08º Domingo do Tempo Comum – Ano C

ANO C
8.º DOMINGO COMUM

Tema do 8.º Domingo comum

Nem sempre o caminho é claro ao longo da viagem da vida. Ao longo do percurso, recebemos indicações, sugestões, orientações, propostas. Como discernir as indicações boas das indicações más, as que nos dão pistas certas e as que nos lançam por caminhos sem saída? Todos os que se apresentam como “guias” são dignos da nossa confiança? A Palavra de Deus que a liturgia deste domingo nos propõe convida-nos a refletir sobre isto.

No Evangelho Jesus põe os seus discípulos de sobreaviso contra os “guias cegos”, arrogantes e prepotentes, sedentos de protagonismo, cujo interesse está nos seus projetos pessoais e não no bem dos seus irmãos. Os caminhos que eles apontam não levam à vida. Os discípulos poderão detetar esses “falsos mestres” pelas suas ações e pelas suas palavras, que acabam por revelar os interesses inconfessáveis que escondem no coração. Se as propostas que nos apresentam não estão em linha com as propostas de Jesus, esses “guias” não devem ser escutados.

A primeira leitura, na mesma linha, oferece-nos um conselho muito prático, mas também muito sábio: não julguemos as pessoas pela primeira impressão, pela forma como se apresentam ou pelas atitudes mais ou menos exuberantes que exibem: deixemo-las falar, escutemos o que dizem, pois as palavras revelam, mais tarde ou mais cedo, a verdade ou a mentira que há em cada coração.

A segunda leitura traz-nos a conclusão de uma catequese de Paulo de Tarso sobre a ressurreição dos mortos. É uma temática substancialmente diferente da que aparece nas outras duas leituras deste domingo. Podemos, no entanto, dizer que a ressurreição, a vida plena, é a meta final do caminho para aqueles que se deixam guiar por Jesus e que vivem de acordo com o seu Evangelho.

 

LEITURA I – Ben Sirá 27,4-7

Quando agitamos o crivo, só ficam impurezas:
assim os defeitos do homem aparecem nas suas palavras.
O forno prova os vasos do oleiro
e o homem é posto à prova pelos seus pensamentos.
O fruto da árvore manifesta a qualidade do campo:
assim as palavras do homem revelam os seus sentimentos.
Não elogies ninguém antes de ele falar,
porque é assim que se experimentam os homens.

 

CONTEXTO

O Livro de Ben Sirá (chamado, na sua versão grega, “Eclesiástico”) é um livro de carácter sapiencial que, como todos os livros sapienciais, tem por objetivo deixar aos aspirantes a “sábios” indicações práticas sobre a arte de bem viver e de ser feliz. O seu autor parece ter sido um tal Jesus Ben Sirá, um “sábio” israelita que viveu na primeira metade do séc. II a.C. (cf. Sir 51,30).

A época de Jesus Ben Sirá é uma época conturbada para o Povo de Deus. Quando Alexandre da Macedónia morreu, em 323 a.C., o seu império foi dividido por duas famílias: os Ptolomeus e os Selêucidas. Inicialmente, a Palestina ficou nas mãos dos Ptolomeus; e, nos anos de domínio Ptolomeu, o Povo de Deus pôde, em geral, viver na fidelidade à sua fé e aos seus valores ancestrais. Em 198 a.C., contudo, depois da batalha de Pânias, a Palestina passou para o domínio dos Selêucidas (uma família descendente de Seleuco Nicanor, general de Alexandre). Os Selêucidas, sobretudo com Antíoco IV Epifanes, procuraram impor, por vezes pela força, a cultura helénica. Nesse contexto muitos judeus, seduzidos pelo brilho da cultura grega, abandonavam os valores tradicionais e a fé dos pais e assumiam comportamentos mais consentâneos com a “modernidade” e com a pressão exercida pelas autoridades selêucidas. A identidade cultural e religiosa do Povo de Deus corria, assim, sérios riscos… Jesus Ben Sirá, um “sábio” judeu apegado às tradições dos seus antepassados, entendeu desenvolver uma reflexão que ajudasse os seus concidadãos a manterem-se fiéis aos valores tradicionais. No seu livro que escreveu para esse efeito, Jesus ben Sira apresenta uma síntese da religião tradicional e da “sabedoria” de Israel e procura demonstrar que é no respeito pela sua fé, pelos seus valores, pela sua identidade que os judeus podem descobrir o caminho seguro para serem um Povo livre e feliz.

O texto que a liturgia de hoje nos propõe faz parte de uma unidade literária (cf. Sir 26,28-27,7) que apresenta algumas “pérolas” da sabedoria do Povo de Deus. A temática desenvolvida parece algo heterogénea, pois junta dois temas aparentemente desligados um do outro: o trabalho dos comerciantes (uma profissão que era considerada “duvidosa”, sobretudo quando comparada com o trabalho dos que viviam do cultivo da terra) e as palavras que revelam a realidade interior do homem; no entanto, os dois temas aparecem perfeitamente enlaçados. O desenvolvimento do tema é tecido, à velha maneira sapiencial, a partir de sentenças deduzidas da experiência prática e da própria reflexão (por exemplo, “não elogies ninguém antes de ele falar”); o fim dessas sentenças é orientar o comportamento do homem, preservando-o do insucesso, do fracasso, dos comportamentos e dos juízos errados.

 

MENSAGEM

É possível conhecer o coração dos homens? Deverá confiar-se nos comerciantes, que estão expostos a todo o tipo de tentações e que, por amor ao dinheiro, são capazes de recorrer a todo o tipo de falcatruas? O pecado não andará continuamente a rondar o processo de compra e venda (cf. Sir 26,28-27,3)?

Jesus ben Sira recorre a três imagens para prevenir o candidato a “sábio” que tem de lidar com comerciantes pouco escrupulosos. A primeira imagem é a do crivo (vers. 4). As mulheres palestinas utilizavam o crivo para separar os grãos das palhas e das folhas; ora, assim como o crivo expõe os “lixos” que não interessam e que são para deitar fora, assim também o ato de falar expõe os defeitos dos homens. A segunda imagem é a do forno (vers. 5). O forno, com as suas altas temperaturas, põe à prova a qualidade das vasilhas de barro que nele são colocadas; ora, assim como as altas temperaturas do forno mostram a resistência ou a fragilidade dos vasos de barro, assim também as palavras do homem manifestam a qualidade dos seus pensamentos. A terceira imagem é a da árvore (vers. 6). As árvores boas produzem bons frutos e as árvores más produzem frutos que não prestam; ora, assim como o fruto revela o ser da árvore, assim também as coisas que o homem diz revelam claramente o que lhe vai no coração.

É possível ao homem fingir, enganar, disfarçar, encenar determinados tipos de comportamento; mas a palavra revela-o e põe a nu os seus sentimentos mais profundos. A conclusão óbvia da reflexão do sãbio Jesus ben Sira aparece no vers. 7 (“não elogies ninguém antes de ele falar, porque é assim que se experimentam os homens”): não devemos deixar-nos condicionar pela primeira impressão ou por gestos mais ou menos teatrais que nada significam; tiremos as nossas conclusões depois de o homem falar, pois só a palavra expressa a abundância do coração.

 

INTERPELAÇÕES

  • Todos temos uma certa tendência para fazer juízos de valor sobre as pessoas que se cruzam connosco. Somos tocados por uma primeira impressão, por um gesto, pela forma como a pessoa se apresenta ou se veste, pelo seu aspeto físico, pela simpatia imediata que ela nos inspira, talvez até mesmo pela nossa disposição interior nessa hora… Depois, avaliamos tudo, classificamos a pessoa, colocamos-lhe uma etiqueta, decidimos se ela nos interessa ou não, se confiamos nela ou não, se queremos ou não aprofundar laços com ela, se a deixamos ou não entrar no círculo das nossas relações. É possível que, muitas vezes, a nossa “apreciação” seja objetiva e justa; mas é possível também que algumas vezes a nossa “avaliação” seja preconceituosa, injusta e superficial. Isto leva-nos, naturalmente, a pensar nos critérios que usamos para avaliar as pessoas que se cruzam connosco. Que critérios são? O que é que decide a nossa aceitação ou a nossa recusa em acolher as pessoas que a vida traz ao nosso encontro? Procuramos “a verdade” das pessoas para além das aparências, ou decidimos o “valor” das pessoas a partir de aspetos e de impressões superficiais?
  • Por outro lado, somos muitas vezes obrigados a discernir se podemos confiar em certas pessoas e entregar-lhes determinadas responsabilidades. Todas as pessoas têm o seu valor e devem ser respeitadas na sua dignidade; mas cada pessoa tem a sua maneira de ser, as suas caraterísticas particulares, a sua forma própria de se situar diante da vida, do mundo e dos outros homens e mulheres. Antes de escolher uma pessoa para lhe entregar determinada tarefa, temos de procurar conhecê-la, saber os valores que ela privilegia, as caraterísticas pessoais que a tornam apta para desempenhar uma determinada função, se ela é digna da nossa confiança… Como podemos fazer esse discernimento? Jesus ben Sira dá-nos uma “dica” que é fruto da sua experiência de homem “sábio”: escutemos com atenção aquilo que a pessoa em causa diz, as opiniões que exprime, os valores que transparecem nas suas palavras. A boca fala da abundância do coração. Mais tarde ou mais cedo as palavras que alguém diz acabam por revelar a verdade da sua vida. Procuramos escutar, com paciência e sem preconceitos, as pessoas que estabelecem diálogo connosco? Procuramos manter um diálogo honesto, verdadeiro, atento, com as pessoas que nos interessa conhecer bem?

 

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 91 (92)

Refrão 1: É bom louvar o Senhor.

Refrão 2: É bom louvar-vos, Senhor,
e cantar salmos ao vosso nome.

É bom louvar o Senhor
e cantar salmos ao vosso nome, ó Altíssimo,
proclamar pela manhã a vossa bondade
e durante a noite a vossa fidelidade.

O justo florescerá como a palmeira,
crescerá como o cedro do Líbano:
plantado na casa do Senhor,
florescerá nos átrios do nosso Deus.

Mesmo na velhice dará o seu fruto,
cheio de seiva e de vigor,
para proclamar que o Senhor é justo;
n’Ele, que é o meu refúgio, não há iniquidade.

 

LEITURA II – 1 Coríntios 15, 54-58

Irmãos:
Quando este nosso corpo corruptível se tornar incorruptível
e este nosso corpo mortal se tornar imortal,
então se realizará a palavra da Escritura:
«A morte foi absorvida na vitória.
Ó morte, onde está a tua vitória?
Ó morte, onde está o teu aguilhão?»
O aguilhão da morte é o pecado
e a força do pecado é a Lei.
Mas dêmos graças a Deus,
que nos dá a vitória por Nosso Senhor Jesus Cristo.
Assim, caríssimos irmãos,
permanecei firmes e inabaláveis,
cada vez mais diligentes na obra do Senhor,
Sabendo que o vosso esforço não é inútil no Senhor.

 

CONTEXTO

O diálogo do cristianismo com as diversas realidades culturais que marcam a vida e a história dos povos sempre apresentou desafios consideráveis. Encontramos essa questão logo nos primeiros tempos da caminhada cristã, quando Paulo de Tarso trouxe o cristianismo ao encontro do mundo greco-romano. A primeira Carta de Paulo à comunidade cristã de Corinto é, talvez, o escrito do Novo Testamento que melhor espelha essa problemática.

Corinto, cidade nova e próspera situada na região do Peloponeso, servida por dois portos de mar era a cidade do desregramento para todos os marinheiros que cruzavam o Mediterrâneo e chegavam aos seus portos depois de semanas passadas em navegação. Em Corinto estavam representadas todas as raças e todas as realidades sociais. Na época paulina, a população era de cerca de 500.000 pessoas, das quais dois terços eram escravos. A riqueza escandalosa de alguns, contrastava com a miséria da maioria.

Em termos culturais, Corinto era um centro importante. Sem ter a fama de Atenas, a cidade tinha, contudo, grande número de poetas, filósofos, oradores e médicos. Todas as escolas filosóficas e todas as culturas estavam representadas na cidade. As escavações descobriram várias bibliotecas.

A mistura de raças e de culturas notava-se também em termos religiosos. Corinto era um centro religioso onde todos os cultos e religiões estavam representados. O culto principal girava à volta de Afrodite, deusa do amor, que tinha um grande santuário na Acrópole da cidade. Havia numerosos grupos religiosos, ou “Thiasoi”, com um líder à sua frente. Religiões do Oriente e religiões mistéricas estavam representadas no universo religioso de Corinto. É neste terreno promíscuo que vai nascer e fazer caminho a comunidade cristã de Corinto.

Uma das propostas cristãs que encontrou resistência entre os cristãos de Corinto foi a questão da ressurreição dos mortos. Influenciados por filosofias dualistas – entre as quais avultava a filosofia platónica – muitos coríntios viam no corpo uma realidade negativa e na alma uma realidade ideal e nobre. Admitiam que a alma, liberta do corpo, ascenderia ao mundo luminoso das ideias; mas tinham dificuldade em admitir que o corpo, realidade material, carnal e sensual, pudesse seguir a alma na sua ascensão ao mundo de Deus. Sendo assim, consideravam que não fazia sentido falar da ressurreição integral do homem.

Paulo tratou esta questão em 1 Cor 15. O texto que a liturgia deste domingo nos propõe como primeira leitura é a parte final da reflexão de Paulo sobre este tema.

 

MENSAGEM

No final da catequese sobre a ressurreição, Paulo reitera aquilo que explicou detalhadamente atrás: a morte perdeu o seu domínio sobre o homem, pois estamos destinados à ressurreição (cf. 1 Cor 15,50-52). Cristo, o novo Adão, vivificou-nos (cf. 1 Cor 15,45-49). Paulo evita falar da forma como acontecerá a ressurreição; mas garante que acontecerá. Evitando as imagens fantasiosas que sobre esta temática circulavam nos ambientes judaicos, Paulo afirma apenas, com sobriedade, que “num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final, seremos transformados” (1 Cor 15,52). O nosso ser corruptível será transformado em ser incorruptível (cf. 1 Cor 15,53-54). Começará a época definitiva do homem, o tempo da vida que não acaba. Isso, para Paulo, está para além de toda a dúvida.

A ressurreição é algo tão decisivo para os seres humanos, que Paulo não pode deixar de a festejar com um grito de júbilo. Fá-lo recorrendo a textos de Isaías (cf. Is 25,8) e Oseias (cf. Os 13,14), a partir dos quais compõe um breve hino que celebra a vitória de Cristo e dos cristãos sobre a morte: “a morte foi absorvida na vitória. Ó morte, onde está a tua vitória? Ó morte, onde está o teu aguilhão?” (1 Cor 15,54-55). O pecado, a escravidão, o egoísmo, a violência, o ódio, aliados da morte foram derrotados e não terão, a partir de agora, qualquer poder sobre o homem: a ressurreição de Cristo libertou todos os crentes do medo da morte, pois demonstrou que não há morte para quem luta por um mundo de justiça, de amor e de paz. Esse cântico de triunfo leva como acompanhamento obrigatório uma ação de graças a Deus pois é Ele, o Senhor da vida, “que nos dá a vitória por Nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Cor 15,57).

A palavra final de Paulo é para convidar os coríntios – e os crentes de todas as épocas – a permanecerem “firmes e inabaláveis, cada vez mais diligentes na obra do Senhor” (1 Cor 15, 58). É um convite a não projetarmos a ressurreição apenas num mundo futuro, mas a trabalharmos cada dia para que a ressurreição (como libertação do pecado, do egoísmo, da exploração e da morte) se vá tornando uma realidade viva na história da nossa existência. Isto exige, evidentemente, que não cruzemos os braços numa passividade que aliena, mas que nos empenhemos verdadeiramente numa efetiva transformação que traga vida nova ao homem e ao mundo.

 

INTERPELAÇÕES

  • Como todos os seres criados, nascemos, vivemos e morremos. O nosso horizonte de vida, aqui na terra, tem prazo. No entanto, no mais fundo de cada ser humano há um enorme desejo de eternidade, de vida que ultrapasse a finitude que experimentamos. Aspiramos a uma vida que não seja, a dada altura, destruída pela morte. A vida eterna é apenas um sonho sem fundamento, uma simples projeção da nossa ânsia de vida, ou é uma realidade que nos espera depois do caminho que percorremos agora? Jesus acreditava na vida eterna. Ele tinha a certeza de que Deus não nos criou para a morte, mas sim para a vida. “O nosso Deus” – dizia Jesus – “não é um Deus de mortos, mas de vivos, pois para Ele todos estão vivos” (Lc 20,38). Deus deu-lhe razão: quando a morte pensou que tinha conseguido prender Jesus num túmulo novo situado fora de portas em Jerusalém, Deus ressuscitou-o. Ao ressuscitar Jesus, Deus mostrou que a morte nunca teria a última palavra sobre a vida do homem. Como Jesus, nós também estamos destinados a ressuscitar; como Jesus, estamos destinados a viver eternamente com Deus. Acreditamos nisto? Que significa, no horizonte da nossa vida, a certeza da ressurreição?
  • A teologia clássica assimilou o horizonte de compreensão da filosofia grega, segundo a qual o mundo verdadeiro era o mundo sobrenatural; o mundo terreno era apenas o lugar da matéria, da ambiguidade, do pecado, da imperfeição; a alma ansiava por libertar-se rapidamente desta matéria para ascender à esfera da vida plena, da vida de Deus… No entanto, o regresso à mentalidade bíblica trouxe-nos uma outra consciência, uma outra visão de tudo isto: sabemos que o mundo novo que nos espera começa já a realizar-se nesta terra e que é preciso fazê-lo aparecer todos os dias, em cada um dos nossos gestos. A ressurreição começa a concretizar-se aqui e agora. Acreditar na ressurreição é, assim, empenhar-se na construção de um mundo mais humano e mais fraterno, procurando eliminar as forças do egoísmo, do pecado e da morte que impedem, já nesta terra, a vida em plenitude. Por isso o Concílio Vaticano II diz: “a Igreja ensina que a importância das tarefas terrenas não é diminuída pela esperança escatológica, mas que esta antes reforça com novos motivos a sua execução” (Gaudium et Spes, 21). O nosso desejo de vida plena traduz-se, enquanto caminhamos na terra, pela luta contra o egoísmo, a maldade, a violência, a injustiça, o pecado, tudo aquilo que traz morte à vida dos homens e do mundo?
  • Paulo está convicto de que “o segundo Adão” (Cristo) é um “espírito que dá vida” (1 Cor 15,45). Tornarmo-nos discípulos de Cristo, ligarmo-nos a Cristo como os ramos estão ligados à videira, vivermos de Cristo e alimentarmo-nos de Cristo é garantia de vida eterna. Ora, no dia do nosso batismo, ligamo-nos a Cristo e passamos a integrar o Corpo de Cristo, a comunidade cristã. Mas a ligação a Cristo tem de ser renovada, cultivada e fortalecida a cada passo do nosso caminho. Procuramos, a cada momento, manter ligação a Cristo? Escutamos as suas palavras e procuramos deixar-nos guiar por elas? Conhecemos os gestos de Cristo, o seu amor até ao extremo, o seu estilo de vida, e procuramos testemunhar tudo isso com a forma como vivemos? Sentamo-nos com Cristo à volta da mesa eucarística, recebemos o Pão da Vida que Cristo nos oferece e traduzimos tudo isso em gestos concretos de amor, de serviço, de partilha, de perdão, junto dos irmãos que encontramos todos os dias?

 

ALELUIA – Filipenses 2, 15d.16a

Aleluia. Aleluia.

Vós brilhais como estrelas no mundo,
ostentando a palavra da vida.

 

EVANGELHO – Lucas 6, 39-45

Naquele tempo.
disse Jesus aos discípulos a seguinte parábola:
«Poderá um cego guiar outro cego?
Não cairão os dois nalguma cova?
O discípulo não é superior ao mestre,
mas todo o discípulo perfeito deverá ser como o seu mestre.
Porque vês o argueiro que o teu irmão tem na vista
e não reparas na trave que está na tua?
Como podes dizer a teu irmão:
‘Irmão, deixa-me tirar o argueiro que tens na vista’,
se tu não vês a trave que está na tua?
Hipócrita, tira primeiro a trave da tua vista
e então verás bem para tirar o argueiro da vista do teu irmão.
Não há árvore boa que dê mau fruto,
nem árvore má que dê bom fruto.
Cada árvore conhece-se pelo seu fruto:
não se colhem figos dos espinheiros,
nem se apanham uvas das sarças.
O homem bom,
do bom tesouro do seu coração tira o bem:
e o homem mau,
da sua maldade tira o mal;
pois a boca fala do que transborda do coração».

 

CONTEXTO

O “sermão da planície”, apresentado por Lucas em 6,17-49, é uma longa “instrução” que Jesus destina a todos aqueles que estão interessados em conhecer o seu projeto. É feita diante de uma “grande multidão de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e de Sídon” (Lc 6,17), mas dirige-se especialmente aos discípulos de Jesus. Define a conduta do discípulo verdadeiro, daquele que quer fazer parte da comunidade do Reino de Deus. O evangelista Mateus apresenta um material semelhante, mas situa o discurso de Jesus num contexto diferente: numa montanha (cf. Mt 5,1-7,29).

O texto que a liturgia deste domingo nos apresenta como Evangelho pertence à secção final do “sermão da planície” (cf. Lc 6,39-49). Lucas parece ter reunido aqui um conjunto de “sentenças” ou “ditos” de Jesus que, originalmente, tinham um contexto diverso e foram pronunciados em alturas diversas. A unidade temática desta perícope ressente-se um pouco dessa junção de materiais diferentes.

Por detrás do enquadramento em que Lucas dispõe estas “sentenças” e “ditos” de Jesus estará, provavelmente, a situação das comunidades cristãs às quais o terceiro Evangelho se destinava. Em meados dos anos oitenta do primeiro século, essas comunidades estavam a ser inquietadas por falsos mestres cristãos, com sede de protagonismo, que apresentavam uma catequese que não se enquadrava com os ensinamentos recebidos de Jesus. Lucas sente-se no dever de as advertir para o perigo de se deixarem seduzir pelas falsas doutrinas que esses “mestres” propunham. Acolher as propostas que eles traziam não levava a lugar nenhum.

 

MENSAGEM

O nosso texto tem, claramente, duas partes. Na primeira (vers. 39-42), o “discurso” de Jesus constrói-se sobre uma série de perguntas que “obrigam” os ouvintes a avaliar e a dar uma resposta própria aos “alertas” que Jesus lhes deixa.

As duas primeiras perguntas (“poderá um cego guiar outro cego? Não cairão os dois nalguma cova?” – vers. 39) também aparecem no Evangelho de Mateus. Aí referem-se aos fariseus e doutores da lei, que pretendem ser líderes do Povo de Deus, mas ensinam uma religião legalista, feita de gestos rituais vazios e estéreis, que não aproxima de Deus nem tornam o homem realmente livre (cf. Mt 15,14). Em Lucas, no entanto, estas mesmas perguntas referem-se à ação de mestres cristãos arrogantes e cheios de si que, com as suas doutrinas pessoais, afastam os crentes da verdade do Evangelho. Os discípulos de Jesus que dão ouvidos a esses falsos mestres, arriscam-se a perder Jesus de vista e a desviarem-se do caminho que leva à vida eterna. Quando alguém apresenta as suas teorias ou a sua própria doutrina e não as propostas de Jesus, está, muito provavelmente, a conduzir os seus irmãos por caminhos que não levam a lado nenhum. Em lugar de conduzir os seus irmãos ao encontro da luz, está a condená-los a viver na escuridão. É necessário que os discípulos não esqueçam isto: o único “mestre” que devem seguir de olhos fechados, sem condições, com total disponibilidade, é o próprio Jesus. As propostas, sugestões e indicações de outros “mestres” só devem ser aceites como válidas se estiverem em consonância com o Evangelho de Jesus (vers. 40).

As duas perguntas seguintes (“porque vês o argueiro que o teu irmão tem na vista e não reparas na trave que está na tua? Como podes dizer a teu irmão: ‘Irmão, deixa-me tirar o argueiro que tens na vista’, se tu não vês a trave que está na tua?” – vers. 41-42), embora abordem um tema um pouco diferente, devem referir-se igualmente à ação desses “falsos mestres”, orgulhosos e autossuficientes, que se apresentam como donos da comunidade e referência para os seus irmãos. São gente cheia de certezas e de seguranças, que “nunca se engana e raramente tem dúvidas”, que impõe aos outros as suas convicções, que passa a vida a avaliar o comportamento dos outros, a julgá-los e a condená-los. Consideram-se “iluminados” e atuam com “tiques” de autoritarismo, de intransigência, de intolerância; não conhecem o amor, a bondade, a misericórdia, a compreensão. Mais: são incapazes de aplicar a si próprios os mesmos critérios de exigência que aplicam aos outros. Têm “telhados de vidro”, mas não veem os seus erros, por muito graves que eles sejam; só veem as falhas dos outros. No entendimento de Jesus, os que assim atuam são (a palavra é dura, mas não a podemos “branquear”) “hipócritas”: o termo não designa só o homem dissimulado, falso, cujos atos não correspondem ao seu pensamento e às suas palavras, mas equivale ao termo aramaico “hanefa” que, no Antigo Testamento, significa, ordinariamente, “perverso”, “ímpio”. Pode o verdadeiro discípulo de Jesus ser “perverso” e “ímpio”? Na comunidade de Jesus não há lugar para esses “juízes”, intolerantes e intransigentes, que estão sempre à procura da mais pequena falha dos outros para condenar, mas que não estão preocupados com os erros e as falhas – às vezes bem mais graves – que eles próprios cometem. Na perspetiva de Jesus, quem não está numa permanente atitude de conversão e de transformação de si próprio não tem qualquer autoridade para criticar os irmãos.

Na segunda parte do Evangelho deste domingo, Jesus apresenta os critérios para discernir aqueles que, dentro e fora da comunidade cristã, são “bons mestres” ou “falsos mestres” (vers. 43-45). Jesus utiliza duas pequenas parábolas para exemplificar o seu pensamento: na primeira, fala de árvores boas que dão bons frutos e de árvores más que dão maus frutos (vers. 44-44); na segunda, fala do coração do homem, de onde saem bons ou maus sentimentos, bons ou maus pensamentos, bons ou maus gestos, boas ou más palavras. Neste contexto, parece dever ligar-se os “bons frutos” com a verdadeira proposta de Jesus: dá bons frutos quem tem o coração cheio da mensagem de Jesus e a testemunha fielmente com palavras e com gestos; e essa mensagem não pode gerar senão união, fraternidade, partilha, amor, reconciliação, vida nova. Mas quando as palavras ou os gestos de um “mestre” geram divisão, tensão, desorientação, confrontação na comunidade, feridas que causam sofrimento, elas revelam um coração cheio de egoísmo, de orgulho, de amor próprio, de arrogância, de autossuficiência: cuidado com esses “mestres”, pois eles não são verdadeiros.

 

INTERPELAÇÕES

  • De entre os diversos temas que Jesus tratou naquela “formação” aos discípulos que é o “sermão da planície”, está o da confiança que podemos ou não ter quando se trata de apostar em líderes humanos. Trata-se de vivermos permanentemente desconfiados, farejando “teorias da conspiração” por todo o lado? Trata-se de vivermos a cada passo prisioneiros do medo de sermos enganados, como se a mentira e o dolo estivessem à espreita ao dobrar de cada esquina, prontos a aproveitar-se de nós? Trata-se de olharmos para o mundo como um espaço hostil, cheio de gente que só quer o nosso mal e que está sempre disposta a atacar a nossa fé, as nossas convicções, os nossos valores? Não, não se trata de nada disso. Trata-se de vivermos com critérios, de termos ideias claras do que queremos e de caminharmos, serena mas decididamente, em direção à verdade, à luz, à vida com sentido. Somos gente atenta, com sentido crítico, que sabe para onde vai, que não se deixa manipular, que confia nos outros, mas que também procura avaliar criteriosamente aquilo que ouve e que vê enquanto caminha?
  • “Poderá um cego guiar outro cego? Não cairão os dois nalguma cova?” – pergunta-nos Jesus. Nem todos aqueles que se propõem ajudar-nos a discernir o caminho que conduz à vida são “cegos”; mas há sempre pessoas que se arvoram em “guias”, em líderes, em “mestres”, que nos apontam caminhos sem saída. Às vezes é por ignorância e impreparação; outras vezes é para concretizar os seus projetos e os seus calendários pessoais; e algumas vezes é para se aproveitarem de nós. Quando nos deixamos conduzir por “guias” desses – sejam “guias” políticos, sejam “guias” religiosos, sejam aqueles “guias” de opinião que se propõem dizer-nos o que fazer para acertar os nossos comportamentos com a moda e os costumes vigentes –, o mais provável, segundo Jesus, é tropeçarmos, magoarmo-nos seriamente e não chegarmos a lado nenhum. Eles podem, com as suas indicações inadequadas, levar-nos a falhar redondamente o nosso caminho. Conhecemos “guias” desses? Estamos dispostos a colocar a nossa vida, de forma ligeira e irresponsável, nas mãos de alguém que nos aponta caminhos errados?
  • “Porque vês o argueiro que o teu irmão tem na vista e não reparas na trave que está na tua? Como podes dizer a teu irmão: ‘Irmão, deixa-me tirar o argueiro que tens na vista’, se tu não vês a trave que está na tua?” – pergunta-nos Jesus. É verdade: há pessoas que passam a vida a avaliar, a apontar os males, a colocar rótulos, a criticar os outros. Julgam e condenam sem misericórdia e sem compaixão. São ríspidas e amargas; não conhecem ou não percebem a bondade e a ternura de Deus por todos os seus filhos. Em contrapartida, não se detêm um minuto a olhar para as suas próprias falhas, muitas vezes mais graves do que aquelas que apontam aos outros. Exigem dos outros uma mudança que eles não estão disponíveis para fazer, no que diz respeito à sua própria vida. Jesus chama-lhes “hipócritas”: são, na avaliação de Jesus, gente falsa, maldosa, perversa. Isto aplica-se, de alguma forma, a nós? Como encaramos as falhas, os erros, as pequenas e grandes imperfeições dos irmãos que caminham ao nosso lado? Somos tão exigentes connosco como somos com os outros?
  • Outro traço daqueles que só veem o “argueiro” que o irmão tem na vista, mas não veem a “trave” que perturba a visão que eles próprios têm do mundo e dos outros, é a arrogância. Tratam os outros com sobranceria e consideram que só eles conhecem o bem e o mal, o que está errado e o que está certo, o que deve ser permitido e o que deve ser proibido. São as pessoas das certezas absolutas, cheias de presunção, com “tiques” autoritários. Impõem aos outros as suas opiniões, os seus valores, as suas convicções, a sua própria forma de ver o mundo e a vida. Na comunidade cristã, estabelecem preceitos, exigências, práticas com as quais Jesus nunca sonhou e que, em muitos casos, contradizem o Evangelho e o estilo de Jesus. Consideram-se as únicas vozes autorizadas de Deus e procuram “vender” aos outros a sua própria imagem de Deus. Isto aplica-se, de alguma forma, a nós? Procuramos impor aos outros as nossas certezas, sem nos deixarmos nós próprios questionar pelas visões diferentes que os outros possam ter sobre a fé ou sobre a vida?
  • Jesus fala-nos, ainda, de “frutos bons” e de “frutos maus” que brotam das palavras e dos gestos das pessoas. Remete-nos para o interior do ser humano, para o “coração”, na antropologia semita o o centro onde nascem os pensamentos, os projetos, as decisões, as vontades, as ações do homem. O egoísmo, a intolerância, o orgulho, a indiferença, brotam de um coração mau, fechado a Deus e às suas indicações; a bondade, o amor, a misericórdia, a partilha, o perdão, brotam de um coração bom, que funciona ao ritmo de Deus. Nas palavras de Jesus há um apelo implícito a purificarmos e a renovarmos o coração, a convertermo-nos ao Evangelho e ao dinamismo do Reino de Deus. Vivemos em atitude permanente de conversão, dispostos a questionar a cada instante as nossas motivações, os nossos desejos, os nossos pensamentos, as nossas certezas, as nossas práticas?
  • Há um critério simples para definirmos se as indicações que recebemos dos “guias” ou dos “mestres” com os quais nos cruzamos está certa ou está errada, é aproveitável ou é perniciosa: a consonância com o Evangelho, com a proposta de Jesus. Jesus é o nosso verdadeiro “mestre”, o nosso verdadeiro “guia”. Uma indicação que tenha a marca de Jesus e que esteja em consonância com os valores que Jesus propunha, com as suas palavras e com os seus gestos, é uma indicação que nos faz bem, que nos abre as portas para uma vida plenamente realizada; uma indicação que vai contra o Evangelho e que vai contra o “estilo” de Jesus, é algo que não nos fará bem e que poderá atirar-nos para caminhos sem saída. O Evangelho de Jesus é, para nós, critério para definirmos os valores que abraçamos ou que abandonamos?

 

ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 8.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

 

A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

Ao longo dos dias da semana anterior ao 8.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

 

UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

Grupo Dinamizador:
José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
www.dehonianos.org