integridade; mas são, neste contexto, aqueles que fazem tudo para serem populares, muitas vezes à custa da verdade e da própria dignidade. São aqueles que trocam os valores consistentes e duradouros por uns minutos de fama e de aplausos. Estarão a construir a sua vida sobre a areia, e rapidamente serão abandonados e esquecidos.

    No discurso das “bem-aventuranças”, Jesus inverte completamente a escala de valores que predomina no nosso mundo. Segundo Jesus, os ricos, os que são admirados, os que parecem ter tudo para serem felizes, podem falhar completamente na construção de uma vida com sentido; enquanto que os pobres, os pequenos, os que nunca obtêm reconhecimento social, os que o mundo despreza e cataloga como “fracassados”, são, aos olhos de Deus, os vencedores, os que terão condições para construir uma vida feliz e plenamente realizada. A lógica de Deus está infinitamente distante da lógica que comanda o mundo e os homens.

    As “bem-aventuranças” também nos dão a conhecer o “coração” de Deus. Mostram-nos que Deus sempre teve e sempre terá “um fraquinho” pelos pobres e desprezados. Não porque eles sejam melhores e mais santos; mas porque necessitam, mais do que os outros, de ser acompanhados e sustentados pelo amor misericordioso de Deus.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Dois mil anos depois de Jesus ter feito o “sermão da planície”, as “bem-aventuranças” continuam a soar aos nossos ouvidos de uma forma estranha e paradoxal. Deixam-nos perplexos e algo desconcertados, pois apontam num sentido que parece ir contra o senso comum. Parecem subverter todas as nossas lógicas e contradizer tudo aquilo que sabemos sobre êxito e fracasso. São um desafio que ameaça todas as nossas certezas e seguranças, a nossa sabedoria convencional e a nossa organização social. Poderão realmente ser um caminho para a felicidade e para a plena realização do ser humano? Jesus tem razão quando garante que a verdadeira felicidade se alcança por caminhos completamente diferentes dos que a sociedade atual propõe? As “bem-aventuranças” serão uma desculpa de fracassados, conversa de gente que não tem coragem para competir, para se impor, para triunfar, ou serão uma forma de construir um mundo diferente, mais justo, mais humano e mais fraterno? O nosso mundo ganharia alguma coisa se abandonássemos a competitividade e a luta feroz pelo êxito humano e optássemos por viver na lógica das “bem-aventuranças”? Seríamos mais livres e mais felizes se renunciássemos a certos valores que a sociedade impõe e passássemos a viver de acordo com os valores propostos por Jesus?
    • Jesus disse: “bem-aventurados vós, os pobres”; e, em contraponto, “ai de vós, os ricos, que já recebestes a vossa consolação”. Será que Deus, depois de pôr à nossa disposição os bens materiais, mudou de ideias e veio pedir-nos para escolhermos a privação, a indigência, a miséria? É claro que não. Deus quer que tenhamos o necessário para viver dignamente; mas não quer que guardemos para nosso uso exclusivo os bens que pertencem a todos. Deus quer ver-nos caminhar sem privações e sem carências; mas não quer que adoremos o dinheiro e que sejamos escravos de coisas que são meramente acessórias. Deus quer que tenhamos conforto e bem-estar; mas não quer que ignoremos a miséria e a indigência em que vive um quinto da humanidade. Como lidamos com os bens materiais? Eles são a nossa prioridade? Escravizam-nos e absorvem-nos de tal forma que nos roubam a liberdade? Admitimos que os bens que Deus colocou nas nossas mãos pertencem a todos os filhos e filhas de Deus?
    • Jesus disse: “bem-aventurados vós, que agora tendes fome”; e, em contraponto, “ai de vós, que agora estais saciados”. A “fome” – de pão, de paz, de amor, de liberdade, de acesso à educação, de cuidados de saúde, de uma vida digna – que atinge dramaticamente tantos dos nossos irmãos não é uma realidade inevitável, à luz do projeto de Deus para o mundo e para os homens. A “fome” é uma realidade que nos envergonha e com a qual não podemos conformar-nos. Ela existe porque muitas vezes, instalados comodamente no nosso bem-estar (“saciados”), não queremos saber dos nossos irmãos que sofrem todo o tipo de carências. Insensíveis e acomodados, viramos o rosto para o lado para não sermos questionados pela “fome” do mundo. Sentimos que somos responsáveis pela “fome” que faz sofrer tantos e tantos dos nossos irmãos? O que podemos fazer para a minorar?
    • Jesus disse: “bem-aventurados vós, que agora chorais”; e, em contraponto, “ai de vós, que rides agora”. Deus tem alguma coisa contra a alegria e os risos? É claro que não. A felicidade de Deus é ver os seus filhos mergulhados numa alegria verdadeira e numa felicidade sem sombras. O que Deus desaprova é o posicionamento daqueles que continuam a rir e a gozar a vida sem quererem saber da tristeza e das lágrimas dos seus irmãos; o que Deus reprova é o riso sarcástico daqueles que veem os seus irmãos caídos na berma da estrada da vida e os olham com o desprezo que os vencedores sentem pelos vencidos. Sentimo-nos solidários com os nossos irmãos que sofrem e choram? O que fazemos para secar as suas lágrimas e curá-los dos seus padecimentos?
    • Jesus disse: “bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, vos rejeitarem e insultarem, e prescreverem o vosso nome como infame”; e, em contraponto, “ai de vós, quando todos os homens vos elogiarem”. Qual é o mal de sermos reconhecidos e elogiados por aqueles que conhecem o que somos e o que fazemos? Nenhum. O que pode ser mal é “vendermos a alma ao diabo” para conquistar reconhecimento e aplausos; o que pode ser mal é renunciarmos aos nossos princípios para termos o aplauso dos nossos concidadãos; o que pode ser mal é o cedermos ao socialmente correto para chegarmos mais longe no caminho do êxito; o que pode ser mal é “suavizarmos” as exigências de Jesus para sermos “modernos” e populares. Somos capazes de renunciar aos nossos valores para sermos admirados e aplaudidos pelos homens?
    • As “bem-aventuranças” dão-nos um retrato bem bonito do coração paternal e maternal de Deus. Garantem-nos que Deus é sensível ao sofrimento dos seus filhos e que sente um carinho especial pelos que sofrem mais. Ele está sempre disponível para confortar os que estão feridos e magoados e para os ajudar a sair da sua triste situação. Como é que vemos e sentimos esta “sensibilidade” de Deus pelos mais frágeis e pequenos? Agrada-nos? É para nós fonte de esperança? O carinho de Deus pelos que precisam mais de amor inspira-nos e leva-nos a cuidar especialmente dos nossos irmãos que a vida maltrata? Somos testemunhas e profetas do amor de Deus no mundo?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 6.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (algumas, em parte, adaptadas de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 6.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. PÔR EM DESTAQUE O EVANGELIÁRIO E CONCRETIZAR A ORAÇÃO UNIVERSAL.

    Neste domingo em que começa a leitura do “sermão na planície”, pode-se valorizar o Evangeliário, levando-o à frente da procissão no início da celebração ou colocando-o no centro do altar, e rodeando-o com quatro velas ou lamparinas (em referência às quatro bem-aventuranças de Lucas). As “atividades caritativas” são iniciativas que pretendem levar a felicidade aos deserdados e aos marginalizados. Fazer um inventário das atividades caritativas na comunidade pode levar, neste domingo, a que a oração universal esteja mais enraizada nas realidades do terreno.

    3. ORAÇÃO NA LECTIO DIVINA.

    Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.

     

    No final da primeira leitura:

    “Senhor, Tu és a nossa esperança, em Ti pomos a nossa confiança, bendito sejas. O teu Espírito é como a água que torna verdejante a erva e faz crescer a árvore, ele nos irriga com a tua vida e nos faz produzir os frutos que Tu esperas.

    Nós Te confiamos os nossos irmãos e irmãs cuja fé secou. Não permitas que os nossos corações se afastem de Ti”.

     

    No final da segunda leitura:

    “Deus de vida, nós proclamamos que Jesus Cristo, teu Filho, ressuscitou de entre os mortos, para ser entre os mortos o primeiro ressuscitado; nós Te damos graças pela firme esperança que nos dás, de ressuscitar contigo.

    Nós Te confiamos todos os nossos irmãos que duvidam da vida e ignoram ainda a luz da ressurreição em Jesus”.

     

    No final do Evangelho:

    “Pai dos pobres, Deus de misericórdia, bendito sejas pela esperança que revelas aos pobres, aos pequenos e a todos os feridos da vida, aqueles que a sociedade despreza e negligencia. Tu ofereces-lhes a felicidade do teu Reino.

    Tantos companheiros à nossa volta andam à procura da felicidade e não sabemos como os ajudar. Ilumina-os com o teu Espírito”.

    4. BILHETE DE EVANGELHO.

    A felicidade de que fala Jesus está inscrita nos rostos dos seus discípulos. É, de facto, olhando-os que Ele os declara “felizes”. Duas bem-aventuranças estão no presente. Os discípulos são já felizes, porque são pobres: deixaram tudo, barco, família, para inaugurar com Jesus o seu Reino e pregar a sua carta. São felizes porque são já cidadãos deste Reino. São já felizes porque são como o seu Mestre, rejeitados, insultados. O seu discurso incomoda, porque convida a uma mudança, a um regresso a Deus: amar é já sair de si mesmo.

    5. À ESCUTA DA PALAVRA.

    Há diferenças entre as bem-aventuranças na versão de Mateus e na de Lucas. Indiciam duas tradições. Mateus apresenta nove bem-aventuranças, Lucas somente quatro. Mateus diz que Jesus subiu a montanha… Lucas diz que Ele desceu da montanha… Uma contradição apenas aparente. Dois relatos complementares. Para escutar as bem-aventuranças em Mateus, é preciso subir à montanha, elevar-se, subir para Deus. Isso sugere que, para viver segundo o espírito do Evangelho, não nos podemos fechar nos estreitos limites da terra. É preciso subir, respirar um ar mais puro, mais transparente. Isso exige, certamente, um esforço, pois trata-se de deixar o Espírito soprar em nós o ar de Deus. É preciso esforço, como para subir uma montanha, é preciso treino, paciência e também silêncio, atenção interior. Mas isso não significa que devemos desinteressar-nos desta vida muito concreta, da vida ordinária de todos os dias. O Evangelho não é uma droga que nos faria ver um mundo desencarnado. Jesus quer encontrar-nos na planície das nossas vidas muito reais, como está expresso nas situações das bem-aventuranças. Por seu lado, os ricos são infelizes porque, no fundo, se esquecem de sair de si mesmos, de subir à montanha para respirar o ar de Deus.

    6. ORAÇÃO EUCARÍSTICA.

    Pode-se escolher a Oração Eucarística III para a Assembleia com Crianças, pelas várias expressões relacionadas com a liturgia da Palavra.

    7. PALAVRA PARA O CAMINHO…

    Levar para as nossas vidas as palavras de felicidade escutadas neste domingo e transformá-las em atitudes de alegria e de encontro com os outros, transmitindo felicidade àqueles que vivem infelizes ao nosso lado… Fazer com que a vida da próxima semana tenha muitos momentos de alegria e de felicidade… que só o serão se partilhados e sentidos com o próximo, a começar pelos que estão na minha casa, no meu trabalho, na minha escola, na minha comunidade, na minha paróquia…

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

  • Santos Francisco e Jacinta Marto

    Santos Francisco e Jacinta Marto


    20 de Fevereiro, 2025

    Francisco Marto nasceu em 11 de Junho de 1908, em Aljustrel, Fátima, vindo a falecer também aí, no dia 4 de Abril de 1919. Muito sensível e contemplativo, Francisco orientou toda a sua oração e penitência para "consolar a Nosso Senhor". Jacinta Marto nasceu em Aljustrel, no dia 11 de Março de 1910 e faleceu em 20 de Fevereiro de 1920, no Hospital de Dona Estefânia, em Lisboa, depois de uma longa e dolorosa doença, oferecendo todos os seus sofrimentos pela conversão dos pecadores, pela paz no mundo e pelo Santo Padre. Os seus restos mortais de Francisco e Jacinta repousam atualmente na Basílica da Cova da Iria. O Santo Padre João Paulo II proclamou-os beatos, em Fátima, a 13 de Maio de 2000.

    Lectio

    Primeira Leitura: 1Samuel 3, 1.3-10

    Naqueles dias, o jovem Samuel servia o Senhor sob a direção do sumo sacerdote Heli. Samuel dormia no templo do Senhor, no lugar onde se encontrava a arca de Deus. O Senhor chamou Samuel e ele respondeu: «Aqui estou». E, correndo para junto de Heli, disse: «Aqui estou, porque me chamaste». Mas Heli respondeu: «Eu não te chamei; torna a deitar-te». E ele foi deitar-se. O Senhor voltou a chamar Samuel. Samuel levantou-se, foi ter com Heli e disse: «Aqui estou, porque me chamaste». Heli respondeu: «Não te chamei, meu filho; torna a deitar-te». Samuel ainda não conhecia o Senhor, porque, até então, nunca se lhe tinha manifestado a palavra do Senhor. O Senhor chamou Samuel pela terceira vez. Ele levantou-se, foi ter com Heli e disse: «Aqui estou, porque me chamaste». Então Heli compreendeu que era o Senhor que chamava pelo jovem. Disse Heli a Samuel: «Vai deitar-te; e se te chamarem outra vez, responde: 'Falai, Senhor, que o vosso servo escuta'». Samuel voltou para o seu lugar e deitou-se. O Senhor veio, aproximou-Se e chamou como das outras vezes: «Samuel, Samuel!». E Samuel respondeu: «Falai, Senhor, que o vosso servo escuta».

    Samuel é uma figura singular e polifacetada do Antigo Testamento: sacerdote, profeta e juiz. Vive no momento da transição da federação de tribos ao regime monárquico. A vocação de Samuel está enquadrada num cenário de simplicidade e sublimidade, de serenidade e dramatismo, de silêncio e eloquência, de quietude e dinamismo. Essa vocação acontece de noite, hora propícia à revelação. O jovem é chamado três vezes, e ainda uma quarta. Samuel pensa tratar-se de Heli, o sacerdote. Este, fazendo um discernimento da situação, coloca Samuel na presença do Senhor. O seu chamamento de Samuel, o primeiro dos profetas, tem semelhanças ao de João Baptista, o último dos profetas: ambos têm a missão de anunciar uma nova etapa da História da salvação. Ambos tiveram que sofrer a dilaceração que implica romper com uma época que se ama e que vai desaparecer, mas também a dor que acarreta a aurora de uma nova etapa.

    Evangelho: Mateus 18, 1-5.10

    Naquele tempo, os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-Lhe: «Quem é o maior no reino dos Céus?». Jesus chamou uma criança, colocou-a no meio deles e disse-lhes: «Em verdade vos digo: Se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, não entrareis no reino dos Céus. Quem for humilde como esta criança, esse será o maior no reino dos Céus. E quem acolher em meu nome uma criança como esta acolhe-Me a Mim. Vede bem. Não desprezeis um só destes pequeninos. Eu vos digo que os seus Anjos vêem continuamente o rosto de meu Pai que está nos Céus».

    O texto paralelo de Marcos (9, 33-34) faz-nos supor que o contexto imediato destes ensinamentos do Senhor é uma discussão dos discípulos sobre o lugar que cada um deveria ocupar no reino pregado por Jesus. Jesus Manda-lhes que se tornem como crianças, não tanto no que se refere à inocência, mas no que se refere à humildade: a criança não tem pretensões. A humildade cristã é fruto da alegria de ser filhos de Deus. A filiação divina requer conversão. Os discípulos, particularmente os que são chamados a ser dirigentes da comunidade cristã, devem ser humildes e comportar-se como tais. Essa atitude dá-lhes uma dignidade maior que a dos anjos, que estão ao seu serviço

    Meditatio

    "Eu te bendigo, ó Pai, porque escondeste estas verdades aos sábios e inteligentes e as revelastes aos pequeninos". Com estas palavras, Jesus louva os desígnios do Pai celeste: "Sim, Pai, Eu Te bendigo, porque assim foi do Teu agrado". Quiseste abrir o Reino aos pequeninos. Por desígnio divino, veio do céu a esta terra, à procura dos pequeninos privilegiados do Pai, uma mulher revestida com o Sol. Fala-lhes com voz e coração de Mãe: convida-os a oferecerem-se como vítimas de reparação, oferecendo-se ela para os conduzir, seguros, até Deus. Foi então que das suas mãos maternais saiu uma luz que os penetrou intimamente, sentindo-se imersos em Deus como quando uma pessoa - explicam eles - se contempla num espelho. Mais tarde, Francisco, um dos três privilegiados, exclamava: nós estávamos a arder naquela luz que é Deus e não nos queimávamos. Como é Deus? Não se pode dizer. Isto sim que a gente não pode dizer. Deus: uma luz que arde mas não queima. A mesma sensação teve Moisés quando viu Deus na sarça-ardente. Ao beato Francisco, o que mais o impressionava e absorvia era Deus naquela luz imensa que penetrara no íntimo dos três. Na sua vida, dá-se uma transformação que poderíamos chamar radical; uma transformação certamente não comum em crianças da sua idade. Entrega-se a uma vida espiritual intensa que se traduz em oração assídua e fervorosa, chegando a uma verdadeira forma de união mística com o Senhor. Isto mesmo leva-o a uma progressiva purificação do espírito através da renúncia aos seus gostos e até às brincadeiras inocentes de criança. Suportou os grandes sofrimentos da doença que o levou à morte, sem nunca se lamentar. Grande era no pequeno Francisco, o desejo de reparar as ofensas dos pecadores, esforçando-se por ser bom e oferecendo sacrifícios e oração. E Jacinta sua irmã, quase dois anos mais nova que ele, vivia animada pelos mesmos sentimentos. Na sua solicitude materna, a Santíssima Virgem veio a Fátima, pedir aos homens para não ofenderem mais a Deus Nosso Senhor, que já está muito ofendido. Dizia aos pastorinhos: Rezai, rezai muito e fazei sacrifícios pelos pecadores, que vão muitas almas para o inferno por não haver que se sacrifique e peça por elas. A pequena Jacinta sentiu e viveu como própria esta aflição de Nossa Senhora, oferecendo-se heroicamente como vítima pelos pecadores. Um dia - já ela e Francisco tinham contraído a doença que os obrigava a estarem de cama - a Virgem Maria veio visitá-los a casa, como conta a pequenita: Nossa Senhora veio-nos ver e diz que vem buscar o Francisco muito em breve para o céu. E a mim perguntou-me se queria ainda converter mais pecadores. Disse-lhe que sim. E, ao aproximar-se o momento da partida do Francisco, Jacinta recomenda-lhe: Dá muitas saudades minhas a Nosso Senhor e a Nossa Senhora e diz-lhes que sofro tudo quanto Eles quiserem para converter os pecadores. Jacinta ficara tão impressionada com a visão do inferno, durante a aparição de treze de Julho, que nenhuma mortificação e penitência era demais para salvar os pecadores. (João Paulo II, Homilia da Missa da Beatificação de Francisco e Jacinta Marto no dia 13 de Maio 2000, em Fátima)

    Oratio

    Deus de infinita bondade, que amais a inocência e exaltais os humildes, concedei, pela intercessão da Imaculada Mãe do vosso Filho, que, à imitação dos bem-aventurados Francisco e Jacinta, Vos sirvamos na simplicidade de coração, para podermos entrar no reino dos Céus. Ámen. (Coleta da Missa).

    Contemplatio

    Jesus acolhia as crianças e abençoava-as... Os apóstolos querem afastar as crianças, mas Jesus não deixa. «Deixai-as vir a mim, diz. São semelhantes aos anjos do céu. A criança é dócil, simples, crente, obediente. Em lugar de afastardes as crianças, imitai as suas qualidades». Abraçava-as, impunha-lhes as mãos e abençoava-as. É uma curta lição de educação cristã. É preciso encorajar as crianças à piedade, abençoá-las e ensinar-lhes a rezar. Alguns dias antes, Jesus já tinha apresentado uma criança aos seus apóstolos como um modelo a imitar, porque a criança é simples, humilde, doce. «Se não tiverdes, dizia Jesus, estas disposições da infância espiritual, não entrareis no reino dos céus». E recomendava-lhes as crianças: «Quem as recebe em meu nome, recebe-me a mim, dizia. Tenho como feito a mim mesmo o que fizerem por elas. Ai daqueles que as escandalizam! Melhor seria que não tivessem nascido» (L. Dehon, OSP 4, p. 278s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "O Senhor exaltou os humildes" (Lc 1, 46).

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    Beatos Francisco e Jacinta Marto (20 Fevereiro)

  • Cadeira de S. Pedro

    Cadeira de S. Pedro


    22 de Fevereiro, 2025

    A festa da Cadeira de S. Pedro, colocada no dia 22 de Fevereiro por um martiriológio muito antigo, é uma boa oportunidade para fazermos memória viva e atualizante do primeiro dos Apóstolos, Simão Pedro. Nascido em Cafarnaum, exercia a sua profissão de pescador quando se encontrou com Jesus de Nazaré. Deixou o trabalho, a casa e a família para seguir o Senhor. Os evangelhos deixam-nos entrever a sua personalidade simples, espontânea e simpática. Jesus escolheu-o como primeiro no grupo dos Doze. Com a festa que hoje celebramos, apoiando-nos no símbolo da cadeira, realçamos a missão de mestre e de pastor conferida a Pedro por Cristo. O Senhor fez assentar sobre ele, como sobre uma pedra, todo o edifício da Igreja.

    Primeira Leitura: 1 Pedro 5, 1-4

    Aos presbíteros que há entre vós, eu - presbítero como eles e que fui testemunha dos padecimentos de Cristo e também participante da glória que se há-de manifestar - dirijo-vos esta exortação: 2Apascentai o rebanho de Deus que vos foi confiado, governando-o não à força, mas de boa vontade, tal como Deus quer; não por um mesquinho espírito de lucro, mas com zelo; 3não com um poder autoritário sobre a herança do Senhor, mas como modelos do rebanho. 4E, quando o supremo Pastor se manifestar, então recebereis a coroa imperecível da glória.

    O texto começa com uma autoapresentação do Apóstolo Pedro, que nos permite colher a sua identidade. Seguem-se algumas recomedações aos ansiãos que, com Pedro, carregam a honra e o peso das responsabilidades que Jesus lhe pôs sobre as costas (vv. 2s.). O Apóstolo transmite, não algo de seu, mas a missão que lhe foi confiada para ser partilhada e participada. Os que, na Igreja, são chamados a exercer um ministério hão-de deixar mover, não por interesse, mas por amor. A sua espiritualidade tem como caraterísticas o total serviço, a plena dedicação, a incondicionada fidelidade. Os que permanecerem fiéis receberão "a coroa imperecível da glória" das mãos do supremo Pastor (cf. v. 4).

    Evangelho: Mateus 16, 13-19

    Ao chegar à região de Cesareia de Filipe, Jesus fez a seguinte pergunta aos seus discípulos: «Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?» 14Eles responderam: «Uns dizem que é João Baptista; outros, que é Elias; e outros, que é Jeremias ou algum dos profetas.»15Perguntou-lhes de novo: «E vós, quem dizeis que Eu sou?» 16Tomando a palavra, Simão Pedro respondeu: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo.» 17Jesus disse-lhe em resposta: «És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu. 18Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Abismo nada poderão contra ela. 19Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu.»

    No nosso texto, Jesus começa por interrogar os discípulos sobre o que se diz sobre Ele. As respostas que dão são parcialmente válidas, mas inexatas. É então que Jesus interroga os discípulos sobre o que pensam dele. Responde Pedro, em nome de todos: "Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo." (v. 16). Estas palavras são uma profissão de fé total, completa, que já tem o sabor da fé pascal. Estas palavras revelam também a identidade de Pedro como crente e representante de todos os crentes.
    Na segunda parte do texto, temos temos uma série de palavras com as quais Jesus define a sua relação com Pedro e o ministério do Apóstolo em relação à Igreja (vv. 17-19). Pedro é bem-aventurado porque falou sob inspiração divina. O nome novo que Jesus dá a Pedro indica a sua missão de "pedra" fundamental e sólida do edifício que é a Igreja, a comunidade dos salvos. A entrega das chaves simboliza que é com Pedro e por meio de Pedro que Cristo realiza a salvação de todos.

    Meditatio

    «Quem dizem os homens que é o Filho do homem?»... «E vós, quem dizeis que Eu sou?» Em nome dos Doze, Pedro responde à pergunta de Jesus, não segundo o ponto de vista dos homens, mas segundo o ponto de vista de Deus: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo». Por isso, Jesus replica, proclamando-o bem-aventurado: «És feliz, Simão, filho de Jonas». Mas essa resposta é fruto de uma iluminação especial de Deus: «não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu» - diz-lhe Jesus.

    Pedro personifica a Igreja. A sua resposta será a da Igreja iluminada pelo Espírito no Pentecostes. Simão Pedro recebeu essa luz antecipadamente, por causa da missão que Cristo lhe queria confiar: «Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja. Dar-te-ei as chaves do Reino dos Céus, e tudo quanto ligares na terra ficará ligado nos Céus, e tudo quanto desligares na terra será desligado nos Céus" (Mt 16, 18-19).» Bento XVI comenta assim estas palavras do Senhor: «As três metáforas às quais Jesus recorre são muito claras: Pedro será o fundamento, a rocha sobre o qual se apoiará o edifício da Igreja; ele terá as chaves do reino dos céus, para abrir ou fechar a quem melhor julgar; por fim, poderá ligar ou desligar, no sentido em que poderá estabelecer ou proibir o que considerar necessário para a vida da Igreja, que é e permanece a Igreja de Cristo. [...]

    Esta posição de preeminência que Jesus decidiu conferir a Pedro verifica-se também depois da ressurreição (Mc 16, 7; Jo, 20, 2. 4-6). [...] Pedro será, entre os Apóstolos, a primeira testemunha de uma aparição do Ressuscitado (Lc 24, 34; 1 Cor 15, 5). Este seu papel, realçado com decisão (Jo 20, 3-10), marca a continuidade entre a preeminência obtida no grupo apostólico e a preeminência que continuará a ter na comunidade que nasceu depois dos acontecimentos pascais. [...] Vários textos-chave relativos a Pedro podem ser relacionados com o contexto da Última Ceia, no decurso da qual Cristo confere a Pedro o ministério de confirmar os seus irmãos (Lc 22, 31ss.). [...] Esta contextualização do primado de Pedro na Última Ceia, no momento da instituição da Eucaristia, Páscoa do Senhor, indica também o sentido último deste primado: Pedro deve ser, para todos os tempos, o guardião da comunhão com Cristo; deve conduzir à comunhão com Cristo; deve preocupar-se por que a rede não se rompa (Jo 21, 11), para que possa perdurar a comunhão universal. Só juntos, podemos estar com Cristo, que é o Senhor de todos. A responsabilidade de Pedro é, pois, a de garantir a comunhão com Cristo pela caridade de Cristo, conduzindo à realização desta caridade na vida de todos os dias».

    Oratio

    Senhor Jesus, quero hoje dar-te graças porque fundaste a Igreja sobre a pedra que é Pedro, para que seja na terra o sinal vivo da santidade do Pai, e anuncie a todos os povos o Evangelho do reino dos céus. Como Simão Pedro, quero dizer-te: afasta-te de mim que sou pecador, mas à tua palavra lançarei as redes; porque só és o Filho do Deus vivo, só tu tens palavras de vida eterna, só tu és a rocha segura, só tu és o Senhor e o Mestre. Sou fraco, muito fraco, mas com a tua graça darei a minha vida por ti, que sabes tudo, que sabes que te amo. Ámen.

    Contemplatio

    O dedo de Deus está bem marcado no estabelecimento da Religião cristã em Roma e na sua conservação há dezanove séculos. No seu estabelecimento, porque Deus se serviu de um pobre pescador galileu estranho às ciências profanas, sem recursos e sem apoios temporais para impor o jugo do Evangelho aos espíritos mais orgulhosos que jamais existiram, aos patrícios da velha Roma todos cheios de si mesmos, orgulhosos das suas riquezas e dados à sensualidade e ao prazer. Na sua conservação, porque nem as torrentes de sangue que os tiranos fizeram correr no circo e no coliseu, nem os assaltos da heresia tão frequentemente repetidos, nem o furor nem a corrupção dos homens nem as potências dos infernos conseguiram abalar esta pedra, centro e fundamento da Religião católica. Renovemos a nossa devoção e a nossa confiança para com a Igreja romana. Sejamos dóceis a todos os seus ensinamentos, a todas as suas direções. Amemo-la, veneremo-la tanto mais quanto mais ela for atacada e combatida. Rezemos pelo Soberano Pontífice e pela Igreja. (L. Dehon, OSP 3, p. 69s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja" (Mt 16, 18).

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    Cadeira de S. Pedro (22 Fevereiro)

  • 07º Domingo do Tempo Comum – Ano C [atualizado]

    07º Domingo do Tempo Comum – Ano C [atualizado]

    23 de Fevereiro, 2025

    ANO C
    7.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

    Tema do 7.º Domingo do Tempo Comum

    A liturgia deste domingo desafia-nos a pôr de lado a nossa velha lógica retributiva do “olho por olho, dente por dente”, as nossas contas de mais e de menos para classificarmos os nossos irmãos e as suas ações, e a substituir tudo isso pela lógica do amor. Só assim seremos verdadeiramente filhos do nosso Pai que está no céu.

    A primeira leitura apresenta-nos David, o homem de coração magnânimo. Tendo a possibilidade de eliminar Saul, o inimigo que o perseguia para o matar, David decidiu não erguer a mão contra o “ungido do Senhor”. David acreditava que a vida pertence a Deus; e só Deus tem o direito de tirar a vida a alguém.

    No Evangelho Jesus define os traços fundamentais da identidade do verdadeiro discípulo. De acordo com Jesus, o “amor” – o amor gratuito, incondicional, ilimitado, sem fronteiras – está no centro dessa identidade. A grande razão pela qual Jesus convida os discípulos a perdoar, a amar os inimigos, a rezar pelos violentos e os maus, é o facto de serem filhos de um Deus que é amor. Os filhos de Deus são chamados a mostrar ao mundo, com a sua forma de viver e de amar, a bondade, a ternura e a misericórdia de Deus.

    Na segunda leitura Paulo de Tarso convida-nos a encararmos a morte física como a passagem para uma nova vida, ao lado de Deus, onde continuaremos a ser nós próprios, mas sem os limites que a materialidade do nosso corpo nos impõe. Estamos destinados à comunhão com Deus, a sentarmo-nos todos à mesa do Pai. Se esse é o nosso destino final, fará sentido odiarmos os nossos irmãos enquanto andamos na terra, a caminho da casa do Pai?

     

    LEITURA I – 1 Samuel 26, 2.7-9.12-13.22-23

    Naqueles dias,
    Saul, rei de Israel, pôs-se a caminho
    e desceu ao deserto de Zif
    com três mil homens escolhidos de Israel,
    para irem em busca de David no deserto.
    David e Abisaí penetraram de noite no meio das tropas:
    Saul estava deitado a dormir no acampamento,
    com a lança cravada na terra à sua cabeceira;
    Abner e a sua gente dormia à volta dele.
    Então Abisaí disse a David:
    «Deus entregou-te hoje nas mãos o teu inimigo.
    Deixa que de um só golpe eu o crave na terra com a sua lança
    e não terei de o atingir segunda vez».
    Mas David respondeu a Abisaí:
    «Não o mates.
    Quem poderia estender a mão contra o ungido do Senhor
    e ficar impune?»
    David levou da cabeceira de Saul a lança e o cantil
    e os dois foram-se embora.
    Ninguém viu, ninguém soube, ninguém acordou.
    Todos dormiam, por causa do sono profundo
    que o Senhor tinha feito cair sobre eles.
    David passou ao lado oposto
    e ficou ao longe, no cimo do monte,
    de sorte que uma grande distância os separava.
    Então David exclamou:
    «Aqui está a lança do rei.
    Um dos servos venha buscá-la.
    O Senhor retribuirá a cada um segundo a sua justiça e fidelidade.
    Ele entregou-te hoje nas minhas mãos
    e eu não quis atentar contra o ungido do Senhor».

     

    CONTEXTO

    O Livro de Samuel (dividido em duas partes – 1 Samuel e 2 Samuel) situa-nos no período histórico que vai de meados do séc. XI a.C. até ao final do reinado de David (972 a.C.).

    Na primeira parte da obra (1 Sm 1,1 – 7,17), os autores deuteronomistas apresentam-nos diversas tradições referentes ao período pré-monárquico. É o tempo da instalação e da consolidação das tribos na terra de Canaan. É uma época de escassa consciência unitária, em que as diversas tribos vão fortalecendo laços, criando alianças defensivas para resistir aos inimigos cananeus, assentando as bases da fé monoteísta à volta de um Deus chamado Javé. As figuras de referência das tribos são os “juízes”, pequenos líderes locais encarregados de administrar a justiça no tribunal, mas que podiam assumir outras funções de liderança e conduzir o exército das tribos nas guerras contra os cananeus.

    Na segunda parte do livro de Samuel, narra-se o início da monarquia (1 Sm 8,1 – 15,35). Dado que as instituições tribais se revelavam desadequadas para responder aos novos desafios da história, nomeadamente à pressão militar exercida pelos filisteus, os líderes tribais quiseram experimentar o modelo monárquico. Fala-se na eleição do rei Saul e nos seus feitos. Contudo, essa primeira experiência da monarquia terminou de forma trágica, quando Saúl e o seu filho Jónatas morreram em luta contra os filisteus.

    Na terceira parte do livro de Samuel descreve-se a ascensão de David ao trono (1 Sm 16,1 – 2 Sm 5,25). É o tempo da consolidação da monarquia. Com David, pela primeira vez as doze tribos do Povo de Deus integram uma unidade política, sob a autoridade de um rei.

    Na quarta parte do livro de Samuel, os autores deuteronomistas apresentam um conjunto de tradições sobre a realeza davídica (2 Sm 6,1 – 24,25), incluindo o longo e conturbado processo de sucessão de David.

    O texto que a liturgia deste sétimo domingo comum nos propõe como primeira leitura integra a terceira parte do livro de Samuel, a que apresenta. Refere um episódio que precede a chegada de David ao poder. Escolhido por Deus, mas perseguido pelo ciumento rei Saul, David tem de fugir para salvar a sua vida, enquanto espera que se cumpram os desígnios de Deus. Saul tem notícias de que David está nos arredores da cidade de Zif (uma pequena cidade situada nas franjas do deserto de Judá, a cerca de cinco quilómetros a sudeste de Hebron) e dirige-se para lá com o seu exército. Acampa nos arredores da cidade. Aproveitando a noite, David e um dos seus guerreiros (Abisai) penetram no acampamento do exército de Saul, sem serem detetados, e encontram o rei a dormir. Como é que David encara a oportunidade de se livrar, definitivamente, da perseguição que o seu inimigo lhe move? Aceitará vingar-se? A história passa-se por volta de 1015 a.C., pouco antes da morte de Saul às mãos dos filisteus.

     

    MENSAGEM

    Abisai, o guerreiro que acompanha David na incursão noturna pelo acampamento de Saul, pede a David que o autorize a matar o rei, adormecido e indefeso: “Deus entregou-te hoje nas mãos o teu inimigo. Deixa que de um só golpe eu o crave na terra com a sua lança e não terei de o atingir segunda vez” (vers. 8).

    Abisai acredita que a violência é a maneira adequada de lidar com a maldade. A sua lógica é a da velha moral mesquinha do “olho por olho, dente por dente”: Saul persegue David para o matar; David deve, à primeira oportunidade, responder na mesma moeda. Ora, a oportunidade de David está ali, naquele momento em que a vida de Saul está nas suas mãos. O perdão, a indulgência, não entram em linha de conta. Esta é a perspetiva de Abisai.

    David não sente as coisas da mesma maneira. Por isso diz a Abisai: “Não o mates. Quem poderia estender a mão contra o ungido do Senhor e ficar impune?” (vers. 9). David reconhece que a violência não é a solução que Deus propõe para parar a agressão. Acredita que ninguém tem o direito de tirar a vida a outra pessoa, mesmo que se trate de um inimigo.

    De resto, o autor deteronomista confirmará, mais à frente (num desenvolvimento que o texto litúrgico que nos é proposto neste domingo não conservou) que o perdão é mais eficaz do que a agressão quando se trata de desarmar o violento. Pouco depois Saul, ao saber que David lhe tinha respeitado a vida, reconhece que tem estado a proceder mal e decide assumir uma atitude diferente: “Fiz mal! Vai, meu filho David, não voltarei a fazer-te mal, pois neste dia consideraste preciosa a minha vida. Procedi insensatamente, cometi um grandíssimo pecado” (1 Sm 26,21). O perdão transforma os corações; a violência apenas perpetua o ódio e a maldade.

    Ao contarem esta história sobre a bondade de David, os teólogos deuteronomistas pretendem oferecer aos crentes de todas as épocas uma catequese sobre o sentido e a eficácia do perdão. David é, nesta história, o modelo do homem de coração magnânimo, que pode vingar-se do agressor, mas não o faz, pois sabe que a vida de qualquer pessoa – e ainda mais a de alguém que é o “ungido de Deus” – é sagrada e inviolável. É notável que, mais de mil anos antes de Cristo, numa época de grande brutalidade, a catequese de Israel ensine que o perdão é a única saída para a violência; é extraordinário que, num tempo em que a vida humana parecia valer tão pouco, se ensine que a vida de uma pessoa – mesmo que seja a de um agressor – pertence só a Deus e que só Deus tem direito sobre ela.

     

    INTERPELAÇÕES

    • A história dos homens está profundamente marcada pela violência. Pensa-se muitas vezes que a violência é a forma mais eficaz para resolver as diferenças e os conflitos; considera-se, por outro lado, que só recorrendo à violência é possível travar o aventureirismo dos agressores de serviço, empenhados em reescrever em seu favor a história do mundo. Para onde nos tem levado esta lógica? A história recente conheceu duas guerras mundiais que se saldaram em muitos milhões de mortos e numa destruição que deixou marcas por toda a terra… Mas, apesar das lições da história, não mudamos muito a nossa lógica. Em pleno séc. XXI continuamos a alimentar conflitos e guerras desumanas, numa espiral de violência e ódio que passa de geração em geração e parece não ter fim. Por cima de tudo isto, paira o espectro de um holocausto nuclear que pode acabar com a civilização e a vida na terra. Mergulhados neste cenário, continuamos a acreditar que a violência é o caminho para fazer nascer um mundo mais livre, mais justo e mais humano? Não será a hora de escolhermos outros caminhos para resolver as diferenças e os conflitos de interesses que separam os povos?
    • A mesma reflexão deve ser aplicada à nossa vida pessoal… Lidamos a cada passo com pessoas com quem estamos em desacordo. Muitas vezes esse desacordo ultrapassa-se através do diálogo civilizado ou simplesmente pela aceitação das diferenças. Mas, algumas vezes, o desacordo torna-se conflito aberto, discussão agressiva, talvez mesmo violência de palavras e de gestos. Isto pode acontecer até no espaço da nossa convivência familiar e envolver pessoas que amamos profundamente. Frequentemente a agressividade que imprimimos às palavras e aos gestos deixa feridas profundas, difíceis de curar. Posicionamo-nos numa espiral de intransigência e de orgulho ferido que nos deixa num beco sem saída e que mina as relações. Como é que lidamos com aqueles que estão em desacordo connosco? Como é que resolvemos as diferenças que nos separam? Deixamo-nos cegar pelo orgulho e procuramos vencer a todo o custo, mesmo humilhando ou magoando a pessoa com quem entramos em conflito? A nossa lógica, quando nos sentimos ameaçados e provocados, é a do “olho por olho, dente por dente”, ou é a lógica do perdão, da reconciliação, do amor?
    • A sociedade contemporânea tem mecanismos legais para lidar com aqueles que atuam com agressividade, que usam a violência para garantir os seus interesses próprios ou para alterar uma ordem social que se recusam a aceitar. Esses mecanismos legais que protegem a ordem estabelecida serão sempre proporcionais e equilibrados? A sociedade terá o direito de tirar legalmente a vida a alguém para proteger a ordem ou para vingar uma falta, seja ela qual for? À luz da Palavra de Deus que neste domingo somos convidados a escutar, podemos aceitar que a pena de morte seja uma medida adequada para lidar com a violência e a agressividade?
    • David recusa-se a aceitar o assassínio de Saul, pois ele, independentemente das suas ações, é o “ungido de Deus”. Ninguém, a não ser Deus, tem o direito de tirar a vida a alguém. Cada homem e cada mulher é um “ungido de Deus” e deve ser respeitado na sua vida, nos seus direitos e na sua dignidade, desde que nasce até que chegue o momento de entregar a sua vida ao Deus que o criou. Hoje, apesar de todas as solenes declarações sobre direitos humanos, temos facilidade em menosprezar a vida e a dignidade das pessoas. Quando privamos alguém de vida digna, estaremos a respeitar o projeto de Deus? Quando aprovamos leis que banalizam a morte, estaremos a respeitar o projeto de Deus?

     

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 102 (103)

    Refrão 1: O Senhor é clemente e cheio de compaixão.

    Refrão 2: Senhor, sois um Deus clemente e compassivo.

    Bendiz, ó minha alma, o Senhor
    e todo o meu ser bendiga o seu nome santo.
    Bendiz, ó minha alma, o Senhor
    e não esqueças nenhum dos seus benefícios.

    Ele perdoa todos os teus pecados
    e cura as tuas enfermidades;
    salva da morte a tua vida
    e coroa-te de graça e misericórdia.

    O Senhor é clemente e compassivo,
    paciente e cheio de bondade;
    não nos tratou segundo os nossos pecados,
    nem nos castigou segundo as nossas culpas.

    Como o Oriente dista do Ocidente,
    assim Ele afasta de nós os nossos pecados;
    como um pai se compadece dos seus filhos,
    assim o Senhor Se compadece dos que O temem.

     

    LEITURA II – 1 Coríntios 15, 45-49

    Irmãos:
    O primeiro homem, Adão, foi criado como um ser vivo;
    o último Adão tornou-se um espírito que dá vida.
    O primeiro não foi o espiritual, mas o natural;
    depois é que veio o espiritual.
    O primeiro homem, tirado da terra, é terreno;
    o segundo homem veio do Céu.
    O homem que veio da terra
    é o modelo dos homens terrenos;
    O homem que veio do Céu
    é o modelo dos homens celestes.
    E assim como trouxemos em nós a imagem do homem terreno,
    procuremos também trazer em nós a imagem do homem celeste.

     

    CONTEXTO

    Não foi fácil a aclimatação do cristianismo à realidade cultural e religiosa do mundo grego. A brilhante cultura grega funcionava segundo padrões que, em muitos casos, estavam bem distantes da mentalidade semita e dos valores do Evangelho de Jesus. A primeira carta de Paulo aos coríntios é certamente o texto neotestamentário onde o confronto entre os valores cristãos e os valores helénicos é mais notório.

    A questão da ressurreição era uma das que levantava sérias dúvidas aos coríntios. Para a cultura judaica, a questão da ressurreição dos mortos não era especialmente problemática, pois considerava-se o ser humano como um todo indivisível; mas para a cultura grega, fortemente influenciada por filosofias dualistas (como a filosofia de Platão, por esta altura muito em voga) que viam no corpo uma realidade negativa e na alma uma realidade ideal e nobre, a ressurreição do homem integral era um absurdo. Como é que o corpo, realidade material que aprisionava a alma e a impedia de subir ao mundo ideal, poderia seguir a alma quando ela se elevasse ao mundo espiritual?

    Paulo, questionado sobre esta problemática, apresenta a ressurreição dos mortos como uma das verdades fundamentais da fé cristã. Começa por lembrar aos coríntios a fé que lhes anunciou e que eles aceitaram; ora, no centro dessa fé está a ressurreição de Cristo, realidade já prevista nas Escrituras, mas que foi realmente testemunhada por Cefas, pelos Doze, por “mais de quinhentos irmãos” e pelo próprio Paulo (cf. 1Cor 15,1-11). Ora, se Cristo ressuscitou, também nós havemos de ressuscitar: a ressurreição de Cristo garante a ressurreição de todos aqueles que vivem em Cristo e participam da vida de Cristo (cf. 1Cor 15,12-34). Outra questão é a do “modo” como ressuscitaremos: “como ressuscitam os mortos? Com que corpo regressam?” (1Cor 15,35). Paulo evitando as representações extravagantes e algo folclóricas do judaísmo – que falavam da ressurreição como uma recuperação do corpo e da vida que cada um tinha enquanto estava na terra – tenta responder a estas questões (cf. 1Cor 15,35-53).

     

    MENSAGEM

    Na base da reflexão de Paulo está a convicção da profunda transformação que a passagem da morte à ressurreição implica. A imagem da semente que morre na terra e reaparece como planta serve a Paulo para explicar o processo de passagem da morte à ressurreição (cf. 1Cor 15,35-44): os mortos serão objeto de uma radical transformação para chegar ao estado de ressuscitados. Não se pode falar, sem mais, de uma simples continuidade entre o corpo terrestre e o corpo ressuscitado. Ambos são corpos, mas as suas caraterísticas são claramente distintas, opostas até. Semeado corruptível, o corpo é ressuscitado incorruptível; semeado na desonra, é ressuscitado na glória; semeado na fraqueza, é ressuscitado cheio de força; semeado corpo terreno, é ressuscitado corpo espiritual” (1Cor 15,42-44a).

    “Se há um corpo terreno, também há um corpo espiritual” (1Cor 15,44b). Para iluminar esta antítese, Paulo põe frente a frente a figura do “primeiro Adão” e a do “segundo Adão”. O “primeiro Adão”, tirado do barro, homem terreno, é o modelo da nossa humanidade enquanto caminhamos na terra; e está destinado à morte. O segundo Adão, Cristo ressuscitado, vivificado pelo Espírito, é um “corpo espiritual” e não está destinado à morte. Os crentes, incorporados pelo batismo em Cristo, vivificados também pelo Espírito, identificar-se-ão com Cristo ressuscitado e tornar-se-ão, como Ele, um “corpo espiritual”. É esse “corpo espiritual”, o ser humano total, mas vivificado e transformado pelo Espírito, que está destinado à vida junto de Deus. O que é esse “corpo espiritual”? Paulo não o explica em explicações; mas, na tradição bíblica, “espírito” não é sinónimo de imaterialidade, mas sim de força, de vitalidade, de poder, de criatividade, de novidade.

    Portanto, falar da nossa ressurreição é falar desse estado em que seremos um “corpo espiritual”, à imagem de Cristo ressuscitado. Nesse “corpo espiritual” estará presente o homem inteiro, dotado de novas qualidades – as qualidades do Homem Novo.

     

    INTERPELAÇÕES

    • De acordo com Paulo, o autor do texto da Carta aos Coríntios que hoje lemos, a ressurreição deve ser encarada como a passagem para uma nova vida, onde continuaremos a ser nós próprios, mas sem os limites que a materialidade do nosso corpo nos impõe. Será a vida em plenitude ou, como diz Karl Rahner, “a transposição no modo de plenitude daquilo que agora vivemos no modo de deficiência”. A morte é o fim da vida; mas fim entendido como meta alcançada, como plenitude atingida, como nascimento para um mundo infinito, como termo final do processo de hominização, como realização total da utopia da vida plena, como mergulho definitivo no horizonte infinito de Deus. Vivemos conscientes de que “a vida não é aqui” e que o melhor – a nossa plena realização, a nossa identificação total com o Homem novo, o encontro com a felicidade sem fim – está para vir?
    • Encarar a morte física como o momento do encontro com a vida plena, permite-nos ver cada passo que damos na terra a uma nova luz. Ajuda-nos a ver as realidades deste mundo como não definitivas; faz-nos apreciar as coisas bonitas que encontramos na terra sem as absolutizarmos; liberta-nos do medo que paralisa, que nos impede de agir e de nos comprometermos; dá-nos coragem para enfrentar as forças de morte que oprimem os homens e escurecem o mundo; ilumina cada passo do nosso caminho com as cores da alegria, da harmonia, da serenidade e da paz… A certeza da ressurreição é para nós fonte de esperança?
    • A nossa identificação com Cristo começa no batismo e continua depois, pela vida fora, nesse caminho de discípulos que somos chamados a percorrer atrás de Jesus. À medida que caminhamos e nos identificamos com Jesus, vai nascendo esse “homem espiritual” de que Paulo de Tarso fala e que irromperá definitivamente quando o nosso caminho nesta terra terminar. O nosso caminho aqui na terra é um caminho de identificação com Jesus? Caminhamos com Ele, escutamos e acolhemos as suas indicações, assumimos o seu estilo de vida, aprendemos com Ele a amar até ao extremo?

     

    ALELUIA – João 13, 24

    Aleluia. Aleluia.

    Dou-vos um mandamento novo, diz o Senhor:
    amai-vos uns aos outros, como Eu vos amei.

     

    EVANGELHO – Lucas 6,27-38

    Naquele tempo,
    Jesus falou aos seus discípulos, dizendo:
    «Digo-vos a vós que Me escutais:
    Amai os vossos inimigos,
    fazei bem aos que vos odeiam;
    abençoai os que vos amaldiçoam,
    orai por aqueles que vos injuriam.
    A quem te bater numa face, apresenta-lhe também a outra;
    e a quem te levar a capa, deixa-lhe também a túnica.
    Dá a todo aquele que te pedir
    e ao que levar o que é teu, não o reclames.
    Como quereis que os outros vos façam,
    fazei-lho vós também.
    Se amais aqueles que vos amam,
    que agradecimento mereceis?
    Também os pecadores amam aqueles que os amam.
    Se fazeis bem aos que vos fazem bem,
    que agradecimento mereceis?
    Também os pecadores fazem o mesmo.
    E se emprestais àqueles de quem esperais receber,
    que agradecimento mereceis?
    Também os pecadores emprestam aos pecadores,
    a fim de receberem outro tanto.
    Vós, porém, amai os vossos inimigos,
    fazei o bem e emprestai, sem nada esperar em troca.
    Então será grande a vossa recompensa
    e sereis filhos do Altíssimo,
    que é bom até para os ingratos e os maus.
    Sede misericordiosos,
    como o vosso Pai é misericordioso.
    Não julgueis e não sereis julgados.
    Não condeneis e não sereis condenados.
    Perdoai e sereis perdoados.
    Dai e dar-se-vos-á:
    deitar-vos-ão no regaço uma boa medida,
    calcada, sacudida, a transbordar.
    A medida que usardes com os outros
    será usada também convosco».

     

    CONTEXTO

    Jesus tinha passado a noite em oração num monte não identificado da Galileia: Ele falava sempre com o Pai antes de tomar decisões importantes. Depois de o dia nascer, tinha reunido os discípulos e escolhido Doze de entre eles. Chamara-os “apóstolos” (cf. Lc 6,12-16), que quer dizer “enviados”. Era o grupo dos mais próximos de Jesus, dos que se identificavam mais com o projeto do Reino. Eles representavam o novo Povo de Deus, a comunidade da nova Aliança.

    Descendo do monte, acompanhado pelos discípulos, Jesus tinha encontrado, à sua espera, “uma grande multidão de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e Sídon, que acorrera para o ouvir e ser curada dos seus males” (Lc 6,17-18). Era gente que desejava ardentemente conhecer a proposta que Jesus trazia. Os discípulos também estavam ali. Dirigindo-se a todos, Jesus pronunciou uma longa “instrução” (cf. Lc 6,20-49). Nela definia o caminho que deviam seguir todos os que estavam interessados em fazer parte da comunidade do Reino de Deus. Essa “instrução” ficou conhecida como o “sermão da planície”.

    O texto que a liturgia deste sétimo domingo comum nos convida a escutar como Evangelho, é o coração do “sermão da planície”. Define os traços fundamentais da identidade do verdadeiro discípulo. De acordo com Jesus, o “amor” – o amor gratuito, incondicional, ilimitado, sem fronteiras – está no centro dessa identidade.

     

    MENSAGEM

    Na primeira parte deste texto, a “instrução” de Jesus centra-se na exigência de amar os inimigos (vers. 27-36).

    Recorrendo a quatro imperativos, Jesus diz aos seus discípulos como é que devem lidar com aqueles que são maus: “amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos injuriam” (vers. 27-28). São afirmações fortes e contundentes, que vão “contra a corrente” e subvertem a lógica que preside às nossas relações humanas. Como devemos escutá-las? São para ser levadas a sério? Devemos suprimi-las do Evangelho ou apagá-las da nossa consciência?

    Na verdade, o Antigo Testamento já conhecia a exigência do amor ao próximo. O livro do Levítico pedia: “Não te vingarás nem guardarás rancor aos filhos do teu povo, mas amarás o teu próximo como a ti mesmo” – Lv 19,18). Os sábios de Israel recomendavam dar de comer ao inimigo que tem fome e de dar de beber ao inimigo que tem sede para “o fazer corar de vergonha” (Pr 25,21). Mas, em geral, não se entendia o amor e o perdão dos inimigos numa perspetiva ilimitada e absoluta. O crente véterotestamentário poderia aceitar algum gesto ocasional de amor e de perdão dirigido a um adversário que pertencia ao mesmo grupo social, familiar ou religioso (cf. 1Sm 24,5-8; 26,8-12); mas não achava natural esbanjar o amor e o perdão com os inimigos que não faziam parte do mesmo povo ou da mesma raça (cf. Sl 35).

    Jesus, nas mais diversas situações em que abordou esta questão, nunca deu a entender que o amor e o perdão deviam ser condicionados por qualquer tipo de barreiras. Para Jesus, é preciso simplesmente amar o próximo; e o próximo é, sem exceção, o outro (cf. Lc 10,29-37). Esse “outro” é também o que é inimigo, aquele que nos odeia, aquele que nos calunia e amaldiçoa, aquele que não pertence ao nosso povo e está separado de nós por ódios ancestrais. Independentemente da identidade, da família étnica, das razões de caráter histórico, das atitudes do “outro”, o discípulo de Jesus ama sem condições, sem desculpas, sem exceções.

    É certamente neste âmbito que o “sermão da planície” nos coloca. Podemos imaginar a perplexidade daqueles que, naquele dia, escutaram aquelas palavras. Pareciam-lhes uma provocação, um “feixe” de exigências “impossíveis”. Mas Jesus, apostado em deixar bem claro o caminho que os seus discípulos eram chamados a percorrer, juntou ao que já tinha dito uma série de exemplos sobre a maneira concreta de viver esse amor sem limites nem condições: “a quem te bater numa face, apresenta-lhe também a outra; e a quem te levar a capa, deixa-lhe também a túnica. Dá a todo aquele que te pedir e ao que levar o que é teu, não o reclames” (vers. 29-30).

    Jesus está a pedir aos seus discípulos que assumam uma atitude passiva e colaborante perante a injustiça e a opressão? Não. Mas está a dizer-lhes que, quando confrontados com a maldade, não devem apenas evitar responder na mesma moeda, mas devem também fazer tudo o que estiver ao seu alcance para inverter a espiral de ódio e violência que destrói as relações e o próprio tecido social. O discípulo de Jesus não fica sem reagir, suportando num silêncio cobarde a maldade; mas não corta definitivamente as vias do diálogo e do entendimento. Mantém-se disponível para estender a mão ao agressor e para o recuperar. O amor transforma e reabilita; o ódio alimenta a fogueira do confronto e da violência.

    A reflexão de Jesus desemboca numa “máxima” a que alguns chamam a “regra de ouro” da caridade cristã: “o que quiserdes que os homens vos façam, fazei-lho vós também” (vers. 31). Não se trata da “esperteza saloia” de quem faz o bem na mira de ser “pago” com um bem semelhante. O foco da frase deve ser posto no bem do outro: em todas as circunstâncias, devemos tentar descobrir aquilo que é melhor para o outro. Ora, aquilo que consideramos bom para nós, também o será, com toda a certeza, bom para o outro. Assim já sabemos como proceder para com os nossos irmãos.

    Como é que Jesus fundamenta esta “impossível” exigência de amor gratuito, sem condições e sem fronteiras? A razão fundamental que tem de levar os crentes a “amar os inimigos”, a “fazer o bem e emprestar sem nada esperar em troca”, é o facto de serem filhos de um Deus bom, de um Deus que ama todos sem exceção, mesmo os que são maus e ingratos. Os filhos parecem-se com o seu pai. Se Deus é misericordioso, os seus filhos também o devem ser. Têm de identificar-se com o Pai no amor e no perdão; têm de amar sem medida e sem condições; têm de dar testemunho no mundo do “ser” de Deus. O amor, o perdão, a misericórdia são os sinais identificadores dos verdadeiros filhos de Deus (vers. 35-36).

    Na segunda parte do nosso texto, a temática do amor aos inimigos enlaça-se com a questão do julgamento e do perdão (vers. 37-38).

    Uma vez mais Jesus lança mão de quatro imperativos para definir a atitude dos discípulos quanto à maneira de avaliar os outros e as ações que eles fazem: “Não julgueis e não sereis julgados. Não condeneis e não sereis condenados. Perdoai e sereis perdoados. Dai e dar-se-vos-á”. Repare-se como há uma espécie de gradação nas afirmações de Jesus: do não julgar, avança-se para o não condenar; do não condenar, avança-se para o perdoar; do perdoar, avança-se para a generosidade, para o dar sem medida. O caminho do discípulo é um caminho sempre a subir, sem retrocesso; é um avanço progressivo em direção ao amor.

    Esse caminho está a cada passo balizado pelo amor de Deus. Ao ver que Deus não julga, não condena, perdoa sempre, oferece generosamente os seus dons, o crente aprende a fazer o mesmo em relação aos seus irmãos. É assim que vive a comunidade do Reino.

     

    INTERPELAÇÕES

    • Há vinte séculos que andamos a caminhar com Jesus. Há vinte séculos que andamos a escutar a sua proposta de um mundo mais humano e mais fraterno. Há vinte séculos que Jesus nos convida a colocar o amor no princípio, no meio e no fim de todas as nossas construções. Há vinte séculos que nos sentimos desafiados pelo seu mandamento de amar todos, sem exceção, incluindo os inimigos, os que nos odeiam, os que nos amaldiçoam, os que nos injuriam. Dizemo-nos “cristãos”, mas achamos que Jesus nos pede coisas impossíveis, impraticáveis e até mesmo perigosas. No fundo, não acreditamos em Jesus, não confiamos nas “soluções” que Ele propõe. Estamos convencidos de que as nossas soluções – que passam pela resposta musculada a quem pratica o mal, pela vingança contra aqueles que nos ofenderam, pelo castigo daqueles que praticam ações condenáveis, pela repressão daqueles que contestam as nossas certezas e seguranças – são as mais adequadas para tornar o mundo um lugar mais seguro, mais justo e mais feliz. Será assim? Onde nos têm levado as “soluções” que a nossa lógica humana considera mais eficazes? O mundo torna-se um lugar melhor quando respondemos à maldade com soluções de ódio e não com soluções de amor?
    • O que é que significa amar os nossos inimigos? Somos obrigados a ser amigos de quem nos faz mal? Jesus exigirá que nos demos bem com os violentos, os injustos, os que nos agridem sem motivo? Amor e simpatia são coisas diferentes. A afinidade, o afeto, a empatia, a inclinação, a atração, não são fruto de uma decisão consciente, mas são algo que surge espontaneamente entre duas pessoas que se querem bem. Quando Jesus nos convida a amar os inimigos, está a pedir outra coisa: está a pedir que não nos deixemos vencer pelo ódio e pelo desejo de vingança, que não cortemos as pontes do diálogo e do entendimento, que não nos recusemos definitivamente a acolher a pessoa que nos magoou, que não evitemos dar o primeiro passo para ir ao encontro de quem errou, que não neguemos à outra pessoa a possibilidade de sair da sua triste situação e de começar uma vida nova… Seremos capazes de tratar o nosso irmão que errou com humanidade, sem o condenar definitivamente?
    • Quando Jesus diz aos discípulos “a quem te bater numa face, apresenta-lhe também a outra, e a quem te levar a capa, deixa-lhe também a túnica”, estará a pedir que assumamos uma atitude passiva e conivente com as injustiças e arbitrariedades que sofremos ou que testemunhamos? Devemos simplesmente cruzar os braços e deixar que a lógica da violência e da maldade atuem no mundo e tomem conta dele? É claro que não. Ao dizer isso, o que Jesus está a pedir é que encontremos formas evangélicas de intervir para travar a injustiça, a violência, a agressividade. As soluções que alimentem a espiral da violência e da morte (o recurso às armas, a agressividade, o ódio, a mentira…) nunca serão respaldadas por Jesus; mas a passividade indiferente também não é a solução que Jesus preconiza para lidar com o mal. Como é que reagimos à violência e à maldade?
    • O ódio, o desejo de vingança, a vontade de responder violentamente a quem nos agrediu, são “respostas” espontâneas diante da maldade que nos atinge ou que atinge os irmãos que caminham ao nosso lado. São sentimentos de que nem sempre podemos alhear-nos quando estamos feridos e magoados. Mas não podem ser sentimentos que guardamos, que alimentamos e que armazenamos por tempo indefinido. Se o fizermos, eles desgastam-nos, envenenam-nos lentamente, destroem o nosso equilíbrio e a nossa paz, impedem-nos de ultrapassar os momentos maus, de curar as feridas, de refazer a nossa vida. Tem de haver uma altura em que nos entregamos à lógica do amor e nos decidimos pelo perdão. O perdão regenera-nos e permite-nos continuar em frente, reinventando a nossa vida. O ódio, o ressentimento, a decisão de não perdoar a quem nos ofendeu são realidades que cultivamos e que marcam a nossa história de vida? Sentimo-nos bem com elas? Caminhamos em paz com esse peso sobre a nossa cabeça e sobre o nosso coração?
    • Jesus pede-nos que não julguemos e não condenemos os nossos irmãos. No entanto, apresentamo-nos facilmente como juízes implacáveis que, sem terem todos os dados na mão, decidem quem é culpado, apontam o dedo, colocam rótulos, destroem vidas e reputações, decidem quem deve ser salvo e quem deve ser condenado. As redes sociais, os fóruns de discussão online, a praça pública, são muitas vezes os “tribunais” onde essa pseudo justiça é posta em prática, sem misericórdia. Temos o direito de proceder dessa forma? A “justiça” que aplicamos assim não será antes uma violenta injustiça?
    • A grande, a suprema razão pela qual Jesus nos convida a perdoar, a amar quem nos odeia e insulta, é o facto de sermos filhos de um Deus que é amor. A cada instante fazemos a experiência da bondade, da misericórdia, da ternura de Deus. Refugiamo-nos em caminhos de autossuficiência, fazemos escolhas disparatadas, deixamos que o egoísmo tome conta da nossa vida; mas Deus está sempre ao nosso lado, como um pai cheio de amor, de braços abertos para nos acolher, para nos levar para a sua festa, para nos oferecer a possibilidade de começar tudo de novo. Poderemos, com a nossa intransigência, com a nossa intolerância, com a nossa rigidez, apresentarmo-nos ao mundo como filhos de um Deus que ama sem medida e sem condições? Que testemunho é que damos ao mundo do Deus misericordioso em quem acreditamos e de quem somos filhos?

     

    ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 7.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
    (adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

    1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

    Ao longo dos dias da semana anterior ao 7.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

    2. MOMENTO PENITENCIAL: O DEUS DA MISERICÓRDIA…

    Neste domingo em que o Evangelho nos apresenta como modelo o Pai de misericórdia, o sacerdote poderá chamar a atenção para a fórmula que ele pronuncia no final do momento penitencial: “Deus todo-poderoso tenha compaixão…” Sem ser uma absolvição sacramental no sentido estrito, estas palavras oferecem o perdão de Deus a cada membro da assembleia. Isso permitirá ao sacerdote recordar que, se o recurso ao sacramento da reconciliação se impõe para as faltas graves, a Igreja dispõe de outros meios para levar o perdão de Deus aos cristãos que se reconhecem pecadores. O momento penitencial na Eucaristia é um desses momentos.

    3. ORAÇÃO NA LECTIO DIVINA.

    Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.

    No final da primeira leitura:

    “Deus de bondade, nós Te damos graças pela paciência e pelo respeito de que fez prova David para com Saul que o perseguia.

    Nós Te pedimos pela nossa terra, invadida pelo ódio, pela mentalidade de vingança, pela inveja e pelo ciúme. Converte-nos e purifica os nossos corações e os nossos espíritos, para que sejamos construtores de paz e de reconciliação”.

     

    No final da segunda leitura:

    “Pai, nós Te damos graças pelo teu Filho Jesus, novo Adão, ser espiritual vindo de junto de Ti para nos dar a vida, a nós, os herdeiros do primeiro Adão, votados à terra e à morte.

    Nós Te pedimos pelos nossos defuntos. Pelo batismo, Tu os recriaste à imagem do novo Adão, o Cristo. Associa-os à sua ressurreição”.

     

    No final do Evangelho:

    “Pai misericordioso, bom para os ingratos e os maus, bendito sejas pela revelação da tua bondade sem limites que Jesus nos faz pelo seu ensinamento e pelo seu comportamento.

    Nós Te pedimos: que o teu Espírito nos ajude a nos comportarmos como filhos e filhas dignos de Ti, Deus Altíssimo”.

    4. BILHETE DE EVANGELHO.

    Jesus não dá lições de filantropia, mas convida os seus interlocutores a erguer os olhos para Deus seu Pai, a fim de se tornarem semelhantes a Ele. Porque Deus é bom para com os ingratos e os maus, o homem deve procurar ser bom para com todos. Porque Deus é misericordioso, o homem é convidado a perdoar. Não é uma lição de moral, mas fundamentalmente um ato de fé do qual decorre um conjunto de comportamentos. Jesus, o Filho de Deus Altíssimo, veio tirar o homem de tudo aquilo que o pode afastar da semelhança com Deus, o pecado. Jesus é a perfeita imagem de Deus. Dirá mesmo: “Quem Me viu, viu o Pai”. As suas palavras são palavra de Deus, os seus gestos são gestos de Deus. O desafio está em procurarmos ser semelhantes a Jesus, ser perfeitos como o Pai celeste é perfeito.

    5. À ESCUTA DA PALAVRA.

    É uma verdadeira ladainha de desesperança e de culpabilização. Ninguém pode obedecer a todos estes mandamentos de Jesus. Mas não podemos apagar estas palavras tão desconcertantes. O Senhor dá-nos uma luz: Jesus constata que mesmo os pecadores são capazes de agir bem uns para com os outros. Nem tudo está corrompido no ser humano. Já é bom amar os que nos amam, fazer bem aos que nos fazem bem. Mas aos olhos de Jesus, isso não basta. É preciso ir mais longe. Porquê? Porque somos filhos e filhas do Deus Altíssimo. Somos da família de Deus, que é bom para os ingratos e os maus. Então, somos convidados a imitar a maneira de agir do nosso Pai. Ele não ama apenas aqueles que O amam. Ama a todos, bons e maus. E mesmo quando os homens O colocam à margem da sua vida, Ele não deixa de os amar. Jesus, que é o Filho bem-amado, a perfeita imagem de Deus, conformou-Se à moral de seu Pai. Na cruz, rezou: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. Amou os seus inimigos. Nunca rejeitou ninguém. O que Jesus nos diz hoje não são normas culpabilizantes e impraticáveis. São convites, urgentes e exigentes, é verdade, para que manifestemos, pela nossa maneira de agir, que somos da família do nosso Pai dos céus. Cristãos, somos convidados a colocar a nossa vida na luz de Jesus e da sua palavra, a não nos contentarmos do que fazem os pecadores. É somente num estreito acompanhamento com Jesus que recebemos do Espírito a força de ir sempre mais além no caminho, rude, mas exaltante, do amor, como o de Jesus e do Pai.

    6. ORAÇÃO EUCARÍSTICA.

    A Oração Eucarística IV celebra muito bem a infinita misericórdia do Deus da Aliança ao longo da história do mundo.

    7. PALAVRA PARA O CAMINHO…

    No Evangelho deste domingo, Jesus convida-nos a amar como nos ama o Pai dos céus que é bom para os ingratos e os maus. Nesta semana, qual será a minha atitude para com determinado vizinho, colega, próximo… que me magoou ou feriu profundamente? Nesta semana, saberei permanecer no amor ao outro, quando tudo me pede para lhe responder na mesma moeda? Ao longo da semana, podemos retomar, de forma meditativa, o Evangelho deste domingo, pedindo a Deus mais sinceridade nas nossas atitudes e ações.

     

    UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
    PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

    Grupo Dinamizador:
    José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
    Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
    Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
    www.dehonianos.org

     

    S. Policarpo, Bispo e Mártir

    S. Policarpo, Bispo e Mártir


    23 de Fevereiro, 2025

    S. Policarpo foi discípulo de S. João Evangelista e por ele colocado à frente da igreja de Esmirna, como bispo. Foi também amigo de S. Inácio de Antioquia, que hospedou em sua casa, quando ele se dirigia para Roma, onde viria a ser martirizado. E foi Inácio que o definiu como "bom pastor com fé inabalável" e "forte atleta por causa de Cristo". Este juízo foi totalmente confirmado no ano 155, quando o corajoso bispo de Esmirna enfrentou o martírio pelo fogo, no estádio da cidade. A sua morte trouxe para a Igreja, como o seu nome indica "muito fruto".

    Lectio

    Primeira leitura: Apocalipse 2, 8-11

    Ao anjo da igreja de Esmirna escreve: «Isto diz o Primeiro e o Último, aquele que estava morto, mas reviveu: 9'Conheço as tuas tribulações e a tua pobreza; no entanto, és rico. Também conheço as calúnias dos que se dizem judeus, mas que não são mais que uma sinagoga de Satanás. 10Não temas nada do que vais sofrer. Eis que o Diabo vai lançar alguns de vós na prisão para vos provar. Sereis atribulados durante dez dias. Sê fiel até à morte e dar-te-ei a coroa da vida.' 11Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas. Aquele que vence não será vítima da segunda morte.

    Cristo ressuscitado dita ao vidente do Apocalipse sete cartas para as sete igrejas da Ásia Menor, dirigindo-as aos seus "anjos", isto é, aos seus bispos. Hoje escutamos a mensagem enviada à igreja de Esmirna, que foi bem aceite por Policarpo, seu bispo na época imediatamente sucessiva à dos apóstolos. O santo bispo enfrentou corajosamente os sofrimentos, superou a provação, foi fiel até à morte. Assim se tornou participante do mistério pascal de Cristo. Depois de o celebrar durante muitos anos no sacrifício eucarístico, tornou-o visível no seu próprio corpo, pelo martírio.

    Evangelho: da féria ou do Comum

    Meditatio

    S. Policarpo teve a felicidade de conhecer e de abraçar a religião cristã desde a juventude. Foi nela instruído pelos próprios apóstolos, e particularmente por S. João evangelista, que o estabeleceu depois bispo de Esmirna. Governou a Igreja de Esmirna durante sessenta e dois anos. O brilho das suas virtudes fazia com que fosse visto como o chefe e o primeiro dos bispos da Ásia. Os fiéis reverenciavam-no, esforçavam-se por lhe tirarem os seus sapatos no regresso das suas viagens apostólicas, considerando uma graça prestarem-lhe um pequeno serviço. Formou vários discípulos, como ele mesmo tinha sido formado pelos apóstolos. Santo Ireneu, bispo de Lião, foi deste número. «Tenho ainda presente no espírito, diz este santo, a gravidade do seu caminhar, a majestade do seu rosto, a pureza da sua vida e as santas exortações com que alimentava o seu povo. Parece-me que ainda o ouço dizer como tinha conversado com S. João, e com vários outros que tinham visto Jesus Cristo, as palavras que tinha escutado das suas bocas e as particularidades que tinha aprendido dos milagres e da doutrina deste divino Salvador. Tudo o que acerca disto dizia era absolutamente conforme às divinas Escrituras, como sendo transmitido por aqueles que tinham sido as testemunhas oculares do Verbo, da palavra de vida» ... A virtude é sempre provada. Nosso Senhor, no Apocalipse, descreve as provações do nosso grande santo: «Conheço a tua tribulação e a tua pobreza - e no entanto és rico - e sei que és difamado pelos que se dizem judeus, mas não são mais do que uma sinagoga de Satanás. Não temas os sofrimentos que te esperam. O diabo vai meter alguns de vós na prisão, para serdes postos à prova; e sereis atribulados durante dez dias. Sê fiel até à morte e dar-te-ei a coroa da vida.» O povo enganado pediu a sua morte, como tinha feito para Cristo. Procuraram o santo no seu modesto quarto. Teria podido salvar-se, mas não quis. «Que se faça a vontade de Deus!», diz. Os guardas queriam persuadi-lo a oferecer incenso aos ídolos e a César para salvar a sua vida. «Não posso», disse-lhes simplesmente. Como Jesus, foi conduzido ao suplício, bruscamente e sem considerações. Caiu e levantou-se pelo caminho. No anfiteatro, ouviram uma voz do céu que dizia: «Coragem, Policarpo, sê firme!» O magistrado pressionou-o em vão para que renunciasse a Jesus Cristo. «Há oitenta e seis anos que o sirvo, diz o santo, e nunca me fez mal». O povo gritava: «É o chefe dos cristãos, o destruidor dos nossos deuses; foi ele que ensinou a muitos a não mais os adorarem". Teriam querido que o entregassem aos leões, mas o espetáculo público tinha terminado. Condenaram-no ao fogo. O povo correu a procurar madeira nas lojas e nos banhos públicos e preparou uma grande fogueira. (Leão Dehon, OSP 3, p. 92s.).
    Policarpo, segundo a palavra de Paulo, "oferecei os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus" (Rm 12, 1), fez de si mesmo, uma oblação a Deus. A eucaristia que celebrava no altar plasmou totalmente a sua vida e a sua morte. O seu martírio foi uma verdadeira celebração litúrgica.

    Oratio

    Grande santo, ajudai-me. Vós sois uma testemunha do amor do Coração de Jesus, aceso na vossa alma pelo apóstolo S. João. Ajudai-me a amar o Coração de Jesus, a imitar as suas virtudes de humildade, de mansidão, de generosidade, a sofrer com Ele e por Ele, esperando a hora de ir gozar na sua presença. (Leão Dehon, OSP 3, p. 94).

    Contemplatio

    Aconteceu a S. Policarpo o que tinha acontecido ao seu mestre S. João, o fogo do seu coração ultrapassou e extinguiu o fogo material com que o envolviam. Tinha-se entregue ao suplício. Como o quisessem pregar a um poste, disse: «Deixai-me; aquele que me dá a força para sofrer o fogo, dar-me-á a graça de permanecer firme na fogueira, sem o socorro dos vossos pregos». Contentaram-se em ligá-lo com cordas. Assim amarrado, ergueu os seus olhos ao céu e disse: «Senhor, Deus todo poderoso, dou-vos graças pelo que me haveis concedido neste dia, por entrar no número dos vossos mártires e tomar parte no cálice do vosso Cristo, a fim de que eu ressuscite para a vida eterna. Que eu seja admitido hoje com eles na vossa presença, como uma vítima de agradável odor, tal como a haveis preparado, predito e cumprido, vós que sois o verdadeiro Deus; eu vos bendigo, vos glorifico pelo pontífice eterno e celeste, Jesus Cristo vosso filho, ao qual seja dada glória, assim como a vós e ao Espírito Santo, agora e em toda a eternidade. Ámen!» Quanto disse ámen, acenderam o fogo, mas por um milagre surpreendente, a chama, em vez de consumir o santo mártir, estendeu-se à volta dele como a vela de um barco enfunada pelo vento. Os pagãos, vendo que o fogo se recusava a servi-los, mandaram ferir o santo com um golpe de espada e o seu sangue extinguiu a fogueira. (Leão Dehon, OSP 3, p. 93s.).

    Actio

    Repete muitas vezes e vive hoje a palavra:
    "Recebei-me, Senhor, como oblação de suave odor" (S. Policarpo).

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    S. Policarpo, Bispo e Mártir (23 Fevereiro)