Dehonianos 75 anos depois – D. Te­o­do­ro de Fa­ria

MEMÓRIA AGRADECIDA

Tudo começou muito longe, no norte da França, terra de santos, ateus e descrentes, quando Gustav Dehon nasceu a 14 de março de 1843 em la Capelle, ordenado padre a 19 de dezembro de 1868, na Basílica de São João de Latrão, em Roma, pelo Cardeal Constantino Neto.



Quando tinha 13 anos resolveu ser padre, o Papa Pio IX aconselhou-o a seguir os estudos eclesiásticos. Foi uma das figuras centrais do catolicismo francês no fim do século XIX e inícios do século XX. Como coadjutor da paróquia de Saint Quentin na cidade industrial do norte da França, ali conheceu o trabalho duro e as situações de carência e necessidades dos trabalhadores. Onde encontrou o Padre Dehon auxílio para tantas necessidades humanas? No Coração de Jesus, não num símbolo abstrato, mas numa dedicação concreta, no coração aberto, trespassado pela lança cortante do soldado romano Longuinhos (Jo.19,34), que deixou uma ferida para comprovar a morte do crucificado, e mostrar a ferida invisível do amor de Deus pelos pecadores.

Segundo o poeta italiano Turoldo, a ferida do coração aberto de Cristo é “o paraíso da nossa origem”. O convertido de Tagaste, Santo Agostinho escreve que “tocar o coração, isto é, acreditar”. O Padre Dehon, tocado por esta ferida aberta do Coração do Filho de Deus, funda a Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus que, rapidamente se expandiu pela Europa e por muitas missões em países estrangeiros.

Com os seus livros, alguns sobre questões sociais, dentro do espírito evangélico e do amor de reparação, herdado de Santa Maria Margarida Alacoque, Dehon faz do amor de Cristo a sua profecia e serviço pelo mundo. A Congregação difundiu-se pela Ucrânia, Albânia, África do Sul, Brasil, Congo, Vietname e muitos outros países, em 1947 chegou ao Funchal.

A história da sua vinda até nós, dependeu do grande Cardeal Teodósio Clemente de Gouveia que, após ter estudado em Roma, foi um renomado Reitor do Pontifício Colégio Português, nomeado arcebispo de Lourenço Marques, foi encarregado de estudar todo o território, para uma divisão futura das dioceses. Para isso precisava de missionários sacerdotes e religiosas. Pensou em encontrar essas famílias religiosas na Madeira, o Cardeal tinha em Roma bons amigos na Cúria Romana, para influenciar o Bispo do Funchal, Dom António Manuel Pereira Ribeiro, para permitir a entrada destes novos religiosos Dehonianos, alguns dos quais deveriam partir para a Argentina.

Roma tem muita experiência nestes assuntos! Dom António não estava de acordo que a Madeira tivesse muitas vocações! Mas, “Roma locuta, causa finita” (quando Roma falou a causa acabou) desta forma os Dehonianos não entrariam em Portugal senão a começar pela porta aberta pela Madeira, que evangelizara o Brasil e além do Bojador.

Nessa época eu estava a estudar no Seminário, com os meus colegas eramos sete, o mesmo número dos sacramentos, um casou-se, mas todos muito bons estudantes e já decididos a serem padres, o diretor espiritual era o grande pregador popular Cónego Manuel Fernandes Pombo.

Os dois primeiros Dehonianos que chegaram ao Funchal foram os Padres Angelo Colombo e Gastão Canova, que foram recebidos pelo meu colega Agostinho Jardim Gonçalves e um senhor da Escola de Artes e Ofícios, para onde foram levados os Padres e ficaram hospedados. O Padre Laurindo, homem santo e caridoso, pároco de Santa Maria que, numa embarcação piscatória afundada, recolheu os filhos e outros pobres em duas casas, a dos rapazes na Escola de Artes e Ofícios e a das meninas numa casa dirigida pelas Irmãs Vitorianas.

Nos domingos e quintas feiras, os seminaristas saiam a passear. Surgiu uma novidade que fomos ver, os Dehonianos. Ficamos radiantes, eram alegres, falavam um italiano muito doce, quase cantarolando, perguntavam como se dizia isto e aquilo em português, outras vezes usavam palavras latinas que traduzíamos, o nosso latim era bom, já tínhamos os livros em latim em teologia. No Seminário falamos deles, o Senhor Cón. Fulgêncio de Andrade que estudara em Roma queria falar com eles. Soubemos pelo secretário do Senhor bispo como recebera os hóspedes. Tudo se modificara, Dom António recebeu-os como Abraão os visitantes no Hebron, começou a contactar com eles, dizia-se até que gostava mais dos italianos que dos padres diocesanos, até lhes ofereceu um antigo e carro Roll Royce inglês, que recebera de um ricaço da ilha. Dom António pedira-lhes para tomarem conta da Escola de Artes e Ofícios, que fora destinado aos salesianos, mas não tinham chegado. Os Dehonianos, porém, não queriam ficar com este serviço, queriam ser missionários. Procuravam, sim, uma casa nos arredores do Funchal, encontraram uma que lhes agradava, mas não tinham dinheiro. O Senhor Bispo pôs as casas da diocese à sua disposição, a começar pela da Ponta Delgada. Os Padres disseram que era muito afastado, preferiam a do Funchal, Dom António, diz ao seu procurador, Eduardo Paquete para tratar com os donos, não para comprar, mas alugar, por falta de dinheiro. Por fim, o Senhor Bispo pede ao Reitor do Seminário Diocesano, Cónego Jaime de Gouveia Barreto, para seu procurador.

Entretanto chegam mais três Padres da Itália, Pe J. Carrera, Lino Franchini e Luís Gasparek. Começaram a celebrar a missa em latim na Igreja do Colégio às 11 horas do domingo, sem conhecerem bem o português. Correu célere a notícia pela cidade, um dos celebrantes disse no púlpito aos jovens: “Minhas queridas raparigas e meus queridos raparigos”. A assistência sorriu e perdoou, mas não foi apenas isto.

A 17 de outubro, Dom António administrou Ordens Menores a dois seminaristas. Após muitas diligências e conversas com benfeitores, o Colégio abriu com 12 “apostolinhos”. O que atraia pessoas ao Colégio era a Santa Missa quotidiana e a adoração da tarde. Entretanto aumentavam os benfeitores e festas da Boa Vontade, tanto no Hotel da Bela Vista, (hoje, Seminário diocesano) e Quinta Vigia.

A 5 de Setembro de 1950, no navio de carga Madeirense, chegam ao Funchal

Padre Júlio Gritti e Padre José Benetti. O Senhor Dom António nomeia Diretor Espiritual do Seminário do Funchal o Padre Júlio Gritti, para todos os seminaristas. Desta maneira, eu e os outros colegas, que fomos seguidos pelo Senhor Cónego Manuel Pombo, já tínhamos decidido ser Ordenados Padres. Desde então, os serviços pastorais, escolares, paroquiais, dos Padres Dehonianos decorrem na diocese com serenidade, de facto, quem se oferece a Deus e o ama, sente-se apoiado no Rochedo da nossa salvação que mostra a força do amor, no coração rasgado… como usam os Dehonianos.


Jornal Madeira
16/10/2022

plugins premium WordPress