Entrevista: Pe. Aldo Marchesini: Sacerdote, missionário, médico, seropositivo, feliz…

O Pe. Aldo Marchesini nasceu em Bolonha a 10 de Setembro de 1941. Entrou no noviciado da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus – Dehonianos – em 1961. Foi ordenado sacerdote a 27 de Dezembro de 1969. Em 1966 obteve o doutoramento em Medicina pela Universidade de Bolonha.

O Pe. Aldo é missionário em Moçambique desde 1974, onde concilia a actividade de sacerdote missionário com a de médico. É um dos mais conceituados cirurgiões de Moçambique. Foi a cuidar de doentes com SIDA que contraiu essa doença.

No passado dia 21 de Março foi indicado pelas Nações Unidas para receber o prémio “World Population Award” no próximo dia 12 de Junho, em Nova Iorque.

A 21 de Julho de 2006 o jornal on-line Missionline publicou uma entrevista de Anna Pozzi onde o Pe. Aldo fala de modo impressionante e corajoso sobre a sua doença. É tradução dessa entrevista que aqui reproduzimos, com a devida vénia.

 

Padre Aldo, quando é que descobriu que era seropositivo?

A minha actividade de médico punha-me, muitas vezes, em contacto com doentes seropositivos, que progressivamente agravavam-se até a morte. Era um verdadeiro suplício. No hospital eu era o mais ancião e os colegas muitas vezes pediam que fosse eu a dar a notícia ao paciente ou à sua família. Fazer conhecer aos interessados esta verdade era uma tarefa muito ingrata. Estávamos no tempo em que SIDA era sinónimo de morte inevitável e ser um seropositivo era uma marca que mudava totalmente a vida social das pessoas. Numa determinada altura comecei a notar que não conseguia suportar mais o calor tórrido, tinha diarreia e uma febre estranha. Comecei a tossir. Julgava que fosse o cansaço. Regressei à Itália e fiz alguns exames. Quando fui saber os resultados disseram-me que tinha no sangue os anticorpos de muitos vírus, mas acerca do HIV, deveriam repetir o teste. No dia seguinte. encontrei o meu colega com uma folha na mão. Em lugar de dar-me a resposta oralmente, convidou-me a lê-la juntamente. Dizia: “A procura dos anticorpos resultou positiva para o HIV1 P24 e GP41”.

 

Que experimentou naquele momento? Qual foi a sua reacção?

Ficámos em silêncio. Lembro-me que não experimentei nenhuma emoção particular e muito menos desconforto. Ainda agora não sei dar-me conta. Muitas vezes tinha comunicado a mesma notícia aos meus pacientes e àqueles dos meus colegas e sabia como era ingrata para mim e dolorosa para o interessado. Às vezes acontecia-me de imaginar estar na pele do paciente. Tinha sempre afastado o pensamento com uma certa angústia, tranquilizando-me que não era doente e que aquelas eram fantasias mentais. Fiquei a olhar para a folha, em silêncio. A verdade é que o paciente agora era eu. Todavia a angústia que acompanhava as minhas fantasias mentais não existia. Na passagem da fantasia à realidade, a angústia desvaneceu-se. Em seu lugar estava a nascer um novo  sentimento, uma impressão radical de me ter tornado diferente. Tinha a sensação de que a carruagem na qual me encontrava tinha entrado num lugar escondido e que agora viajava numa linha paralela àquela onde continuava a andar o comboio da vida.

 

Naquela altura que coisa fez?

Submeti-me a todos os exames que levaram à conclusão que a doença já tinha chegado ao ponto em que era oportuno começar a terapia com antirretrovirais. Para mim não havia dificuldades. Como cidadão italiano tinha acesso gratuito à assistência médica e medicamentosa. Era necessário permanecer mais um mês para controlar eventuais efeitos secundários da terapia. E entretanto pensava como e quando poderia voltar a Quelimane.

 

Nunca pensou ficar em Itália para poder curar-se de modo mais adequado?

Pelo contrário! Perguntava-me como poderia voltar a viver no meio dos meus colegas e dos meus pacientes seropositivos, como único doente de SIDA com direito à terapia e à vida. Era necessário fazer todo o possível para que também os outros pudessem ter a mesma minha esperança de viver. Tinha tomado conhecimento que poucos meses antes a Comunidade de S. Egídio começara um day hospital na capital Maputo, onde tinha iniciado um programa de terapia gratuita para os doentes de SIDA. Fui a Roma para falar com os responsáveis pelo projecto e verificar se era possível abrir uma sucursal em Quelimane. Deram-me boas esperanças e, portanto, logo que regressei a Moçambique, comecei os contactos necessários com as autoridades sanitárias locais.

 

Quais foram as respostas ?

Muito positivas. E, na verdade, seis meses depois do meu regresso, o primeiro day hospital de Quelimane abriu as portas e eu deixei de ser o único dos meus concidadãos doentes com direito à vida. Em seguida, grandes ajudas internacionais começaram a ser colocadas a disposição de vários Países africanos e iniciou-se a difusão da terapia antirretroviral. Entretanto, na Índia e no Brasil tinha-se começado a produzir estes fármacos genéricos. No mercado começavam a aparecer remédios a um preço acessível.

 

Porém a SIDA não é uma doença como as outras. Sobre o doente persiste, ainda hoje, uma marca de vergonha e de maldição.

Na verdade havia ainda outra grande luta a travar. Aquela contra o estigma. O medo do ostracismo bloqueava ainda a maioria das pessoas para enfrentar o teste e para declarar-se seropositivas. Por isso pensei que a minha situação pessoal de seropositivo em terapia antirretroviral poderia ser útil para dar coragem a muitas pessoas, ou pelo menos pudesse servir para quebrar a espiral do silêncio e de fuga da realidade. Em Quelimane todos me conhecem e havia uma grande curiosidade em saber a causa da minha misteriosa doença que me tinha retido em Itália por quase dois meses. Decidi fazer duas reuniões: uma com todos os trabalhadores do hospital e outra com os cristãos da minha paróquia. A participação foi numerosíssima. Expliquei que me tinham descoberto ser doente de SIDA e que me contagiei operando ou assistindo as mulheres no parto e que estava a fazer terapia mediante a qual começava a sentir-me melhor e me permitia trabalhar. Aproveitei para ensinar algumas coisas fundamentais relativas ao vírus HIV e à doença, como ela se transmite e quais são os malefícios que provoca no organismo e por que motivo, se não se trata, leva o paciente a morrer num tempo relativamente breve. Anunciei que a terapia estava disponível de forma gratuita e que não se devia ter medo de fazer o teste, porque era o único meio para saber com tempo a verdade sobre si próprio e poder começar o tratamento.

 

Qual foi a reacção das pessoas?

Estas duas conferências mexeram as águas. Depois foram numerosos aqueles que se submeteram ao teste. Muitos descobriram que eram seropositivos e começaram a terapia. Agora em Quelimane as pessoas em tratamento são quase mil e muitos delas, já consumidos pela doença, recuperaram as forças, o peso, a esperança e aquilo q
ue mais conta, a vontade de viver. Essas pessoas, com o seu silencioso mas visível testemunho, fazem a melhor propaganda para vencer a vergonha e o isolamento.

 

Considerando que a cura é, ainda hoje, um privilégio de poucos, que se pode fazer para travar o contágio?

Não obstante todo o empenho para a educação sexual e prevenção, a percentagem dos contagiados continua a aumentar. O facto é que a via principal da transmissão é aquela sexual e uma diminuição dos casos pode acontecer somente se se conseguir promover uma mudança de comportamentos sexuais especialmente entre os jovens. Por outras palavras: é necessário uma conversão do coração. Para a conseguir não bastam os esforços humanos, a publicidade, os cartazes pelas estradas. Eu sou um missionário e nos meus longos anos de sacerdócio posso bem testemunhar que a conversão acontece só com a graça de Deus, como está escrito em Ezequiel: “Dar-vos-ei um coração novo”. O coração novo só Deus é que pode dar.

É preciso que a Igreja e os crentes de todas as religiões se empenhem em primeira pessoa para obter com a oração, a caridade e a educação este dom do bom Deus.

 

O senhor é médico, mas como sublinha, também é sacerdote e missionário. Como é que se sente a viver esta experiência da sua doença? Como foi interpelado do ponto de vista da vida espiritual e da fé?

Quando recebi a notícia de era seropositivo comecei una séria reflexão sobre a morte. Antes disso a morte era uma realidade que se referia aos outros, agora o interessado directo era eu. Esse pensamento acompanhava-me como um dado de facto que agora fazia parte da minha identidade. Não importa quanto tempo me separasse do seu abraço, a verdade era que a minha carruagem viajava para o terminal. Uma primeira consequência foi aquela de captar o sentido de profunda humilhação que o morrer traz consigo. Trata-se de abandonar todo privilégio ou excepção. Os meus doentes que morriam não era mais “eles” a morrer mas, em certo sentido era eu. Era como se me fosse concedido de fazer a prova em primeira pessoa. Morrer faz experimentar de não ter mais nenhum poder e de não valer mais nada. Tudo isto eu sentia como profundamente humilhante. Uma humilhação que devia aceitar e de facto aceitei e a partir de então se me abriram as portas de uma liberdade de espírito que nunca antes tinha conhecido. Uma segunda consequência foi a de descobrir que não tinha vivido uma vida enormemente longa: apercebi-me que na prática estava vivo como se o tivesse sido desde sempre. Isso encheu-me de alegria e deu-me um sentido de saciedade e fazia que me sentisse «cheios de dias». A minha sensação de ter terminado a travessia e de estar já no porto, dava-me tranquilidade, mas bem cedo apercebi-me que me impedia de empreender novas iniciativas e novos compromissos. Dava origem ao perigo de não deixar-me mais envolver em nada e de ser vencido pela tentação de esperar, dormindo, o regresso do esposo.

 

Mas o senhor não tem de maneira nenhuma um ar de resignado…

Na verdade encontrava-me nestas reflexões quando deparei-me, no meu ministério, com uma frase da carta de S. Paulo aos Romanos: “De facto, nenhum de nós vive para si mesmo e nenhum de nós morre para si mesmo. Se vivemos é para o Senhor que vivemos e se morremos é para o Senhor que morremos. Porque para isto é que Cristo morreu e ressuscitou: para ser o Senhor dos mortos e dos vivos”. A dualidade de morte e de vida acabava, no fundo, de existir. A dualidade de facto existe até que eu viva para mim mesmo ou morra para mim mesmo, mas se vivo para o Senhor e se morro para o Senhor, a dualidade acaba: quer viva, quer morra é ao Senhor que pertenço. Pertencer ao Senhor, esta vem a ser a única e verdadeira realidade. Dela nasce aquela paz que permite ser feliz de viver assim como ser feliz no morrer. Feliz de viver para o Senhor, feliz de morrer porque morro para o Senhor.

Penso que não existe liberdade interior maior, liberdade de uma grandeza tal que, para poder conquistá-la, foi necessário que Cristo morresse e ressuscitasse.

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Discurso do Pe. Aldo Marchesini, pronunciado em Brescia, em 06 de Outubro de 2001, ao receber o prémio "Cuore Amico", atribuído anualmente a um sacerdote ou a uma irmã que se distinguiram pelo seu trabalho ao serviço dos mais pobres. [ver +]

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