II – A ESPIRITUALIDADE DO NATAL

O tema de Cristo Luz do mundo é o aspeto teológico mais arcaico e mais presente na liturgia do Natal, especialmente na celebração da meia-noite. A comunidade renova o mistério da gruta de Belém, onde Cristo, Luz do mundo, nasce no meio da noite. Recupera-se assim o sentido da celebração judeo-cristã na gruta de Belém, à luz de círios e tochas, antes da santa sinaxe, em Jerusalém. Torna-se teológica a ideia da vitória da luz sobre as trevas, celebrada na Roma pagã, no solstício de Inverno. S. Máximo de Turim recorda: “O povo chama Sol novo (o Natal) e com tanta autoridade o confirma, que até os judeus e os pagãos estão de acordo com isso; devemos aceitar de boa mente essa perspetiva, porque, ao nascer o Salvador, não só se renova a salvação do género humano, mas também o esplendor do próprio Sol”

A liturgia atual recorda Is 9,2: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz…” e também Lc 2,9 “a glória do Senhor envolveu-os de luz“. O Prefácio I canta: “Nova luz brilhou sobre nós”. É a luz de Cristo, a luz da Revelação e a luz da Fé.

O Natal é também o início da restauração cósmica. O Verbo Encarnado une-se à natureza humana e, nela, a todo o homem e a todas as criaturas. Começa a normalização das relações com Deus, quebradas pelo pecado. Toda a criação participa na alegria do nascimento do Salvador. Canta um tropário bizantino:

“Que havemos de oferecer-Te, ó Cristo, por teres vindo à terra feito homem, por nós? Cada uma das criaturas, criada por Ti, te oferece uma oblação de ação de graças. Os Anjos oferecem-Te o seu cântico, o céu o seu astro; os Magos os seus presentes; os pastores a sua admiração; a terra a sua gruta; o deserto a manjedoira. E nós, que vamos oferecer-Te? Oferecemos-Te a Virgem Mãe”.

Com o dom de Maria, Nova Eva, começa a restauração do Cosmos e da História. É a teologia que também encontramos no Martirológio Romano. Tudo está orientado para o Messias: a criação, a história, os povos. O Verbo vem santificar o mundo com a sua piíssima vinda. No Prefácio II cantamos: “No mistério do seu nascimento, Aquele que, por sua natureza, era invisível tornou-Se visível aos nossos olhos. Gerado desde toda a eternidade, começou a existir no tempo, para renovar em Si a natureza decaída, restaurar o universo e reconduzir ao reino dos céus o homem perdido pelo pecado.”   

O “admirável comércio” (admirabile commercium) é a expressão que está no vértice da teologia e da espiritualidade do Natal. Refere-se ao misterioso intercâmbio que nos redimiu: Verbo fez-se carne e a quantos O receberam deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus. Deus fez-se humano para que o homem se torne divino. Em Cristo, o homem recupera a sua imagem, é recriado e regenerado no Verbo. A divindade-humanidade de Cristo abre ao cristão a capacidade de participar da natureza divina.

Tocamos aqui o grande princípio da graça e da santidade cristã, que se torna dinamismo eficaz por meio do Batismo: tornar-se filho de Deus, abrir o humano ao divino. O Natal é festa da dignidade do homem em Cristo, do seu novo nascimento. O amor de Deus regenerou o homem e deu-lhe uma possibilidade impensável. O Verbo “fez-se homem por nós, deu a sua vida por nós; elevou-nos até à união íntima com ele e trata-nos como os seus amigos mais queridos… Como tudo é comum entre o Pai, o Espírito Santo e o Filho, cabeça do Corpo Místico, do qual somos membros, tornamo-nos participantes da vida divina e, de algum modo, da natureza divina, divinae consortes naturae.” (Padre Dehon).

Fernando Fonseca, SCJ