Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo – Ano C [atualizado]

ANO C

34.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO

 

Tema da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo

A “Festa de Cristo Rei” foi instituída pelo Papa Pio XI, a 11 de dezembro de 1925, através da Carta Encíclica “Quas Primas”. Ao instituir esta festa, Pio XI quis propor ao mundo – saído há pouco da tragédia da I Guerra Mundial e mergulhado ainda em contradições que pareciam insanáveis – o regresso a Cristo, o reconhecimento da soberania de Cristo sobre a História e sobre a vida dos homens, o reencontro da humanidade com os valores cristãos e com a paz que só Cristo pode dar. Celebrada inicialmente no último domingo de outubro, esta festa acabou mais tarde por fixar-se no último domingo do ano litúrgico.

A primeira leitura recorda-nos o momento em que David foi ungido como rei de todo o Israel. Com David iniciou-se uma época de felicidade e de abundância que ficou na memória de todo o Povo de Deus. O reinado de David tornou-se símbolo e anúncio de um tempo novo, de uma era de justiça, de bem-aventurança e de paz sem fim. O Povo de Deus vivia dessa esperança e aguardava ansiosamente a sua concretização.

O Evangelho mostra a peculiar resposta de Deus à expetativa de Israel. Jesus é o “ungido de Deus”, o Messias-Rei enviado pelo Pai para inaugurar o reinado de Deus. Contudo, a realeza de Jesus soa estranha e paradoxal aos olhos do mundo: as armas que esse rei leva consigo são o amor e a misericórdia; a autoridade que esse rei reivindica é a do serviço simples e humilde; o trono que este rei ocupa é uma cruz onde Ele derrama o seu sangue em benefício de todos; os soldados que rodeiam esse rei são gente desarmada, que Ele irá enviar pelo mundo a anunciar o amor e a paz; os súbditos desse rei são todos aqueles que aceitam colocar as suas vidas ao serviço de Deus e dos irmãos. Decididamente, a realeza de Deus não funciona segundo a lógica dos grandes da terra.

Na segunda leitura, Paulo apresenta-nos um hino que celebra a grandeza universal de Cristo, aquele que tem soberania sobre toda a criação e que é a cabeça da Igreja. O hino exorta os crentes a fazerem de Cristo a sua referência e a viverem em comunhão com Ele. Por Cristo passa, indubitavelmente, o caminho que conduz à vida eterna.

 

LEITURA I – 2Samuel 5,1-3

Naqueles dias,
todas as tribos de Israel
foram ter com David a Hebron e disseram-lhe:
«Nós somos dos teus ossos e da tua carne.
Já antes, quando Saul era o nosso rei,
eras tu quem dirigia as entradas e saídas de Israel.
E o Senhor disse-te:
“Tu apascentarás o meu povo de Israel,
tu serás rei de Israel”».
Todos os anciãos de Israel foram à presença do rei, a Hebron.
O rei David concluiu com eles uma aliança diante do Senhor
e eles ungiram David como rei de Israel.

 

CONTEXTO

O Livro de Samuel (dividido em duas partes – 1Samuel e 2Samuel) situa-nos no período histórico que vai de meados do séc. XI a.C. até ao final do reinado de David (972 a.C.). Depois de apresentar diversas tradições históricas relativas ao período pré-monárquico (o tempo da instalação e da consolidação das tribos do Povo de Deus na terra de Canaan – cf. 1 Sm 1,1 – 7,17), narra-nos o início da experiência monárquica (eleição do rei Saul, os seus feitos militares, a derrota de Saul às mãos dos filisteus – cf. 1Sm 8,1 – 15,35) e a ascensão do rei David ao trono de Israel e de Judá (cf. 1Sm 16,1 – 2Sm 5,25). Na parte final da obra, o autor deuteronomista oferece-nos um conjunto de tradições sobre a realeza davídica (2Sm 6,1 – 24,25), incluindo o longo e conturbado processo de sucessão de David.

Por volta do ano 1007 a.C., o reino de Saul (que agrupava as tribos instaladas no norte e no centro da terra de Canaan) sofreu um rude golpe, com a morte do rei e de Jónatas (filho e natural sucessor de Saul) às mãos dos filisteus, numa batalha travada junto do monte Guilboá (cf. 1Sm 31). Por esta altura, em contrapartida, David já reinava (desde 1012 a.C.) sobre as tribos instaladas no sul do país (cf. 2Sm 2,1-4).

Ishboshet, um outro filho de Saul, foi escolhido para suceder a seu pai no trono de Israel; e ainda reinou dois anos sobre as tribos do norte e do centro (cf. 2Sm 2,8-11). Contudo, acabou por ter a oposição de Abner, chefe dos exércitos do norte, que ofereceu a David a autoridade sobre as tribos que formavam o reino de Saul (cf. 2Sm 3,12-21). Abner foi, entretanto, assassinado por Joab, general de David (cf. 2Sm 3,26-27). Pouco depois, também Ishboshet, o filho de Saul, foi assassinado (os teólogos deuteronomistas, responsáveis pela redação do livro de Samuel, garantem, no entanto, que David não teve nada a ver com esses atos violentos – cf. 2Sm 3,28-39; 4,1-12). Finalmente, os anciãos do norte – apostados em encontrar uma liderança forte que lhes permitisse resistir à pressão militar dos filisteus – decidiram propor a David que, além de ser rei de Judá, no sul, também aceitasse dirigir os destinos das tribos do norte e do centro.

É diante deste quadro histórico que a leitura de hoje nos coloca. David está em Hebron, o lugar onde está instalada a capital das tribos do sul. É aí que, pelo ano 1005 a.C., os representantes das tribos do norte e do centro se encontram com David e o convidam a reinar sobre todo o Israel.

 

MENSAGEM

A cena descrita – a apresentação dos anciãos das tribos do norte e do centro em Hebron para solicitarem a David que assuma o governo dos territórios que integravam o reino de Saúl – é, provavelmente, um facto histórico. De resto, o pedido que os representantes das tribos fazem a David parece bastante natural: além de ser um guerreiro inteligente e corajoso, David era bem conhecido das gentes do norte por ter passado algum tempo na corte do rei Saul (cf. 1Sm 16,14-23; 18,1-30; 19,1-7). David parecia ser, portanto, uma boa escolha para ocupar o trono de Saul.

Contudo, os autores deuteronomistas são teólogos e catequistas, antes de serem historiadores ou analistas políticos. Por isso, vão apresentar a realeza de David, não apenas como um desejo dos homens, mas sobretudo como uma decisão de Deus. Nesse sentido, colocam na boca dos anciãos de Israel a seguinte afirmação, dirigida a David: “o Senhor disse-te: ‘tu apascentarás o meu povo, de Israel, tu serás o rei de Israel’” (vers. 2). A unção de David como rei, mais do que uma conveniência política, é um facto religioso, uma escolha de Deus. David, o rei que vai reunir as coroas de Israel e de Judá, é o “eleito de Javé” para presidir aos destinos do Povo de Deus. A realeza de David é uma espécie de extensão da realeza de Deus. Doravante, o rei David será considerado o instrumento através do qual Deus apascenta o seu povo. É a primeira vez que as doze tribos do povo de Deus estarão unidas sob uma autoridade comum.

O reinado de David ficará na história do povo de Deus como um tempo ideal de prosperidade, de justiça, de abundância e de paz. Não esteve isento de conflitos internos, de injustiças e de lutas pelo poder; mas deixou uma marca imorredoira na memória do povo. David conquistou Jerusalém aos jebuseus e fez dessa cidade a capital do seu reino (cf. 2Sm 5,6-15); ampliou e consolidou as fronteiras do seu reino, submetendo os inimigos tradicionais do povo de Deus, nomeadamente os filisteus, os amonitas e os moabitas (cf. 2Sm 8,1-14; 10,1-19). Do ponto de vista religioso, o reinado de David foi a época em que todo o povo vivia unido à volta de Javé, na fidelidade à Aliança. O próprio rei assegurava que o povo não se desviasse dos compromissos assumidos para com Deus. Os teólogos de Israel chegarão a dizer que Javé, agradado com o seu servo David, lhe prometeu que haveria sempre um descendente da sua raça a presidir aos destinos do povo de Deus (cf. 2Sm 7).

No futuro, o reinado de David vai constituir como que uma miragem ideal para a qual os israelitas continuamente voltam os olhos; e, nas alturas mais dramáticas da sua história, o Povo de Deus passará a sonhar com um descendente de David que venha restaurar o reino ideal de seu pai. A catequese judaica explorará esse filão e falará, com frequência, de um “ungido de Deus” que irá sentar-se no trono de David, libertar Israel dos seus inimigos e inaugurar uma nova era de prosperidade e de paz.

 

INTERPELAÇÕES

  • Porque é que, na Solenidade de Jesus Cristo, rei do universo, a liturgia nos traz a memória de David, o rei ideal de Israel e de Judá? Porque a catequese cristã sempre viu em Jesus o “ungido de Deus” (o “Messias”), o descendente de David que Israel esperava ansiosamente para ocupar o trono de seu pai e inaugurar uma época nova de felicidade e de paz sem fim. De facto, depois de ter recebido o batismo no rio Jordão e de ter sido ungido pelo Espírito (cf. Mc 1,9-11), Jesus apareceu na Galileia a anunciar a chegada do “Reino de Deus” (cf. Mc 1,14-15), uma realidade que Ele parecia ligar à Sua pessoa e à Sua atividade. Durante o tempo em que andou pela Galileia e pela Judeia, Jesus evitou que o vissem como “rei” para evitar equívocos perigosos; mas, nos últimos instantes da sua vida, quando estava a ser interrogado pelo governador romano Pôncio Pilatos, Jesus admitiu a sua realeza (cf. Mc 15,2; Jo 18,33-38). Talvez hoje, no entanto, o título de “rei” nos pareça pouco adequado para “colar” à pessoa de Jesus. Para nós, o que significa dizer que Jesus é “rei”? Imaginamo-lo à imagem dos reis que presidem aos destinos dos povos e que desenham a história das nações? Até que ponto vemos em Jesus a nossa referência e estamos dispostos a deixar-nos conduzir por Ele?
  • A escolha de David para reinar sobre as tribos que constituíam o antigo reino de Saul pareceu, aos anciãos de Israel que se apresentaram em Hebron, uma escolha óbvia, do ponto de vista humano e político. No entanto, a catequese de Israel vai mais além e faz questão de lembrar que David é o “escolhido de Javé”, aquele que Deus designou para “apascentar” o seu povo. Na Bíblia deparamo-nos a cada passo com a ideia de que Deus chama pessoas, confia-lhes determinadas tarefas, age através delas para moldar a história dos homens e concretizar o seu projeto de salvação. Nós também fazemos parte desta história. Como fez com David, também a nós Deus chama para desempenhar uma determinada missão no mundo. Estamos conscientes disso? Como encaramos e como concretizamos a missão que Deus nos confiou?

 

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 121 (122)

Refrão: Vamos com alegria para a casa do Senhor.

Alegrei-me quando me disseram:
«Vamos para a casa do Senhor».
Detiveram-se os nossos passos
às tuas portas, Jerusalém.

Jerusalém, cidade bem edificada,
que forma tão belo conjunto!
Para lá sobem as tribos,
as tribos do Senhor.

Para celebrar o nome do Senhor,
segundo o costume de Israel;
ali estão os tribunais da justiça,
os tribunais da casa de David.

 

LEITURA II – Colossenses 1,12-20

Irmãos:
Damos graças a Deus Pai,
que nos fez dignos de tomar parte
na herança dos santos, na luz divina.
Ele nos libertou do poder das trevas
e nos transferiu para o reino do seu Filho muito amado,
no qual temos a redenção, o perdão dos pecados.
Cristo é a imagem de Deus invisível,
o Primogénito de toda a criatura;
Porque n’Ele foram criadas todas as coisas
no céu e na terra, visíveis e invisíveis,
Tronos e Dominações, Principados e Potestades:
Ele é anterior a todas as coisas
e n’Ele tudo subsiste.
Ele é a cabeça da Igreja, que é o seu corpo.
Ele é o Princípio, o Primogénito de entre os mortos;
em tudo Ele tem o primeiro lugar.
Aprouve a Deus que n’Ele residisse toda a plenitude
e por Ele fossem reconciliadas consigo todas as coisas,
estabelecendo a paz, pelo sangue da sua cruz,
com todas as criaturas na terra e nos céus.

 

CONTEXTO

Colossos era uma cidade da Frígia (Ásia Menor), situada a cerca de 180 quilómetros a Este de Éfeso, no vale do rio Lico. Tinha sido, em tempos mais recuados, uma cidade rica e populosa; mas, no tempo de Paulo, tinha perdido a sua antiga importância e estava reduzida a uma pequena povoação.

A comunidade cristã dessa cidade não foi fundada por Paulo mas por Epafras, discípulo de Paulo e colossense de origem (cf. Cl 4,12). A maior parte dos membros da comunidade eram de origem pagã; mas havia também alguns de origem judaica.

A carta aos Colossenses terá sido escrita numa altura em que Paulo estava na prisão (provavelmente em Roma). Estaríamos entre os anos 61 e 63. Epafras visitou Paulo e levou-lhe notícias pouco satisfatórias sobre a comunidade cristã de Colossos. Alguns “doutores” locais (talvez membros de um movimento de índole sincretista, que misturava cristianismo com elementos de religiões mistéricas em voga no mundo helenista) propunham aos Colossenses um sistema religioso que incluía, além do Evangelho de Jesus, práticas ascéticas rigorosas, prescrições sobre os alimentos (cf. Cl 2,16.21), doutrinas especulativas sobre os anjos (cf. Cl 2,18), celebrações que não faziam parte do universo cristão (cf. Cl 2,16). Na opinião desses “doutores”, tudo isto devia comunicar aos crentes um conhecimento superior dos mistérios e uma maior perfeição. Paulo desmonta toda esta confusão doutrinal e afirma que nenhum destes elementos tem qualquer importância para a salvação: Cristo basta.

O texto que hoje nos é proposto deve ser enquadrado nesta perspetiva. Inclui um hino de duas estrofes, que provavelmente Paulo tomou da liturgia cristã primitiva, mas que está perfeitamente integrado no conteúdo geral da carta. Este hino cristão de inspiração sapiencial celebra a grandeza universal de Cristo.

 

MENSAGEM

O texto que nos é proposto começa com um convite à ação de graças, porque Deus livrou os colossenses “do poder das trevas” e transferiu-os “para o Reino do seu filho muito amado”. Ligados a Cristo, os colossenses vivem agora segundo um dinamismo novo. Em comunhão com Cristo, os colossenses libertaram-se do pecado e da morte. Encontraram-se com a salvação, com a vida verdadeira (vers. 12-14).

Chegado aqui, Paulo apresenta um hino, carregado de densidade e de beleza, no qual celebra a supremacia absoluta de Cristo na criação e na redenção (vers. 15-20): trata-se de um hino que Paulo, provavelmente, tomou da liturgia cristã, mas que está perfeitamente integrado no discurso e na mensagem desta carta. É nas duas estrofes deste hino que está a mensagem fundamental que nos interessa refletir no dia da Solenidade de Jesus Cristo, Rei do Universo.

A primeira estrofe deste hino (vers. 15-17), refere a soberania de Cristo sobre toda a criação. Começa por afirmar que Cristo é, para todos os homens e mulheres, a “imagem de Deus invisível”. Dizer que Cristo é “imagem de Deus” significa aqui que Ele é em tudo igual ao Pai, no ser e no agir, e que n’Ele reside a plenitude da divindade. Significa também que Deus, espiritual e transcendente, Se revela aos homens e Se faz visível através da humanidade de Cristo. Quem encontra Cristo, encontra Deus; quem escuta Cristo, escuta Deus; quem experimenta o amor de Cristo, experimenta o amor de Deus; quem está em comunhão com Cristo, está em comunhão com Deus. Cristo, feito homem, torna-se para os homens uma manifestação de Deus.

Depois, o hino afirma que Cristo é o “primogénito de toda a criatura”. No contexto familiar judaico, o “primogénito” era o herdeiro principal, que tinha a primazia em dignidade e em autoridade sobre os seus irmãos. Aplicado a Cristo, significa a supremacia e a autoridade de Cristo sobre toda a criação. Dizer que Cristo é o “primogénito de toda a criatura” significa incluí-lo na classe das criaturas (apesar da sua primazia em dignidade sobre as outras criaturas)? Não. Para deixar as coisas claras, o hino afirma que “n’Ele foram criadas todas as coisas” e que “por Ele e para Ele tudo foi criado” (vers. 16). Ele colaborou com Deus na obra da criação.

Dizer que “n’Ele, por Ele e para Ele foram criadas todas as coisas”, significa que todas as coisas têm em Cristo o seu centro supremo de unidade, de coesão, de harmonia (“n’Ele”); que é Ele que comunica a vida do Pai (“por Ele”); e que Cristo é o termo e a finalidade de toda a criação (“para Ele”). Ao mencionar expressamente que os “tronos, dominações, principados e potestades” estão incluídos na soberania de Cristo, Paulo desmonta as especulações dos “doutores” Colossenses acerca dos poderes angélicos, considerados em paralelo com o poder de Cristo. Cristo é único; Ele tem verdadeiramente a primazia sobre toda a criação.

A segunda estrofe do hino (vers. 18-20) celebra a soberania e o poder de Cristo na redenção. Apresenta Cristo, antes de mais, como a “cabeça do corpo” que é a Igreja. A expressão, tipicamente paulina (cf. Ef 4,15-16; 5,23), significa, em primeiro lugar, que Cristo tem a primazia e a soberania sobre a comunidade cristã; mas significa, também, que é Ele quem comunica a vida aos membros desse “corpo” e que os une num conjunto vital e harmónico. Cristo é, portanto, a referência absoluta para todos aqueles que fazem parte da comunidade cristã. Não há outra referência.

Depois, afirma-se que Cristo é o “princípio, o primogénito de entre os mortos”. Significa que Ele, não só foi o primeiro que ressuscitou, mas também que Ele é a fonte de graça e de glória para aqueles que vivem em comunhão com Ele e que fazem parte do “corpo” do qual Ele é a cabeça. Na sua ressurreição, está incluída a nossa ressurreição; a sua vitória sobre a morte tornou-se para nós fonte perene de vida.

Finalmente, o hino afirma que em Cristo reside “toda a plenitude”. O termo grego “pleroma”, aqui utilizado, refere-se à totalidade de Deus. Significa que em Cristo e só n’Ele habita, efetiva e essencialmente, a divindade: tudo o que Deus nos quer comunicar, a fim de nos inserir na sua família, está em Cristo. Por isso, o autor deste hino pode dizer que por Cristo foram reconciliadas com Deus todas as criaturas na terra e nos céus: por Cristo a criação inteira, marcada pelo pecado, recebeu a oferta da salvação e pôde voltar a inserir-se na família de Deus.

 

INTERPELAÇÕES

  • Existem questões decisivas que, mais tarde ou mais cedo, se nos colocam: como dar significado pleno à nossa existência? Como construir uma vida que valha a pena? Por que caminhos devemos andar, na viagem da vida, para não ficarmos atolados em becos sem saída? O que é que é essencial e o que é que é secundário, quando se trata de definir o eixo fundamental da nossa existência? Os cristãos de Colossos também se debatiam com estas questões; e, na sua ânsia de encontrar respostas, abriam portas a doutrinas estranhas e a propostas incompatíveis com o Evangelho de Jesus. Hoje, em pleno séc. XXI, numa altura em que vivemos “em rede” e somos confrontados a cada instante com mil e uma propostas e sugestões, esta questão adquire uma particular relevância. Confundidos e baralhados por tanta informação, tornamo-nos permeáveis a propostas mais ou menos excêntricas, mais ou menos esotéricas, mais ou menos ecléticas, por vezes pouco condizentes com a pureza e a autenticidade da proposta cristã. Por outro lado, muitos cristãos continuam a colocar a sua esperança de realização em “poderes”, em figuras, em superstições, em instituições, em rituais “mágicos”, que não libertam e que não ajudam a encontrar caminhos de plena realização. Como nos situamos face a isto? Procuramos definir claramente, em coerência com a nossa fé, o caminho que devemos seguir?
  • A festa de Cristo Rei celebra, antes de mais, a soberania e o poder de Cristo sobre toda a criação. Neste contexto, o autor da Carta aos Colossenses lembra-nos que, em Cristo, Deus revela-Se; que Ele tem a supremacia e autoridade sobre todos os seres criados; que Ele é o centro de todo o universo e que tudo tende e converge para Ele… Isto equivale a definir Cristo como o centro da vida e da história, a coordenada fundamental à volta da qual tudo se constrói. Cristo tem, de facto, esta centralidade na vida dos homens e mulheres do nosso tempo, ou há outros deuses e referências que usurparam o seu lugar? Quais são esses outros “reis” que ocuparam o “trono” que pertence a Cristo? Esses “reis” trouxeram alguma “mais valia” à vida dos homens, ou apenas criaram escravidão e desumanização? O que podemos fazer para que a nossa sociedade reconheça em Cristo o seu “rei”? Cristo é o centro, a referência fundamental à volta da qual a nossa vida se articula e se constrói? O que é que Cristo significa para nós, não em termos de definição teórica, mas em termos existenciais?
  • A Festa de Cristo Rei é, também, a festa da soberania de Cristo sobre a comunidade cristã. A Igreja é um corpo, do qual Cristo é a cabeça. É Cristo que reúne os vários membros da Igreja numa comunidade de irmãos que vivem no amor; é Cristo que a todos alimenta e dá vida; é Cristo o termo dessa caminhada que os crentes fazem ao encontro da vida em plenitude. Esta centralidade de Cristo tem estado sempre presente na reflexão, na catequese e na vida da Igreja? Não é verdade que, muitas vezes falamos mais de autoridade e de obediência do que de Cristo, de castidade e de leis canónicas do que do Evangelho, de poder e de direitos da Igreja do que do Reino de Deus que Cristo veio propor? Cristo é – não em teoria, mas de facto – o centro de referência da Igreja no seu todo e de cada uma das nossas comunidades cristãs em particular? Não damos, às vezes, mais importância às leis feitas pelos homens do que a Cristo? Não há, tantas vezes, “santos” e “santinhos” que assumem um valor cimeiro na experiência de fé de muitos cristãos, deixando em plano secundário Cristo e o Seu Evangelho?

 

ALELUIA – Marcos 11,9.10

Aleluia. Aleluia.

Bendito O que vem em nome do Senhor!
Bendito o reino do nosso pai David!

 

EVANGELHO – Lucas 23,35-43

Naquele tempo,
os chefes dos judeus zombavam de Jesus, dizendo:
«Salvou os outros: salve-Se a Si mesmo,
se é o Messias de Deus, o Eleito».
Também os soldados troçavam d’Ele;
aproximando-se para Lhe oferecerem vinagre, diziam:
«Se és o Rei dos judeus, salva-Te a Ti mesmo».
Por cima d’Ele havia um letreiro:
«Este é o Rei dos judeus».
Entretanto, um dos malfeitores que tinham sido crucificados
insultava-O, dizendo:
«Não és Tu o Messias?
Salva-Te a Ti mesmo e a nós também».
Mas o outro, tomando a palavra, repreendeu-o:
«Não temes a Deus,
tu que sofres o mesmo suplício?
Quanto a nós, fez-se justiça,
pois recebemos o castigo das nossas más ações.
Mas Ele nada praticou de condenável».
E acrescentou:
«Jesus, lembra-Te de Mim, quando vieres com a tua realeza».
Jesus respondeu-lhe:
«Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso».

 

CONTEXTO

Jesus foi preso no jardim das Oliveiras pelos soldados do templo (cf. Lc 22,47-53) numa noite de quinta-feira do mês de Nisan do ano 30. Logo de seguida, foi conduzido pelos soldados ao palácio do sumo sacerdote, onde foi maltratado e insultado durante uma boa parte da noite (cf. Lc 22,63-65). De manhã, Jesus foi apresentado diante de um Conselho de notáveis, formado por anciãos do povo, sumo sacerdotes e doutores da Lei. Os membros do Conselho interrogaram-no e procuraram definir a sua culpa (cf. Lc 22,66-71). Quando acharam que já tinham os dados necessários, fizeram Jesus comparecer diante do procurador romano Pôncio Pilatos. Acusavam-no de sublevar o povo contra César e de se apresentar como o Messias-Rei (cf. Lc 23,1-5).

Pilatos não ficou convencido da culpabilidade do réu (cf. Lc 23,4. 13-16). Tentou, de diversas formas, libertar Jesus; mas, pressionado pelos dirigentes judeus, acabou por ceder e por decretar a condenação de Jesus à morte na cruz (cf. Lc 23,20-25).

O cortejo com os condenados (havia mais dois, além de Jesus – cf. Lc 23,32) saiu do palácio de Pôncio Pilatos e dirigiu-se, através das ruas da cidade, para o local das execuções, uma pequena colina situada fora das muralhas, mas que era um lugar de passagem para os que entravam e saíam da cidade. Dessa forma, todos os que passavam por ali podiam ver o que acontecia a quem afrontava o poder romano. O traçado que Jesus e os outros condenados tinham de percorrer era relativamente curto, talvez de uns quinhentos metros.

Jesus, como os outros condenados, levava às costas uma trave, a trave transversal da cruz. As fontes dizem que Jesus, enfraquecido pela tortura, não conseguiu levar a trave até ao fim. Os soldados, com medo que ele morresse antes de a sentença ter sido executada, tiveram de requisitar um tal Simão de Cirene, um homem que vinha do campo, para carregar a trave que Jesus transportava às costas (cf. Lc 23,26).

Não tardaram a chegar ao Gólgota, o lugar das execuções de Jerusalém. Era um local sinistro. “Gólgota” (do arameu “gulgultá”) significa “lugar do crânio, ou da caveira”. Era uma pequena colina de dez ou doze metros de altura. No cimo dessa pequena colina podiam ver-se, espetados na terra, os paus verticais onde iriam ser penduradas as traves que os condenados transportavam às costas.

Procedeu-se então à crucifixão dos condenados. Despiram-nos, para lhes degradar a dignidade. Depois, os soldados deitaram sortes para ver quem ficava com as vestes dos condenados (cf. Lc 23,34). Estenderam Jesus e os outros dois no chão e pregaram-nos ao travessão lateral pelos pulsos; depois elevaram o travessão com o corpo de cada condenado e fixaram-no no pau vertical. Com cravos, fixaram os pés dos condenados ao pau vertical. Na parte superior da cruz de Jesus havia um letreiro identificando o condenado e dizendo a razão da sua condenação: “o basileus tôn Ioudaiôn outos” (“este é o rei dos judeus”).

É o final da “caminhada” terrena de Jesus: estamos perante o último quadro de uma vida gasta ao serviço da construção do Reino de Deus. As bases do Reino já estão lançadas e Jesus é apresentado como “o Rei” que preside a esse “estranho” Reino cujos contornos não foram desenhados pelos homens mas sim por Deus.

 

MENSAGEM

Jesus está pregado na cruz, afogado num sofrimento indizível. Às dores físicas soma-se o sofrimento que resulta das zombarias e dos insultos dos “chefes dos judeus” (provavelmente alguns membros do Sinédrio) que estavam por ali (vers. 35), orgulhosos da sua vitória sobre o rabi galileu que tanto os tinha incomodado com o projeto do Reino de Deus. Os próprios soldados romanos que vigiavam a execução troçavam de Jesus (vers. 36) e faziam alusões irónicas ao facto de um “rei” acabar os seus dias numa cruz (vers. 37), o suplício reservado à ralé da sociedade, aos “malditos”, aos “últimos”.

Presidindo a toda esta cena, dominando-a de alto a baixo, está a famosa inscrição que define Jesus como “rei dos judeus” (vers. 38). Trata-se, certamente, de uma pequena placa em madeira que era costume pendurar ao pescoço dos sentenciados ou pregar no alto da cruz, indicando o nome do condenado e o motivo da sua condenação. Quer os dirigentes judeus ali presentes, quer os soldados que acompanham a execução, captam a ironia das palavras escritas naquela placa: Jesus, o “rei dos judeus” não está sentado num trono real, mas pendurado num madeiro fora das muralhas de Jerusalém; não aparece rodeado de súbditos fiéis que O aclamam, O incensam e O adulam, mas de gente medíocre e exaltada que o insulta e escarnece; não exerce autoridade de vida ou de morte sobre milhões de homens, mas está indefeso, abandonado por todos os seus amigos, condenado a uma morte infamante; não está vestido com roupas de linho e púrpura, mas está nu, pois até as suas pobres vestes de camponês lhe foram tiradas; não tem na cabeça uma coroa de oiro e pedras preciosas, mas sim uma coroa de espinhos que os soldados o obrigaram a levar como supremo insulto… Não há, neste quadro dramático, qualquer sinal que identifique Jesus com poder, com autoridade, com realeza terrena. Contudo, a inscrição da cruz – irónica aos olhos dos homens – descreve com precisão a situação de Jesus, na perspetiva de Deus: Ele é o “rei” que preside, do alto daquela cruz, a um Reino diferente dos reinos humanos, a um “Reino” desenhado com as cores de Deus e assente nos valores de Deus.

Jesus tinha proclamado esse Reino por toda a Galileia e por toda a Judeia com parábolas sublimes e com gestos de misericórdia que trouxeram uma nova esperança ao coração dos pobres, dos esquecidos, dos sem voz, dos abandonados da sociedade e da religião. De acordo com o anúncio de Jesus, o Reino de Deus é um mundo governado pelo amor sem fronteiras, pelo serviço simples e humilde, pelo dom de si próprio, pelo perdão sem limites; é um mundo onde os pobres, os sofredores, os abandonados terão sempre lugar à mesa abundante de Deus; é um mundo onde os “grandes”, os mais importantes, não são os que têm cargos de autoridade, mas sim aqueles que estão sempre disponíveis para amar e para cuidar dos seus irmãos mais frágeis; é um mundo onde a força do amor substitui a força da violência e das armas; é um mundo onde o perdão fala sempre mais alto do que rancor e o ódio. Ora, tudo isto está ali presente e bem evidente naquela cruz erguida numa pequena colina fora das muralhas de Jerusalém. Naquele homem que oferece toda a sua vida por amor, que morre pedindo perdão para os seus assassinos, que se deixa matar para libertar os seus irmãos prisioneiros do pecado, da maldade e da morte, está bem evidente a realidade do Reino de Deus. A morte de Jesus na cruz é a lição suprema através da qual Ele “explica” ao mundo e aos homens o que é o Reino, o que é que ele significa, o que é que ele exige. Naquele momento, os chefes dos judeus, os soldados, o povo que contempla o crucificado, não são capazes de perceber o alcance de tudo aquilo; mas, com o passar do tempo, o mundo aprenderá a ver, naquele crucificado que deu a vida por amor, a proposta de uma nova maneira de viver. Aquela cruz onde está Jesus é o verdadeiro ícone do Reino de Deus, do mundo novo que Jesus veio anunciar e propor. Jesus é o “rei” que preside a esse mundo novo.

Depois, para completar a catequese que pretende oferecer-nos sobre a realeza de Jesus, o evangelista Lucas convida-nos a dirigir o olhar para os dois “malfeitores” que “tinham sido crucificados” ao lado de Jesus.

Um deles, dirigia-se a Jesus com insultos (vers. 39). As palavras que ele dizia expressavam a sua convicção de que Jesus, enquanto Messias, era uma fraude, pois não conseguia salvar-se nem salvar os seus companheiros de infortúnio. Esse “malfeitor” contemplava Jesus com o mesmo olhar de incompreensão dos dirigentes judeus e dos soldados romanos. Via em Jesus um fracassado, um vencido, um “pobre diabo” triturado pelo sistema, um insignificante que iria passar sem deixar memória na história do mundo e dos homens. Aquele “malfeitor” não conseguia ver no seu companheiro de suplício o “rei” que veio propor ao mundo e aos homens, em nome de Deus, uma nova ordem. Aquele “malfeitor” não estava apto para entender a realidade do Reino de Deus que se manifestava naquela cruz e naquele condenado.

No lado oposto está o outro “malfeitor”. Aparentemente foi ele o único a entender o sentido da cruz e da entrega de Jesus (vers. 40-41); foi ele o único a perceber que amar até ao extremo e entregar-se em benefício de todos não significa perder a vida, mas sim ganhá-la. Esse “malfeitor” que era capaz de ver para além das aparências, entendeu claramente que, na história daquele “rei” que morria sem culpa numa cruz ali ao lado, havia a inconfundível marca de Deus. Ao ver Jesus entregar a vida por amor, ele entendeu a lógica do Reino de Deus e desejou ardentemente, naqueles últimos instantes da sua vida, abraçar tal projeto, fazer parte desse Reino do qual Jesus era o “rei”. Por isso, dirigindo-se a Jesus, pediu-lhe: “Jesus, lembra-Te de Mim, quando vieres com a tua realeza” (vers. 42). A resposta de Jesus àquele “malfeitor” condenado subverte todas as nossas lógicas e entendimentos: “em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso” (vers. 43). Tudo isto é tão “fora da caixa” que, mesmo depois de dois mil anos de cristianismo, ainda nos é difícil entender este “rei” que se entrega a uma morte ignominiosa para levar vida aos seus irmãos e que faz de um “malfeitor” condenado o primeiro santo canonizado da sua Igreja. Ao canonizá-lo, Jesus garante que da cruz brota vida. Aquele “malfeitor” que descobriu o sentido da cruz vai ao encontro dessa vida.

“Este é o rei dos judeus” – dizia a inscrição feita na placa de madeira que encimava a cruz de Jesus. O evangelista João informa que foi o governador romano Pôncio Pilatos (cf. Jo 19,19) que redigiu esse breve resumo da ata da sentença que condenou Jesus à morte. Aqueles dizeres que, na intenção de quem os redigiu, queriam informar sobre o motivo da condenação à morte do rabi da Galileia, ajudam agora o mundo a entender o mistério que se esconde por detrás daquela morte e daquela vida: o crucificado que ofereceu a sua vida para concretizar o projeto de Deus, é o “rei” que veio concretizar as promessas outrora feitas por Deus ao seu povo. Do seu testemunho, da sua entrega, do seu amor até ao extremo, nasce um reino novo, sem fronteiras e sem limites, cuja lei é o amor. O trono desse “rei” é a cruz; os seus soldados são todos aqueles que, independentemente do seu passado, entendem a lógica do amor e se dispõem a viver no serviço, na misericórdia, no perdão, no dom da vida.

 

INTERPELAÇÕES

  • Faz sentido, em pleno séc. XXI, encerrar o ano litúrgico com a celebração da Solenidade de Cristo Rei do Universo? O título de “rei” que atribuímos a Jesus não será, nestes tempos “democráticos”, um título ultrapassado e com forte conotação ideológica, que nos conviria evitar? Tratar Jesus como “rei” não será pô-lo ao nível dos grandes e poderosos do nosso mundo? Ver em Jesus um “rei” não poderá contribuir para que fiquemos com uma ideia errada d’Ele e do projeto que Ele nos veio propor? Todas estas perguntas são legítimas; mas convém desde logo ter em conta que o próprio Jesus, questionado por Pilatos sobre a sua realeza, confirmou que era “rei” (cf. Lc 23,3). Na versão do evangelista João, Jesus diz mesmo a Pilatos que é um “rei” que veio ao mundo “para dar testemunho da verdade” e que todos os que são da verdade devem escutar a sua voz (Jo 18,37). Sim, podemos celebrar a realeza de Jesus, nós que escutamos a Sua voz, que queremos viver na verdade e que o temos como a referência fundamental à volta da qual construímos a nossa existência. Convém, no entanto, entender a “realeza” de Jesus na perspetiva certa: Ele é um rei que veio oferecer aos homens a verdade que liberta; Ele reina através da força desarmada do amor; o seu estilo é o do serviço simples e humilde; a sua força é a que resulta da misericórdia e do perdão; o trono de onde Ele exerce o seu poder é a cruz onde oferece a sua própria vida em benefício de todos. É dessa forma que vemos e entendemos a “realeza” de Jesus? Estamos dispostos a fazer desse “rei” a nossa referência?
  • Ao longo do seu caminho pela história a Igreja nem sempre entendeu bem a realeza de Jesus. Julgou, em diversos momentos, que essa realeza lhe dava um mandato para se impor, para dominar, para condenar, para coagir, até mesmo para matar. Montou estruturas decalcadas dos impérios; enviou exércitos para combater os “infiéis”; impôs conversões forçadas; condenou e queimou muitos “diferentes” que não se reviam na “ordem cristã” ou que tinham uma visão do mundo e da fé não coincidente com a da hierarquia… É evidente que temos de olhar para muitos desses “equívocos” como “datados”, como acontecimentos que devem ser vistos e avaliados à luz de um determinado contexto histórico. No entanto, em pleno séc. XXI faz sentido perguntar: já nos livramos de toda essa mentalidade triunfalista, inquisitiva, intolerante, do espírito de cruzadas e de guerras santas contra o mundo e contra os que não pensam como nós? Faz sentido, depois de o nosso “rei” se ter apresentado ao mundo no trono da cruz, reivindicar dos poderes políticos honras e privilégios para a Igreja nascida de Jesus? Necessitamos de continuar a reproduzir, na Igreja, as estruturas de poder que a sociedade cultiva e que funcionam segundo lógicas que nem sempre coincidem com os valores do Evangelho? O que pensamos de tudo isto?
  • A maneira como Jesus exerce a sua realeza sobre o mundo e sobre os homens poderá também deixar-nos uma poderosa interpelação sobre o nosso estilo de vida, os valores que privilegiamos, a forma como nos situamos diante dos nossos irmãos. O silêncio digno daquele “rei” pregado na cruz, despojado das suas vestes, abandonado pelos amigos, que sofre sem revolta as zombarias dos líderes judaicos e os insultos dos soldados, não faz parecer absolutamente ridículas as nossas pretensões de honras, de títulos, de aplausos, de reconhecimentos, de vaidades pessoais? A atitude daquele “rei” que, por amor aos seus irmãos, oferece a sua vida até à última gota de sangue, não constitui uma denúncia eloquente das nossas manias de grandeza, das nossas invejas mesquinhas, das nossas rivalidades, das nossas ambições desmedidas, das nossas vaidades estúpidas, dos nossos egoísmos estreitos e cegos? Diante deste “rei” que se dá completamente, sem guardar nada para si, não nos sentimos convidados a fazer da vida um dom a Deus e aos irmãos que caminham ao nosso lado?
  • É extraordinário que, de entre todos os que estavam presentes no momento da crucificação de Jesus, só um “malfeitor” tenha visto naquele justo que todos desprezaram, “o rei dos judeus”. É admirável que só um “malfeitor” condenado à morte tenha entendido o mistério daquele justo que ofereceu a vida por amor e que, amando até às últimas consequências, libertou os seus irmãos da violência, da injustiça, da mentira, das trevas, da morte. É singular que só um “malfeitor” em fim de linha, prestes a ser eliminado por uma sociedade que o considerara irrecuperável, tenha percebido que, do martírio daquele justo, ia nascer um mundo novo, um reino de justiça, de amor e de vida. Porque é que, tantas e tantas vezes, são os mais distantes que melhor compreendem Jesus e o seu mistério? Porque é que tantas e tantas vezes são os mais “improváveis” que entendem e abraçam os desafios que Jesus deixa ao mundo e aos homens? Nós, que há tanto tempo caminhamos atrás de Jesus e que nos dizemos seus discípulos, já percebemos o Seu mistério? Estamos disponíveis para viver ao estilo de Jesus e para colaborar com Ele na construção do Reino de Deus?
  • O evangelista Lucas convida-nos, na Solenidade de Cristo Rei do Universo, a olhar para a cruz onde agoniza Jesus, o “rei dos judeus”. Contemplar a cruz onde se manifesta o amor e a entrega de Jesus significa assumir a mesma atitude que Ele assumiu e solidarizar-se com aqueles que são crucificados neste mundo: os que sofrem violência, os que são explorados, os que são excluídos, os que são privados de direitos e de dignidade. Olhar a cruz de Jesus significa denunciar tudo o que gera ódio, divisão, medo, em termos de estruturas, valores, práticas, ideologias; significa evitar que os homens continuem a crucificar outros homens; significa aprender com Jesus a entregar a vida por amor… Viver deste modo pode conduzir à morte; mas o cristão sabe que amar como Jesus é viver a partir de uma dinâmica que a morte não pode vencer: o amor gera vida nova e introduz na nossa carne os dinamismos da ressurreição. A contemplação da cruz de Jesus leva-nos ao compromisso com a transformação do mundo? A contemplação da cruz de Jesus faz com que nos sintamos solidários com todos os nossos irmãos que todos os dias são crucificados e injustiçados? A contemplação da cruz de Jesus dá-nos a coragem para lutarmos contra tudo aquilo que gera sofrimento e morte, mesmo que isso implique correr riscos, ser incompreendido e condenado?

 

ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 34.º DOMINGO DO TEMPO COMUM

(adaptadas, em parte, de “Signes d’aujourd’hui”)

1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.

Ao longo dos dias da semana anterior ao 34.º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

2. PALAVRA CELEBRADA NA EUCARISTIA.

A Palavra de Deus não se limita ao tempo da proclamação e da escuta da Palavra. Na preparação da celebração, procurar que algumas expressões da liturgia da Palavra estejam presentes no momento penitencial, nalguma intenção da oração dos fiéis, num momento de acção de graças…

3. BILHETE DE EVANGELHO.

Na colina do Gólgota, os chefes zombam… os soldados troçam… um soldado injuria Jesus… Até ao fim Jesus encontrará a oposição e a incompreensão. A sua mensagem era perturbadora, o seu testemunho provocador, o seu rosto desfigurado, mesmo Deus parecia tê-l’O abandonado… É um malfeitor que reconhece no seu companheiro de infelicidade, também perto de morrer, o Rei de um outro Reino em que a única defesa é a do Amor. Então, vira-se para Jesus, de quem deve ter ouvido falar do seu Reino, e pede-Lhe somente para Se recordar dele quando vier inaugurar este Reino. Ora, a hora chegou, é hoje que estará com Ele no Paraíso. Aquele que foi malfeitor sobre a terra torna-se benfeitor no Reino, é isso a salvação. Isso passou-se na colina do Gólgota, numa certa sexta-feira da história…

4. À ESCUTA DA PALAVRA.

Na oração do Pai Nosso, Jesus faz-nos pedir, e reza connosco: “Não nos deixeis cair em tentação”. De facto, Jesus foi submetido à tentação e resistiu. A este propósito, Lucas dá uma estranha precisão, dizendo que o diabo afastou-se de Jesus até ao momento fixado. Este momento é quando Jesus é pregado na cruz. No deserto, o diabo tinha dito: “Se és o Filho de Deus…” Agora Jesus ouve: “Não és Tu o Messias? Salva-Te a Ti mesmo e a nós também”. É a mesma tentação: se Jesus é verdadeiramente o Messias, o Filho de Deus, deve dispor de toda a omnipotência de Deus. Então, que utilize este mesmo poder para cumprir um último milagre e despegar-Se da cruz. Até os seus inimigos ficariam confundidos. Mas Jesus resistiu. É porque algo de sumamente importante está aqui em jogo. Trata-se, uma vez mais, do verdadeiro rosto de Deus que Jesus veio revelar. Não um Deus todo-poderoso à maneira dos homens, mas um Deus Pai que só pode fazer uma coisa: amar, amar os seus inimigos, ainda e sempre, mesmo quando eles O rejeitam e crucificam o seu Filho bem-amado. Ora, se esta tentação acompanhou Jesus até à cruz, não é de admirar que ela acompanhe sempre os seus discípulos, que a própria Igreja não lhe escape! Na cruz, Jesus, o Rei, exerce outro poder, outra realeza. Não utiliza um poder à maneira do mundo. O segundo malfeitor, que chamamos de “bom ladrão”, só pede uma coisa a Jesus: que Se lembre dele no seu Reino. O que ele pede não é que o livre da morte iminente, a mesma de Jesus! É que, depois da morte, Jesus Se lembre dele. Simplesmente, diz: “Jesus, preciso de ti”. É um grito de pobreza. Então Jesus diz-lhe: “Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso”. E o assassino tornou-se o primeiro homem a entrar com Jesus no Reino do Pai. Aí está o verdadeiro, o único poder de Jesus.

5. ORAÇÃO EUCARÍSTICA.

Pode-se escolher a Oração Eucarística para a Reconciliação nº IV, que recorda de modo mais explícito a história da salvação.

6. PALAVRA PARA O CAMINHO DA VIDA…

Levar a Palavra de Deus como luz para mais uma semana de trabalho, de estudo… Ao longo dos dias da semana que se segue, procurar rezar e meditar algumas frases da Palavra de Deus: “Vamos com alegria para a casa do Senhor”…; “Deus Pai libertou-nos do poder das trevas… transferiu-nos para o reino do seu Filho muito amado, no qual temos a redenção, o perdão dos pecados”…; “Jesus, lembra-Te de Mim, quando vieres com a tua realeza”… Procurar transformar as palavras de Deus em atitudes e em gestos de verdadeiro encontro com Deus e com os próximos que formos encontrando nos caminhos percorridos da vida…

 

UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
PROPOSTA PARA ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA

Grupo Dinamizador:
José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro
Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
www.dehonianos.org