ANO C
12.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Tema do 12.º Domingo do Tempo Comum
A liturgia do décimo segundo domingo comum convida-nos a mergulhar um pouco mais no mistério de Jesus. O objetivo não é ampliarmos conhecimentos sobre uma figura histórica ou cunharmos fórmulas abstratas de fé; mas é “acreditarmos” em Jesus, tornarmo-nos discípulos, caminharmos atrás d’Ele no caminho que leva à vida verdadeira.
No Evangelho Jesus confronta os discípulos com uma questão decisiva: “quem dizeis que Eu sou, que lugar ocupo eu no vosso projeto de vida?” Depois, convida-os a ir com Ele até Jerusalém, até à cruz, até ao dom total da vida por amor. Jesus garante aos discípulos que uma vida vivida em chave de amor, de serviço, de entrega, de dom, não é uma vida desperdiçada; mas é uma vida plenamente realizada.
Na primeira leitura o profeta Zacarias desafia os habitantes de Jerusalém a olharem para um misterioso profeta “trespassado”, cuja entrega se transformou em fonte de vida nova para os seus irmãos. João, o autor do Quarto Evangelho, identificará essa misteriosa figura profética com o próprio Cristo.
Na segunda leitura Paulo convida os cristãos das comunidades da Galácia a “revestirem-se” de Cristo. “Revestir-se de Cristo” é fazer de Cristo a sua referência, viver em comunhão com Ele, caminhar ao ritmo d’Ele, abraçar o projeto que Ele veio propor. Os que fazem essa opção entram numa grande família de irmãos, iguais em dignidade e herdeiros da vida em plenitude.
LEITURA I – Zacarias 12,10-11;13,1
Eis o que diz o Senhor:
«Sobre a casa de David e os habitantes de Jerusalém
derramarei um espírito de piedade e de súplica.
Ao olhar para Mim, a quem trespassaram,
lamentar-se-ão como se lamenta um filho único,
chorarão como se chora o primogénito.
Naquele dia, haverá grande pranto em Jerusalém,
como houve em Hadad-Rimon, na planície de Megido.
Naquele dia, jorrará uma nascente para a casa de David
e para os habitantes de Jerusalém,
a fim de lavar o pecado e a impureza.
CONTEXTO
Pelos dados que nos é possível apurar, a partir do livro que a tradição lhe atribui, o profeta Zacarias, filho de Baraquias (cf. Zc 1,1.7), exerceu a sua missão profética em Jerusalém, no pós-exílio, na época do rei persa Dario. A missão de Zacarias prolongou-se por cerca de dois anos (entre 520 e 518 a.C.). Foi contemporâneo do profeta Ageu. Teve um papel preponderante na reconstrução do Templo de Jerusalém, juntamente com Ageu (cf. Esd 5,1; 6,14). Na linha dos grandes profetas, prega a conversão, formula exigência éticas, critica o culto vazio e injusto. Refere-se à vinda de um enviado, a que chama “Gérmen” (cf. Zc 3,8), através do qual Deus afastará a iniquidade do país “num único dia”. O Templo irá ser reconstruído (cf. Zc 1,16-17), a Terra será purificada e Jerusalém voltará a ser a cidade onde Deus reside no meio do seu Povo.
No entanto, a mensagem “deste” Zacarias apareceria apenas nos cap. 1 a 8. Os cap. 9 a 14 parecem ser uma outra coleção de textos, que provêm de um ou, mais provavelmente, de vários autores tardios. Costuma falar-se deste conjunto de textos usando a designação “Deutero-Zacarias”.
Alguns situam este bloco na época de Alexandre Magno (332-300 a. C.).
O texto que nos é proposto como primeira leitura neste décimo segundo domingo comum integra o bloco do Deutero-Zacarias (cf. Zc 9,1-14,21). Mais especificamente, faz parte de um conjunto de oráculos (cf. Zc 12,1-14,21) que se referem à salvação e glória de Jerusalém.
MENSAGEM
O profeta começa por anunciar que Deus vai derramar, sobre a casa de David e sobre os habitantes de Jerusalém, “um espírito de piedade e de súplica” (Zc 12,10a). Esse espírito irá provocar uma transformação interior que levará à conversão e recolocará a comunidade israelita na órbita de Deus, numa atitude de abertura às indicações de Deus.
A transformação operada levará o povo a olhar para aquele que trespassaram lamentando-o “como se lamenta um filho único” e chorando-o “como se chora o primogénito” (Zc 10b). Quem é este “trespassado”? O texto parece inicialmente identificá-lo com o próprio Deus (“ao olhar para Mim, a quem trespassaram”); mas, logo a seguir, a frase distingue de novo Deus e o misterioso personagem evocado. O “para mim” significa, provavelmente, que o próprio Deus Se sente atingido pela morte infligida ao seu enviado.
Alguns identificam este mártir inocente aqui referido com o rei Josias, morto em Megido em combate contra os egípcios no ano 609 a.C. (cf. 2 Re 23,29-30); outros consideram que a figura se inspira no sumo sacerdote Onias III, assassinado por causa da sua fidelidade à Aliança, ao Templo e aos valores do povo judaico (cf. 2 Mac 4,34). O mais provável, contudo, é que esse “trespassado” seja um qualquer profeta anónimo da época de Zacarias por cuja morte os habitantes de Jerusalém se tornaram responsáveis. A figura que melhor ilumina esta passagem ainda é a do “servo sofredor” do Deutero-Isaías, mesmo se os termos aqui utilizados são bastante diferentes dos que aparecem no quarto cântico do Servo de Javé (cf. Is 52,13-53,12). Como acontece com o “servo de Javé”, o sacrifício deste mártir inocente é fonte de transformação e de purificação dos corações (cf. Zc 12,10; 13,1).
Note-se ainda que, nestes breves versículos, a “casa de David” é repetidamente evocada (cf. Zc 12,7.8.10.12; 13,1). Provavelmente haverá aqui a sugestão de uma ligação entre a figura do “trespassado” e a promessa messiânica. João, o autor do Quarto Evangelho, verá em Jesus, morto na cruz com o coração trespassado pela lança do soldado, a concretização da figura aqui evocada (cf. Jo 19,37).
INTERPELAÇÕES
- Não é fácil determinar, a partir do texto de Zacarias, quem é esse misterioso “trespassado” de cuja morte o povo de Judá é responsável. No entanto, essa figura faz-nos pensar em tantos e tantos “profetas” que, ao longo dos séculos, têm dado testemunho da verdade de Deus no mundo e que, por causa do seu testemunho incómodo, são incompreendidos, contestados, ridicularizados, condenados e até mesmo assassinados. Em muitos casos, só tarde de mais os homens conseguem perceber a verdade das palavras e do testemunho desses arautos de Deus. Até na comunidade cristã temos por vezes dificuldade em perceber que essas figuras incómodas que abalam a nossa “ordem”, que põem em causa as nossas certezas e seguranças, que mexem com a nossa “fé” certinha e morna, muitas vezes são-nos enviados por Deus para nos pedir uma maior fidelidade ao Evangelho. Conhecemos figuras destas? Como as tratamos e como acolhemos as suas interpelações? Deixamo-nos questionar pelos desafios que elas nos trazem, mesmo quando isso põe em causa o estilo de vida que levamos e os valores sobre os quais assentamos a nossa existência?
- No texto de Zacarias, Deus parece identificar-se com este “trespassado” (“ao olhar para Mim, a quem trespassaram”). Os que trataram mal o “profeta” trataram mal a Deus; os que ignoraram o “profeta” ignoraram o próprio Deus; os que rejeitaram o “profeta” rejeitaram o próprio Deus. Temos consciência de que recusar os desafios que o “profeta” nos traz é recusar as propostas e as indicações do próprio Deus? Por outro lado, a identificação de Deus com o “profeta” significa que este nunca estará só face ao ódio do mundo. Deus está do lado dele e fará com que a maldade, a mentira e a morte não tenham a última palavra. Acreditamos que o testemunho profético, mesmo quando cumprido na dor e na incompreensão, não é um fracasso, mas é fonte de vida nova para os homens e para o mundo?
- Quem, é chamado a ser “profeta”? Todos os homens e mulheres a quem Deus pede que sejam no mundo testemunhas do Bem e da Verdade. Isto inclui naturalmente todos aqueles que, no dia do seu batismo, foram ungidos com o óleo do Crisma e constituídos “profetas” à imagem de Jesus. Eles receberam, nesse dia, a missão de serem no mundo sinais de Deus, da verdade de Deus, da luz de Deus. Como temos “cumprido” e vivido a nossa missão profética? Na fidelidade e no compromisso, ou na preguiça e no comodismo? No medo que paralisa, ou na inquebrantável confiança no Deus que está ao nosso lado?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 62 (63)
Refrão: A minha alma tem sede de Vós, meu Deus.
Senhor, sois o meu Deus: desde a autora Vos procuro.
A minha alma tem sede de Vós.
Por Vós suspiro,
como terra árida, sequiosa, sem água.
Quero contemplar-Vos no santuário,
para ver o vosso poder e a vossa glória.
A vossa graça vale mais que a vida:
por isso os meus lábios hão de cantar-Vos louvores.
Assim Vos bendirei toda a minha vida
e em vosso louvor levantarei as mãos.
Serei saciado com saborosos manjares
e com vozes de júbilo Vos louvarei.
Porque Vos tornastes o meu refúgio,
exulto à sombra das vossas asas.
Unido a Vós estou, Senhor,
a vossa mão me serve de amparo.
LEITURA II – Gálatas 3,26-29
Irmãos:
Todos vós sois filhos de Deus
pela fé em Jesus Cristo,
porque todos vós, que fostes batizados em Cristo,
fostes revestidos de Cristo.
Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre,
não há homem nem mulher;
todos vós sois um só em Cristo Jesus.
Mas, se pertenceis a Cristo,
sois então descendência de Abraão,
herdeiros segundo a promessa.
CONTEXTO
Os gálatas eram um povo de origem céltica que, nos começos do séc. III a.C., se dirigiu para oriente, atravessou a Macedónia e chegou à Ásia Menor (atual Turquia). Depois de algumas vicissitudes, os gálatas fixaram-se nos planaltos da Anatólia, no coração da Ásia Menor, na região de Ancira (atual Ancara), que se tornou a capital do reino gálata. Em 189 a.C., os gálatas instalados nessa região foram derrotados pelos romanos; mas foi-lhes concedida ampla autonomia. O rei gálata Amintas, ao morrer (ano 25 a.C.), legou a Roma os seus territórios. Desde então, a Galácia ficou sendo província romana.
O livro dos Atos dos Apóstolos refere-se a mais do que uma passagem de Paulo na região da Galácia. No decurso da sua primeira viagem apostólica, Paulo evangelizara já o sul da província romana da Galácia: Pisídia, Licaónia, Frígia (cf. At 13,14-25); mas foi nas suas segunda e terceira viagem missionária que ele passou pelo norte da região da Galácia (cf. At 16,6; 18,23).
A Carta aos Gálatas sugere que o apóstolo, ao atravessar a Galácia, se deteve algum tempo na região, afetado por um problema de saúde (cf. Gl 4,13). Acolhido pela generosa hospitalidade das gentes da região, Paulo anunciou-lhes o Evangelho. Do anúncio de Paulo nasceram diversas comunidades cristãs. No entanto, Paulo não teve então oportunidade de ficar entre os gálatas muito tempo, deixando-lhes uma preparação cristã incipiente. Teria sido no decurso da sua terceira viagem missionária que Paulo escreveu aos gálatas, instruindo-os sobre diversas questões da fé. Estaríamos aí pelos anos 56-57, pouco antes da redação da Carta aos Romanos.
O que é que motivou Paulo a escrever esta carta? O apóstolo soube, a dada altura, que alguns pregadores cristãos tinham passado nas comunidades cristãs da Galácia e deixado um rasto de confusão. Por aquilo que Paulo diz na Carta, percebe-se perfeitamente que se trata de “judaizantes”: cristãos de origem judaica que procuravam impor a prática da Lei de Moisés (cf. Gl 3,2; 4,21; 5,4) e, em particular, a circuncisão (cf. Gl 2,3-4; 5,2; 6,12). Esses “judaizantes” condenavam Paulo e afirmavam que ele não estava em comunhão com os outros apóstolos.
Paulo estava convencido de que a circuncisão não era importante para a adesão a Cristo. A Lei moisaica tinha sido superada pela novidade de Jesus Cristo. Os gálatas não deviam deixar-se enganar por aqueles que queriam impor-lhes a observância da Lei de Moisés. Paulo avisa que, tanto os ritos judaizantes, como os rituais laxistas do paganismo, apenas prenderão os gálatas numa escravatura da qual Cristo já os tinha libertado. O tom de Paulo é firme e veemente: era a liberdade dos gálatas que estava em causa.
O texto que a liturgia deste domingo nos propõe como segunda leitura integra a segunda parte da Carta aos Gálatas (cf. Gl 2,15-4,31). Nesta secção, Paulo desenvolve o tema central da carta: a salvação chega-nos por Jesus Cristo, que deu a sua vida para libertar os homens do pecado. Quem salva é Cristo e não a Lei.
Nos versículos que antecedem o nosso texto, Paulo comparara a Lei a um “carcereiro” (cf. Gl 3,23) e a um “pedagogo” greco-romano (cf. Gl 3,24). Estas duas imagens são bem elucidativas: o carcereiro da época era, com muita frequência, exemplo de crueldade; o pedagogo (geralmente um escravo pouco instruído que acompanhava a criança à escola e a mantinha disciplinada) também não era muito apreciado e evocava a imagem de reprimendas e castigos. É verdade, considera Paulo (cf. Gl 3,25), que é melhor ser conduzido pela mão do que perder-se no caminho; mas seria uma estupidez aspirar a viver sempre no cárcere ou considerar como um ideal ser sempre conduzido pela mão de um tutor, sem experimentar a liberdade.
MENSAGEM
Ao aderirem a Cristo, os gálatas encontraram a vida plena. Já não precisam do “pedagogo” – que é a lei de Moisés – para os conduzir. Quando encontraram Cristo, atingiram a “maioridade” e ficaram da posse de todos os seus direitos, enquanto filhos e enquanto herdeiros.
A adesão plena a Cristo deu-se no momento do batismo. Ao receberem o batismo, os crentes foram “revestidos de Cristo” e tornaram-se “filhos de Deus” (vers. 27). Ser “revestido de Cristo” significa que, entre a pessoa batizada e Cristo se estabeleceu uma relação que não é apenas exterior, mas que toca o âmago da existência. Paulo, noutra passagem, expressa essa identificação entre o batizado e Cristo de uma forma muito bela: “já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Pelo batismo, o cristão assume a existência do próprio Cristo e torna-se, como Ele, uma pessoa que acolhe plenamente a vontade de Deus, servindo os irmãos. O batizado identifica-se plenamente com Cristo, escuta-O, vive ao seu estilo, em plena comunhão com Ele. Na pessoa que é batizada, circula a vida de Cristo: é como uma veste que cobre o crente da cabeça aos pés e que ele nunca deve tirar.
A primeira consequência que resulta desta nova condição é que o cristão é livre: se a vida que circula nele é a vida que recebeu do próprio Cristo, o crente já não está sujeito à escravatura do egoísmo, do pecado e da morte. Caminha, conduzido pelo próprio Cristo, ao encontro de uma vida plena e total.
Por outro lado, a identificação plena com Cristo elimina toda e qualquer discriminação entre os batizados. É a mesma vida, a de Cristo, que circula em todos. Não há fronteiras de raças (“não há judeu nem grego”), não há barreiras sociais (“não há escravo nem livre”), não há diferenças de condição sexual (“não há homem nem mulher”) porque todos são um só em Cristo (vers. 28). Todos são “filhos”, com igual direito quanto à herança, pois é o mesmo Deus que é Pai de todos e que oferece a todos a mesma vida em plenitude.
Para os gálatas e para os crentes de todas as épocas, fica no ar a questão: depois de conhecermos tudo isto, estamos dispostos e voltar à escravidão?
INTERPELAÇÕES
- O que é um “cristão”? É alguém cujo nome consta do livro de registos de batismo de uma determinada paróquia? É alguém que, uma vez por semana, no “dia do Senhor”, “assiste” à eucaristia e depois considera a sua vivência cristã “arrumada” por toda a semana? É alguém que “cumpre” regularmente os mandamentos da Igreja? É alguém com ligação direta a alguns “santinhos” que são a grande referência da sua fé? Para Paulo, o “cristão” é simplesmente aquele que, no dia do seu batismo, se “revestiu” de Cristo e nunca mais despiu essa “veste”; é aquele que faz de Cristo a sua referência: vive de Cristo e em comunhão com Cristo, escuta as palavras de Cristo, caminha ao ritmo de Cristo, cultiva os valores de Cristo, faz da vida um dom de amor a Deus e aos homens, como Cristo fez. Como é que eu sou “cristão”? Que lugar ocupa Jesus Cristo no quadro da minha fé?
- “Revestir-se de Cristo” é libertar-se de tudo aquilo que nos torna escravos: o egoísmo, o orgulho, a autossuficiência, a ganância, o comodismo, a ambição desmedida, a violência, o ódio, as más ações… Numa das suas cartas, Paulo convida os cristãos a despirem-se “do homem velho, com as suas ações”, e a revestirem-se “do Homem novo”, isto é, o homem que vive revestido “de sentimentos de misericórdia, de bondade, de humildade, de mansidão, de paciência” (Cl 3,9-12). De que estamos vestidos? Aqueles que caminham ao nosso lado e que lidam connosco a cada instante, que dizem de nós? Reconhecem Cristo em nós, no que fazemos, no que dizemos, no que sentimos, no que testemunhamos?
- A identificação com Cristo faz de todos os batizados iguais em dignidade. Na comunidade de Jesus, portanto, não faz sentido qualquer tipo de discriminação. “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem ou mulher”; todos são “um só em Cristo Jesus”. Nós cristãos temos sabido tirar as consequências deste facto? Como acolhemos os mais humildes, os estrangeiros, os divorciados recasados, os desprezados, os sem voz e sem vez na sociedade ou nas Igrejas? Como acolhemos e como integramos os “diferentes”, aqueles que têm vidas consideradas “irregulares”, aqueles que a sociedade condena? A nossa comunidade cristã é uma casa “de todos” e “para todos”?
- Paulo, por diversas vezes, entrou em polémica com os cristãos de origem judaica que viviam agarrados a práticas herdadas da lei de Moisés e que consideravam que, sem elas, ninguém podia ter acesso à salvação. Para Paulo, a salvação era um puro dom de Deus, oferecido aos homens através de Jesus Cristo; e, na vivência da fé, ficar agarrado a hábitos enraizados, a preconceitos descabidos, a tradições datadas, a rituais obsoletos, era algo que não fazia sentido nem ajudava a viver a fé como uma experiência de liberdade e de vida plena. Como é que Paulo consideraria hoje algumas das nossas formas de viver a fé, algumas das nossas práticas de piedade, algumas das nossas tradições religiosas?
ALELUIA – João 10,27
Aleluia. Aleluia.
As minhas ovelhas escutam a minha voz, diz o Senhor;
Eu conheço as minhas ovelhas e elas seguem-Me.
EVANGELHO – Lucas 9,18-24
Um dia, Jesus orava sozinho,
estando com Ele apenas os discípulos.
Então perguntou-lhes:
«Quem dizem as multidões que Eu sou?»
Eles responderam:
«Uns, João Baptista; outros, que és Elias;
e outros, que és um dos antigos
profetas que ressuscitou».
Disse-lhes Jesus:
«E vós, quem dizeis que Eu sou?»
Pedro tomou a palavra e respondeu:
«És o Messias de Deus».
Ele, porém, proibiu-lhes severamente
de o dizerem fosse a quem fosse
e acrescentou:
«O Filho do homem tem de sofrer muito,
ser rejeitado pelos anciãos,
pelos príncipes dos sacerdotes e pelos escribas;
tem de ser morto e ressuscitar ao terceiro dia».
Depois, dirigindo-Se a todos, disse:
«Se alguém quiser vir comigo,
renuncie a si mesmo,
tome a sua cruz todos os dias e siga-Me.
Pois quem quiser salvar a sua vida, há de perdê-la;
mas quem perder a sua vida por minha causa,
salvá-la-á».
CONTEXTO
O episódio que o Evangelho deste domingo nos apresenta é comum aos três Sinóticos. Mateus e Marcos situam-no na região de Cesareia de Filipe (cf. Mt 16,13-20; Mc 8,27-30), a cidade construída por Herodes Filipe no início da era cristã, localizada no Norte da Galileia, no sopé do Monte Hermon, junto de uma das nascentes do rio Jordão (na zona da atual Bânias); Lucas, contudo, não se preocupa em indicar o lugar geográfico onde decorreu este diálogo entre Jesus e os discípulos. Refere somente que Jesus tinha ido orar e que os discípulos estavam com Ele.
Estamos na fase final da etapa da Galileia. Até agora Jesus tinha andado pelas vilas e aldeias da Galileia a cumprir o seu programa e a levar a Boa Nova aos pobres, aos marginalizados, aos oprimidos (cf. Lc 4,16-21). Rodeavam-no alguns discípulos, gente que se tinha encontrado com Ele, que tinha escutado o seu anúncio do Reino de Deus e que tinha decidido embarcar nessa aventura.
Cumprida a etapa da Galileia, o projeto devia avançar para uma nova fase. Jesus tinha agora a intenção de se dirigir a Jerusalém e de enfrentar as autoridades judaicas. Era em Jerusalém que tudo se ia decidir; era lá que se consumaria o êxito ou o fracasso do Reino.
Antes de começar a caminhar para Jerusalém, Jesus questiona os discípulos. Depois de tudo o que tinham testemunhado, que pensavam eles de Jesus e do seu projeto? Como é que eles viam Jesus? Estariam disponíveis para O seguir até Jerusalém e para ficar ao lado d’Ele quando chegasse o momento de enfrentar a cruz?
MENSAGEM
A narração lucana começa com uma referência à oração de Jesus (vers. 18). Lucas, com frequência, põe Jesus a rezar antes de acontecimentos decisivos (cf. Lc 5,16; 6,12; 9,28-29; 10,21; 11,1; 22,32.40-46; 23,34). A oração é o lugar do reencontro de Jesus com o Pai; depois de rezar, Jesus tem sempre uma mensagem importante – uma mensagem que vem do Pai – para comunicar aos discípulos. Devemos, portanto, encarar o diálogo que vai seguir-se como um momento importante da revelação de Jesus.
O diálogo de Jesus com os discípulos consta de três momentos. No primeiro, o diálogo centra-se na resposta à questão: “quem é Jesus?” (vers. 18-20); no segundo, Jesus anuncia aos discípulos a sua Paixão e morte, em Jerusalém (vers. 21-22); no terceiro, Jesus define as condições que os discípulos devem assumir para seguirem Jesus (vers. 23-24).
Para início da conversa, Jesus lança aos discípulos uma dupla questão (vers. 18-20): o que é que as pessoas dizem d’Ele e o que é que os próprios discípulos pensam d’Ele?
A opinião dos “homens” sobre Jesus reflete entendimentos e visões diversas. Os contemporâneos de Jesus veem-nO em continuidade com o passado (“é João Baptista”, “Elias”, ou “algum dos profetas” – vers. 19). Eles não captam a condição única de Jesus, a sua novidade, a sua originalidade. Reconhecem apenas que Jesus é um homem convocado por Deus e enviado ao mundo com uma missão – como os profetas do Antigo Testamento… Mas não vão além disso. Na perspetiva dos “homens”, Jesus é apenas alguém bom, justo, generoso, que escutou os apelos de Deus e que Se esforçou por ser um sinal vivo de Deus, como tantos outros homens antes d’Ele. É muito, mas não é o suficiente: significa que os “homens” não entenderam a novidade de Jesus, nem a profundidade do seu mistério.
A opinião dos discípulos acerca de Jesus vai muito além da opinião comum. Eles acompanharam Jesus por toda a Galileia, conviveram com Ele noite e dia, escutaram as suas palavras e testemunharam os seus gestos… É natural que tenham visto em Jesus uma dimensão que as outras pessoas ainda não captaram. Pedro, porta-voz do grupo dos discípulos, resume o sentir da comunidade do Reino na expressão: “(És) o Messias de Deus” (vers. 20). Dizer que Jesus é o “Messias” (o Cristo, o “ungido de Deus”) significa dizer que Ele é esse libertador que Israel esperava, enviado por Deus para libertar o seu Povo e para lhe oferecer a salvação definitiva.
A resposta de Pedro estava correta. No entanto, a compreensão de Jesus como Messias podia prestar-se a graves equívocos, numa altura em que o título de Messias estava conotado com esperanças político-nacionalistas. Por isso, os discípulos recebem ordens para não falarem disso a ninguém (vers. 21). Era preciso evitar equívocos que poderiam ter consequências nefastas.
Aliás, Jesus está consciente de que os próprios discípulos tinham ideias erradas acerca do Messias e da sua missão. Por isso, apressa-se a explicar-lhes que o seu messianismo não passa pelos triunfos políticos ou militares, mas pela cruz e pelo dom da vida. Depois dos confrontos que teve, por toda a Galileia, com os líderes religiosos judaicos, Jesus está bem consciente daquilo que o espera, se continuar a ser fiel ao projeto que o Pai lhe confiou. As lideranças recusam o Reino de Deus e irão fazer tudo para eliminar a proposta que Jesus traz. Por isso, para que tudo fique claro, fala aos discípulos do destino que o espera em Jerusalém. Mas deixa também claro que a sua entrega na cruz não é o ponto final da sua vida: Ele ressuscitará “ao terceiro dia”, porque a entrega da própria vida por amor é fonte de Vida definitiva (vers. 22).
Depois de anunciar o seu destino (que será cumprido, em obediência ao plano do Pai, no dom da própria vida em favor dos homens), Jesus convida os seus discípulos a seguir um percurso semelhante: se quiserem ser seus discípulos, têm de “renunciar a si mesmo”, de “tomar a cruz” e de segui-l’O no caminho do amor, da entrega e do dom da vida (vers. 23). Jesus não obriga ninguém, apenas apresenta a proposta; cada um, sabendo o que uma decisão desse tipo implica, tem de fazer a sua escolha.
O que é que significa, exatamente, renunciar a si mesmo? Significa renunciar ao seu egoísmo e autossuficiência, para fazer da vida um dom a Deus e aos outros. O discípulo de Jesus não pode viver fechado em si próprio, prisioneiro dos seus interesses e critérios pessoais, preocupado apenas em concretizar os seus projetos de riqueza, de segurança, de bem-estar, de domínio, de êxito, de triunfo… Aquele que opta pelo seguimento de Jesus passa a viver como Ele, colocando toda a sua existência ao serviço do projeto de Deus e do bem dos irmãos.
O que é que significa “tomar a sua cruz” e seguir Jesus? “Tomar a cruz” é estar disponível para fazer da própria vida, até às últimas consequências, um dom de amor. Foi isso que Jesus fez. Mas Jesus não viveu essa entrega por amor apenas no calvário; Ele gastou toda a sua vida, desde o seu nascimento até à sua morte, a fazer o bem. Tomar a própria cruz e seguir Jesus é fazer de toda a vida – diariamente, vinte e quatro horas por dia e não apenas pontualmente – um dom de amor, ao serviço de Deus e dos irmãos.
No final desta instrução, Jesus explica aos discípulos as razões pelas quais eles devem abraçar a “lógica da cruz”. Convida-os a entender que oferecer a vida por amor não é perdê-la, mas ganhá-la. Quem é capaz de dar a vida a Deus e aos irmãos, não fracassou; mas ganhou a Vida eterna, a Vida verdadeira que Deus oferece a quem caminha acordo com as suas propostas (vers. 24).
INTERPELAÇÕES
- Quem é Jesus? Como é que os homens do séc. XXI o veem? Muitos dos nossos contemporâneos – crentes, agnósticos ou mesmo ateus – veem em Jesus um homem bom, generoso, atento aos sofrimentos dos outros, que sonhou com um mundo diferente; outros veem em Jesus um admirável “mestre” de moral, que tinha uma proposta de vida “interessante”, mas que não conseguiu impor os seus valores; alguns veem em Jesus um admirável condutor de massas, que acendeu a esperança nos corações das multidões carentes e órfãs, mas que passou de moda quando as multidões deixaram de se interessar pelo fenómeno; outros, ainda, veem em Jesus um revolucionário, ingénuo e inconsequente, preocupado em construir uma sociedade mais justa e mais livre, que procurou promover os pobres e os marginais e que foi eliminado pelos poderosos, preocupados em manter o “status quo”. Que achamos destas “visões” sobre Jesus? Consideramo-las redutoras, ou exatas? Jesus terá sido apenas um “homem” que deixou a sua pegada na história humana, como tantos outros que a história absorveu e digeriu?
- “E vós, quem dizeis que Eu sou?” – perguntou Jesus diretamente aos seus discípulos nos arredores de Cesareia de Filipe. É uma pergunta decisiva, que deve ecoar, de forma constante, nos ouvidos e no coração dos discípulos de Jesus de todas as épocas. A nossa resposta a esta questão não pode ficar-se pela repetição papagueada de velhas fórmulas que aprendemos na catequese, ou pela reprodução impessoal de uma definição tirada de um qualquer tratado de teologia. A questão vai dirigida ao âmago do nosso ser e exige uma tomada de posição pessoal, um pronunciamento sincero, sobre a forma como Jesus toca a nossa vida. A resposta a esta questão é o passo mais importante e decisivo na vida de cada cristão. Quem é Jesus para nós? Que lugar ocupa Ele na nossa existência? Que valor damos às suas propostas? Que importância assumem os seus valores nas nossas opções de vida? Jesus é, para nós, a grande referência, o vetor à volta do qual o nosso mundo se constrói? Ele é para nós, de facto, “caminho, verdade e vida”?
- Jesus veio ter connosco para concretizar os planos do Pai e propor aos homens – através do amor, do serviço, do dom da vida – o caminho da salvação. Plenamente identificado e conformado com o projeto do Pai, Jesus não dá mostras de querer fugir ao seu destino de cruz; dispõe-se, com consciência plena do que O espera, a caminhar para Jerusalém, a enfrentar as autoridades civis e religiosas, a dar a própria vida para que seja possível o nascimento do Reino de Deus. Que significado e que lugar ocupam na nossa vida os projetos de Deus? Esforçamo-nos, como Jesus, por descobrir a vontade de Deus a nosso respeito e a respeito do mundo? Mantemo-nos atentos, em cada passo do nosso caminho, a esses “sinais dos tempos” através dos quais Deus nos interpela? Somos capazes de acolher e de viver com fidelidade e radicalidade as propostas de Deus, mesmo quando elas são exigentes e vão contra os nossos interesses e projetos pessoais?
- O que é que faz de nós verdadeiros discípulos de Jesus? Muitos de nós receberam uma catequese que insistia em ritos, em fórmulas, em práticas de piedade, em determinadas obrigações legais, mas que nem sempre punha em relevo o essencial do cristianismo: o seguimento de Jesus. No entanto, a identidade cristã constrói-se à volta de Jesus, do seu Evangelho, da sua proposta de vida. Sentimo-nos verdadeiramente discípulos de Jesus? Estamos disponíveis, de alma e coração, para ir atrás d’Ele no caminho da doação da vida e do amor até às últimas consequências?
- Jesus convida os seus discípulos a renunciarem a si mesmos… O que é “renunciar a si mesmo”? É não deixar que o egoísmo, o orgulho, o comodismo, a autossuficiência, a ambição, a mentira, dominem a nossa vida. O seguidor de Jesus não vive fechado na sua zona de segurança, a olhar para si mesmo, indiferente aos dramas que se passam à sua volta, insensível às necessidades dos irmãos, alheado das lutas e reivindicações dos outros homens; mas vive para Deus e na solidariedade, na partilha e no serviço aos irmãos. Até que ponto estamos disponíveis para renunciar a nós mesmos e para colocar a nossa vida ao serviço do projeto de Deus?
- Jesus também convida os seus discípulos a tomarem a cruz… O que é “tomar a cruz”? É amar até às últimas consequências, até à morte, se for necessário; é gastar cada instante da vida a servir, a amar, a cuidar, a fazer o bem… O seguidor de Jesus é aquele que está disposto a dar a vida para que os seus irmãos sejam mais livres e mais felizes. Por isso, o cristão não tem medo de lutar contra a injustiça, a exploração, a miséria, o pecado, mesmo que isso signifique enfrentar a morte, a tortura, as represálias dos poderosos. Aceitamos tomar cada dia a nossa cruz e a viver para os outros, como Jesus?
- De acordo com o testemunho de Lucas, Jesus mantinha um diálogo frequente e próximo com o Pai. Era nesses momentos de oração que Ele sentia especialmente o amor do Pai, tomava consciência do projeto do Pai e adquiria a força para obedecer incondicionalmente ao Pai. É na oração que nós procuramos perceber a vontade de Deus e encontrar o caminho do amor e do dom da vida? Nos momentos das decisões importantes da nossa vida, sentimos a necessidade de dialogar com Deus e de escutar o que Ele tem para nos dizer?
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 12.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
(em parte adaptadas de “Signes d’aujourd’hui”)
- A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 12.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.
- A CRUZ EM DESTAQUE E A FÉ EM DIÁLOGO.
“…Tome a sua cruz todos os dias e siga-Me…” Durante a celebração, pode-se pôr em destaque a cruz. Se houver cruz processional, pode ser colocada no espaço de entrada da igreja; assim, ao chegarem, os fiéis olharão logo de início para cruz. De seguida, como habitualmente, a cruz irá à frente na procissão de entrada; ou, como alternativa, pode permanecer na entrada e ser levada após o Evangelho.
“…E vós, quem dizeis que Eu sou?…” Como eco à questão de Jesus, a profissão de fé pode ser a mesma do ritual da Confirmação, dialogada sob a forma de pergunta/resposta.
- ORAÇÃO NA LECTIO DIVINA.
Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.
No final da primeira leitura:
“Pai, erguemos os olhos para a imagem do teu Filho na cruz e, no seu lado trespassado, descobrimos a relação vital entre a sua Páscoa e o nosso batismo. Nós Te damos graças pela salvação que assim Ele nos concedeu.
Nós Te pedimos pelas vítimas inocentes de todas as violências da nossa terra. Venha sobre nós e em nós o teu Espírito de paz”.
No final da segunda leitura:
“Pai, nós Te damos graças pelo nosso batismo e confirmação: pela água e pela unção fomos revestidos de Cristo, pertencemos-Lhe e n’Ele formamos um só povo.
Nós Te pedimos pelas nossas comunidades, que as classes sociais e as clivagens de toda a espécie podem levar à divisão. Que o teu Espírito nos mantenha sempre unidos”.
No final do Evangelho:
“Cristo Jesus, benditas sejas. Com o Apóstolo Pedro nós confessamos: Tu és o Messias de Deus. Nós Te damos graças pelo caminho que tomaste.
Nós Te pedimos: que o teu Espírito sustente a nossa fé, no meio das dúvidas que tantas vezes nos assaltam”.
- ORAÇÃO EUCARÍSTICA.
A Oração Eucarística II sublinha bem a liberdade de Cristo face à Paixão, anunciada no Evangelho de hoje: “no momento em que ia ser entregue e entrar livremente na sua paixão…”
- PALAVRA PARA O CAMINHO.
“E vós, quem dizeis que Eu sou?” Jesus põe-nos esta questão a nós, hoje. Que dizemos nós d’Ele, diante de Deus, no mais secreto do nosso ser? Que dizemos nós d’Ele, em família, aos nossos filhos, aos nossos amigos, aos nossos irmãos…? Quando a ocasião se apresenta (no nosso trabalho, nas nossas relações sociais…), ousamos anunciar claramente quem somos ou temos receio de dizer que somos de Cristo?
UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA
Grupo Dinamizador:
José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal